Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.13 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2021
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2021v1p.13
ARTIGOS TEMÁTICOS
Perfume: A História de um Assassino: Uma análise fundamentada na teoria de Winnicott
Perfume: The Story of a Murderer: An analysis based on Winnicott's theory
Perfume: Historia de un asesino: un análisis basado en la teoría de Winnicott
Docente da Universidade Paulista, Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (USP). E-mail: thiagomarquespsi@yahoo.com.br
RESUMO
O presente trabalho apresenta uma análise referenciada na teoria de Winnicott acerca de Jean-Baptiste, protagonista de "Perfume: A história de um assassino". Conceitos winnicottianos sobre o desenvolvimento psicoemocional saudável e psicopatológico e sobre a importância dos cuidados ambientais foram utilizados na análise. Verificou-se que a teoria winnicottiana aponta as conquistas necessárias para que haja um desenvolvimento saudável, indica possíveis complicadores e demonstra a importância de um ambiente capaz de reconhecer o indivíduo e de fornecer cuidados adequados. Além disso, a aplicação destes conceitos no estudo de personagens em obras cinematográficas pôde servir como instrumento para análises teórico-conceituais da teoria psicanalítica.
Palavras-chave: PSICANÁLISE; WINNICOTT; DESENVOLVIMENTO; CINEMA.
ABSTRACT
The present work presents an analysis referenced in Winnicott's theory about Jean-Baptiste, protagonist of "Perfume: The story of a murderer". Winnicottian concepts about healthy and psychopathological psychoemotional development and the importance of environmental care were used in the analysis. It was found that the Winnicottian theory points out the necessary achievements for healthy development, indicates possible complications and demonstrates the importance of an environment capable of recognizing the individual and providing adequate care. In addition, the application of these concepts in the study of characters in cinematographic works could serve as an instrument for theoretical-conceptual analyzes of psychoanalytic theory.
Keywords: PSYCHOANALYSIS; WINNICOTT; DEVELOPMENT; CINE.
RESUMEN
El presente trabajo presenta un análisis referenciado en la teoría de Winnicott sobre Jean-Baptiste, protagonista de "Perfume: La historia de un asesino". En el análisis se utilizaron conceptos winnicottianos sobre el desarrollo psicoemocional sano y psicopatológico y la importancia del cuidado del medio ambiente. Se encontró que la teoría winnicottiana señala los logros necesarios para un desarrollo saludable, indica posibles complicaciones y demuestra la importancia de un ambiente capaz de reconocer al individuo y brindarle una atención adecuada. Además, la aplicación de estos conceptos en el estudio de personajes en obras cinematográficas podría servir como instrumento para los análisis teórico-conceptuales de la teoría psicoanalítica.
Palabras clave: PSICOANÁLISIS; WINNICOTT; DESARROLLO; CINE.
Introdução
Para Winnicott (1983c), a Psicanálise é uma teoria investigativa que considera a tendência genética do indivíduo nos aspectos emocional e físico. A interpretação, uma das principais formas de acesso ao conteúdo inconsciente, pode ser acompanhada pelo suporte ambiental ou holding (Winnicott, 1986a), pelo auxílio e apoio dado em situações de regressão à dependência (Winnicott, 1989m/1994), pela análise da forma pela qual ocorrem o uso e as relações de objetos (Winnicott, 2019e) e pelo brincar (Winnicott, 2019d). Em adicional, o entendimento a respeito da organização egoica, da aceitação da vida instintiva e, ainda, a responsabilidade do indivíduo para com as consequências reais e imaginadas são acréscimos proporcionados na perspectiva winnicottiana (Fulgencio, 2016). A teoria winnicottiana tem sido apresentada como uma proposta valiosa na Psicanálise por auxiliar na prática clínica e em outros contextos voltados para a saúde, em especial ao atendimento a psicóticos (Dias, 2012; Fulgencio, 2016, 2020).
Desde os primeiros trabalhos psicanalíticos, podemos encontrar exemplos de estudos analíticos sobre obras artísticas (Freud, 1914/2012) e artistas (Freud, 1910/2013). Atualmente, o estudo teórico e conceitual em Psicanálise também se tem apoiado em produções cinematográficas, tais como Barbieri (2013), Cúnico, Faraj, Arpini e Vasconcelos (2014) e Sedeu (2015), além de tais produções também serem úteis para o ensino e estudo de psicopatologia (Maia, Castilho, Maia & Neto, 2005). Considerando que as produções cinematográficas são material analisável e que a teoria winnicottiana apresenta contribuições teóricas e técnicas para tal análise, este trabalho apresentará uma análise do personagem Jean-Baptiste, protagonista do filme 'Perfume: A história de um assassino' (Tykwer, 2006).
Objetivando desenvolver um estudo teórico-conceitual da teoria winnicottiana aplicado ao referido personagem, foram selecionados alguns dos textos principais de Winnicott (1983c, 1990, 2019c) e, com o auxílio de trabalhos contemporâneos dedicados ao estudo deste teórico da psicanálise (Dias, 2012; Fulgencio, 2016, 2020), será demonstrado que o personagem Jean-Baptiste ilustra o exemplo de alguém que não alcançou um desenvolvimento psicoemocional sadio e capaz de lidar com a realidade objetivamente, fixou-se nos aromas tal como objetos fetiches e, mesmo havendo uma busca egoica pela integração pessoal, só pôde encontrar um desfecho satisfatório ao se dissolver na realidade e encontrar uma solidão.
Seguindo esta proposta de análise, primeiramente serão apresentados alguns conceitos presentes na teoria winnicottiana. Em seguida, tais conceitos serão aplicados na análise proposta para a trajetória do personagem Jean-Baptiste. Assim, espera-se que este trabalho contribua para a compreensão e aplicação conceitual da obra de Winnicott, para a prática clínica e para o estudo do desenvolvimento psicopatológico.
Winnicott: conceitos iniciais e as fases do desenvolvimento humano
Para Winnicott (1983b), todos os indivíduos possuem uma tendência inata à integração. Partindo de um estado de não-integração, cada indivíduo contará com um potencial genético e inato que, com o apoio de um ambiente, possibilitará um desenvolvimento maturacional cada vez mais integrado (Winnicott, 2000b). O início do desenvolvimento individual ocorre à medida que diversas integrações (de tempo, de espaço, da relação psiquê-soma, do contato com a realidade, da constituição de um si mesmo primário) se concretizam e gradativamente vão conferindo condições para que outros estados e tarefas sucessivas sejam integrados (Dias, 2012; Fulgencio, 2020).
O processo de integração está diretamente relacionado ao conceito de ego e de self. Segundo Winnicott (1983b), o desenvolvimento é possível devido a uma aparelhagem que o próprio indivíduo, neste caso o bebê, possui a sua disposição. A esta aparelhagem pode ser considerada como uma criatividade original (Winnicott, 2019a), a qual possibilita que o indivíduo possa, ao longo de um tempo, organizar as sucessivas experiências sensoriais, motoras, da vida instintiva e as mais complexas que vão surgindo ao longo do desenvolvimento (Dias, 2012). Além disso, a criatividade pode ser considerada como uma "habilidade" ou "característica" do ego, o qual organiza as experiências (Fulgencio, 2011), realiza as integrações e localiza o self pessoal como estando dentro do próprio corpo (Fulgencio, 2014).
De acordo com Dias (2012) e Fulgencio (2016, 2020), o desenvolvimento do indivíduo na teoria winnicottiana é pensado conforme a dependência do indivíduo para com o ambiente. A partir do grau de dependência, o processo maturacional pode ser dividido em três partes: (1) estágio de Dependência Absoluta, (2) estágio de Dependência Relativa e (3) estágio de Independência Relativa ou rumo à Independência.
O estágio de Dependência Absoluta inicia-se com a concepção e segue até os quatro primeiros meses aproximadamente (Winnicott, 1983e). Neste período, o lactente não existe sem a mãe, sua existência se dá na relação mãe-bebê, de forma amalgamada do ponto de vista do bebê. Também sob a ótica do bebê, não existe uma mãe e um ambiente: a mãe inclui o todo do ambiente, além de si mesma. Essa mãe-ambiente, geralmente, é responsável pelo atendimento das necessidades básicas, fisiológicas e instintuais do bebê. Esse atendimento não deve ser perfeito do ponto de vista do observador externo, mas ser suficientemente bom do ponto de vista das necessidades do bebê. Para o atendimento do que é ser suficientemente bom, Winnicott diz que a mãe se adapta de modo específico para com seu bebê, ficando sensível tanto a suas necessidades de cuidados, quanto ao tempo e quantidade destes, passando, inclusive, por uma adaptação corporal e fisiológica. A este modo de relação adaptado e sensível ao bebê foi dado o nome de preocupação materna primária (Winnicott, 2000c).
Enquanto o bebê é atendido pela mãe-ambiente de modo suficientemente ajustado e integrado, ele vive uma ilusão de que o mundo é criado por ele e o atende conforme as suas necessidades. Este modo é chamado de ilusão de onipotência (Dias, 2012; Fulgencio, 2016, 2020) e é necessário para o seu desenvolvimento, visto indicar que os cuidados ambientais estão sendo fornecidos de modo adequado, nem sendo fornecidos com uma demora demasiada, nem perdurando para além das necessidades do bebê.
No período de Dependência Absoluta, as falhas de adaptação ambientais estão associadas a vivências de angústia por parte do bebê (Winnicott, 1974). Um ambiente não ajustado e que se comporta de forma caótica não confere condições para que o bebê siga em seu processo de integrações. Para Winnicott, a gênese das psicoses ocorre no período de Dependência Absoluta devido a falhas de sustentação ambiental, as quais podem ser consideras como aspectos traumáticos (Fulgencio, 2016, 2020).
Importante ressaltar que o trauma associado à fase de Dependência Absoluta não se refere somente ao cuidado que não fora fornecido, mas também ao cuidado dado quando o bebê não necessitava dele ou que fora dado em demasia (Dias, 2012). Neste caso, a situação de intrusão (cuidado invasivo), a reação a esta intrusão (forçando o bebê a reagir ao ato e interrompendo seus processos integrativos) e a falha de confiabilidade (confiança de que o ambiente é estável graças a uma previsibilidade e constância) fazem parte do grupo de situações que podem compreendidas como traumáticas.
Seguindo, temos o estágio de Dependência Relativa (Winnicott, 1983e). Iniciando por volta dos primeiros quatro meses e seguindo até o décimo oitavo mês, aproximadamente, o bebê começa a perceber que nem tudo advém de suas vontades ou necessidades. Com esta percepção, nasce a base para o relacionamento com o ambiente, como algo separado de si. Segundo Fulgencio (2020), é neste estágio que ocorre a percepção do mundo como sendo algo objetivamente conhecido e a diferenciação entre o EU e o não-EU.
À medida que o bebê amadurece e a preocupação materna primária diminui, o ajustamento deixa de ser tão preciso, o ambiente começa a ter pequenas falhas no atendimento às necessidades do bebê (Winnicott, 2000c). Estas falhas, quando ocorrem em um período de amadurecimento adequado, permitem que o bebê comece a perceber que o ambiente não é uma concretização de suas vontades (Winnicott, 1982). O fato de não ser atendido tão logo suas necessidades se expressam, possibilita que o bebê progressivamente deixe de viver a ilusão de onipotência e passe a interagir com o ambiente conforme a confiabilidade e previsibilidade alcançadas. O processo em que a ilusão de onipotência diminui graças ao progressivo ajustamento da preocupação materna primária é chamado de desilusão (Dias, 2012; Fulgencio, 2020).
No estágio de Dependência Relativa, a tolerância a falhas no tempo de atendimento aumenta gradativamente. Segundo Winnicott (2019b),
A sensação da existência materna dura x minutos. Se a mãe está longe há mais de x minutos, então a imago se desvanece e, com ela, cessa a capacidade do bebê de usar o símbolo da união. O bebê fica angustiado, mas essa angústia logo é reparada, já que a mãe retorna em x + y minutos. Em x + y minutos, o bebê não sofreu alteração. Em x +y + z minutos, o retorno da mãe não repara o estado alterado do bebê (p. 157, grifos do autor).
De acordo com o trecho acima, é indispensável que o bebê seja atendido em um tempo que lhe seja tolerável, de modo que não fique desiludido e não perca a esperança em receber os cuidados provenientes do ambiente.
Pensando na importância do desenvolvimento de uma tolerância a falhas ambientais, é importante que, neste período, as falhas sejam suportáveis para o bebê. Trata-se de um período em que a mãe (ou o cuidador substituto) passa a lidar com um número cada vez maior de demandas externas à relação mãe-bebê, tais como o retorno ao trabalho, o cuidado a outros filhos, parceiros, a diminuição de ajuda de pessoas próximas com os afazeres domésticos ou cotidianos. É claro que a mãe sempre teve demandas externas, em maior ou menor grau a depender de cada caso, mas a maturação do bebê permite que a mãe possa retornar as suas atividades pessoais, salvo casos especiais, devido às condições de saúde ou de desenvolvimento da criança.
Vale apontar que o estágio de Dependência Relativa também pode ser traumático para o bebê. Uma dessas possibilidades da ocorrência de um trauma ocorre quando o bebê fica tempo demasiado sem o atendimento das necessidades ou quando o retorno não é capaz de restaurar a relação. Como o bebê já reconhece algum grau de diferenciação entre ele próprio e o ambiente, o trauma atinge a confiabilidade que o ambiente é capaz de proporcionar (Fulgencio, 2004). Em grau mais elevado, o bebê pode passar a não mais esperar aquilo que deseja ou necessita e, consequentemente, passar a não mais investir no ambiente ou, ainda, a tentar algum tipo de interação com o ambiente externo (Fulgencio, 2016).
No estágio de Dependência Relativa, observa-se o surgimento dos objetos transicionais. Segundo Winnicott (2019f), tais objetos (e. g. o ursinho, um pano, um chocalho ou o balbuciar), são utilizados pelo bebê não somente pelas atribuições que os adultos cotidianamente lhe conferem, mas são para o bebê parte de sua realidade e representam diretamente aqueles que, até então, lhe proporcionavam os cuidados físicos e afetivos. Estes objetos costumam ser usados pelo bebê como um modo de relação com o ambiente e pertencem simultaneamente ao mundo subjetivo e objetivo (Fulgencio, 2016). Considerando que tais objetos pertencem a uma área intermediária, entre o subjetivo e objetivo, Winnicott (2019c) a considerou esta área como 'uma terceira área da experiência' e a nomeou como 'espaço transicional'.
A atividade do brincar é outra característica no período de Dependência Relativa. Quando brinca, o bebê exerce ativa e criativamente as capacidades de sua personalidade. Promovendo o intercâmbio entre a sua subjetividade e a objetividade da realidade compartilhada, além de favorecer o crescimento, os relacionamentos de grupo e a diversificação das formas de comunicação (Winnicott, 2019d).
As atividades associadas ao brincar, ancoradas nas experiências do espaço transicional, permitirem que o bebê possa ingressar na vida cultural e vivenciar a arte, a religião, as ciências, dentre outras (Winnicott, 2019c). Tal afirmação, segundo este teórico, indica que o ato e a situação em que alguém brinca, de alguma forma, incita o indivíduo a interagir com fenômenos do mundo externo em relação ao seu mundo interno e, gradualmente, desenvolve a capacidade de identificar padrões, organizar respostas e agir sobre o mundo de modo saudável. Na impossibilidade de brincar, há um empobrecimento levando ao desenvolvimento deturpado ou à patologia propriamente dita e requerendo intervenções psicoterápicas (Winnicott, 2019d).
No estágio de Dependência Relativa, é também esperado que o bebê consiga integrar diversos sentimentos amorosos e destrutivos como sendo seus (Winnicott, 2000a, 2012). Tal tarefa é possível e necessária para o desenvolvimento emocional de modo que se alcance uma diferenciação entre o EU do bebê e o ambiente, incluído com as demais pessoas e objetos neles presente (Fulgencio, 2020). À medida que a diferenciação se instaura, paralelamente também ocorrem mais situações de frustração que mostram para o bebê que o mundo possui uma ordem e é regulado de modo díspar da sua vontade ou controle onipotente. Em decorrência disto, comportamentos agressivos surgem no intuito de manter o ambiente segundo seu controle, mas também para testar o quanto este ambiente é confiável e não está em vias de se ausentar definitivamente (Dias, 2000). Neste sentido, caberá ao ambiente resistir e reconhecer tanto as expressões amorosas quanto as agressivas sem retaliar ou negar estes gestos do bebê (Fulgencio, 2016).
Por fim, o estágio rumo à independência ou de Independência Relativa (Winnicott, 1983e) compreende o período de dezoito meses até o fim da vida. Em uma primeira leitura, pode-se fazer uma crítica quanto ao período ser demasiadamente longo, entretanto, Winnicott não considerou que o desenvolvimento deste grande período seja uniforme. Ao invés disso, tal como apontado por Dias (2012), é no estágio de Independência Relativa que outras conquistas importantes devem ser realizadas, tais como a capacidade para se preocupar com o outro, o desfecho edípico, as modificações associadas à puberdade e a genitalidade. Também no sentido de dividir esse período em conquistas, Fulgencio (2020) sugere a divisão em Independência Relativa Infantil e Independência Relativa Adulta de modo a indicar processos importantes e específicos. Ainda assim, é neste período que o indivíduo poderá viver sem depender diretamente do ambiente, mas utilizando-se das experiências pessoais de cuidado que foram memorizadas (Fulgencio, 2016).
É característico da fase de Independência Relativa que o indivíduo tenha maior relação com o mundo real e possa compreendê-lo segundo as recordações de seu mundo interno. Segundo Fulgencio (2016), é importante reconhecer que a realidade não é tal como se apresenta nem como os outros a dizem, mas sim como uma compreensão pessoal a respeito dela. Nesta direção, o desenvolvimento histórico de um indivíduo deve considerar seu modo de vivenciar as experiências diárias e o sentido pessoal a elas atribuído, quer de adesão, de conflito, de negação ou de indiferença. Ainda segundo Fulgencio, problemas de sustentação ambiental (holding) na fase de Independência
Relativa podem provocar dificuldades de relacionamento interpessoal, como a ocorrência de conflitos desmedidos, excesso de dependência ou de indiferença e, inclusive, dificuldades em reconhecer e cuidar das necessidades do outro.
A delinquência infantil também faz parte dos problemas derivados desta fase. Segundo Winnicott (1999), os casos de delinquência infantil se devem à privação dos cuidados ou da presença daqueles que foram tidos como fundamentais no desenvolvimento emocional e o indivíduo que apresenta traços de delinquência infantil, mesmo que maturo fisicamente, busca uma solução que seja capaz de resolver a falta que lhe provoca sofrimento por meio de uma tomada de posse de algum bem ou de uma contravenção em protesto pelo fato de algo lhe ter sido subtraído nas relações afetivas. Nesta perspectiva, a ocorrência da delinquência infantil implica na necessidade de haja consciência de que algo pertencente a si mesmo tenha sido retirado, o que indica algum grau de maturidade. Apesar de a delinquência ser danosa para a sociedade e também para o convívio do indivíduo, a sua ocorrência pode ser considerada como uma tentativa em direção a saúde análogo e um sintoma neurótico e, por isso, carecer de análise no intuito de identificar o que fora perdido e como o indivíduo lida com a questão (Fulgencio, 2016).
Como podemos observar, os apontamentos conceituais a partir da teoria winnicottiana até aqui levantados são complexos e constituem uma proposta útil para a análise psicanalítica. É válido ressaltar que o processo de desenvolvimento proposto em sua obra não ocorre de forma esquematizada, mas sim com constantes avanços, regressões, retomadas e, inclusive, podendo ocorrer fixações e perdas em alguma etapa desenvolvimental, o que pode levar a indivíduos com problemas complexos a nível psicológico e social, mesmo que consiga alçar maturidade física (Fulgencio, 2016).
Um outro conceito encontrado na teoria winnicottiana é valioso para a análise proposta à frente. Para Winnicott (1990), nos estágios pré-primitivos, aqueles antes das fases de desenvolvimento acima citadas, não há uma diferenciação entre o EU e o não-EU e neles pode-se encontrar o conceito de "solidão essencial". Segundo Fulgencio (2016), há dois sentidos diferentes, apesar de próximo, para este conceito.
No primeiro, Winnicott refere-se ao ponto de origem do ser, "quando nada ainda aconteceu, antes de qualquer tipo de vivência ou experiência, antes de alguma marca (corporal ou semântica) tenha sido registrada; o verdadeiro ponto de início da jornada de todo indivíduo humano" (p. 47). Este ponto de origem não é lógico em nível de pensamento, mas demarca uma passagem de estado entre o 'não ser' para o 'ser' em algum momento em que se possa dizer que a consciência se inicia. Também neste sentido, a passagem do 'ser' para o 'não ser' equivale ao momento em que o estar vivo cessa. Pode-se associar a tentativa de suicídio a uma tentativa de retorno ao ponto original, uma morte para um renascimento em novas condições de existência.
Um segundo sentido da solidão essencial de Winnicott refere-se a um estado de completude vivido pelo bebê (Winnicott, 1990). Na fase de Dependência Absoluta, antes que haja qualquer reconhecimento da existência de um ambiente ou de uma realidade externa, o bebê vivencia um estado de solidão em que está sozinho e em completude. A vivência deste estado pode estar associada ao período de gestação e até ao período pós-nascimento, desde que o estado de completude, a condição básica para a solidão essencial, possa se estabelecer (Fulgencio, 2016, pp. 48-49). Possivelmente, estados de intensidade criativa, como a arte e a religião, quando alcançam uma condição de completude, podem fornecer as condições para uma solidão essencial e uma forma de renascimento.
A partir do processo de desenvolvimento proposto na teoria winnicottiana, será feita uma apresentação resumida dos conceitos de ego, experiência e tendência inata à integração do ponto de vista da teoria de Winnicott.
Uma noção de experiência e de ego
A ideia de experiência, na teoria de Winnicott, associa-se ao conceito-base de tendência inata à integração. A tendência é descrita como uma condição hereditária que um indivíduo tem para crescer, integrar-se, se relacionar com objetos e amadurecer. Considerando o caráter inato, as dificuldades encontradas ao longo do processo podem ser perturbadoras e provocar um desenvolvimento deturpado (Dias, 2012, p. 92). A premissa é a de que o indivíduo inicia seu processo de amadurecimento a partir de um estado de não-integração e, em algum ponto antes do nascimento, o processo de integração começa a ocorrer.
As condições internas individuais são importantes para o processo, mas os cuidados ambientais proporcionados também são estimuladores e fundamentais. Fulgencio (2014), ao trabalhar o conceito de ego e self na obra de Winnicott, esclarece que o ego corresponde àquilo que possibilita a organização das experiências corporais, dando sentido e integrando-as.
Apesar do papel fundamental do ego enquanto agente organizador do indivíduo, o bebê não passa pelo processo maturacional sozinho. O bebê e, de certa forma, os indivíduos que se encontram regredidos a algum estágio inicial ou crítico de desenvolvimento carecem de cuidados. Inicialmente, cuidados físicos proporcionados pelo ambiente também são cuidados psicológicos e a qualidade destes influenciará no processo como um todo (Winnicott, 1990). À medida que passa pelas fases da Dependência Absoluta, Dependência Relativa e Independência Relativa, conquistas fundamentais podem ser retomadas e, gradualmente, o desenvolvimento pode seguir.
O papel do ambiente (mãe biológica ou o cuidador substituto) é complexo. À medida que se mantém constante, o cuidador permite que o bebê se relacione com suas ansiedades ligadas aos impulsos fisiológicos, mas também àquelas que surgem na relação com o tempo, ao espaço e aos afetos, e possa elaborar suas experiências a partir de si mesmo (Winnicott, 1990, p. 176). A continuidade da presença do cuidador possibilita tempo e condições para que que memórias sejam criadas pelo indivíduo (Dias, 2012).
Ser capaz de ter experiências, torná-las memórias e estabelecer alguma perspectiva de padrão, permite que o bebê possa construir um conhecimento a respeito de si, do ambiente e uma previsibilidade a respeito dos acontecimentos. Este conhecimento é considerado como na direção do desenvolvimento saudável, pois nele estão contidos os fundamentos da temporalização e possibilita que no presente haja experiências que, depois de memorizadas, constituirão a base do passado e, consequentemente, a noção de continuidade. Esta premissa possibilita condições para o desenvolvimento da capacidade de novas experiências serem sentidas como reais (Dias, 2012).
Outro ponto, atrelado à compreensão acima, é que a presença do cuidador também proporcionará ao indivíduo, ao longo do seu percurso de desenvolvimento, a capacidade para estar só. Winnicott (1983a) considera esta capacidade como um dos sinais mais importantes do amadurecimento emocional e deriva das experiências diádicas (mãe-bebê). Tais experiências, quando ocorrem de modo suficientemente bom, permitem que o bebê consiga transitar, gradualmente, do modo subjetivo para o modo objetivo, passando pelo espaço transicional.
Estando na possibilidade de relacionamento com a realidade interna e externa, 'a capacidade para estar só' dependerá que um objeto bom internalizado esteja presente na realidade psíquica do bebê (Winnicott, 1983a). Uma relação com esse objeto e com outras relações internas possibilitará a autossuficiência para viver mesmo com a ausência do cuidador, o qual passará gradualmente a ter a condições de ficar mais tempo ausente sem que o bebê seja exposto a angústias que interrompem a integração e a continuidade de ser (Winnicott, 1974).
Entretanto, e se não houver um cuidador capaz de ser um ambiente suficientemente bom para acolher um recém-nascido, lhe proporcionar um suporte para que as integrações iniciais e auxiliá-lo em suas conquistas desenvolvimentais? Tais questionamentos são complexos e não se lhes pretende dar uma solução categórica. A seguir, serão discutidas, entretanto, algumas passagens de Jean-Baptiste e analisados sob a ótica dos pressupostos conceituais até aqui apresentados.
Jean-Baptiste: entre muitos odores e a busca pelo perfume perfeito, a solidão inicial e a solidão essencial
Jean-Baptiste é o filho da quinta gestação de sua mãe e seu nascimento ocorre sob uma barraca de peixes de um mercado de Paris no ano de 1738. Os bebês das gestações anteriores morreram no nascimento ou logo após e, conforme prática comum, eram jogados no rio juntamente com os resíduos de peixe. Jean contraria o destino provável "decidindo" que o seu não seria o mesmo fim que o dos outros irmãos. O narrador afirma que este bebê, Jean, possuía desde o nascimento uma capacidade ou vontade de viver diferente daquelas dos irmãos.
Nas cenas anteriores ao nascimento e nas seguintes, observa-se que o filme mostra a complexidade e precariedade do local onde ocorreu o nascimento. Há uma variedade de estímulos, principalmente olfativos, aos quais todos, inclusive os bebês, são expostos constantemente. Tal informação apresentada logo no início da trama será trabalhada juntamente com o eixo principal do filme: a aptidão olfativa e o interesse pelos odores.
Juntamente com a exposição aos odores, o narrador pontua que os primeiros sons aos quais o bebê é exposto dizem a respeito da perda da mãe. Ao verem o bebê sob a barraca, frequentadores do mercado interpretam o fato como sendo uma tentativa de assassinato por parte da genitora e, em decorrência, ela acaba por ser enforcada.
De acordo com a teoria winnicottiana, espera-se que comecem a ser prestados os cuidados apropriados ao bebê e o atendimento as suas necessidades básicas logo após o seu nascimento. Segundo Winnicott (1986a), estes cuidados iniciais são compreendidos no conceito de holding e referem-se a uma atitude da pessoa responsável pelo cuidado em dar suporte ao recém-nascido para que possa dar início e continuar seus processos de integração e de desenvolvimento. No caso de Jean, provavelmente algum tempo decorreu entre o nascimento, o julgamento e o enforcamento de sua mãe e, possivelmente, alguém deve tê-lo pego, porém estes cuidados para com a lactante não foram retratados, o que tende a indicar que não houve uma figura capaz de se sintonizar com suas necessidades tal como aquilo que Winnicott (2000c) chamou de 'preocupação materna primária'.
O não atendimento às necessidades básicas do recém-nascido é grave e perturbador. O bebê, apesar de fora do corpo da mãe, ainda não tem condições de sobrevivência e sequer tem noção do que é o EU e o não-EU (Winnicott, 1990). Nos primeiros momentos após o nascimento, o bebê ainda não é uma unidade integrada em um EU e necessitará de um tempo e cuidados especificamente adaptados para seguir seu processo maturacional em direção a um estado de integração (Dias, 2012). Como tais cuidados não foram observados, dificultando uma organização egoica capaz de experimentar os acontecimentos vividos e tendo de lidar com a ameaça de aniquilamento, podemos inferir que o nascimento de Jean-Baptiste tenha sido traumático (Fulgencio, 2004).
Posteriormente, o bebê Jean é encaminhado para um orfanato. Logo em sua chegada, é reconhecido como um bebê 'morto' por parte da responsável pelo local. Neste ponto, após a perda da mãe biológica, era esperado que alguém fosse capaz de desenvolver uma capacidade de se identificar com o bebê, preocupar-se com ele e fornecer cuidados adequados. A 'preocupação materna primária' está intimamente relacionada à ideia de holding e é mais frequentemente identificada nos comportamentos da mãe biológica uma vez ela passa pelo processo de adaptação durante a gestação e tende a ter mais aptidão em se adaptar ao bebê. A preocupação materna primária não é, entretanto, específica da mãe biológica e pode se desenvolver em outros cuidadores, inclusive em indivíduos do gênero masculino. Nesse caso, o atendimento e os cuidados ao bebê podem ser exercidos por alguém que ocupe o lugar de "mãe substituta" e que consiga se adaptar e proporcionar cuidados. Entretanto, isso não ocorre com o bebê Jean.
Apesar do ambiente adverso, na cena em que um dos órfãos se aproxima do bebê para conferir se estava vivo ou morto, observa-se o reflexo de pressão palmar de Jean. Esta cena se conecta com a fala do narrador ao exprimir anteriormente que este bebê, diferentemente dos outros, possuía vontade de viver, mas que também pode ser enquadrada entre os comportamentos básicos de um bebê com algum grau de desenvolvimento saudável, em sua tendência inata ao amadurecimento. Também nesta cena, o enquadre da filmagem focaliza Jean direcionando o dedo de um órfão para a sua direção e, apesar de direcionar o espectador à alusão da busca do seio, indicando a ideia de amamentação, o personagem dá continuidade ao movimento aproximando o dedo do orifício nasal, clarificando o interesse do bebê pelo odor. Observa-se, assim, novamente, a presença marcante da sensibilidade olfativa de Jean e o uso desta para o contato com o mundo.
Na sequência, outras crianças órfãs tentam matar Jean. O bebê chora e, com isso, chama a atenção de Madame Gaillard. Ela o socorre em tempo, mas a narrativa deixa claro que o lugar de Jean e dos outros órfãos para a cuidadora é o de uma fonte de renda porque os trata como objetos e investimentos e não como uma possibilidade de cuidados adaptados, esperados atualmente de um orfanato. Nesta configuração, observa-se uma distância considerável entre o ambiente suficientemente bom tal como Winnicott (1983e) propõe na fase de Dependência Absoluta e aquilo que é fornecido aos órfãos, especialmente a Jean.
A aptidão por cheiros e odores é uma constante ao longo da obra. Uma sequência de cenas, inclusive, é apresentada de forma a sinalizar que essa aptidão se desenvolve em Jean como linguagem, antes mesmo da linguagem verbal. Há um interesse pelo universo dos odores e estes indicam um elo entre um Jean introspectivo e a realidade objetiva. Apesar do aspecto positivo de relação ou tentativa de interação com a realidade, a aptidão pelos odores caracterizar-se-á como uma expressão da função epistemofílica de uma parte psicótica da personalidade que é inata e se apresenta como "uma curiosidade intrusiva, arrogância e estupidez" (Zimerman, 1999, p. 229).
Aos 13 anos, Jean é vendido para um curtume e, mais tarde, tem a possibilidade de conhecer o "mundo" e seus vastos odores. O narrador adjetiva Jean como sendo "ganancioso", ávido por "colecionar odores" e que somente noutro momento os diferenciaria entre bons ou ruins. Neste ponto, observa-se que o que era uma sensibilidade por odores tenderá a se assemelhar a um dos destinos que os objetos transicionais podem ter: o objeto fetiche (Winnicott, 1989i). No caso de Jean, a relação com os odores não possui uma relação direta com ato sexual como um fim, mas uma possível tentativa de relação com um representante de um objeto (sujeito) perdido. Uma vez que a presença da mãe foi colocada na cena do nascimento em meio aos odores do mercado de peixes, podemos dizer que a compreensão winnicottiana indica que os odores seriam os objetos transicionais que fazem o elo entre o Jean e sua mãe, localizando-o como entre a fase de Dependência Absoluta e a de Dependência Relativa.
Em uma passagem pela cidade, Jean se depara com o universo encantador e instigante: a perfumaria. Nesta cena há, simultaneamente, a apreciação de um perfume recém-criado pelo perfumista para uma cliente e um tom de sedução entre eles. Aqui, a associação entre o Perfumista (perfume) e a Mulher (sensualidade feminina) dá um primeiro sinal da associação do objeto parcial (odor) com a conotação sexual. É importante sinalizar que esta observação ocorre na idade da puberdade de Jean.
Na sequência da cena, Jean percebe o odor de frutas carregadas por uma jovem. Ele a segue e, quando se confrontam, cheira suas mãos. Este gesto inusitado é recebido com desconfiança e temor por parte da jovem. O curioso é que, após a saída da jovem, fogos de artifício marcam os céus, possivelmente permitindo a ênfase dada pelo diretor de modo a imprimir o registro de que este encontro seja percebido pelo espectador como tendo um caráter comemorativo e festivo, algo como uma representação de alegria e prazer.
Seguindo a trilha dos odores favorecida pela sensibilidade incomum, Jean reencontra a jovem e cheira-lhe a pele. Ela se assusta e, evitando que ela grite, acaba por sufocá-la até a morte. Nesse momento de percepção do cheiro feminino há a visualização de um casal se beijando. Tal contexto, pressupõe-se que ocorreu a demarcação dos elementos específicos: (a) a sensibilidade pessoal a odores; (b) a relação com objetos transicionais; (c) as presenças do perfumista e do namorado (uma imagem sexual do masculino); (d) as presenças da cliente e da namorada (imagem sexual do feminino), e (e) os feromônios (mais sensíveis para Jean).
Partindo da ideia de que o fetichismo seja um dos destinos do objeto transicional (Winnicott, 1989i) e este, por sua vez, seja um representante de um objeto capaz de proporcionar algum grau de satisfação das necessidades ao longo do desenvolvimento (Winnicott, 2019f), é possível que, com as mudanças características da puberdade e da adolescência (Dias, 2012), Jean tenha associado o interesse pelos odores com o prazer e a sexualidade associados ao objeto feminino. A não existência de relação com a mãe biológica, com alguma figura substituta capaz de fazer a maternagem suficientemente boa e com outros sujeitos femininos com os quais tenha se relacionado de modo mais integral ao longo da história pode ser, entretanto, considerada como determinante na manutenção da relação parcial com os objetos femininos e o impedimento do reconhecimento das mulheres em sua totalidade, pertencentes a uma realidade não-EU. Tal análise, novamente caracteriza o personagem como estando entre as fases de Dependência Absoluta e Dependência Relativa.
Ainda nesta cena, Jean percebe que a jovem não possuía vida. Ele não demonstra qualquer sentimento de culpa ou de horror pela consequência de seu ato. Isso sinaliza que a Jean não alcançou o estágio de concern ou concernimento, o que só é possível quando é alcançado um estatuto unitário do EU, o reconhecimento de uma realidade não-EU (Dias, 2012) e que os objetos presentes nela podem sofrer ações do sujeito e, consequentemente, se sentir culpada e ter de criar ações reparadoras (Winnicott, 1983d).
Prosseguindo, o narrador pontua que Jean criara um sentido para sua insistência e, buscará formas de manter os odores 'vivos'. Durante a entrega de uma encomenda de couros, Jean se encontra com Bardini, um perfumista famoso, porém ultrapassado. Curiosamente, Bardini se propusera a criar um perfume em resposta ao Amor e Psiquê do perfumista observado por Jean em sua ida para a cidade retratada em cena anterior.
Este encontro é intenso: Jean demonstra sua maestria em reconhecer a composição do perfume e associá-la com os frascos na loja de Bardini, porém, verbaliza que desconhece os nomes. Durante um desafio em criar um perfume idêntico ao Amor e Psiquê, Jean e Bardini criam uma fragrância ainda melhor que o original. Neste momento, Bardini reconhece as habilidades de Jean e este, por sua vez, reconhece o perfumista como mestre. Entretanto, ao constatar que Jean supera suas próprias habilidades, Bardini pede que Jean vá embora antes mesmo de experimentar o perfume recém criado.
Após experimentar a nova fragrância, Bardini decide 'comprar' Jean de seu patrão. Ele o leva para sua loja e passa a ensiná-lo a respeito da composição da perfumaria e sua construção. Esse ponto da trama pode ser associado a aquilo que Winnicott chama de 'elemento masculino puro' (Winnicott, 2019a). Esse elemento é associado ao ato de fazer e, na história em análise, é identificado em Bardini e é acompanhado pelo desejo idealizado por Jean em conseguir capturar o cheiro e 'guardá-lo', mantendo-o 'vivo' para sempre (ressaltando que cheiro, nesta cena, está atrelado ao mito do perfume perfeito narrado anteriormente por Bardini).
No desenrolar da trama, Jean recebe de Bardini uma documentação para ir à Provença. Coincidentemente, após a saída de Jean, ocorre o desmoronamento da perfumaria e da própria casa de Bardino, provocando sua morte. Tal cena não deve passar de modo desapercebida. Várias situações trágicas foram frequentemente apresentadas na trama logo depois de saídas de espaços vivenciais de Jean nos quais alguma forma de relação marcante com outras pessoas fracassara. Podem ser citados: o nascimento de Jean trouxe a morte de sua mãe; a saída do orfanato, a morte da Madama Gaillard; a saída do curtume, a morte do patrão e, agora, a saída da cidade, a morte de Bardini. Tais cenas indicam o destino fatídico das relações com figuras com as quais Jean se apegara, atualizando o trauma de não ter conseguido uma primeira relação de amor e dedicação suficientemente bons. Na impossibilidade de uma relação com início, meio e fim, só resta destruir tudo de modo a recomeçar do 'zero' em outra cena. Estas dinâmicas indicam a tentativa e o fracasso da resolução de uma situação traumática (Winnicott, 1989d).
Em Provença, Jean continua com suas experiências olfativas e, para tal, uma série de assassinatos é cometida. Em cada um deles, Jean realiza procedimentos quase 'ritualísticos' para a retirada e armazenamento das fragrâncias oriundas das mulheres assassinadas. Este comportamento parece ser derivado de uma espécie de "encantamento" por algo que precise ser guardado tal como uma necessidade de preservar a essência.
Em paralelo, Jean percebe que os odores são capazes de influenciar os comportamentos em geral. Em uma destas situações, ao receber uma crítica de seu novo chefe, usa uma gota da fragrância de uma das mulheres assassinadas e faz com que ele fique mais calmo. Este dado pode ser entendido como o uso da essência anteriormente extraída e guardada no intuito de exercer poder sobre a realidade e à dinâmica existente no mundo. A forma de interação de Jean com os cabelos, com pele e com outras partes das mulheres destacadas nas cenas tende a indicar que não há um reconhecimento das mulheres assassinadas como sendo "pessoas". Há, apenas, uma interação com as partes delas, algo que pode remeter às primeiras interações dos bebês com os cabelos, pele, adereços e outras partes daqueles que estão provendo cuidados ao bebê.
Uma vez que as autoridades iniciam a busca pelo assassino, outros crimes paralelos também são apresentados na trama, permitindo que Jean continue seus atos sem ser notado mais uma vez. Gradativamente, sua coleção de perfumes vai aumentando conforme sua avidez pelos novos odores. Porém, suas ações são interrompidas com sua prisão. Julgado, Jean é levado à execução pública portando consigo um frasco com a síntese das fragrâncias coletadas após seus assassinatos. Ao utilizar a fragrância em si mesmo, ocorre um alvoroço entre os presentes e o consideram inocente graças ao efeito deste perfume. Um êxtase paira e influencia todos os presentes levando-os a um estado perecido com um transe e culminando com atos sexuais em público e sem censura. O único que não é influenciado neste processo é o pai da última jovem assassinada, possivelmente devido a estados emocionais ou a uma incapacidade olfativa. Esta situação muito se assemelha ao mito romano a respeito do perfume perfeito, o qual foi narrado anteriormente por Bardini.
Com este desenrolar da trama, outro personagem, sob tortura, confessa os crimes e é executado, colocando a investigação como encerrada. Já fora da atenção pública, Jean segue em retorno para Paris com o elixir 'perfeito', o perfume capaz de quase tudo, a fragrância materializada de um desejo onipotente.
Jean, entretanto, ainda é incapaz de amar e de ser amado mesmo sob os efeitos do perfume. O perfume parece carregar as primeiras formas de contato com o mundo por meio dos aromas e representar a personagem que poderia apresentar o mundo para Jean, não alcança seu objetivo: mesmo havendo um objeto transicional, é necessário que a figura original esteja viva no mundo subjetivo para que o desenvolvimento possa ocorrer e a maturidade emocional dar sentido para a vida.
Com esse resultado, a busca de Jean pelo perfume perfeito não tem mais sentido e o elo com o mundo esmaece. Aqui, vale a citação de um trecho de Fulgencio (2016):
No entanto, se a mãe morre (quer dizer, desaparece por um tempo maior do que o suportável para mantê-la viva ou presente), a importância do objeto transicional é inflacionada até a morte afetiva desse objeto (valor zero, nenhum interesse, indiferença pelo objeto). Ele deixa de ser a mãe criada/encontrada/materializada num objeto, passando a ser algo externo e sem valor para a criança; ou, então, num sentido oposto, mas patológico, numa tentativa de negar a morte da mãe, ele transforma-se num objeto fetiche ou em um objeto que substitui a mãe morta, supervalorizando o objeto como sendo a mãe, na tentativa de reencontrar a mãe que desapareceu para sempre, na sua perspectiva... (Fulgencio, 2016, p. 43)
Conforme esta citação, o desdobramento do caso de Jean pode ser considerado como que enquadrado no desfecho patológico: negando a morte da mãe, o objeto transicional se tornou um objeto fetiche e/ou substituto da mãe morta. Tal objeto é o aroma que, sendo supervalorizado por Jean, carregava em si uma tentativa de reencontrar a mãe desaparecida para sempre desde o seu nascimento.
Segundo o narrador, em 25 de junho de 1966, Jean chegou a Paris e foi guiado por suas memórias olfativas 'como um sonâmbulo' para o lugar onde nasceu. De volta ao local de início de sua história, despejou sobre si todo o líquido presente no frasco e, surrealmente, iniciou o processo de sua morte: atraiu e foi desejado por todos, mas ninguém o reconheceu como uma pessoa, como um 'alguém'. Em um instante desapareceu sem deixar vestígios, revivendo algo análogo à cena inicial.
Com este fim, teoricamente, pode-se inferir que ocorrera uma tentativa de encontrar algum lugar possível para estar em "paz". Ao ser devorado pelo ambiente, há uma dissolução do EU e não é mais possível nem necessário ter de lidar com o ambiente de modo objetivo. Assim, Jean regressou às origens mais primitivas: deixar de existir por este caminho foi, também, uma busca por uma solidão essencial (Winnicott, 2000b) consumada.
Considerações Finais
A realização deste trabalho buscou verificar a aplicação e estudos da teoria do desenvolvimento emocional de D. W. Winnicott em uma obra cinematográfica. Foi identificado que a teoria winnicottiana possui elementos conceituais consistentes que se somam a outros pressupostos teóricos psicanalíticos viáveis para a compreensão da dinâmica retratada em um personagem fictício, mas que pode corresponder a elementos da vida normal necessários de análise na prática clínica.
Conforme a análise realizada, o personagem em questão alcançou um desenvolvimento emocional que pode ser, considerando entre as fases de Dependência Absoluta e de Dependência Relativa. Conseguiu chegar a usar objetos transicionais, porém não de modo suficiente a aplacar o trauma inicial. Jean vivenciou muitas situações de negligência ambiental, abandono e de não reconhecimento como uma pessoa. Dados os acontecimentos e a dinâmica do personagem, houve algumas integrações que, mesmo tendo sido eficazes, não foram capazes de suportar uma vida tal como é esperado de um indivíduo adulto e maduro. Devido a falhas ambientais, não conseguiu conquistar a capacidade de ficar só, de cuidar de si e de outros, de se preocupar, sentir culpa e reparar o dano causado, de reconhecer o outro como um não-EU e com ele se relacionar, de internalizar regulações morais a nível superegoico, dentre outros.
Assim, retrata um caso de psicose subjacente, o desfecho possível foi um fim em retorno para o início. Retornando ao local de nascimento, usou os aromas para incitar e se relacionar minimante com o mundo, recebeu uma atenção incapaz de reconhecê-lo como uma pessoa e de dar suporte para a vida e, ao final, se dissolveu em um todo sem deixar vestígios, nem saudade. Este ato final, em algum grau, pode ser equiparado ao desejo de desaparecer, semelhante do ao apresentado em ideações suicidas.
Por fim, espera-se que este trabalho tenha auxiliado e instigue que os leitores e interessados na teoria de Winnicott busquem utilizar os conceitos e pressupostos para a prática clínica e outras análises que forem viáveis, quer de na vida dramatizada em obras artísticas, quer na arte imitada pela vida.
Referências
Barbieri, C. P. (2013). Clube da luta: a clivagem do eu. Cógito, 14,8-11. [ Links ]
Cúnico, S. D., Faraj, S. P., Arpini, D. M., & Vasconcellos, S. J. L. (2014).Dinâmica familiar e violência a partir da análise do filme Precisamos falar sobre Kevin. Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia, 7(2),156-163. [ Links ]
Dias E. O. (2000). Winnicott: agressividade e teoria do amadurecimento. Revista de Filosofia e Psicanálise Natureza Humana, 2(1),9-48. [ Links ]
Dias, E. O. (2012). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott (2 ed.). São Paulo: DWW Editorial. [ Links ]
Freud, S. (2012). O Moisés de Michelangelo. In Sigmund Freud. Obras Completas. (Vol. 11, pp. 373-412). São Paulo: Companhia das Letras. Original publicado em 1914. [ Links ]
Freud, S. (2013). Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci. In Sigmund Freud. Obras Completas. (1 ed., Vol. 9, pp. 113-219). São Paulo: Companhia das Letras. Original publicado em 1910. [ Links ]
Fulgencio, L. (2004). A noção de trauma em Freud e Winnicott. Revista de Filosofia e Psicanálise Natureza Humana, 6(2),255-270. [ Links ]
Fulgencio, L. (2011). A importância da noção de experiência no pensamento de D. W. Winnicott. Estudos de Psicologia - Campinas, 28,57-64. [ Links ]
Fulgencio, L. (2013a). A noção de Id para Winnicott. Percurso. Revista de Psicanálise, XXVI(51),95-104. [ Links ]
Fulgencio, L. (2013b). A redescrição da noção de Superego na obra de Winnicott. Rabisco. Revista de Psicanálise, 3,153-168. [ Links ]
Fulgencio, L. (2014). Aspectos diferenciais da noção de ego e de self na obra de Winnicott. Estilos da Clínica, 19(1),183-198. [ Links ]
Fulgencio, L. (2016). Por que Winnicott? São Paulo: Zagodoni. [ Links ]
Fulgencio, L. (2020). A Teoria Winnicottiana do Desenvolvimento Emocional como uma Psicologia de Base Fenomenológica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. [ Links ]
Maia, J. M. C., Castilho, S. M., Maia, M. C., & Neto, F. L. (2005). Psicopatologia no cinema brasileiro: um estudo introdutório Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo), 32,319-323. [ Links ]
Sedeu, N. G. G. (2015). Desamparo e pulsão de morte: em busca do perfume ideal. . Estudos de Psicanálise, 43,107-115. [ Links ]
Tykwer, T. (Writer). (2006). Perfume: The Story of a Murderer. In. Alemanha, Espanha, França. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1974). O Medo do Colapso. In Explorações Psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 70-76). Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1982). A Criança e seu Mundo. In. Rio de Janeiro: Zahar Editores. Original publicado em 1964. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1983a). A Capacidade para Estar Só. In O Ambiente e os Processos de Maturação (pp. 31-37). Porto Alegre: Artmed. Original publicado em 1958. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1983b). A Integração do Ego no Desenvolvimento da Criança. In O Ambiente e os Processos de Maturação (pp. 55-61). Porto Alegre: Artmed. Original publicado em 1965. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1983c). O Ambiente e os Processos de Maturação. Porto Alegre: Artmed. Original publicado em 1965. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1983d). O Desenvolvimento da Capacidade de se Preocupar. In O Ambiente e os Processos de Maturação (pp. 70-78). Porto Alegre: Artmed. Original publicado em 1963. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1983e). Teoria do Relacionamento Paterno-Infantil. In O Ambiente e os Processos de Maturação. (pp. 38-54). Porto Alegre: Artmed. Original publicado em 1960. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1986a). Holding e Interpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1991. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1989d). O Conceito de Trauma em Relação ao Desenvolvimento do Indivíduo dentro da Família. In Explorações Psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 102-115). Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1989i). O Destino do Objeto Transicional. In Explorações Psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 44-48). Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1989m). A Importância do Setting no Encontro com a Regressão na Psicanálise. In Explorações Psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 77-81). Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1990). Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1994). O Conceito de Regressão Clínica Comparado com o de Organização Defensiva. In Explorações Psicanalíticas: D. W. Winnicott (pp. 151-156). Porto Alegre: Artes Médicas. Original publicado em 1968. [ Links ]
Winnicott, D. W. (1999). Alguns Aspectos Psicológicos da Delinqüência Juvenil. In Privação e Delinquência (pp. 127-134). São Paulo: Martins Fontes. Original publicado em 1946. [ Links ]
Winnicott, D. W. (2000a). A Agressividade em Relação ao Desenvolvimento Emocional. In Da Pediatria à Psicanálise: Obras Escolhidas (pp. 288-304). Rio de Janeiro: Imado Ed. Original publicado em 1958. [ Links ]
Winnicott, D. W. (2000b). Desenvolvimento Emocional Primitivo. In Da Pediatria à Psicanálise: Obras Escolhidas (pp. 218-232). Rio de Janeiro: Imago. Original publicado em 1945. [ Links ]
Winnicott, D. W. (2000c). A Preocupação Materna Primária. In Da Pediatria à Psicanálise: Obras Escolhidas (pp. 399-405). Rio de Janeiro: Imago Ed. Original publicado em 1958. [ Links ]
Winnicott, D. W. (2012). Agressão e suas Raízes. In Privação e delinquência (pp. 93-110). São Paulo: WMF Martins Fontes. Original publicado em 1964. [ Links ]
Winnicott, D. W. (2019a). A criatividade e suas origens. In O brincar e a realidade (pp. 108-140). São Paulo: Ubu Editora. Original publicado em 1971. [ Links ]
Winnicott, D. W. (2019b). A Localização da Experiência Cultural. In O brincar e a realidade. (pp. 154-166). São Paulo: Ubu Editora. Original publicado em 1967. [ Links ]
Winnicott, D. W. (2019c). O brincar e a realidade. São Paulo: UBU. Original publicado em 1971. [ Links ]
Winnicott, D. W. (2019d). O brincar: proposição teórica. In O brincar e a realidade. (pp. 69-90). São Paulo: Ubu Editora. Original publicado em 1968. [ Links ]
Winnicott, D. W. (2019e). O uso de um objeto e a relação por meio de identificações. In O brincar e a realidade. (pp. 141-153). São Paulo: Ubu Editora. Original publicado em 1969. [ Links ]
Winnicott, D. W. (2019f). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In O brincar e a realidade (pp. 13-51). São Paulo: Ubu Editora. [ Links ]
Zimerman, D. E. (1999). Fundamentos Psicanalíticos: teoria, técnica e clínica - Uma abordagem Didática. Porto Alegre: Artmed. [ Links ]
Recebido em: 04/03/2021
Aprovado em: 30/05/2021