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Revista EPOS
versão On-line ISSN 2178-700X
Rev. Epos vol.3 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012
ARTIGOS
Freud como pensador do político: sobre a igualdade impossível entre os homens
Maicon Pereira da Cunha
Psicólogo, mestre em teoria psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica/UFRJ
RESUMO
A intenção deste artigo é apresentar contribuições do pensamento freudiano para a teoria política. Para isto, delinearemos a construção freudiana sobre o mito do surgimento da sociedade como sendo a dissertação sobre a temática do contrato social. Assim, a versão psicanalítica da constituição das sociedades modernas presente em Totem e Tabu será confrontada com as teses contratualistas da fundação do Estado Moderno, elaboradas por Hobbes e Rousseau, tendo em vista as reflexões críticas de Freud sobre o Estado como garantidor da ordem. Tomaremos como eixo principal a problemática da igualdade, que pode ser questionada com o conceito de narcisismo das pequenas diferenças. Ao discorrer sobre os destinos da força pulsional na constituição do social, vislumbrando seus limites sublimatórios, aprofundaremos como Freud arquiteta esta ideia, e posteriormente avançaremos para a crítica da precária harmonia política construída entre os homens.
Palavras-chave: Freud; política; modernidade.
ABSTRACT
The aim of this article is to present contributions of the freudian thought to political theory. For this, we outline the freudian construction about the myth of society’s birth as a dissertation on the topic of social contract. Thus, the psychoanalytic version of the constitution of modern societies pointed in Totem and Taboo will be faced with the theses of contractualist foundation of the State, developed by Hobbes and Rousseau, in the view of the criticisms of Freud’s reflection on the State as a guarantor of order. We will take as the main axis the problem of equality, which can be challenged with the concept of narcissism of small differences. When we take the drive force’s destinies in the constitution of the social, seeing its limits, we will check how Freud architects this idea, and then we move to the criticism of the precarious political harmony among men.
Keywords: Freud; politics; modernity.
Introdução
Em Totem e Tabu (FREUD, 1913/2006), temos a versão psicanalítica do surgimento das sociedades modernas, na medida em que Freud está dissertando acerca da morte do pai e da construção ética de uma modalidade de sociedade pautada pela junção de forças dos irmãos. Segundo Birman (2006), esta é a maneira de Freud falar do deslocamento de uma organização social centrada no soberano uno para outra organização, na qual há a suposição de uma comunidade política pautada no contrato entre os irmãos. O autor afirma ainda que Freud empreendeu neste texto a leitura da psicanálise a respeito da decapitação do rei realizada pela Revolução Francesa. Neste ínterim, estaria disposto um quadro que esboça a fragmentação da soberania absoluta do rei, legitimada pela soberania de Deus.
Neste sentido, investigaremos alguns pontos que ajudam a elucidar os elementos que nos permitem relacionar o pensamento freudiano com a filosofia política, localizando Freud como um crítico da cultura, no sentido do apontamento do fracasso do social em abarcar a totalidade da relação sujeito/sociedade.
A leitura épica de Freud sobre o surgimento do social é a versão psicanalítica a respeito da temática do contrato social, na medida em que o contratualismo envolve a dimensão da passagem de um Estado fundado na autoridade do legislador absoluto para um Estado balizado pelo contrato entre os irmãos. Por um lado, vemos que, no pensamento hobbesiano, o homem, lobo dos homens, cede ao Soberano o direito do exercício do poder, tendo em vista a proteção contra a morte. Por outro, em Rousseau, o homem abre mão de uma parte de sua agressividade, em nome da dor que ele provoca no outro, o que é chamado de um dispositivo da piedade. O que cabe aqui salientar é que vemos no bojo desta articulação contratualista a dimensão do destino da força para a construção social.
No entanto, a crítica freudiana se insere na perspectiva da enunciação do limite do pacto entre os irmãos na garantia total da harmonia e controle social. O Estado não é garantia contra a violência, a destrutividade e a crueldade uma vez que os valores mais avançados da modernidade, que são circunscritos na concepção Iluminista da possibilidade da felicidade e da harmonia pelo viés da razão, falham. A ruptura com este ideal é a crítica que Freud pôde empreender a partir dos seus textos sobre a Primeira Guerra Mundial.
O horror causado pela guerra denota o retorno da barbárie no seio das sociedades civilizadas, apontando para o limite da sublimação. É sobre esses textos sobre a guerra e na relação com a conceitualização de pulsão de morte, esta que contempla a dimensão da confrontação mortal entre os sujeitos mesmo em tempos não restritos à guerra, que articulamos uma discussão sobre a desarmonia inerente na relação entre os irmãos.
Totem e Tabu e o parricídio
Situando a psicanálise num espectro de abrangência maior no campo do saber, um autor como Mezan (1995) sustenta que o Estado tem o seu germe na teoria contratualista, e, neste sentido, é possível localizar no pensamento clássico, de Hobbes a Rousseau, explicações possíveis acerca da origem do social. Mezan sugere que o contrato gira em torno da questão principal, e secular, de como a força transforma-se em direito. Dentro deste contexto, a psicanálise se inscreveria nesta problemática a partir do texto de Totem e Tabu, que seria o mito político freudiano, tendo no contrato a origem da sociedade e a garantia do equilíbrio social.
Totem e Tabu é o texto em que Freud empreende a narrativa do assassinato do pai da horda primeva. O surgimento dos tabus do incesto, do parricídio e a questão da exogamia são entrelaçados para permitir a dissertação a respeito da origem da civilização. Segundo Koltai (2010), neste texto Freud teria lançado duas questões à antropologia de sua época: o tema da lei moral e da culpa.
Freud sustenta a ideia de que o animal totêmico é o substituto do pai e para evidenciar mais claramente do que se trata a morte do pai, é preciso explorar mais as características da relação na horda primeva. Freud afirma que nesta, há a presença de um pai violento e ciumento, que guarda todas as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos à medida que estes crescem. Ocorre que os irmãos, que isoladamente não têm força para se oporem ao pai, se juntam e cometem o parricídio. Acompanhemos a descrição que Freud faz:
Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível de fazer individualmente.(...) O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição, e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião (FREUD, op. cit., p. 145).
As palavras acima citadas são chave para a compreensão da importância que Freud confere ao parricídio, na medida em que estariam em jogo os fundamentos das organizações tanto sociais, quanto religiosas e morais. No bojo do nascimento dessas organizações está em pauta o paradoxo do sentimento ambivalente que os irmãos nutrem a respeito do pai, pois, se de um lado odiavam o pai, que representava um obstáculo aos seus anseios de poder e de desejo sexual, por outro, amavam-no e admiravam-no. Disto resulta o sentimento de culpa, que se juntava ao remorso sentido pelo grupo por conta da realização do parricídio.¹ Acrescente-se a isto o fato de que o pai morto tornou-se mais forte do que quando estava vivo, por haver aquilo que Freud chama de ‘obediência adiada’: através do sentimento de culpa filial criaram os tabus fundamentais do totemismo, o homicídio e o incesto.
Neste contexto, os desejos, segundo Freud, não unem os homens, mas os dividem, persistindo uma tensão constante entre eles, já que nenhum pode assumir o lugar do pai. Aqui nos é importante sublinhar este aspecto, pois revela o rasgão do mal-estar que se evidencia na relação mútua entre os homens. Freud afirma que
Embora os irmãos tivessem reunido em grupo para derrotar o pai, todos eram rivais uns dos outros em relação às mulheres. Cada um quereria, como o pai, ter todas as mulheres para si. A nova organização terminaria numa luta de todos contra todos, pois nenhum deles tinha força tão predominante a ponto de ser capaz de assumir o lugar do pai com êxito. Assim, os irmãos não tiveram outra alternativa, se queriam viver juntos – talvez somente depois de terem passado por muitas crises perigosas –, do que instituir a lei do incesto, pela qual todos, de modo igual, renunciavam às mulheres que desejavam e que tinham sido o motivo principal para se livrarem do pai (ibidem, p. 147).
Percebemos a importância que a economia da culpa exerce na manutenção do laço que rege a vida social entre os homens. Na descrição de Totem e Tabu, o animal totêmico fica como um substituto do pai, amenizando o sentimento de culpa pela sua morte, de sorte que o sistema totêmico restou como a possibilidade de um pacto com o pai, no qual este prometia tudo o que uma imaginação infantil pode esperar de um pai – proteção, cuidado e indulgência – enquanto os irmãos se comprometeriam a não repetir o ato que causara a destruição do pai real. Freud não apenas está chamando a atenção para o fato de que a inscrição religiosa primordial tem uma intrínseca relação com o sentimento de culpa, mas esta é a forma do autor oferecer a versão psicanalítica da importância da culpa como elemento decisivo para uma modalidade de organização social nascente.
Neste sentido, a queda do absolutismo com a Revolução Francesa poderia ganhar, nas palavras de Freud, uma tradução épica ou um deslocamento sublinhado em Totem e Tabu, na medida em que "a horda patriarcal foi substituída, em primeira instância, pela horda fraterna, cuja existência era assegurada pelo laço consanguíneo" (ibidem, p. 149).
Birman (op. cit.) afirma que o mito do surgimento da civilização em Totem e Tabu é uma construção na qual Freud apresenta os elementos que formam a cena em que se funda a constituição da modernidade na tradição ocidental.2 A correlação se faz pertinente uma vez que o assassinato do pai da horda primeva realizado pelos seus filhos funda o laço social pautado pela culpa. O pai, apesar de morto, persiste no imaginário social, pois a ameaça da morte àquele que pretende ocupar seu lugar, desfrutando de seus gozos, rege a ação dos irmãos, e o pai está sempre como uma sombra, erigido sob um totem.
Com efeito, o argumento é o de que as sociedades democráticas modernas, marcadas pelo republicanismo, foram germinadas na derrocada do regime absolutista, onde o rei foi decapitado. Nesta nova configuração há a imposição da submissão do soberano uno a um regime popular jurídico, legal e constitucional, diverso da mera manifestação de vontade do soberano e restritivo do Poder do Estado. Ou seja, "a descrição freudiana procurou empreender aqui [Totem e Tabu] a narrativa épica do advento da modernidade, na qual uma modalidade de sociedade fundada nos laços fraternos substitui outra centrada na figura do soberano como um" (BIRMAN, 2006, p. 156). Nesta narrativa sobre a constituição da modernidade mediante o ato inaugural de morte, a comunidade dos irmãos é a representação das formações políticas modernas na equivalência de uma fase capitalista liberal, na qual a igualdade, a liberdade e a fraternidade seriam os seus fundamentos.
Além disso, a morte do pai poderia ser traduzida em termos políticos como a perda do poder fundado na tradição e no sagrado. Não obstante, vemos neste momento a tese do incremento do positivismo, "imunizando a racionalidade contra a contaminação de todas as irracionalidades não-capitalistas, seja por Deus, religião, ou tradição, seja pela metafísica ou ética, seja por ideais emancipatórios ou Utopias" (SANTOS, 2002, p. 40, tradução nossa). O contrato significaria justamente a composição entre os irmãos após o assassinato do pai, substituindo a transcendência do pai pela imanência do pacto entre iguais.
Hobbes e o Leviatã
O pacto social, na visão hobbesiana, é precário e insuficiente para garantir a ordem. T. Hobbes atribui uma igualdade aos homens num estado natural, assim como descreve outros pensadores ditos contratualistas. À medida que surge o desejo dos homens de obter uma mesma coisa, sendo esta coisa impossível de ser gozada por todos, eles se tornam inimigos, competitivos. Desta forma, eles não medem esforços no seu ímpeto destrutivo, na arte de subjugar uns aos outros.
Hobbes define três causas principais para a discórdia entre os homens: a competição, a desconfiança, e a glória, de forma que estes elementos servem na dominação pelo ataque para a obtenção de lucro, segurança e reputação. Para Hobbes, os homens, levados por suas paixões, lutam para conquistar o seu bem e obter prazer, de forma que o egoísmo seria a inclinação geral do gênero humano, levando-os à morte. Nesta perspectiva, "durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens" (HOBBES, 1651/1988, p. 75).
O estado social é, portanto, marcado por uma constante rivalidade entre os homens, sendo o medo da morte que faz o homem tender para a paz. A exigência que os homens cumpram os pactos que celebram faz a coesão entre eles, de forma que o contrário seria um estado permanente de guerra. Estes pactos são realizados por aquilo que Hobbes chama de leis da natureza, quais sejam, a justiça, a equidade, a modéstia, que poderiam ser sintetizados sob o mandamento de fazer aos outros o que queremos que nos façam.
Assim é que o Estado seria uma garantia, na medida em que "o fim último, causa final e desígnio dos homens, ao introduzir aquela restrição sobre si mesmo sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação" (ibidem, p. 103). O Estado é o garantidor da segurança, mesmo que seja por meio de um pacto artificial e precário. Esta é a condição de possibilidade de se sair de um estado de guerra.
Este soberano absoluto é o responsável por ser o representante legítimo das pessoas, conferindo a paz e a segurança comuns, estando todos, por isso, submetidos à sua decisão. Isto implica a afirmação de que este modelo é
mais do que consentimento ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo e a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim, civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes, (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus Mortal, ao qual veremos abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. (...) É nele que consiste a essência do Estado, ao qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum (ibidem, pp. 105-106).
Assim, os homens cedem uma parte de suas forças ao Estado pelo medo da morte. Caso contrário, permaneceriam num estado de guerra permanente. O homem, lobo do homem num estado natural, abdica de sua potência de violência originária em nome desta segurança da paz, para a preservação da vida, e, desta forma, há a constituição de um Estado onipotente.
Rousseau e o dispositivo da piedade
Outro ponto de vista contratualista pode ser verificado no pensamento de J. J. Rousseau. O ensaio A Origem da Desigualdade entre os Homens (ROUSSEAU, 1755/2007) é, sobretudo, uma ode à natureza. Segundo Rousseau, a sociedade civilizada provoca uma exploração do homem pelo homem, degradando os valores éticos. O homem precisaria tomar consciência da devastação da natureza, perpetrada por ele mesmo, retornando a um estado natural.
Ao dissertar sobre a desigualdade entre os homens, Rousseau acredita que o homem civilizado paga um alto preço por esta civilização. O pensador sustenta que num estado natural os homens poderiam viver de modo mais harmônico. Há uma passagem do estado natural, pré-social, para o que Rousseau chama de sociedade civil. Na ânsia por conservar a sua propriedade privada, o homem deixa-se encolerizar por sentimentos de competição, persistindo um estado constante de guerra entre os homens. O resultado desta tensão é a desigualdade,3 que não existiria num estado primitivo, pois o homem primitivo não precisaria promover a luta, na medida em que agiria apenas em favor de sua conservação.
Os progressos permitidos pela passagem de um estado primitivo, natural, para a civilidade, ao contrário de constituir um caminho à perfeição dos indivíduos, é, na verdade, uma depreciação da espécie, segundo Rousseau, e, nesta medida, podemos perceber como esta é uma severa crítica das sociedades civilizadas. A propriedade privada seria a responsável por erradicar um estado de igualdade, promovendo a rivalidade e a oposição de interesses:
Foi assim que os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem de outrem, equivalente, segundo eles, ao da propriedade, a igualdade rompida foi seguida da mais espantosa desordem. Foi assim que as usurpações dos ricos, os assaltos dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, sufocando a piedade natural e a voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens avarentos, ambiciosos e maus. (...) A sociedade nascente foi praça do mais horrível estado de guerra. O gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar atrás, nem renunciar às infelizes aquisições já obtidas e não trabalhando senão para sua vergonha pelo abuso das faculdades que o dignificam, colocou-se a si mesmo na véspera de sua ruína (ibidem, pp. 72-73).
A miséria humana, segundo Rousseau, determinada por um estado de guerra entre os homens é freada pelo dispositivo da piedade. A condição de possibilidade da construção do contrato social e da ordem política se delineia pela experiência da abstenção do potencial violento. Em detrimento do horror e da destruição que virtualmente os homens causam aos outros, eles abrem mão deste ímpeto através da piedade.
Rousseau atribui à piedade um estado de anterioridade causal em relação à generosidade, benevolência e a amizade, sendo aquela "o sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie" (ibidem, p. 54). Ou seja, é a piedade que faz as vezes de lei, impedindo os homens de permanecerem se digladiando perpetuamente.
É este sentimento natural, segundo Rousseau, que inibe a prática do mal, mantendo a ordem advinda da razão e da educação. Nesse ponto, haveria uma transformação do mal em condutas que seriam, então, socialmente valorizadas, o que pode ser aproximado do discurso freudiano, no que se refere à constituição do laço social e da ordem política.
Isto se verifica na formulação conceitual a respeito do funcionamento da pulsão, que Freud forja com o texto dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905/2006).4 No concernente à questão da força da pulsão, Freud afirma que o seu movimento originário seria o da descarga sobre o outro, donde se evidencia a necessidade da construção de um jogo alteritário que permita a passagem da atividade para a passividade,5 ou ainda, a passagem de um sadismo originário para um masoquismo secundário. Nesta passagem, Birman (2010) afirma que há a tentativa de domínio sobre o outro e sobre o objeto, de modo que a força da pulsão seria incorporada e introjetada. Segundo o autor, neste movimento, há uma matriz teórica da psicanálise em consubstanciação com a formulação da filosofia política de Rousseau, pois o homem abre mão de seus impulsos mais primitivos em detrimento da dor que causa no outro, mantendo-se no registro masoquista. O operador psíquico da culpa que está em pauta seria o equivalente à piedade, na visão de Rousseau.
Sublimação e seus limites
Sobre o processo de desenvolvimento daquilo que Freud chama de impulsos primitivos, há uma inibição necessária e um redirecionamento para outros campos e finalidades na construção do psiquismo e da possibilidade da vida em sociedade. No texto Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte (FREUD, 1915/2006), o autor usa especificamente o termo piedade para designar o resultado do deslocamento de um estado primitivo para o estado civilizado no que se refere ao destino da pulsão:
Esses impulsos passam por um longo processo de desenvolvimento antes que se lhes permita tornarem-se ativos no adulto. São inibidos, dirigidos no sentido de outras finalidades e em outros campos, mesclam-se, alteram seus objetos e revertem, até certo ponto, a seu possuidor. Formações de reação contra certos instintos assumem a forma enganadora de uma mudança em seu conteúdo, como se o egoísmo se tivesse transmudado em altruísmo ou a crueldade em piedade. (...) A transformação dos ‘maus instintos’ é ocasionada por dois fatores, um interno e outro externo, que atuam na mesma direção. O fator interno consiste na influência exercida sobre os maus instintos (digamos, egoístas) pelo erotismo – isto é, pela necessidade humana de amor, tomada em seu sentido mais amplo. Pela mistura dos componentes eróticos, os instintos egoístas são transformados em sociais (ibidem, p. 291).
Assim, vemos a retomada do motor pelo qual Freud realiza sua leitura sobre a forma como a civilização foi alcançada. A este motor Freud dá o nome de sublimação, obtida através da renúncia a uma parcela da satisfação pulsional. O ponto nevrálgico é a problemática entre a sublimação e a força pulsional. É preciso construir caminhos possíveis como saídas frente ao desprazer e à dor que seriam resultantes dessa força num estado de não ligação. Ou seja, a força, como excitação e intensidade, promove uma constante exigência de trabalho ao aparelho psíquico, para construir destinos à pulsão. No entanto, como veremos a seguir, há um limite para a sublimação.
Neste quadro esboçado da leitura da sublimação como possibilidade da construção de um destino à pulsão, há uma sublime-ação, isto é, remete-se a um esvaziamento da potência erótica na pulsão sexual, na medida em que sublimar significa transformar o objeto do erótico no sublime. Este aspecto está circunscrito à primeira tópica freudiana, de forma que, na segunda tópica, sublimar significa erotizar, em oposição à crueldade e destrutividade. O deslocamento ocorre por conta da revisão teórica imposta pela pulsão de morte. Assim, faz-se necessário o imperativo da erotização frente ao potencial destrutivo de nirvana. Em outras palavras, a sublimação é a possibilidade de se afirmar a vida em oposição aos efeitos da morte, neste segundo momento da leitura freudiana.
Seja por um aspecto, seja por outro, a sublimação sempre teve destaque no pensamento freudiano, na sua articulação entre pulsão e civilização. Portanto, a questão da força pulsional e a necessidade da construção de destinos se estabelecem como uma constante exigência de trabalho. Assim, Freud pode ser referido ao campo político, na medida em que seu discurso aponta para a inauguração da modernidade política (BIRMAN, op. cit.).
A fraternidade, que pela conjugação de forças dos irmãos na construção política marcada pela culpa, e na articulação com a força pulsional nos permite empreender um esboço do quadro moderno do laço social. Com Hobbes, vemos que em nome da sobrevivência e do medo da morte há uma subtração de parcela dos impulsos mais primitivos ao Estado, e com Rousseau, o dispositivo da piedade seria a maneira pela qual a violência cede espaço à civilidade pela dor provocada ao outro. Por um lado, este movimento de deslocamento da atividade para a passividade ganha na versão psicanalítica o equivalente ao estatuto daquilo que Freud chama de destino da força pulsional, por outro, veremos agora como Freud pode ultrapassar este modelo e radicalizar a sua crítica da civilização, já tendo inserido o campo político a que ele se refere.
A reflexão crítica sobre a modernidade
Em Reflexões para os Tempos de Guerra e Morte, Freud realizou uma leitura na qual ele não acredita mais no Estado como garantidor da ordem, como vimos no modelo contratualista. Ao contrário da perspectiva empreendida em Totem e Tabu, aqui Freud não acredita mais na plena captura da força pulsional pela sociedade fraterna, pois o mesmo Estado que refreia a violência, é o que instiga a violência, promovendo a guerra entre os homens. Vale lembrar que o ano de publicação desta obra data de um período importantíssimo, o da Primeira Guerra Mundial. Freud, portanto, está imerso numa época em que os efeitos do caos e horror da guerra rasgam os ideais de uma promessa de felicidade e de ordem. Dito de outra forma, a tentativa de controle total do impulso agressivo é falha, e o resultado disto é a volta auspiciosa da barbárie, sendo a violência exposta de maneira nua e crua, e incitada pelo Estado.
A dizimação completa e o espetáculo de sangue que marcou o embate nunca antes visto devido às proporções desta guerra foram propiciados pelo uso tecnológico mais avançado que a racionalidade científica dispunha. E este ensaio de Freud é a maneira dele evidenciar esta perplexidade, que poderia ser formulada na síntese: como é possível, em meio a um alto grau do estágio da civilização, instigar tal estado de total horror e mortandade? Assim, restava paradoxal e incompreensível a fórmula na qual os representantes maiores da civilidade ocidental, por assim dizer, os europeus, que tinham adquirido um nível elevado de desenvolvimento tecnológico, bélico, científico, poderiam dispor de todo o conhecimento reunido para fins de destruição. É neste contexto que Freud pode opor as sociedades primitivas às sociedades civilizadas. Mesmo que em outras guerras tenha havido bastante terror e sofrimento, nunca antes o mundo tinha presenciado uma guerra tão cruel.
Deste modo, a guerra denota uma situação incongruente em que o Estado não é mais garantia da contenção da força pulsional; ao mesmo tempo que ele reprime os ímpetos de crueldade, ele os instiga. Isto significa que não há mais garantias proporcionadas pela civilização. Nesta articulação, Freud aponta a impossibilidade da erradicação do mal.
As sociedades modernas, tão ensoberbadas com seu elevado estado de civilização, são palco para uma encenação de intensa mortandade, tal qual verificamos com a Primeira Guerra Mundial. Não se sustenta mais da ilusão de que a civilização pode extirpar a morte, sendo esta uma das facetas da barbárie que retorna de forma avassaladora neste cenário moderno.
Em outro texto de Freud, chamado Porque a Guerra? (1933 [1932]/ 2006), a guerra volta a ser norteadora de algumas considerações sobre o social em articulação com o problema imposto pelo questionamento pela guerra. Este texto trata de uma resposta a A. Einstein, que perguntara a Freud se existia alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra.6
Freud começa a resposta ao problema que Einstein lhe impõe considerando as relações entre direito e poder, e fazendo equivaler poder a violência, o que o coloca como um visionário na crítica ao exercício do poder como forma de expressão da violência no controle dos povos.
Freud empreende, ainda, uma leitura retroativa do problema da força entre os homens, da qual constituiu um problema a questão da propriedade privada. Como Rousseau, que viu na origem da desigualdade entre os homens uma expressão de inveja que tem por desdobramento toda a tensão que existirá entre os homens num estado civilizado, Freud entende que a afirmação do poderio bélico submeteu a força do maior sobre o menor. Freud aponta como saída da supremacia do maior, a união de forças dos menores, retomando a sua leitura de Totem e Tabu: "A violência podia ser derrotada pela união, e o poder daqueles que se uniam representava, agora, a lei, em contraposição à violência do indivíduo só. Vemos, assim, que a lei é a força de uma comunidade" (ibidem, p. 199).
Nesta perspectiva, contudo, Freud não acredita na culpa como reguladora social e nem que uma entidade possa regular de maneira plena a força dos demais, pois haveria um ciclo infinito na tentativa de subjugar a força de uns contra os outros. O discurso freudiano se insere, então, na crítica da modernidade, realizando sua leitura sobre a guerra e a política, no campo da crítica da razão. Se a indicação de Freud leva ao enunciado do paradoxo da contenção e da incitação da violência, o problema se impõe no registro da força.
Assim, se cada Estado realizava a repressão ostensiva da força no interior das fronteiras do Estado-nação em tempos de paz, para manter a governabilidade e a prática da política na relação com os demais Estados-nações em tempos de guerra, em contrapartida, o Estado incitaria os cidadãos à violência e à promoção da morte (BIRMAN, 2010, p. 547).
Extrapolando para o território dos tempos de paz, Freud retoma esta mesma questão da impossibilidade da captura da força pelo campo do social, donde ressaltamos o caráter irremediável entre a força da pulsão e o domínio da civilização. Se fica clara a relação entre proibição e promoção da violência em tempos de guerra, o confronto entre os sujeitos e a dimensão da confrontação entre diferentes grupos e classes sociais fica evidente com aquilo que Freud chama de "narcisismo das pequenas diferenças".
O narcisismo das pequenas diferenças e a igualdade impossível
Com a reformulação de alguns dos conceitos mais fundamentais na psicanálise com o advento do conceito de pulsão de morte, houve a imposição teórica da realocação do lugar da agressividade no pensamento freudiano.7 A dimensão da crueldade e da destrutividade surge, na segunda tópica, como sendo mais primordial na constituição subjetiva. O conflito anterior entre pulsão de autoconservação e pulsão sexual é revisto sob a inscrição no campo das pulsões de vida, pelas imposições do imperativo da afirmação da vida na tentativa de neutralizar os efeitos destrutivos da pulsão de morte. Neste campo, retomamos a leitura de Hobbes, evocando a máxima de que o homem é o lobo dos homens.
O potencial de crueldade e destrutividade ganha destaque na leitura de Freud, que é justamente a potencialidade da qual, pela preservação da vida, Hobbes afirma que há a abdicação do impulso agressivo em nome do Estado e da consequente viabilidade da convivência social. É justamente por ser o homem o lobo dos homens que Hobbes formula o Estado como garantidor da ordem. Neste ponto, vimos que Freud não se alia a esta postura, pois o horror da guerra mostrou que o Estado que inibe a crueldade é o mesmo que a incita.
Avançando nesta perspectiva, o dispositivo do qual Freud se vale para sustentar um eterno duelo no campo social e que lançamos aqui para realçar a sua crítica é o chamado "narcisismo das pequenas diferenças". Freud disserta sobre este narcisismo no texto do Mal-estar na Civilização (1930/2006), retomando aquilo que ele havia enunciado no sexto capítulo de Psicologia dos Grupos e Análise do Ego (1921/2006), quando discorria sobre o elemento unitivo dos grupos, os laços libidinais. Freud chama a atenção, neste capítulo, para o fato de que a relação entre os homens em um tempo relativamente longo acarreta o incremento do que ele chama de "sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade" (ibidem, p. 112).
O que está em pauta neste sentimento hostil é a face escondida de uma hostilidade que não é manifestada, enquanto há um outro externo para quem esta agressividade possa ser escoada. Na ausência deste outro, fica fácil a identificação da antipatia ou aversão a pessoas com relações mais próximas, que é justamente a expressão de amor a si mesmo, o narcisismo. A este amor a si próprio na preservação individual, Freud relaciona uma presteza a odiar, donde ele evoca a metáfora dos porcos-espinhos, de Schopenhauer, na qual, num dia de inverno, "nenhum deles pode tolerar uma aproximação demasiado íntima com o próximo" (ibidem, p. 112).
Freud afirma que o mesmo ocorre nas relações sociais. No bojo de um narcisismo das pequenas diferenças se situa uma ameaça à integração plenamente harmônica na organização política entre os homens,8 ou uma ilusão de igualdade num sentido pueril, ou até mesmo ingênuo. A despeito da tentativa legítima das sociedades de arquitetar saídas possíveis para um projeto de governabilidade viável, Freud chama a atenção para um fenômeno que acaba por revelar que "não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão" (ibidem, p. 118).
Conclusão
O ponto em que desejamos insistir é o de que, mesmo após a destituição do soberano uno, a igualdade como um ideal puro, que estaria na base da constituição de uma modalidade social onde há um declínio da função do sagrado e da soberania do legislador absoluto, tem a sua sustentação abalada. A leitura aqui empreendida foi desenvolvida no sentido de ressaltar a impossibilidade de uma regulação social que possa abarcar a complexidade da relação entre sujeito e sociedade. O equivalente disto no pensamento freudiano se articula no eterno duelo entre as exigências da pulsão, por um lado, e da civilização, por outro, tendo o narcisismo das pequenas diferenças como dispositivo privilegiado para a afirmação desta crítica. Neste sentido, Birman (1994) afirma que
as figuras e argumentos desenvolvidos por Freud em Psicologia das Massas e Análise do Ego, além de indicarem a impossibilidade de separar os registros do sujeito e do social, evidenciam também a impossibilidade do sujeito ser completamente absorvido pela sociedade e pela cultura. (...) Por isso mesmo, a relação do sujeito com a sociedade e a cultura é marcada pela tragicidade (p. 113).
A perplexidade com a guerra trouxe elementos sobre a reflexão da presença da morte que situa o campo da crítica a uma civilização que refreia, mas ao mesmo tempo instiga a crueldade, mesmo em tempos de paz. O Estado não é mais a garantia da contenção da força, ou seja, "os maiores representantes desta [civilidade ocidental], que deveriam justamente se regular pela razão científica, utilizavam-na, em contrapartida, para finalidades destrutivas e, no limite, anticivilizatórias" (BIRMAN, 2006, p. 64).
A barbárie, que se tentou abafar por um ideal de aperfeiçoamento do social através do viés científico, volta pela porta dos fundos. Assim, pulsão de morte e narcisismo das pequenas diferenças são conceitos que, articulados entre si, permitem a Freud organizar um discurso que sistematiza os impasses do projeto da modernidade e incrementar uma crítica modernista a respeito de uma ilusão iluminista sobre a harmonização plena entre os sujeitos pelo viés racional.
Referências bibliográficas
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Recebido em: 25/04/2012
Aceito para publicação em: 15/05/2012
Notas
1 Freud ressalta que este sentimento se intensifica por conta da não satisfação
completa aos filhos, não podendo nenhum deles realizar o desejo original de
tomar o lugar do pai.
2 Aqui ressaltamos a filiação do pensamento do autor à obra foucaultiana. Por
isso que este período é chamado de modernidade. Foucault descreve a episteme
moderna como o período contemplado entre os séculos XIX e XX, como podemos
notar, por exemplo, em As palavras e as coisas (1966/2000).
3 Rousseau distingue duas formas de desigualdade: uma que seria natural ou
física, inevitavelmente articulada às diferenças entre idade, saúde, força
física, enfim, e outra desigualdade, moral ou política, dependente da convenção
dos homens. É desta última que é o enfoque do autor neste ensaio.
4 Apesar de a sistematização sobre as características da pulsão só ser
formalmente definida mais tarde, em 1915, com o texto Pulsão e destinos da
pulsão.
5 Este é um dos quatro destinos da pulsão que Freud apresenta em 1915.
6 A. Einstein fazia parte de um Comitê Permanente para a Literatura e a Arte da
Liga das Nações, que, em 1931, foi instigado a promover, pelo Instituto
Internacional para a Cooperação Intelectual, uma troca de correspondências
entre os intelectuais.
7 Nos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (FREUD, 1905/2006), e
durante toda a primeira tópica freudiana, a agressividade era entendida como
sendo um desvio da pulsão sexual.
8 Em consequência deste impulso hostil primordial, Freud afirma que "a sociedade
civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração" (FREUD, 1930/2006,
p. 117), o que revela a severa postura crítica de Freud sobre um mal-estar no
seio da modernidade.