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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.40 no.1 São Paulo jan./jun. 2022

 

A vida dos fantasmas: melancolia e memória

 

La vida de los fantasmas: melancolía y memoria

 

 

Daniel Françoli Yago

Psicólogo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP. Psicoterapeuta junguiano, tradutor e professor do curso de Psicologia da Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Dedica-se aos estudos feministas e de gênero, assim como ao ensino crítico da psicopatologia. e-mail: danielyago@gmail.com

 

 


RESUMO

Este ensaio visa amplificar as concepções de fantasma, seja como figuração político-narrativa, seja como dinamismo, de forma experimental e intuitiva. Para tanto, cumpre alguns itinerários: primeiramente, discorre a respeito de uma lógica fantasmal oriunda dos campos da filosofia, das ciências sociais, da literatura e da psicologia analítica; a seguir, investiga brevemente ressonâncias dessa lógica a partir de conceitos de Fisher sobre reverter a melancolia dos futuros perdidos pelo trabalho de abertura aos fantasmas; e finda com uma reflexão sobre os usos da memória enquanto resistência a partir das figuras mitológicas de Saturno, Mnemosyne e das metáforas da obra A Polícia da Memória, de Ogawa.

Palavras-chave: fantasmas, melancolia, memória, psicologia analítica.


RESUMEN

Este ensayo pretende ampliar las concepciones del fantasma, sea como figuración político-narrativa o como dinamismo, de manera experimental e intuitiva. Para ello, cumple algunos itinerarios: en primer lugar, discute una lógica fantasmal proveniente de los campos de la filosofía, las ciencias sociales, la literatura y la psicología analítica; luego, indaga brevemente resonancias de esta lógica a partir de los conceptos de Fisher sobre revertir la melancolía de los futuros perdidos a través del trabajo de apertura a los fantasmas; y finaliza con una reflexión sobre los usos de la memoria como resistencia a partir de las figuras mitológicas de Saturno, Mnemosyne y las metáforas de La policía de la memoria de Ogawa.

Palabras clave: fantasmas, melancolía, memoria, psicología analítica.


 

 

Fantasmas: uma introdução de imagens

Fantasmas, espíritos, espectros, assombrações, almas penadas. Muitas são as imagens da espectralidade que, desde a mítica popular, parecem proliferar e aprofundar em nós um sentimento de terror provocado pelo deslocamento de um estado supostamente natural das coisas. Dentre as companhias imateriais da vida humana na terra, podemos firmá-los como das mais persistentes. Nunca não estivemos rodeados de fantasmas: eles estiveram nos cantos antigos da lírica greco-romana, mesopotâmica e céltica; foram cultuados enquanto forças numinosas - divinas ou demoníacas; grassaram frequentemente pelos mitos contados ao redor de uma fogueira ou de uma lareira, vestindo roupagens dignas dos contos de fada mais aterrorizantes. Inspiraram toda sorte de expressões artísticas ao longo dos séculos, como nas obras de Homero, de William Shakespeare, de Emily Brontë, além de nas chamadas "fantasmagorias", um movimento estético do fin de siècle que deu origem, por exemplo, ao cinema. Estão nos altares da memória - monumentos históricos, locais de culto religioso e cemitérios - e encontram-se particularmente nos espaços mais traumáticos. Parecem afeiçoar-se a humanos sombrios e habitar sombras humanas, escolhendo, em fotografias antigas, o valioso espaço atrás do ente amado. A habilidade que os fantasmas têm de assombrar se destaca em relação às outras modalidades de horror porque eles suscitam, de modo incontornável, um sentimento de estranha proximidade, visto que raramente comparecem a uma cena à qual não pertencem. Os fantasmas jamais abandonam nossos sonhos, sua instância privilegiada de comunicação.

Fantasmas compartilham com os monstros um estatuto de maravilha: são oriundos de uma perspectiva milenar que se vale da ambiguidade das imagens arquetípicas para celebrar o fantástico da realidade. Porém, ao contrário dos monstros, seres nativos das antípodas imaginais do globo, os fantasmas vivem nas frestas do familiar, como diáfanos guardiões das fronteiras das coisas. São símbolos da porosidade e da movência de, no mínimo, três divisões tradicionais da experiência da memória: a morte-vida, o passado-futuro e o material-imaterial. Em tempos de barbárie e genocídio, o fantasma torna-se uma das imagens mais pungentes sobre a qual a psicologia analítica pode se debruçar, dentro e fora do consultório, em especial no que diz respeito ao atravessamento da melancolia dos futuros, desde já, perdidos.

Este ensaio visa amplificar as concepções de fantasma, seja como figuração político-narrativa, seja como dinamismo, dentro dos campos da filosofia, das ciências sociais, da literatura e da psicologia analítica. Opta-se pelo estilo do ensaio porque, enquanto experimento textual, deseja convidar a uma leitura compromissada com o campo do sensível e a força das imagens na produção conceitual. Assim, busca-se conectar as informações dos diferentes campos de conhecimento através do alinhavo da imaginação - este fio tão característico do estilo intuitivo que não pode se furtar a convidar os próprios fantasmas de sua autoria de participar da sua produção.

Dedica-se, enfim, à memória de todos aqueles que, nos últimos anos, partiram, mas não se foram de todo.

 

Lógicas fantasmais I: ensaiando concepções

Pensar uma vida para fantasmas pode parecer uma contradição na medida em que eles são seres desprovidos de vida orgânica, antitéticos à matéria ou dotados de outra qualidade de manifestação. Não obstante a aparente confusão, em mais de um contexto, suscitam a impressão de que não abandonaram por completo as mazelas da vida humana, seus laços sociais, seus apegos ou seus afetos. Algo de persistente parece defini-los no que concerne à expressão, bem como às imagens e aos sentidos que os perfilam enquanto símbolos. Em vez de resolver a contradição entre viver e não mais existir, opta-se por partir da inspiração hillmaniana do eidos - ideia enquanto prisma do que se vê e através do qual se vê, prenhe de sentidos potenciais - em um exercício de acompanhamento de seus traços fantasmáticos (HILLMAN, 2010). Não o fantasma como objeto de estudo, mas figuração chave para a compreensão de sua própria dinâmica, de sua diáfana vitalidade enquanto lógica que perpassa a materialidade da vida, ou, ainda, o fantasmal como função vital da psique.

A primeira característica dos fantasmas são sua intrínseca negatividade vital, afinal, não costumam ser definidos por possuírem vida. Derrida (1994) afirma que a assombração não supõe uma ideia tradicional de presença enquanto materialidade. No lugar, o filósofo entende assombrações, espectros e fantasmas como seres que revelam a presença da ausência.

Para Derrida, a espectralidade sustenta tal paradoxo porque parte de outra lógica temporal. O fantasma é uma imagem possível do tempo: uma imagem de cisão e de difração. Não o tempo cronológico, organizado e metrificado em conformidade com a reta desenvolvimental da temporalidade cristã-moderna, e sim o tempo fora de eixo, the time out of joint, que Shakespeare anuncia nas primeiras estrofes de Hamlet para designar o estado de desordem do reino da Dinamarca, condição de emergência do célebre fantasma de sua peça: o pai de Hamlet, que o alerta para seu aterrador golpe.

Para além do tempo linear, sabe-se da existência de outras imagens de tempo e sua agência concreta na vida humana. O pensamento simbólico junguiano necessita da noção da coexistência, ora confluente ora divergente, de diferentes tempos e lógicas no processo vital do indivíduo, em dialogia e em confronto com o inconsciente. De modo semelhante, no que diz respeito a Derrida, temporalidades partidas acompanham sua trajetória filosófica. Para sua perspectiva ontológica, a contradição temporal do espectro se dá por ele não poder estar completamente presente - não ser, portanto, um ser em si mesmo -, e sim assinalar uma relação dupla com o que não é mais e com o que ainda não veio a ser (DERRIDA, 1994).

É no interregno entre essas duas instâncias do fantasma, entre o que deixou de ser e o que ainda não veio a ser, que encontramos outras duas características: a tendência compulsiva à repetição do traumático em padrões fatais (o fantasma enquanto o que deixou de ser); e a capacidade do fantasma de não existir factualmente, de existir enquanto virtualidade ou personificação da alma, atrator ou antecipador do que ainda pode acontecer (o fantasma enquanto o que ainda não veio a ser). Embora o lugar-comum do fantasma rapidamente o relacione ao sobrenatural propriamente dito ou ao sobrenatural enquanto figura de linguagem, a investigação ontológica de Derrida toma o cuidado de não o literalizar em uma figura óbvia, optando por aproximá-lo da agência espectral do virtual, daquilo que atua no real sem existir materialmente. Aí residiria, pois, a abertura ao potencial arquetípico e filosófico da sua imagem.

Lógicas fantasmais partem do entendimento de uma causalidade espectral. Ela foi intuída anteriormente, ao menos, por Marx, Freud e Warburg.

Em Marx, o principal autor ao qual Derrida (1994) se volta para erguer os pilares de sua elaboração, o espectro surge como a figura de abertura em seu Manifesto do Partido Comunista ("o espectro do comunismo ronda a Europa"), o primeiro de um sem-número de outros espectros que povoam o pensamento do importante filósofo político. O governo invisível das abstrações financeiras, assim como do big data atual, é um exemplo claro da referida espectralidade. Não só na própria lógica capitalista, ela igualmente existe na produção coletiva de um estrato totalitário de subjetivação, neoliberal e recolonial, que se defende da necessidade da espectralidade por meio de constantes denegações (exorcismos?) dos fantasmas marxistas, em especial seu espectro mais célebre: o do comunismo. Já em Freud, a causalidade espectral atende, entre outros pontos, às condições das formações de compromisso através das quais ocorre a chamada psicopatologia da vida contemporânea. Sonhos, sintomas, chistes e atos falhos como a assombração particular do aparelho psíquico freudiano. Se o recalcamento lida com a possibilidade do retorno de seu conteúdo tenso sob o manto diáfano do processo primário, então esse mecanismo pode atender pelo nome de fantasma.

Em Aby Warburg, por sua vez, a complexidade temporal dos espectros é trazida para o âmbito da história da arte. Ele, um pensador alemão inclassificável a uma única área, é em si um fantasma não admitido na casa da historiografia oficial. Seu esforço seminal de revisar os padrões formativos das narrativas em torno das descontinuidades da arte ao longo dos séculos, postulando uma nova teoria da imagem que, segundo o filósofo da arte Didi-Huberman (2013), pode ser lida através de três segmentos: a imagem-fantasma, a imagem-páthos e a imagem-sintoma. Para Warburg, a espectralidade da imagem é complexa: em contraposição à suposta linearidade de uma leitura que siga coordenadas positivas, ele erige o conceito de sobrevivência da imagem. Busca compreender a imagem como enodamento de temporalidades, de anacronismos, de contorções e de inclinações da vida humana que resistem ao apagamento. Semelhantemente à proposta da psicologia arquetípica, suas "histórias de fantasma para gente grande" valem-se do páthos da imagem, perfilado em fórmulas de tragicidade, para demonstrar uma temporalidade específica, híbrida, dos conflitos que, apesar de enterrados, não encontram repouso nas imagens.

 

Lógicas fantasmais II: o campo junguiano

Assim como Warburg, a psicologia analítica considera anacronismos em sua compreensão do mundo. Contudo, não é frequente encontrarmos, na obra junguiana, termos como "fantasma" ou "espectro". Em que pese o grande interesse de Jung pela paranormalidade, notável em sua pesquisa de doutorado sobre os fenômenos mediúnicos, no Livro Vermelho e nos Sete Sermões aos Mortos, é mais frequente encontrarmos os termos "espírito" e "alma", conceitos basais que gozam de profundo estatuto filosófico na epistemologia junguiana.

O termo "espírito" aparece ora como a contrapartida da existência humana física, conforme consagrado pela doutrina platônica e cristã, em intrincado resgate dos fenômenos e das compreensões sobre que o Iluminismo lança sombra, ora como um clima político-cultural, um zeitgeist, que se aproxima dos movimentos do inconsciente coletivo, dos arquétipos e da ideia de psique objetiva. O termo "alma", por sua vez, designa tanto a relação com o inconsciente quanto uma personificação dos conteúdos inconscientes (JUNG, 2013a, para. 463). Em Jung, "alma" diz respeito tanto à relação com o inconsciente quanto à unidade dos processos psíquicos por meio dos quais o sujeito se gesta e se individua: não se possui uma alma; faz-se parte dela. Em nenhum dos casos remete-se claramente à lógica fantasmática ou à causalidade espectral.

Há, no entanto, uma famosa exceção: o capítulo XI de A Natureza da Psique (JUNG, 2013b) acerca da crença psicológica na existência dos espíritos. Nele, o sentido atribuído ao termo "espírito" aproxima-se da definição de fantasma e dá pistas sobre como Jung compreenderia a agência espectral sobre o sujeito. Jung ressalta que os espíritos remetem simultaneamente ao que há de desconhecido e ao que há de familiar na experiência da vida concreta, a presumida presença do invisível, do além, em curso no irromper de sentimentos intensos, como o medo. Há, nesta elaboração junguiana, maior proximidade com sua concepção de fantasia e, principalmente, de complexo autônomo.

Por complexo, entende-se um determinado agrupamento de imagens e sentidos associados a momentos ou experiências dotadas de tonalidade afetiva e graus relativos de autonomia. Organizados em torno de temas arquetípicos, sabe-se que, quanto mais distante do campo de consciência acessível ao complexo do eu, tanto mais sombria sua autonomia será, podendo, inclusive, manifestar-se por meio de uma compensação potencialmente violenta denominada constelação. Ademais, em determinadas manifestações desse fenômeno, o complexo autônomo, excessivamente carregado de uma valência energética, assume, no lugar do complexo do eu, o controle, guiando o sujeito para ações frequentemente ditas "inconscientes" que já foram associadas à ideia tradicional de "possessão" (JUNG, 2013b).

Na própria consideração etimológica dos termos, aproxima-se o conceito de fantasia à realidade do fantasma. "Fantasma" e "fantasia" derivam do termo grego, phantázein, "revelar", que deriva, por sua vez, de phaínen, "mostrar". Ambos adquiriram o significado de entes imaginários, não existentes na realidade. Do francês, língua consagrada como mestra pela ciência positivista, fantasme significa "fantasia". Daí o termo "fantasmático", nas ditas psicologias profundas do início do século passado, dizer respeito mais à lógica da imaginação do que propriamente à acepção desenvolvida aqui como fantasmal. O verbete "fantasia", em Tipos Psicológicos, afirma:

Por fantasia entendo duas coisas distintas: o fantasma e a atividade imaginativa. [...] Por fantasia enquanto fantasma entendo um complexo de representações que se distingue dos outros complexos de representações por não lhe corresponder externamente uma situação real. Ainda que uma fantasia possa ter sua origem em recordações de vivências realmente ocorridas, seu conteúdo não corresponde a nenhuma realidade externa, mas é essencialmente apenas o escoamento da atividade criadora do espírito, uma ativação ou produto da combinação de elementos psíquicos, dotados de energia (JUNG, 2013a, para. 799).

A explicação de Jung segue a linha de que fantasia como atividade imaginativa deriva da expressão direta do próprio dinamismo psíquico, de que a natureza fenomenológica da energia psíquica se dá sob a forma de uma imagem ou de um conteúdo imaterial projetado sobre a matéria. Fantasma, nesse sentido, adquire o sentido amplo de tudo o que não pode se manifestar à consciência a não ser na forma de imagem: o fantasma enquanto ideia-força (JUNG, 2013a).

Tamanha foi a proximidade entre esse dinamismo psíquico e a lógica fantasmal que Hollis (2017) dedicou um livro a relacionar o tema das entidades invisíveis à atuação dos complexos autônomos que dirigem nossa história. Ainda que priorize o recorte clínico, não deixou de exemplificar ricamente como o mesmo dinamismo se faz presente na cultura e na sociedade por meio de muitas obras artísticas. Na contramão da especificidade junguiana, que atribui o assombroso particularmente ao fenômeno da constelação psíquica, é notável que Hollis (2017) confunda a lógica fantasmal com a lógica da natureza mesma da fantasia e, dessa maneira, essencialize a agência dos espectros e dilua o impacto histórico e político da personificação espectral. Afinal, por mais que essa lógica sustente temporalidades anacrônicas à da estrutura histórica, ela não deixa de ser instada e provocada a manifestar-se sob formas que só podem ser compreendidas à luz do próprio momento em que assombra.

O que denominamos por lógica fantasmal não pretende englobar todas as possibilidades de dinamismo da imaginação, e sim referir-se a uma forma particular de agência psíquica que lida especificamente com conteúdos simbólicos associados à morte em seu amplo senso. Ao aproximar os fantasmas de sua ideia de mundo das trevas, Hillman (2013) resgata outros referenciais para contextualizar o arcabouço junguiano. Um dos paradigmas de sua abordagem é o sonho: não mais entendido como resto diurno ou como movimento compensatório, o sonho constitui uma iniciação a outra ordem de mundo, uma viagem aos confins ctônicos da imaginação, ao mundo subterrâneo de sombras, que deve permanecer abscondido, nunca profanado pela luz e pelo ar da vida consciente, pela interpretação e pela tradução, ferramentas titânicas e apolíneas, sob pena de perder a qualidade arquetípica da imaginação noturna. O sonho não visa completar a consciência egoica, mas esvaziá-la, recebê-la nos baixios do mundo noturno, como nos Mistérios de Elêusis.

Porque as imagens oníricas são seres imaginais a serviço da morte, Hillman (2013) convida-nos a não rasgar o véu do além à procura de um sentido, mas a levar o eu, desprovido da expectativa de curar-se por meio do esconjuro, em visita aos seus mortos. Enquanto ocasião para nos voltarmos, como Eurídice, hipnotizada pelo mundo das trevas e pelos seus espectros, ao que ficou para trás, as ideias de Hillman sugerem a adoção de uma postura simpática na lida com os fantasmas. Afinal, se o sonho é uma viagem da alma para o mundo inferior, a assombração é um retorno da morte para o mundo diurno do eu consciente de maneira a recordá-lo dos limites de seu titanismo.

O fantasma visita o mundo vivo e deixa traços de sua assombração quando acossado pela ação humana que desconsidera seu ethos de imagem junto ao mundo diurno. Na imaginação homérica, faltavam aos mortos phrenes e thymos. A phrenes refere-se à consciência respiratória do pulmão e da voz e relaciona-se ao movimento de entrada e de saída do corpo, à troca com o meio; o thymos é o vapor sanguíneo derivado do sangue derramado nos sacrifícios. São sombras que vagueiam sem corpo, sem carne, sem ossos, mas dotadas de psique, visto que o mundo das trevas é um mundo inteiramente psíquico (HILLMAN, 2013).

Retornam ao mundo diurno, portanto, porque o imaterial anímico necessita da matéria tanto quanto a matéria necessita da animação. Quando carecem de substanciação, perduram enquanto ausências assombrosas, demarcando tensões nas relações entre o que vive e o que morre, nas relações com os passados não totalmente elaborados, com as imagens que insistem em não se dissolver à luz do dia enquanto não se atentar para seus imperativos.

 

A melancolia dos futuros perdidos

A vida dos fantasmas e o impacto das lógicas fantasmais importam atualmente porque extrapolam em muito as questões dos consultórios de psicologia. Para além de esclarecerem dinamismos psíquicos e construções sintomáticas, constituem-se como imagens úteis ao entendimento do modo como alguns complexos culturais atuam sobre enodamentos subjetivos e políticos dos dias atuais: a perda paulatina do pensamento simbólico na constituição do Ocidente, o esgotamento dos projetos de Modernidade, o claustro neurótico da alma do mundo dentro da psicopatologia privatizada do mundo capitalista e o desencanto da vida interior e de suas sombras sem lugar, entre outros.

No entanto, é possível que tais tensionamentos estejam encontrando um arrefecimento nada salutar. Na medida em que o sucesso de discursos, saberes e práticas totalitárias consagra nosso drama atual, a balança da história volta a pender em direção ao apagamento das diferenças, das sombras, da complementariedade das oposições e de cosmovisões que sequer devem à dialética do pensamento ocidental. Fisher (2014) diagnostica nesses projetos um outro mais sutil, que é o de um mundo cada vez mais assombrado na medida em que nega vida aos fantasmas.

Por insensibilidade ao fantasmal, referimo-nos à circunstância contemporânea, marcante no processo de ocidentalização eurocentrada, em que não somente o mundo é desencantado de sua dimensão maravilhosa, como é estabelecido um claustro sufocante para as possibilidades de lidar com a exterioridade e de imaginar o avesso ou o fora. Cada vez mais, embrutece-se a lida com a sombra ao ponto de cooptar-se a radical alteridade egoica em prol de versões cada vez mais dóceis e positivas da alteridade.

Ou ainda se promete a extinção, via uma denegação chancelada pela cultura capitalista e recolonial, de tudo que possa remeter ao desprazer do não-familiar. Se, para Derrida (1994), o que ameaça o mundo contemporâneo não é mais o espectro do comunismo, mas a ausência desse, podemos compreender, analogamente desde a psicologia analítica, que uma das ameaças mais deletérias à alma no mundo contemporâneo é a crescente ausência de matizes sombrios, a apoteose neurótica de um mundo desprovido da tragicidade do tempo, do encontro e do complexo, que somente fomenta violentas compensações.

O fim da História, a paragem das contradições que movem o mundo, é a principal fantasia neoliberal de progresso que assoma com força em nossa cena e que penetra nos estratos coletivos da subjetividade, desprovendo-a de salutares contatos com o fantasmal. Frequentemente, percebe-se um sentimento difuso de estase que resulta, paradoxalmente, do constante frenesi de novidades. Uma ânsia pelo estabelecido e pelo familiar, após tempos de destruição da segurança e da solidariedade, perpetrada pelo capitalismo e pela catástrofe política da pandemia de COVID-19, une-se a uma inércia polar, efeito e contrapeso da massiva aceleração das comunicações e demandas laborais. O que faz com que, por detrás do constante clima de novidades, exista uma captura atroz por um sentimento de profunda catatonia.

Décadas atrás, Hillman (2007) denunciava a intoxicação hermética como característica da pós-modernidade, atentando, sobretudo, para os efeitos compensatórios de sua temporalidade milenarista apocalíptica: a ilusão megalomaníaca de o sujeito crer-se onipresente em todos os espaços e os tempos; a decorrente paralisia de entregar-se à vertigem do perpétuo movimento. Contudo, Hillman não pôde testemunhar a cronificação desses movimentos em um imenso complexo cultural autônomo que, para muitos, confunde-se com a própria percepção da realidade em si.

Fisher (2020) chamou de realismo capitalista a crença intensa de que não há exterioridade ao status quo e à lógica subjetiva de consumo e de dominação, que acompanha o fracasso da imaginação utópica de mudança do estado estabelecido. Longe de se tratar de uma referência exclusiva dos modos de produção econômica das sociedades, o autor segue na esteira de considerá-lo um modo de produção cultural e subjetiva sobre um jeito de estar vivo que engloba muitas realidades políticas distintas, plenamente apoiadas em outros sistemas de opressão, como o patriarcado e a colonialidade.

Ademais, a ideia de status quo não sugere a existência de uma uniformidade factual no plano das ideias, das práticas, das imagens ou das políticas, mas sim à fantasia de ausência de alteridade que assoma na cena contemporânea quando da discussão da existência de outras possibilidades do viver. Quando sustentada por toda uma rede de discursos, imaginários e práticas, como no caso do realismo capitalista, neutraliza outras visões de mundo e se aproxima da noção de titanismo.

Conceituado por Lopez-Pedraza (2000), o titanismo parte da referência mítica greco-romana dos poderosos seres do passado imemorial que guerrearam contra a sua sucessão olímpica. Psicologicamente, trata de atitudes totalitárias e autocentradas de sujeitos que, pela inflação da húbris, perdem contato com sua condição mortal e passam a devorar tudo o que possa oferecer obstáculo ou tensão a sua fantasia de seres únicos e imorredouros. Desse modo, promovem a morte ao negá-la e, por isso mesmo, a recebem no fulminante raio de Zeus.

Na vertigem do movimento incessante, as fantasias em torno da passagem do tempo, quando vistas pela lente do titanismo, perdem superficialmente sua vigência. Daí a maior facilidade em imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. O lento cancelamento do futuro serve a esse deletério senso de realidade, dentro do qual resta ao tempo fora de eixo, não quantificável e avesso à presentificação, somente manifestar-se de maneira sombria. Os constantes movimentos de anacronismo e de retrospecção da nossa cultura, outrora características intrínsecas da definição de pós-modernidade, figuram agora como assombrações de uma prisão desprovida das barras da passagem do tempo, em um presente eterno.

Segundo Berardi (2011), o lento cancelamento do futuro diz respeito à paulatina degradação, a partir da década de 1970, de uma ideia de futuro gestada pelas narrativas socioculturais de progresso da modernidade:

[...] estou pensando na percepção psicológica que emergiu na situação cultural da modernidade progressiva, nas expectativas culturais que foram fabricadas durante o largo período da civilização moderna e que alcançaram seu apogeu logo na Segunda Guerra Mundial. Essas expectativas foram moldadas no marco conceitual de um desenvolvimento sempre progressivo, mesmo que através de diferentes metodologias: a mitologia da Aufhebung hegeliana-marxista e a fundação da nova totalidade do comunismo; a mitologia burguesa de um desenvolvimento linear do bem-estar e da democracia; a mitologia tecnocrática do poder universal do conhecimento científico; e assim sucessivamente. Minha geração cresceu no cume dessa temporalização mitológica, e é muito difícil, talvez impossível, desfazer-se dela e ver a realidade sem esse tipo de lente temporal (p. 13, trad. do autor).

Não se trata de compreender tal dinâmica como mero retroceder, por medo ou por incompreensão, do velho frente ao "novo", mas de admitir a força do assombro de formas persistentes e antigas do passado em relação ao presente. O cancelamento do futuro trouxe uma deflação de expectativas e a impossibilidade de elaboração de um luto do progresso dado o depauperamento de outras perspectivas de mudança no imaginário político-cultural, trazendo à tona uma enormidade de fantasmas impossibilitados de comunicar seus anseios.

Tradicionalmente, um dos nomes psicológicos para o luto não elaborado é a melancolia. Para Fisher (2014), revela-se nela a não linearidade do tempo: através da persistência do complexo autônomo do passado no presente, o estado de melancolia atual dos fantasmas de nossa vida mimetiza-se com os futuros perdidos, com os futuros extraviados prometidos pelas vanguardas e pelas contraculturas do século passado e com os futuros ausentes devido à impossibilidade de prospecção celebrada pelo capitalismo terminal do neoliberalismo. Afinal, utopias político-culturais, constituídas a partir de perdas, necessitam de quadros melancólicos para se manifestar.

Se, conforme Sontag (2007), a depressão é a tristeza desprovida dos encantos da alma, podemos relacionar a explosão de afecções psíquicas incapacitantes, como transtornos de humor, à impossibilidade de criar uma relação simbólica com a elaboração dos futuros que não se concretizarão. É uma ressaca do mundo, um fracassado acerto de contas não mais engajado em pensar o que haverá depois do futuro. Tal é o sucesso da unilateralidade neurótica e - também segundo Fisher (2020) - capitalista: em vez da dolorosa e lenta retirada, pela via da simbolização, da energia psíquica da realidade da perda, o sucesso da melancolia garante que o sujeito consiga se expressar e viver a realidade somente dentro do que se perdeu.

Para que o trabalho de luto comece, a morte deve ser conjurada para que o morto não volte espectralmente. Não se pode negar o inegável: um fantasma jamais morre, sempre está por aparecer e reaparecer. O ritual de exorcismo, de denegação do sombrio, não lhe cabe. As lógicas fantasmáticas e as causalidades espectrais são oriundas do luto falido, a melancolia desprovida de seu encanto. O espectro não permite nos acomodar nas medíocres satisfações de um mundo governado pelo titanismo, em que a neurose constantemente expande seu reinado.

 

Saturno e Mnemosyne: usos da memória

O fantasma é nativo do império da melancolia. Dos caminhos possíveis para abordar a melancolia dos futuros perdidos, as expressões artísticas do fantasmal parecem se valer da própria melancolia para aprofundá-la e voltá-la contra si mesma. Foi a conclusão de Hillman (2005), ao refletir, em sua fenomenologia do senex a partir de Ficino, sobre a elaboração da condição depressiva pelo resgate criativo da condição melancólica como abertura aos seus mortos.

O senex é um motivo mitológico que se vale dos sentidos arquetípicos da estase e da conservação dos estados vigentes para produzir suas imagens. E, quando negativo, comporta-se semelhantemente ao titanismo já mencionado. Saturno, uma de suas hipóstases mais conhecidas, reina particularmente sobre a melancolia, a paralisia e a compulsão de repetir o que não se resolve. Devora a novidade da alteridade e aprisiona-a dentro de si, em sua própria lógica. Seu tempo não está jamais fora do eixo e, por isso mesmo, se atrapalha e se confunde com a natureza fantasmática daquilo que destroça em sua voragem. Assim, apropriar-se da arte para pensar como o estranhamento estético do fantasmal pode ser uma reflexão psicológica é, no registro arquetípico, fazer Saturno purgar seus filhos.

A melancolia saturnina oriunda da fantasia de cessação do futuro tem importantes implicações para o campo da memória. Constantemente tensionado por disputas narrativas em relação à história dos coletivos humanos, o plano da memória é onde a vida dos fantasmas encontra sua expressão mais exuberante porque é sobre a memória que a imaginação do tempo produz suas personificações e suas distorções. Fantasmas como quanta de memória traumática impedida de elaboração que incidem sobre a vida humana na qualidade de seu assombroso, mas necessário, duplo: a rememoração.

Feita de imagem, palavra, energia e emoção, a rememoração é, para Benjamin (1987), precisamente o propósito último do ato de narrar. O narrador é um recordador do que já morreu. Imagem e palavra enquanto símbolos e atos que impedem o passado de se perder em meio ao esquecimento, que, ainda assim, possui legitimidade no plano arquetípico da experiência da memória.

Como Penélope em seu incessante trabalho de tessitura e de desfazimento, o ato de rememoração se dá por meio de um dinamismo incessante de recordação e de olvido, um ato irmanado ao outro, como o rio Lete que, no mundo dos mortos, é a outra margem do rio Mnemosine, em cujo cruzamento reside o acesso ao reino dos mortos. A própria deusa Mnemosyne é irmã de Cronos, o que sugere um parentesco arquetípico entre as noções de tempo e de reminiscência. Além disso, é a quinta esposa de Zeus. Dessa união, Mnemosyne gera as forças do Canto, as Musas, cada uma das quais representando uma arte fundacional da civilização. Como Mãe das Musas e madrinha dos poetas, a deusa concede vidência a quem a invoca porque, segundo Hesíodo, é aquela que canta o passado, o presente e o futuro - tudo o que foi, tudo o que é, tudo o que será -, demonstrando acessar uma ordem temporal distinta da cronológica-linear. Na imaginação clássica, a memória evoca a possibilidade de enunciação e de reconstrução do passado, assim como se constrói em direção ao futuro: através do lembrado, acabamos por encontrar o fio que liga o que nos antecede ao que nos sucede (GONÇALVES, 2017).

Assim como o mundo do fim da história é o mundo do fim do fantasmal, um mundo que imagina poder reescrever seu passado ao sabor da manutenção de um estado inerte de eterno presente é um mundo que tem como consequência o lento cancelamento do futuro. São fantasias que necessitam coexistir para que o presente seja narrado como um estado impermeável a mudanças, insularizado e trêmulo por suas constantes vertigens. Na ordem atual das coisas, memória e esquecimento adquirem outras valências porque, mais do que nunca, está claro que são ferramentas cruciais na disputa pela manutenção de uma narrativa mestra do mundo por meio da qual se intenta subjugar e apagar vidas dissidentes que sistemas titânicos não concebem enquanto diferença potencial.

 

A lição de Ogawa: a resistência pela memória

Na disputa política pelas narrativas oficiais, não restam dúvidas de que insistir na recordação é optar pela resistência política do que jamais deve ser esquecido. O esquecimento como apagamento que impede a narração e, portanto, a rememoração de outras formas de existir é um dos temas principais de A Polícia da Memória, de Yoko Ogawa (2021), a última parada deste ensaio. Publicado originalmente no Japão, em 1994, o romance foi traduzido para o português do Brasil e, oportunamente, lançado em 2021. Hipnótico e delicado, inicia com a descrição de uma distopia totalitária e termina com uma meditação existencial, surreal e assombrosa sobre o nosso senso de realidade. Aqui toma-se de empréstimo, tanto do ponto de vista estético quanto do metafórico, pontos do livro que podem amplificar os conceitos trabalhados anteriormente.

Na obra, narrada em primeira pessoa, habitantes de uma ilha sem nome, localizada em um país sem nome, sob as rédeas de um regime opressivo, vivem uma forma coletiva e gradual de amnésia: quando acordam, um ser vivo ou item, aparentemente aleatório, começa a sumir de suas mentes. Uma vez evanescida a representação, os habitantes precisam se livrar dos seres ou dos itens concretos, consagrando o total esquecimento ao apagar toda evidência de um dia esses terem existido no mundo. A polícia da memória, cuja existência beira a onipresença, é composta por caçadores cujo propósito último, nunca revelado, parece ser destruir qualquer possibilidade de resistência ao expurgo dos objetos e dos seres concretos.

A maioria das pessoas segue o ritmo dos apagamentos de maneira compassiva. Contudo, uma pequena porção é imune ao fenômeno da amnésia em massa. Exatamente por isso, essas pessoas vivenciam a maldição de não esquecer o que deixou de existir, o que concede a essas pessoas uma tonalidade melancólica e solitária, constituindo-as como ameaças ao regime de esquecimento compulsório da ilha.

A protagonista, sem nome, família ou amigos, alia-se a um balseiro idoso, simbolicamente relegado ao não lugar quando seu contato com o mundo externo é extinto via "esquecimento" pela polícia, e o editor, R., que possui a habilidade plena de se recordar de tudo o que já desapareceu e, por isso mesmo, também é perseguido.

Quando a morte de R. é decretada por meio de seu esquecimento coletivo, a protagonista abriga-o em um porão. Simbolicamente, é no espaço do subterrâneo, por meio de sorrateiras e silenciosas interações, que os três dão início à atividade clandestina de recordar tudo o que se foi: alimentos, hábitos, objetos, seres vivos. À medida que a amnésia dos habitantes da ilha prossegue, parece desaparecer o próprio mundo: com a cessação das estações, a ilha perde a passagem do tempo e permanece em um eterno inverno; com o esquecimento das flores, os habitantes desfolham rosas sobre o leito do rio e nada mais brota da terra. Na célula de recordação, a protagonista lembra-se de que sua mãe também tinha a habilidade de não esquecer. Ao ir em busca das esculturas de barro da mãe, descobre, em seu interior, objetos esquecidos: balas, caixinhas de música, entre outros, cuja serventia sequer imagina. Objetos que importam não pela função ou pela utilidade, e sim por serem preciosos fantasmas de uma ordem de mundo cada vez menos acessada pelas pessoas. "Cristalizações sorrateiras" da memória, como o título original em japonês poderia ser traduzido mais literalmente.

A subversão da protagonista é também de ordem narrativa. Sendo datilógrafa e escritora, sua atividade naturalmente suscita o atributo da rememoração e o da criatividade. Sobrepõe-se à narrativa de Ogawa a narrativa do livro escrito pela protagonista, estabelecendo-se uma relação metaficcional com a própria condição de luta contra o esquecimento. Na obra da protagonista, uma datilógrafa tem sua voz roubada e é aprisionada em uma torre por um professor. Na sala em que está presa, há inúmeras máquinas de escrever, cada uma delas habitada por uma voz capturada que jamais voltará a ver a luz do dia. Alegoria da condição histórica de silenciamento, a história profetiza o destino da protagonista autora que, eventualmente, se esquece de como escrever palavras - o golpe derradeiro à sua carreira e o começo de seu declínio físico. Imediatamente em seguida, esquece como usar a perna esquerda, que parece a ela, então, um corpo assustador conectado ao seu abdômen e que consterna a todos na ilha.

Até o momento em que a amnésia toma conta da narradora, mitigando seu senso de identidade e de consciência, tudo se passa como a mais quieta, serena e fantasmagórica versão do apocalipse, em que o mundo cessa de existir porque cessa de importar. Embora as tentativas de resistência pareçam pequenas, Polícia da Memória (OGAWA, 2021) retrata um mundo cuja radical insularização somente pode ser combatida pelo delicado movimento de expansão das imagens e das palavras, como a partir dos objetos do passado reencontrados nas esculturas de barro. Nessa ilha desprovida da vida dos fantasmas, a extinção da memória representa a morte concreta do vivo. Da possibilidade de diferir, de criar e de simbolizar.

Chega-se assim ao final do ensaio, que finda no plano do papel, mas deseja insistir no plano da memória. Memória essa que, arquetipicamente, está necessariamente próxima do morrer na concretude para renascer enquanto imagem. O fantasmal enquanto função vital da psique parte da imagem do fantasma como vingador do esquecimento, entre muitas coisas, para tentar salvaguardar uma ideia de vida que não exclui o que dela morre, mas que da morte parte para nela persistir. Não confundamos o cadáver com o morto, que de forma fantasmal ainda pode viver. Quando isto se esquece, dá-se o retorno sombrio do que fica de fora do palco iluminado da memória das narrativas unilaterais, da memória individual, seletiva, do que convém registrar ao estado neurótico, mas não a estados mais plenos de vida. A extinção do fantasma está a serviço da negação última: a da duplicidade, da porosidade, da movência, do imagético e do imaginal. Um mundo não assombrado pelos seus avessos e pelos seus duplos é a apoteose da funcionalidade, da literalidade, do utilitarismo. Nesse sentido, o final do livro é revelador: já esquecido por todos, resistente à amnésia derradeira do eu, com a qual o livro se encerra, R. sai de seu porão, despede-se da protagonista, absorta em seu derradeiro suspiro, e volta a ver a luz do sol. A própria existência de R. é o fantasma do regime distópico da ilha. Se o futuro do lugar foi perdido pelo esquecimento, ao menos, R., fantasma da lógica totalitária da ilha, esquecido, mas não de todo, sobrevive para rememorar sua história via sua promessa de narração: ainda a melhor e mais urgente forma de glorificar a vida dos fantasmas.

 

Referências

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Recebido em: 23/02/2022
Revisão: 12/06/2022

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