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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. v.39 n.70 São Paulo jun. 2006
JORNADAS PESQUISA E UNIVERSIDADE — SPBSP
Algumas idéias sobre pesquisa em psicanálise1
Some ideas on research in psychoanalysis
Algunas ideas sobre investigación en psicoanálisis
Camila Pedral Sampaio*
Professora da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da Coordenaria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão
Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
A partir da experiência da autora na graduação da faculdade de psicologia, com orientação de projetos de pesquisa em psicanálise, faz-se um levantamento de questões relevantes que permeiam o campo e as possibilidades da pesquisa em psicanálise, passando pelas diferentes respostas presentes no campo psicanalítico acerca das relações da psicanálise com a ciência, e pelas conseqüências dessas posições em termos da adequação do método psicanalítico ao campo da pesquisa.
Palavras-chave: Pesquisa, Psicanálise, Método psicanalítico.
ABSTRACT
From the author’s experience on supervising research projects in psychoanalysis, in the graduation level of psychology, some important issues, that permeate the possibilities of research in psychoanalysis, are discussed. Among them, are the different answers present in the relationship between psychoanalysis and science, and the consequences of these positions, in terms of the adequacy of the use of the psychoanalytic method for research activity.
Keywords: Research, Psychoanalysis, Psychoanalytic method.
RESUMEN
A partir de la experiencia de la autora en el curso de psicología en la universidad, en el cual ella fue asesora en proyectos de investigación en psicoanálisis, se coloca en debate cuestiones relevantes pertinentes al campo y a las posibilidades de investigar en psicoanálisis. Se estudian las diferentes respuestas encontradas en el campo psicoanalítico sobre las relaciones del psicoanálisis con la ciencia, y las consecuencias de esas perspectivas en términos de la adecuación del método psicoanalítico al campo de la investigación.
Palabras-clave: Investigación, Psicoanálisis, Método psicoanalítico.
As idéias aqui sistematizadas originaram-se fundamentalmente de meu trabalho como orientadora de pesquisas na graduação do Curso de Psicologia (PUCSP), trabalho que se estendeu, terminada minha própria pesquisa de doutoramento, para orientação em cursos de especialização e para participação em bancas de qualificação e em bancas de dissertações e teses, para as quais sou com freqüência convidada. Faço esta inicial explicitação porque penso que as questões emergentes do campo da pesquisa têm sua natureza e sua extensão relacionadas aos lugares em que se pratica a pesquisa e à posição de quem a define, de quem a realiza e de quem a orienta. Neste sentido, em se tratando de pesquisas no campo psicanalítico, não é indiferente o fato de serem realizadas ou projetadas por alunos da graduação, na medida em que isto limita e circunscreve a sua experiência com a psicanálise e as possibilidades de pesquisa que encontrarão e definirão.
Assim, é com base nessa experiência, fundamentalmente na orientação de trabalhos de conclusão de curso (os famosos TCCs), que se desenvolve minha relação com a pesquisa em psicanálise; no que tenho observado no decorrer dela é que partem as considerações que aqui pretendo fazer. Em função das demandas do TCC, aliás, foi criada uma disciplina que lhe desse suporte, Pesquisa em Psicanálise, onde discutimos com os alunos os passos da elaboração de um projeto de pesquisa e como isso se concretiza no caso da psicanálise, em termos de método, foco, e possibilidades de pesquisa.
No contato com os diferentes níveis e planos da pesquisa emergentes dessas situações, surgem questões em planos também muito diferentes e que, a rigor, podem nos levar muito longe: podemos nos perguntar quase tudo nestes espaços de discussão criados pelo contato professor-aluno: se há uma psicanálise, se há muitas; o que é o inconsciente em cada uma das suas definições; qual a relação da psicanálise com a ciência, e por aí afora.
Costumo sugerir que, tal como proposto por Freud, a tríade inconsciente-resistência-transferência é de fato o eixo princeps definidor da posição psicanalítica. No entanto, mesmo assumindo esse eixo como referência para a análise da produção em psicanálise, acabamos por perceber que há diferentes modos de entender essa tríade e seu efeito para a produção de conhecimento e seremos fatalmente levados a descobrir posições às vezes irreconciliáveis com a mesma denominação de psicanálise. Estas e outras constatações surgem como efeito da proposta de realização de uma pesquisa em psicanálise e a partir da tentativa de delimitar o seu campo e a sua natureza.
São, por um lado, questões que poderiam ser debatidas a partir da fronteira da psicanálise com a filosofia, o que tornaria tudo muito mais interessante. Mas também surgem questões mais restritas, ligadas a tipos de procedimentos utilizáveis, por assim dizer, numa pesquisa que se quer psicanalítica. E isso passa pelos campos possíveis de pesquisa; por qual a pesquisa possível no campo psicanalítico e o que ela representa; pelo método psicanalítico, do ponto de vista da produção e divulgação do conhecimento; pelo tratamento dos resultados e conclusões, etc., etc., etc.
Ora, eu não tenho formação suficiente em filosofia e epistemologia e, embora considere o debate epistemológico fundamental, não me sinto inteiramente preparada para encará-lo. No entanto, estas são dúvidas e perguntas que se apresentam no meu cotidiano de trabalho, a que não posso deixar de, pelo menos, tentar responder ou indicar um caminho de argumentação, mesmo correndo o risco de cometer simplificações e de falar algumas banalidades. Tentando responder a elas, então, e apelando para a interlocução com autores que debatem esses temas, fui elaborando algumas idéias e assumindo uma posição e algumas conclusões que, ainda que provisórias, posso hoje considerar que são as minhas.
Elejo aqui alguns tópicos a partir dos quais seja possível abordar e identificar algumas respostas possíveis às questões que a pesquisa em psicanálise enfrenta, respostas que fui reconhecendo em meu próprio enfrentamento com os problemas colocados. No primeiro momento, procurarei discernir e discutir as principais posições no confronto entre psicanálise e ciência, ou no campo de debate instaurado acerca da cientificidade da psicanálise. Num segundo tópico, discuto as decorrências destas posições para a pesquisa, em termos metodológicos.
Psicanálise x ciência
A polêmica acerca da cientificidade da psicanálise é antiga, poderíamos mesmo dizer que está colocada desde a fundação da disciplina psicanalítica. Não é meu propósito aqui retomar os seus argumentos originais, mas identificar o formato que essa discussão encontra nos dias de hoje. Reconheço, neste campo, fundamentalmente três posições e, no meu entender, elas definem, em última instância, a qualidade da pesquisa possível e necessária para a psicanálise.
1. A primeira dessas posições é, francamente, a que menos me interessa, mas ela existe e tem tido correligionários, gerando efeitos até mesmo em algumas das nossas discussões clínicas na Sociedade. Por isso vale a pena enunciá-la. Segundo os defensores da pesquisa empírica e da ciência empírica, a psicanálise não é uma ciência, mas pode vir a ser considerada como tal, se submeter seus conceitos e procedimentos a pesquisas e formulações "científicas". Então se teria de caminhar no sentido de uniformizar conceitos, torná-los mais comuns (o common ground de Wallerstein, 1988, "terreno da objetividade possível em Psicanálise", in Carone, 2000, p. 3), de desenvolver pesquisas no sentido de comprovar a eficácia de nossos procedimentos, etc. e tal. De fato, foi a partir do desenvolvimento, no século XX, da ciência de inspiração positivista, no sentido de abarcar as ciências sociais e humanas, que se formulou mais nitidamente uma exigência de que também a psicanálise produza resultados comprováveis do ponto de vista do método empírico, entendido como o método científico. O pensamento psicanalítico deveria avançar no sentido do desenvolvimento de uma univocidade conceitual, no sentido da quantificação, pelo menos estatística, de seus resultados, no sentido da experimentação replicável, providências que lhe permitiriam comparar-se e enfrentar-se com outras posições no campo da psicologia científica e da medicina psiquiátrica. Esta é uma posição que tem sido divisora de águas dentro da psicanálise e, se eu posso dizer que não me interesso por ela, é porque me encontro bem acompanhada. O debate entre André Green e Wallerstein, publicado em 1996 no Newsletter of the International Psychoanalytical Association (Lowenkron, 2000; 2001), situa bem esses terrenos posicionais; se o segundo argumenta que a psicanálise tem que evoluir, avançar para fundar seu pertencimento ao campo científico, o que se faria pela comprovação empírica de seus resultados, o primeiro responde que nenhuma descoberta psicanalítica veio da pesquisa empírica e, mais, que nenhuma pesquisa empírica produziu qualquer fato significativo sobre a matéria psicanalítica: o método empírico, argumenta Green, deforma o objeto de estudo da psicanálise, sendo incapaz de dar conta da radicalidade do conceito de Inconsciente (Green, 1996, in Lowenkron, 2000; 2001). Como se vê, os ânimos ficam acirrados nesta questão. Ao enunciar a posição seguinte, veremos em parte retomada esta discussão.
2. A segunda posição que tenho sido levada a identificar, vou fazê-la representar pela posição de Castoriadis (1978/1987a)2, por ser um autor com o qual tenho alguma intimidade, apesar de que muitos outros autores, no Brasil e fora daqui, compartilham dela. Segundo essa posição, em contraste absoluto com a anterior, a psicanálise não é, de forma alguma, uma ciência, mas é uma outra coisa. Não é uma ciência, não por seu estado atual, nem por qualquer falha acidental ou por qualquer lacuna em seu desenvolvimento, mas por uma impossibilidade essencial: seu objeto não é compatível com o da ciência, seu método não é o da ciência. A psicanálise não pode ser uma ciência nem lhe seria benéfico desejá-lo; tampouco é ela uma filosofia. A psicanálise, segundo o autor que estou tomando como referência, é uma atividade prático-poiética, ou seja, uma atividade que cria seu objeto ao deter-se sobre ele no projeto de elucidá-lo. Então, desse ponto de vista, a psicanálise tem seu próprio rigor, e não deveria medir-se com as ciências chamadas naturais e físicas. O rigor da ciência, diz Castoriadis, é outro e, a bem dizer, em sua separação da filosofia, tem levado a lugares tenebrosos, por exemplo, à comprovação das equações atômicas pelos cadáveres de Hiroshima. Sendo assim, a psicanálise ocuparia para ele uma posição singular no campo da produção de conhecimento. Ele diz que a conceituação psicanalítica é impossível como conceituação científica: nenhum dos conceitos propostos é unívoco, nem operatório. São conceitos dialéticos e filosóficos. E essa contradição é insolúvel e verdadeira, quer dizer, essencial, na psicanálise. Cito-o aqui diretamente:
A conceitualização freudiana pode ser corrigida, melhorada, modificada inteiramente. Ela conservará sempre seu núcleo de atopia. Porque tal é o seu objeto, com suas duas faces inseparáveis realmente e incompossíveis teoricamente. (...) [Seu objeto que é o] sentido, as condições de sentido, o sentido das condições, o sujeito como objeto e o objeto subjetivo, a realidade da palavra e a verdade do objeto (Castoriadis, 1968/1987b, pp. 75-77).
Assim, nada que se faça na direção da ciência tornará a psicanálise "mais científica". São problemas eternos, radicalmente renovados, mas não resolvidos, porque não há como serem resolvidos, não por qualquer outro motivo. A psicanálise é, então, uma atividade prático-poiética, portanto, criadora e singular, que trata do encontro de singularidades e do sentido aí encarnado; mas ao mesmo tempo ela é nascida sob a regra interna de dar conta e razão de seu objeto, ou seja, é um projeto de elucidação do singular que remete, em sua constituição teórica, ao universal psicológico e metapsicológico. Esta elucidação teórica é o que limitaria o risco, para a psicanálise, de tornar-se literatura ou de promover um saber sem o necessário cuidado no tocante à sua veracidade.
3. A terceira posição que tenho visto ser defendida e da qual, particularmente, gosto, talvez correndo o risco de simplificar excessivamente problemas muito complexos, é, acho que posso dizer, a de Freud, ou, dizendo com maior especificidade, a que ele proferiu na Conferência XXXV de 1933: "A psicanálise é, a meu juízo, incapaz de criar uma concepção do universo a ela peculiar. Não o necessita; é um pedaço da ciência e pode agregar-se à concepção científica do universo" (Freud, 1933/1994, p. 177). Salientando que o pensamento científico é incompleto e insuficiente, assim mesmo Freud atribui à psicanálise um lugar na ciência. Ela é uma ciência e ponto, não há outro lugar, outro terreno de conhecimento em que ela se possa inscrever. Ela pratica, da ciência, algumas de suas qualidades fundamentais, como, por exemplo, o antidogmatismo, a abertura à reformulação conceitual, a referência necessária à experiência e aos fatos e a visada a um horizonte de verdade, provisório mas necessário. Poderíamos apoiar essa posição, por exemplo, nas idéias de Rouanet (1993), enquanto ele defende a posição, a seu ver iluminista, do pensamento de Freud, salientando ali o valor positivo do Iluminismo, em tempos de dogmatismos terroristas, dogmatismos que incidem, inclusive, como incidiram em tempos remotos, na própria possibilidade do exercício da ciência e que têm aterrorizado a autonomia humana. A idéia, segundo esta posição, é que, ao proclamar-se científica, não arredando o pé do terreno da ciência e do debate com as ciências, a psicanálise pode exercer uma função importante no alargamento do conceito do que seja ciência (conceito que se restringiu e apertou com a aproximação entre ciências humanas e positivismo) e do que seja considerado conhecimento verdadeiro e legítimo. Entendo que seja aproximadamente essa também a posição de Fabio Herrmann (2001; 2004), de acordo com as formulações mais recentes propostas nos debates em torno da "clínica extensa". Diz ele:
A ciência da psique, a Psicanálise, irmã das ciências do espírito, prima das ciências humanas, contraparente da medicina, ocupa-se em investigar o sentido humano, nas pessoas nos pacientes em particular , nos grupos e organizações dos homens, na sociedade e em suas produções culturais (Herrmann, 2004, p. 61).
Nesta posição, então, falamos de psicanálise como ciência e tiramos daí as conseqüências necessárias para a pesquisa.
O método psicanalítico e a pesquisa
A semelhança fundamental entre a segunda e a terceira posições das acima discutidas é que, a partir de ambas, se irá considerar que o método psicanalítico é adequado para o desenvolvimento da pesquisa em psicanálise. Quer dizer, se consideramos que a psicanálise não é uma ciência e não o será jamais, devendo desistir de pretendê-lo, então o método psicanalítico é o método adequado para a produção do conhecimento psicanalítico. Da mesma forma, se consideramos que a psicanálise já é uma ciência, nós o fazemos por pensar que o seu método não é incompatível com o da ciência. O mesmo não se aplica, no entanto, quando consideramos que a psicanálise deve adequar-se à ciência, passando a produzir conhecimentos de um modo que os tornem válidos para a ciência. Neste caso, seria preciso sobrepor ao método psicanalítico um suposto método científico, ou empírico, que tornasse legítimos os conceitos e as abordagens psicanalíticas. É neste sentido que há uma correlação íntima entre a posição em que se situa a psicanálise frente à ciência e a validação do método psicanalítico na produção de conhecimento.
Sendo assim, se nos situarmos, quer ao lado dos que pensam que a psicanálise é uma ciência, quer ao lado dos que a incitam a abrir mão desta pretensão, em nome de uma prática mais verdadeiramente psicanalítica, teremos uma conseqüência semelhante para o desenvolvimento da pesquisa, em que pese ao antagonismo das duas posições. Poderemos usar, para a consecução e projeção da pesquisa, o próprio método psicanalítico. Aparentemente, os problemas se simplificaram. Mas só aparentemente, é a descoberta que vem a seguir, uma vez que teremos de dar conta do fato de que o método psicanalítico não foi definido exatamente como um método de pesquisa. Ele é um método de acesso ao inconsciente, é um método que orienta a escuta e o campo da clínica ou da cura, podemos dizer mesmo que é um método de produção de conhecimento de conhecimento singular do psiquismo singular , mas não é, ainda assim, um método apropriado para nos orientar na condução de uma pesquisa.
Teremos aqui que estabelecer as decorrências necessárias do método psicanalítico para chegar a definir os elementos adequados a um método de pesquisa em psicanálise. Isso porque somos forçados a introduzir, para a pesquisa, alguns elementos que não estão necessariamente presentes na situação da clínica. Teremos que estender o método psicanalítico à situação não-clínica, e, particularmente, à situação da pesquisa, levantando suas implicações. Vejamos, então.
1. Uma primeira implicação, que penso ser necessário enfatizar: a pesquisa em psicanálise é uma pesquisa qualitativa. O que não quer dizer que não se beneficie de alguns dados estatísticos produzidos por outras disciplinas. Por exemplo, os dados epidemiológicos têm levantado muitas interrogações interessantes para o campo da psicopatologia. No entanto, é desnecessário frisar, pesquisas epidemiológicas não são psicanalíticas, ainda que possam contribuir para a compreensão de fenômenos que pertencem ao campo psicanalítico. A pesquisa psicanalítica é qualitativa porque ela é uma pesquisa do singular, ou seja, considera e produz-se a partir da singularidade do(s) encontro(s) entre o pesquisador e o pesquisado. Mas a referência desse encontro é remetida necessariamente a um universal, considerado a partir da teoria expressamente da interlocução teórica. Neste sentido, Renato Mezan propõe que o modelo psicanalítico supõe que o singular, aquilo que é característico de uma situação tomada em sua unicidade, seja tomado como expressão do universal, aquilo que compartilhamos todos como humanos, e do particular, aquilo que alguns de nós compartilhamos por pertencer a determinado grupo. Desta forma é que a psicanálise foi inventada, como conhecimento, quer dizer, é porque um caso exibe características comuns a todos os sujeitos de uma determinada classe que a teoria sobre a neurose obsessiva pôde ser reformulada inteiramente a partir do estudo do Homem dos Ratos, um caso singular, por exemplo. E é porque os obsessivos participam da categoria universal de humanos que, a partir deste mesmo caso, temos condições de entender melhor a função paterna e o campo humano das superstições e da relação com a morte. Então, na interlocução e na construção teórica, a singularidade pode ser conduzida à relação com fatores mais ou menos universais ou particulares a certo grupo. O conhecimento psicanalítico é produzido na circulação entre estes três planos.
2. A segunda decorrência em que pensei, já a experimentamos logo acima. Se o que nos interessa é definir o método, seus limites, sua natureza, voltemos a Freud. Como Freud produziu/criou conhecimento? Essa deveria ser a nossa referência. Qual é, portanto, a partir daí, a natureza do conhecimento produzido em psicanálise? Dois textos me têm ajudado bastante nesta empreitada. Um deles, já clássico neste assunto, é o de Renato Mezan (1993), "Que significa `pesquisa' em psicanálise?". Ali Mezan discute a natureza do trabalho e do conhecimento psicanalítico a partir da análise de um fragmento do trabalho de três autores: Freud, Kohut e Green. Através destes três autores, Mezan quer demonstrar que:
(...) é possível descrever e compreender a maneira pela qual se constitui a elaboração teórica de um psicanalista e que estas elaborações apresentam características que as aparentam às formulações científicas: coesão interna, comunicabilidade, verificabilidade e cumulatividade (1993, p. 115).
Seguindo, assim, as formulações desses autores, somos capazes de reconhecer o modo de produção do conhecimento psicanalítico, o que nos auxilia na empreitada de definir o seu método de pesquisa. Chegamos assim, inevitavelmente à idéia de interpretação. Aí é que nos valemos de um segundo auxílio, no texto de Minerbo (2003), "O método psicanalítico em Freud". Aqui a autora procura reconhecer qual é a invariante do método psicanalítico. Ela se pergunta a que visa o método psicanalítico. O interessante é que, para responder a isso, ela busca um momento muito inicial da obra de Freud, com o intuito de demonstrar que, para este autor, o método precede a teorização e a conceituação. Conclui, então, que o método é a interpretação. E que uma maneira de compreender como opera, na prática, a interpretação é a ruptura de campo, tal como proposta por Herrmann (2001). Ao interpretar, Freud traz à tona a regra pela qual se deu a produção do sintoma, no caso estudado, questões relativas à sexualidade da paciente. Com isso, rompe-se o campo no qual o discurso da paciente se estabilizava.
Procurando aproximar estas idéias do campo da pesquisa, a formulação que eu consegui encontrar para este processo e que pode ser estendida ao terreno da pesquisa foi: o método visa à interpretação, entendida como: permitir ou partejar a emergência de um sentido ou de um conjunto de significações que se dá na relação entre o pesquisador e o pesquisado (transferência), conjunto este que não era evidente anteriormente a essa visada, podendo-se dizer mesmo que resistia à sua enunciação, o que equivale a dizer que se trata da emergência de um inconsciente, seja ele definido como for. Essa é a maneira, então, como eu articulo interpretação com a tríade inconsciente/resistência/transferência no campo da pesquisa. Uma pesquisa em psicanálise deve, então, idealmente, permitir o surgimento de significações pertencentes ao fenômeno, mas que não se evidenciavam no primeiro momento, podendo-se dizer mesmo que resistiam dinamicamente a aparecer e que seu surgimento modifica a nossa compreensão do fenômeno. No caso de Freud, podemos dizer que essa significação é da natureza ampliada da sexualidade.
3. Uma outra decorrência da concepção acerca da natureza da psicanálise para o método de pesquisa, que me parece importante sublinhar, é proveniente da constatação de que a psicanálise não é uma ciência do laboratório. Nunca o foi. Já em Freud ela se fez contaminada, cheia de germes, a partir da intimidade com produções de outra natureza. Então, o método psicanalítico se beneficia do contato com áreas não-psicanalíticas do conhecimento, como a sociologia, a teoria da cultura, a arte, a filosofia. A pesquisa psicanalítica aspira à condição transdisciplinar, deseja-a. No contato com essas disciplinas, freqüentemente, as significações engendradas no olhar psicanalítico ganham formulação. Essa é a marca de toda visada psicanalítica no campo do que Laplanche (1987/1988) chamou de extracura, extraclínica. Essa saída da disciplina indisciplina? é desejável na contextualização do fenômeno pesquisado, contextualização que é geralmente objeto da revisão de literatura feita em toda pesquisa.
4. Então, para finalizar, retomo a formulação proposta de modo sintético por Fábio Herrmann (2001). Ele diz do método psicanalítico que se trata de deixar surgir para tomar em consideração. Um pouco sintético em demasia, eu poderia desde já aumentar a tarefa para adaptá-la a uma pesquisa: deixar surgir para tomar em consideração, sim; mas é preciso também trançar teoricamente, circular pelas vizinhanças epistemológicas, engendrar uma interpretação dinâmica, o que não é pouco. E que mais? O que faz a diferença entre, por exemplo uma pesquisa e um relatório? Entre uma pesquisa e uma aula, ou um bom texto sobre certo assunto? Será que é o fato de a pesquisa ter um capítulo metodológico? Eu diria que não e está aqui a minha descoberta, que é igualzinha à de todo e qualquer orientador de pesquisas, e da maioria das pessoas que realizaram uma pesquisa, mas que eu acho que vale a pena ressaltar, porque muda a nossa visão do processo de pesquisa. O que faz de uma pesquisa uma pesquisa, e isto vale para a psicanalítica, é o fato de que ela tem um problema e que este problema tem que ser enunciado como um problema de pesquisa. O problema é o eixo de gravitação da pesquisa. A pesquisa é montada e circula em torno dele, ainda que ele possa ir encontrando formulações diferentes ao longo da pesquisa. O problema, então, é o que aponta para o não-sabido, é o que pede o movimento de pesquisa, na medida em que se dirige para o desconhecido. Não para o não-sabido por mim, enquanto sujeito particular, mas para algo que verdadeiramente não está no fenômeno para o qual eu olho, antes de eu olhar para ele. É isso, por exemplo, o que permite diferenciar uma pesquisa teórica de um comentário, ou de uma elucidação.
Um último ponto que poderíamos abordar aqui, ainda que brevemente, se refere aos campos ou áreas de pesquisa emergentes dessas considerações, assunto que tem íntima relação com a população que eu oriento, que são estudantes universitários, ainda não psicanalistas, e que também não são propriamente pesquisadores, mas que querem ter uma experiência com a psicanálise através da realização da pesquisa. Essa condição dos pesquisadores com os quais trabalho limita, por exemplo, imediatamente, a realização de pesquisas diretamente vinculadas à experiência clínica, fonte primordial do conhecimento psicanalítico e origem própria de toda a pesquisa psicanalítica. A compensação para essa limitação é a descoberta de outras possibilidades de interrogações e áreas de pesquisas mais abertas ao campo social.
Laplanche (1987/1988) propõe a existência de quatro territórios da experiência e do desenvolvimento da psicanálise: a teoria, a história, a clínica e a clínica ampliada, decorrente da incidência da psicanálise em hospitais e instituições; e, finalmente, tal como ele propõe, a psicanálise extraclínica, extracura, como ele elucida, enfatizando que a clínica não é tudo na experiência psicanalítica. Como nós não somos pesquisadores de laboratório, podemos dizer que, se a clínica é o nosso laboratório, ela não é, entretanto, um laboratório asséptico. Isso tudo coloca não só a clínica, mas também a cultura, como um locus importante de incidência da interrogação psicanalítica. Apostamos, neste aspecto, que a psicanálise tenha algo a dizer quando interroga ou é interrogada pela cultura, pelas artes, pelos movimentos socioculturais. Este, aliás, é, evidentemente, o sentido do movimento de extensão da clínica proposto por Herrmann (2005).
A situação em que eu oriento pesquisas é interessante, nestes termos. Uma vez que os meus alunos, em sua grande maioria, são alunos de graduação em psicologia, eles não têm, nem poderiam ter, uma experiência clínica de longa duração; quando muito, têm experiência de análise pessoal. Não sendo psicanalistas nem pesquisadores, a pesquisa que eles empreendem tem que ser entendida, então, como um contato em profundidade com um fenômeno escolhido e esse fenômeno está freqüentemente no mundo, não foi produzido pela situação de cura, ou encontra-se em situações clínicas bastante diferentes da clínica-padrão, como por exemplo na atividade de acompanhamento terapêutico, que, em minha experiência, tem sido objeto de interessantes reflexões. Também é possível, ainda que mais raro, já que demanda um fôlego especial, que o foco da pesquisa dirija-se à teoria ou à história da psicanálise.
De todo modo, o fato é que as condições apresentadas são tais que se formula a exigência de novas áreas de incidência da pesquisa psicanalítica, freqüentemente no campo do que Laplanche chamou de extracura e no que tem sido chamado de clínica ampliada ou extensa, exigindo, a partir da especificidade do fenômeno enfocado no estudo, a escolha de procedimentos adequados a uma reflexão psicanalítica. O resultado deste trabalho tem sido, no mínimo, inventivo e podemos com tranqüilidade afirmar que tem legitimado a peculiaridade e a potência da visada psicanalítica no campo dos fenômenos culturais.
Referências
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Endereço para correspondência
Camila Pedral Sampaio
R. João Moura, 300/41 — Pinheiros
05412-001 São Paulo, SP
Fones: 3085-1174 / 3819-1432
E-mail: camilapedral@uol.com.br
Recebido em: 27/04/06
Aceito em: 25/05/06
* Psicóloga Clínica, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, Professora da Faculdade de Psicologia da PUCSP e do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica do COGEAE. Do Instituto de Psicanálise da SBPSP.
1 Este trabalho foi apresentado originalmente em evento promovido pela Comissão de Pesquisa e Universidade da SBPSP, na sede da R. Sergipe, em 27/08/2005. Algumas modificações foram introduzidas para publicação.
2 Nesta rápida exposição, estou citando suas idéias livremente e de memória. Para uma abordagem mais aprofundada de sua obra, posso sugerir, além de suas obras aqui citadas, e entre outros, um artigo meu: "Sobre Castoriadis" em: Revista Psicanálise e Universidade, nos 12 e 13, ano 2000. Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise do PEPGPC da PUCSP.