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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.3 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2011
RESENHAS
O "fundo obscuro da existência": no rastro de Samuel Rawet
Leo Agapejev de Andrade
Doutorando do Programa de Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas. - Dep. de Letras Orientais - Universidade de São Paulo. leo.agap@usp.br
Resenha do livro: Viagens de um Caminhante Solitário: Ética e Estética na obra de Samuel Rawet. KIRSCHBAUM, Saul. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2011. (Col. Judaica). 252 p.
Viagens de um Caminhante Solitário: Ética e Estética na obra de Samuel Rawet, passa em revista a obra de um escritor que despertou reações opostas quando do lançamento de seu primeiro livro, os Contos do imigrante (1956). Em linguagem clara e assertiva e crítica, Saul Kirschbaum apresenta como a preocupação ética e estética embasa a literatura desconcertante deste escritor que foi considerado, tanto ilegível (Renato Jobim), como inovador (Assis Brasil). Sem pretender esgotar os temas que afluem dos contos de Rawet, mas estimulando questionamentos com as várias perguntas que permeiam o texto (algumas até encerram os capítulos), faz-se um levantamento de questões suscitadas pela obra do escritor, como a relação entre biografismo e literatura, a condição judaica e a função da literatura na contemporaneidade após Auschwitz - importante ressaltar, não como marco histórico qualquer, mas como referência para se pensar a literatura (Adorno), a ética e a responsabilidade universais na contemporaneidade.
O autor revela um processo de descoberta da obra de Rawet a partir de uma desilusão pessoal quanto ao papel da literatura: A literatura nao tara a revolução!" (p. 13). Como resposta à literatura engajada, a literatura de Rawet demonstra "a expansão de sua opção pelos oprimidos para fora do judaísmo" (p. 12), e assim a preocupação ética da escrita de Rawet começa a ser esmiuçada.
O primeiro capítulo trata da literatura como ferramenta conservadora ou subversiva, faces de uma mesma moeda chamada ética, termo que traz em si a a lei e seus valores. Assim, vai-se de Platão (cuja teoria da Justiça é associada ao totalitarismo moderno) à pós-modernidade, passando pelos filósofos judeus Martin Buber, Walter Benjamin, Theodor Adorno e Baruch Espinoza, e pelo canónico poeta (cristão) Dante Alighieri. Ao lado deste, são alinhados os engajados Sartre e Brecht. Dessa forma, a "construção do III Reich, ou da Pátria do Socialismo, ou do Reino de Deus" (p. 39) têm expostas suas bases em comum.
O grande paradigma da barbárie civilizada, o Holocausto, é posto em discussão como corolário desse pensamento cuja origem histórica remonta a Platão e chega ao nosso tempo nas bases do que se chama literatura engajada (Sartre, Brecht). Uma afirmação corajosa e, como deve ser, minuciosamente embasada como essa, tem também sua contrapartida na "ética como filosofia primeira" de Emannuel Levinas: já com a sugestão de uma "[u]ma literatura capaz de abrir a questão ética [que] superaria seu caráter retórico, suportando por si mesma um discurso ético sem se subordinar à filosofia e sem se tornar porta-voz de qualquer ideal transcendente" (p. 45), a obra de Rawet é trazida à tona, no texto, pelo seu viés ético e sob a luz da filosofia de Levinas. Didático e claro, o autor pacientemente expõe as bases de suas reflexões sobre as relações entre literatura e ética como projeto político (literatura engajada), bem como seu oposto, a autonomia da literatura e sua missão de, em palavras de Walter Benjamin (citadas no livro), "levar o leitor àquilo que tem sua expressão negada" (p. 37), e não ser mero veículo para "a transmissão de lições morais, enfocando a instrumentalização da literatura, a tendência usual de pô-la a serviço da transmissão de um determinado conjunto de lições morais" (p. 140).
No segundo capítulo, o autor começa, então, a penetrar no universo ético e literário de Rawet por entrevistas e ensaios do escritor, aproximando com perspicácia seu leitor de um fantasma que assombra a obra de Rawet: o autobiografismo apriorista. Rastreada em uma importante entrevista concedida a Flávio Moreira da Costa, a biografia de Rawet é examinada como fonte das escolhas do escritor, e não como justificativas para o que escreve. Sua condição judaica, moldada por sua relação própria com o judaísmo, deve ser vista da mesma forma.
Por um lado, como tema o judaísmo no máximo aparece em contos como "Gringuinho" e "O Profeta" (Contos do imigrante), em nomes de personagens e como parte de uma identidade coletiva, a dos Ostjuden (judeus orientais), trazida à baila como herança cultural recuperada (e mitificada como um tipo de "paraíso perdido") da Klimontów de sua infância, pelo contato com a obra de Martin Buber,
Por outro lado, a condição judaica, diz o autor, estabelece linhas de força nos contos rawetianos, como o desenraizamento e seus desdobramentos idiossincráticos: "É certo que temáticas judaicas, como a migração da Europa Oriental, o horror da Shoá, a errância, o sentimento de estranheza e desconforto, a dificuldade de ser aceito pela população hegemônica, permeiam boa parte de sua obra" (p. 86). Mas não só isso. Referindo-se à condição de "escritor judeu" com que Rawet foi (e é) analisado, Kirschbaum traz outro aspecto ao mesmo tempo ineludível mas igualmente capcioso da obra de Rawet: a relação natural entre sua condição de escritor e de judeu, possível fonte tanto de visões simplistas desse e de outros escritores judeus, como chave para contos e inquietações expressas em ensaios do próprio Rawet.
Diante do flerte entre literatura e ideologia, bem como da propaganda sionista nos anos 1950 e 60, Rawet opta por preservar a autonomia da literatura: "atendendo a suas notórias preferências pela solidão, pela errância individual, opta por outra trincheira" (p. 71) -a literatura. E foi com sua literatura, pouco conhecida até sua morte em 19841, que esse imigrante judeu torna-se "Um escritor brasileiro", título desse terceiro capítulo.
Sopesando as implicações lógicas do termo "escritor judeu", o autor demonstra os perigos desse rótulo. Procurando especificamente o lugar deste judeu na literatura brasileira, Rawet é visto como herdeiro da literatura feita na década de 1940: "... reivindico que a obra de Samuel Rawet, habita, com toda propriedade, a tradição literária brasileira, ao mesmo tempo que a judaica. Em consequência, deveria merecer atenção acadêmica e crítica não somente daqueles interessados na cultura judaica diaspórica, mas também de todos os que consideram relevante o estudo da literatura brasileira, em suas diversas vertentes, periféricas e hegemônicas" (p. 85). Questões intrinsecamente literárias, principalmente, como o uso de elipses e a problematização do pacto ficcional que garantiria o entendimento entre autor e leitor atestam o lugar de Rawet na renovação do conto brasileiro.
Já no quarto capítulo, são verificadas as relações entre a filosofia de Martin Buber, inspirada no Hassidismo do séc. XVIII, e a ficção de Rawet. O autor busca indícios de que a admiração pessoal por Buber teve reflexos na ficção rawetiana. Após explicações de conceitoschave na obra de Buber, a saber, as palavras-princípio e o "face a face", é feita uma análise do conto "Diálogo", em que Rawet evoca (às avessas) o face a face buberiano pelo mote "frente a frente", que perpassa o conto. O capítulo seguinte discorre sobre o conto "Parábola do filho e da fábula", enfocando mais uma vez os temas do diálogo e da tradição. Tratamento semelhante é dado à novela curta "Abama", analisada no capítulo logo a seguir, junto a "Reinvenção de Lázaro".
Ambas as narrativas trazem a necessidade da busca por um projeto alternativo de literatura que correspondesse a possíveis "programas alternativos de modernidade" e respondesse ao descompasso (trabalhado em "Abama") entre modernidade e modernização. "Abama" também evoca o profetismo bíblico, mas "[e]m modo de subversão", (p. 120). "Reinvenção...", por sua vez, também dialoga diretamente com a noção de literatura engajada. Diz o autor, sobre o fazer artístico: "Assim como o escultor talentoso tira anjos da pedra bruta carregada pelo ajudante de caminhão, o grande escritor tira sua narrativa da vida bruta carregada pelo operário. Nem um nem outro são capazes de, com sua obra, melhorar em nada a vida de outrem. A obra de arte permanece, mas é 'coisa supérflua, penduricalho a ser lançado sobre sete palmos de terra'" (p. 168), afirma o autor, citando um trecho do conto. Essa "coisa supérflua", entretanto, tem seu valor próprio, se vista com lucidez, isto é, em sua especificidade.
O capítulo seguinte ilustra essa lucidez, com Stefan Zweig e Samuel Rawet em suas experiências de exílio diante de uma realidade hostil e da necessidade íntima de expressão; e, por extensão, como pensadores que lidam com "modos e limites do engajamento possível [i.e. alternativo]" (p. 179), diante da inescapável responsabilidade pelo Outro. O marco histórico de Auschwitz é retomado pelo autor, que se vale também da figura de Ahasverus, o judeu errante exilado até a segunda vinda do Cristo, que dá nome a outra novela curta de Rawet analisada nesse capítulo. "Ahasverus" é visto como a releitura (des-leitura) do mito do judeu errante: ao invés de contribuir, como mito, para a "coesão da comunidade [...] aponta para as origens de sua dispersão". (p. 197). Da mesma forma com que Zweig constrói uma alegoria da Alemanha nazista em Consciência contra a Violência, Rawet trabalha, em "Ahasverus", com os limites da expressão literária, colocando a própria literatura em questão como "meio de expressão de um ideal" (idem) sem que se perca sua especificidade.
Na última etapa do mergulho nas obras de Rawet, Saul Kirschbaum explora o conto homônimo do último livro do escritor, publicado em 1981: Que os mortos enterrem seus mortos. Diferente dos volumes anteriores, neste, Rawet abandona as linhas de força habituais do judaísmo: "em nenhuma das narrativas o judaísmo e suas linhas de força habituais, a Shoá, o exílio, a errância, a assimilação, são tematizados" (p. 206) - mas a judeidade continua presente, afirma o autor, que investiga os sentidos da expressão que dá o título para a obra e para o conto analisado, relacionando-a à complexidade de suas personagens.
O último capítulo, "O Solitário Caminhante do Planalto: o profeta, a pós-modernidade, o não-engajamento", mostra como a complicada relação de Rawet com o judaísmo (e os judeus) enquanto tradição e identidade não é incomum, estando inserida no rol de questões que se colocam aos judeus desde o início de sua Emancipação civil, na Europa do séc. XVIII. A crise identitária dos personagens rawetianos é reflexo da pós-modernidade e, vivenciada, segundo Kirschbaum, já quando a cristandade apenas adentrava a Modernidade: "Os judeus (e as demais minorias também vítimas de processos de rejeição) sofrem de uma pós-modernidade precoce" (p. 230). Inicia-se, então, a crise pela qual o judaísmo continua a passar e que em Rawet mostra-se, ao mesmo tempo, como crise ética e literária.
Saul Kirschbaum analisa contos de todos os livros de Rawet, menos de Os sete sonhos (1967) -o que não diminui o mérito do autor. Os setes sonhos é o livro de contos mais metalingüístico de Rawet, o que naturalmente faz com que o tratamento formal se destaque, enquanto nas outras obras as relações entre ética e estética estão mais presentes, mostrando-se mais adequadas aos propósitos do autor.
O recurso de retomar citações e dados biográficos e argumentativos leva o leitor a repensar e entrelaçar argumentos ao longo de toda a leitura. O uso do discurso indireto livre, o peso dado ao narrador e outras ferramentas ficcionais, comuns na obra de Rawet e inevitáveis numa análise sua, também são verificados recorrentemente. Outro recurso de escrita de Saul Kirschbaum, antecipar objeções do leitor, também é bastante usado, o que reforça o bom didatismo da obra. Tal método de elaboração do livro permite a leitura intercalada dos capítulos sem nenhum prejuízo, a despeito de pequenas referências a capítulos anteriores ou posteriores que funcionam, neste caso, como convites de leitura. Mesmo assim, a leitura linear do livro proporciona maior profundidade a este mergulho ao "fundo obscuro da existência" (Levinas, passim) em que se fundam as bases da obra de Samuel Rawet.
Em vista do que foi aqui exposto, percebe-se que o livro é muito bem-vindo como contribuição crítica valiosa para o resgate e divulgação da obra de Rawet, depois da publicação reunida de sua obra completa, exceto teatro.
1 Rawet começou a ser estudado na academia nos anos 1980. No final dos anos 1990 já havia um número razoável de trabalhos acadêmicos sobre o escritor, e a republicação de sua obra completa (exceto teatro) e fortuna crítica, na década seguinte, consolidou o resgate acadêmico da obra de Rawet (do qual a tese que deu origem a Viagens de um caminhante solitário teve participação).