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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.6 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2014

 

ARTIGOS

 

Do Supereu ao ideal do eu: para um novo modelo de autodesenvolvimento

 

 

James E. Block

PhD em "Commitee on Social Through at University of Chicago". Professor Associado em Ciência Política, DePaul University. E-mail: jblock@depaul.edu

 

 


RESUMO

Para construir um novo modelo do potencial humano em uma cultura global preocupada com os limites sociais e psicológicos, os pesquisadores do desenvolvimento humano devem abordar a promessa do sujeito humano pós-neoliberal. Um recurso crucial são os primeiros escritos psicanalíticos de Freud, especificamente seu conceito de ideal do eu. Apesar de sua revisão posterior do ideal do eu como uma estrutura interna mais preocupada com a deferência à autoridade e às normas sociais (o supereu), o ideal do eu oferece um poderoso construto teórico para pensar possibilidades humanas emergentes. Utilizando teorias de Rousseau, Kohut, Jacobsen, Fromm, Marcuse e Kohlberg, este ensaio explora as implicações positivas do ideal do eu, e oferece um modelo conceitual de um ideal do eu mais plenamente evoluído para o mundo contemporâneo.

Palavras-chave: ideal do eu, supereu, moral, desenvolvimento psicológico, religião, desenvolvimento humano.


ABSTRACT

To construct a new model of human possibility in a global culture preoccupied by social and psychological limits, the researchers of human development must address the promise of the post-neoliberal human subject. A crucial resource is Freud's earlier psychoanalytic and psychodynamic writings, specifically his concept of the ego ideal, the subject's vision from experiences and dreams of its developing possibilities and capacities. Despite his later revision of the ego ideal as an internal structure more concerned with deference to authority and social norms (the super ego), the ego ideal offers a powerful theoretical and developmental construct for imagining emergent human capacities and capabilities. Utilizing theories of Rousseau, Kohut, Jacobsen, Fromm, Marcuse, and Kohlberg, this essay explores the positive implications of the ego ideal and offers a conceptual model of a more fully evolved ego ideal for the contemporary world.

Keywords: ego ideal, superego, moral, psychological development, religion, human development


 

 

Vivemos, hoje, não em uma Idade de Ouro, de Prata ou de Bronze, mas em uma Idade da Ironia, uma idade na qual os desejos e votos humanos não estão cunhados em metal algum, mas se voltam contra si mesmos para corroerem suas fundações em ceticismo e ridículo, em última análise, a risada oca em "A Queda" de Camus. O que se põe em dúvida, ao que parece, é a crença em nossos desejos e sonhos mais profundos como um guia para o que é humanamente possível, bem como o poder de realizar esses sonhos. No mundo escuro, que imaginamos dominado por um Id grandioso e ilusório (delirante?) e um eu fútil e impotente, os sujeitos estão presos entre utopias sem lugar e o presente intratável, que deixam, assim que cessa o riso zombeteiro, apenas a sensação de desesperança.

No fundo, acredito que esta situação cultural reflete o sentido de que o projeto ocidental se esgotou, recuando para o universalismo do alto Iluminismo nos campos de concentração, colonialismo e neocolonialismo neoliberal, bem como para o consumismo vazio e a conformidade de massa ao modelo do self e sociedade liberais. A liberdade prometida, inclusão, justiça social e individual, agora parecem em grande parte fora de alcance, exceto como slogans de campanha e truques retóricos. Derrida (1994), o mestre da ironia, abandona essa postura momentaneamente quando confessa, em "Espectros de Marx", que sua recusa de considerar os sonhos derivava do fato de que, aos setenta, ele ainda não tinha aprendido a viver. A identidade permaneceu para ele um fantasma, uma alma do outro mundo, um pai que deveria vir, mas que, apesar disso, não vem.

As idades de transição, quero sugerir, estão impregnadas com esse aroma tentador de possibilidade fora do alcance por pouco. A pessoa é mobilizada, repetidamente, para desejar o que ainda não chegou, até que a esperança se torne uma forma de falta de esperança, um sinal de ingenuidade. O desafio para aqueles que acreditam que, debaixo da ironia, este é um tempo de ensaio, de experimentação, um tempo em que novos ideais sociais e culturais se apresentarão para substituir o projeto liberal ocidental, é tentar lançar as bases de novos rumos para a identidade humana e a comunidade. É o caminho que tentarei esboçar para vocês neste ensaio.

Meu objetivo é refletir sobre a intersecção entre identidade e história. A primeira parte vai situar a metapsicologia de Freud no contexto da ascensão dos ideais liberais modernistas, propondo que ela fornece as sementes de uma moldura valiosa para rastrearmos como os ideais históricos impactam a formação de seres humanos e a abertura de novos caminhos. A segunda parte sugere como sua metapsicologia pode e deve ser expandida, usando o trabalho de figuras como Fromm, Edith Jacobsen, Marcuse, Kohut, Kohlberg e meu próprio trabalho, para delinear um novo modelo de autodesenvolvimento, emergente na idade pósmoderna e pós-liberal. Não tenho a pretensão de que este seja o único modelo viável - na verdade, invoco pensadores da psicologia e da cultura no limiar da pós-modernidade para imaginar, teorizar e realizar novas sínteses de ideais culturais e da identidade humana em desenvolvimento. Além disso, dou-lhes as boas-vindas.

 

I. Releitura de Freud e seu idealismo

Se aceitarmos para os nossos propósitos a divisão tripartite freudiana do self em impulsos / desejos; funções de realidade e mecanismos de resposta; e ideais pessoais / sociais, é sobre o último tema que nos concentraremos. Para crianças muito pequenas e, curiosamente, em relatos do próprio Freud, os ideais desempenham o papel menos significativo. Inundada pelas incessantes pulsões primitivas, por um lado, e pela pressão de uma realidade onipresente pelo outro, a busca do sujeito é normalmente fixada em segurança, ordem e em obter uma medida adequada de satisfação básica. Os ideais, nesse cenário, são apresentados muito menos como guias para a realização do potencial humano ou de perspectivas sociais, do que como hábitos e convenções tradicionais transmitidos para organizar e fazer frente ao transtorno social e à fragmentação psíquica.

Trabalhando nesta perspectiva limitada, Freud pode facilmente ser considerado pessimista ou, de forma mais gentil, realista; mas isso subestima profundamente o papel dos ideais, e mesmo das potencialidades culturais em transformação em sua obra. Freud é um dos últimos grandes representantes da primeira revolução moderna na consciência humana (ocorrida mais tardiamente na Europa Central), que produziu o individualismo ocidental. Como Thomas Hobbes, o teórico com quem ele mais compartilha, Freud testemunhou o colapso da sociedade orgânica hierárquica tradicional, com sua cidadania passiva, complacente. A modernidade havia liberado os indivíduos para seus próprios sonhos, ambições e pulsões, e para conquistar seu lugar no mundo usando seus talentos e recursos pessoais. A metapsicologia freudiana, como a psicologia política de Hobbes, na origem dessa época, afirma, por meio de sua própria estrutura, essa importante mudança como o caráter definidor da modernidade. Ao mesmo tempo, Freud é compreensivelmente cauteloso e apreensivo sobre a capacidade dos indivíduos - que vivem desde o início dos tempos em comunidades autoritárias - para pilotar de forma responsável esta liberação de energia e pulsão, precisamente quando os mecanismos coletivos de coerção estavam em declínio. Poderiam as pulsões ser resolvidas, aproveitadas e dirigidas, sem sucumbir ao lado anárquico, dominador e destrutivo da vida psíquica?

A aceitação qualificada da era individualista por parte de Freud, e seu trabalho como professor para a civilização de estratégias de contenção e expressão modificada, ligam-no à visão social liberal da primeira modernidade: Locke, Adam Smith, James Madison, John Dewey e outros. Sua virada para o supereu, como sistema de gestão internalizada do indivíduo, visava substituir as hierarquias e controles externos perdidos, e preparar os cidadãos para uma vida de autorregulação na fluida sociedade moderna. Do seu ponto de vista, é bem melhor sermos vigilantes e céticos em relação às nossas capacidades de reconstrução, do que presumir que os desejos são inerentemente morais e benignos.

Esse otimismo sombrio, por assim dizer, embora um grande farol para os primeiros modernos, não foi inspirador (nem fora concebido para sê-lo) nem sequer minimamente satisfatório para a alta era moderna do individualismo. Muitas figuras do século XIX, tendo experimentado desde então a liberação da sociedade tradicional, incluindo os românticos, Kierkegaard, Nietzsche e o existencialismo - bem como a tradição americana decorrente de Emerson e que culminou na contracultura - começaram a imaginar a formação da identidade sob uma luz muito mais positiva. Um individualismo robusto, acreditavam eles, não implicava o repúdio ou contenção de sonhos e desejos, mas sua aceitação e o desenvolvimento de habilidades totalmente capazes de satisfazer os desejos em um mundo agora não mais considerado como assolado por rigidez intratável, mas fluido, maleável, e aberto à iniciativa individual. Em outras palavras, o próprio modelo do self via-se alterado, do supereu disciplinador e repressivo para o emergente e florescente self ideal, uma visão do self presentificada não só na gestão cuidadosa, mas na realização mais plena da potencialidade individual. Esse modelo emergente de um ideal do eu mais amplo e positivo do que o supereu estimulou, assim, uma revisão do ceticismo moderno anterior sobre a vida dos impulsos e a capacidade do eu.

 

 

Nessa grande mudança para a cultura tardia ou pós-moderna, o desejo central - seguindo Rousseau como a grande alternativa ao liberalismo hobbesiano - era um self inteiramente realizado, um self convocado por seu ideal, em vez de contido e até derrotado por seus medos e inseguranças. E o que é notável nessa mudança, que caracteriza grande parte da metapsicologia pós-freudiana, é que ela pode ser atribuída à obra do próprio Freud. É por Freud, portanto, que devemos começar.

É verdade que o termo ideal do eu, tal como usado em "Psicologia de Grupo" e "O Ego e o Id", é gradualmente fundido com o de supereu, até ser tomado como um termo equivalente, a ponto de "desaparecer quase completamente como termo técnico" (FREUD, 1922/1962, p. xvi). O desejo primordial tornou-se o de ser como o pai, tendo-se tornado o supereu então um substituto, ou "representante do mundo interno, ou do id" (FREUD, 1922/1962, p. 26). Desvios de uma identificação completa são agora vistos como uma derrota, sucumbindo a "injunções e proibições" que exercem "censura moral" (ibid., p. 27), insistindo em que a criança não pode e não deve ser como o pai (ibid., p. 24), essa natureza mais elevada, que admiramos e "posteriormente tomamos em nós mesmos" (ibid., p. 26).

No entanto, em seu ensaio metapsicológico de 1914, "Sobre o narcisismo", Freud introduz o ideal do eu de uma forma radicalmente diferente. Provavelmente como reflexo de seu próprio impulso para a grandeza, Freud pergunta como surge, na criança, o sentido de sua própria natureza ideal. Em parte, seus ideais representam os "sonhos e desejos de seus pais", que eles nunca atingiram, e projetam sobre o bebê (FREUD, 1914/1959, p. 48). Em parte, representam o esforço para responder às críticas parentais e culturais, isto é, às expectativas (ibid., p. 53). Não obstante, os ideais emergem, em parte, do desejo da criança por continuar a ser "o seu próprio ideal" de "perfeição narcisista", a fim de sustentar o amor-próprio real que ela experimentara no início (ibid., p. 51). A função crítica do ideal do eu, nesse contexto, de estabelecer um ideal pelo qual medir seu eu (ibid.), visa, neste ponto, a melhor atingir os ideais próprios de cada um.

Há problemas, porém, com a formulação de "Sobre o narcisismo." É claro que o desejo de formação integral de si enfrenta "obstáculos reais" (ibid., p. 58), desconfortos dos quais a criança terá de "proteger-se" (ibid., p. 49). Estes resultam em caminhos que ela será forçada a trilhar (ibid.), incluindo desvios para o amor ou escolha objetal (ibid., p. 58), e contínua "autoobservação e autocrítica" (ibid., p. 55), que Freud legitima como esforços para subjugar o narcisismo infantil descontrolado, e o eu agora "megalomaníaco" (ibid., p. 50). As pistas que nos são dadas para essa transformação da ambição para o descrédito na grandiosidade e o medo de ser subvertido são a "intimidação" precoce conectada com o "complexo de castração" (ibid., p. 49), bem como a agenda do narcisismo parental, imposta à criança pelos desejos parentais de imortalidade, através da projeção que Freud chama de "fuga para a criança" (idem). A sugestão aqui é que se está desviando a criança do caminho de seus próprios ideais para viver os sonhos dos outros.

Em "Psicologia de grupo", a identificação tornou-se a "forma original de laço emocional", juntamente com a introjeção, especialmente com relação aos pais (FREUD, 1921/1960, p. 49), embora ainda se atribua à criança - de forma inconsistente - o "narcisismo original" e a "autossuficiência" do eu (ibid., p. 52). A idealização de outros, incluindo o amor , a hipnose e a solidariedade de grupo, ainda são o produto de "algum ideal do ego não atingido" (ibid., p. 56), depósitos fracos para os restos de independência e originalidade que Freud atribui ao sujeito em desenvolvimento (ibid., p. 78). Exceto na mania e nas Saturnálias, ou seja, no excesso indesejado, o ideal do eu agora critica e limita (ibid., pp. 81-2). Na época de "O Ego e o Id", a identificação com o pai se tornou quase primária (FREUD, 1922/1962, p. 21), um dever parecer decorrente da "influência de autoridade" (ibid., p. 24) para submeter-se edipicamente ou sentir culpa (ibid., p. 25), medo e necessidade de idealizar, religiosamente ou não, essas "naturezas mais elevadas" em autoridade (ibid., p. 26). Sua obra "Novas Conferências Introdutórias" completa a foraclusão do ideal do eu. O supereu da criança agora é constituído através das primeiras imagens parentais formadas pela desejada ligação emocional com essas magníficas figuras iniciais (FREUD, 1933/1964, p. 64). Como tal, o desejo de identificação plena com os pais faz do supereu o pai internalizado que exige preeminência, através de demandas severas e exigentes ao jovem de não buscar uma estatura equivalente, mas sim de obedecer, ceder e idealizar (ibid., p. 67).

O que aconteceu com o ideal de eu, o self ideal e seu desenvolvimento? Freud, de fato, oferece amplas indicações em "Interpretação dos Sonhos" e nas cartas da mesma época para Fleiss. Aqui, ele sugere que o colapso do ideal do eu que foi abrangido pelo supereu internalizado é quase preordenado desde o início. Embora não haja tempo para considerar essa questão em profundidade, ela é relevante não apenas para a compreensão das dimensões pessoais da evolução de Freud como pensador, mas também porque indica que ele estava, como muitos na nossa era, preso entre o ideal hobbesiano do individualismo limitado e a visão rousseauniana do self plenamente evoluído, e que, após grande luta interna, finalmente garantiu sua lealdade ao primeiro em detrimento do seu próprio sonho de ser um libertador.

Nesses trabalhos iniciais, Freud revela a intensidade de sua ambição de "reconhecimento e de independência" (FREUD, 1985, p. 180), e até para "descobrir... as maiores verdades" (ibid., p. 179), resolver um problema de mais de mil anos de idade, e descobrir a "fonte" dos grandes enigmas (ibid., p. 185). Em "A Interpretação dos Sonhos", registro de sua autoanálise, ele identifica seu próprio ideal com Hannibal, seu "herói favorito" (FREUD, 1931/1965, p. 229), bem como com Napoleão e seus marechais. Contrasta a sua coragem "marcial" com a "conduta não heroica" do "grande homem forte" de sua infância, seu pai (ibid., p. 230). Ele observa, durante este período, a raiva contínua, a rebeldia, o desejo de expor e desejo de vingança e de morte contra um pai repressivo e limitador (ibid., pp. 250-1, 276), assim como o de superá-lo e de transcendê-lo, como um ideal (ibid., pp. 276-8). Finalmente, assolado por medo, vergonha, ansiedade e culpa num momento em que o pai está realmente morrendo (ibid., p. 280), ele chega a considerar o desejo de formar os próprios ideais e ambições como fruto de impulsos de vingança da criança "egoísta" e "implacável" (ibid., p. 283), impulsos de recusar ao pai a identificação de direito por parte do jovem como a primordial e "única autoridade" sancionada pela "história da civilização humana" (ibid., p. 251n).

Agora visto como desejo raivoso da criança, Freud recua do seu ataque generalizado à autoridade parental e da civilização, atribuindo-a à sua própria grandiosidade descontrolada e arrogância, a seu desejo de substituir e triunfar sobre o pai. Seus sonhos de ser um "conquistador" e "aventureiro", com invulgares "curiosidade, ousadia e tenacidade" (FREUD, 1985, p. 398) são agora apenas "castelos no ar" que ele "teve de demolir" (ibid., p. 405). Ele percebe que, culturalmente, os pais altamente dominadores do passado não existem mais (FREUD, 1931/1965, p. 290), mas sucumbe à "submissão" e "impotência" do papel da criança na narrativa de Édipo (ibid., p. 295) como uma "advertência para nós e para nosso orgulho" (ibid., p. 296). Várias vezes, ele diz que vai fechar os olhos (ibid., pp. 297, 352) para a nudez do Imperador e para a competitividade e ciúme do pai em relação ao desejo do filho por independência e sucesso (ibid., p 250), afirma a "onipotência divina" (ibid., p. 298) e o desejo do pai por idealização (ibid., p. 485). Em um sonho posterior fundamental, veste o papel de comandante do castelo somente quando o Governador morre (ibid., p. 501). O desejo de substituição, de "ser ele próprio um antepassado" (ibid., p. 470), se é uma posição que permite, por sua vez, demandar identificação e idealização por parte dos filhos, por outro lado, é a derrota do ideal do eu pelo supereu. Isso porque não se vai chegar a Roma com Hannibal, o libertador, nem à luminosa Atenas clássica, nem, como Moisés, à Terra Prometida (ibid., p. 415). Conseguiu-se preencher a "vaga" do pai (ibid., p. 522), mas os próprios sonhos são "reduzidos a nada" (ibid., p. 458).

Obviamente Freud conseguiu grandes coisas como um escavador da psique / alma, mas seu grande desejo de "dobrar os poderes superiores", como Moisés e outros libertadores, foi redirecionado para "mover as regiões infernais" (ibid., p. 647). No final, ele defende a necessidade de repressão do "horror" interno (FREUD, 1985, pp. 272, 280), pela idealização da "grandeza" paterna (ibid., p. 318) e dos "deuses antigos" (ibid., p. 361), a necessidade de enterrar o narcisismo (ibid., p. 309) e de autopunição (ibid., p. 412) pelos sonhos de tomar "a cidadela pela força" (ibid., p. 390). O espectro da autoridade tradicional era muito recente na Europa central de Freud, e poderoso demais para ser desfeito - "afinal, as pessoas só seguem a autoridade" (ibid., p. 435). Só se pode "reverenciar a autoridade" (ibid., p. 457), aclamar o pai, e aguardar a "transferência... de pai para filho" (ibid., p. 394).

 

II. Recuperação do ideal do eu

Repensar o desenvolvimento da individualidade humana após Freud envolve reconceituar as três dimensões da sua estrutura metapsicológica à luz dos ideais da era pósliberal. Se o ideal do eu é o esforço crescente do sujeito para interiorizar, individualizar e apreender de sua própria forma os ideais da época em que vive, então ele culturalmente precede e modela a visão de época das pulsões e capacidades do eu. Uma vez que, no entanto, em seu desenvolvimento psicológico, o sujeito torna-se explicitamente engajado no trabalho de ideais e self-ideais do passado, inicialmente apropriando-se sem autoconsciência e de forma acrítica do entendimento da época sobre a vida pulsional e desejante e sobre a capacidade do eu, e porque ideais pós-liberais são tão incipientes e ainda não explícitos, novos entendimentos das pulsões e do eu estão surgindo, sem uma noção clara de sua relação com as concepções emergentes dos ideais pós-modernos. Assim, pouco tem sido feito sobre o ideal do eu que está emergindo em relação à evolução contemporânea de novos ideais.

Para lançar as bases para essa discussão, quero explorar o entendimento revisto do poder e da capacidade do eu na formulação de um self-ideal em Jacobsen e Fromm, e depois das pulsões e do narcisismo primário em "Eros e Civilização", de Herbert Marcuse, reconhecendo que estas transvalorações são parte de um padrão histórico mais amplo de ideais emergentes. Sugiro então o uso de Rousseau e principalmente de Kohut sobre como o ideal do eu pode ser enquadrado como a integração emergente do impulso narcisista e do self-ideal em uma síntese pós-moderna. Finalmente, vou sugerir o uso de Kohlberg e de meu próprio trabalho sobre como a formação e desenvolvimento do ideal do eu contemporâneo é, em si, o ápice ontológico de uma evolução filogenética mais ampla do self-ideal cultural no Ocidente.

Para os psicólogos do ego, a relação com o mundo, incluindo as relações de objeto, desempenha um papel muito mais importante do que a vida pulsional. O eu é agora compreendido por Jacobsen como um regulador mais eficaz dos impulsos, capaz de constituir-se como um gerente competente por meio de suas "funções de síntese, e de organização" na atividade mundana (JACOBSEN, 1965, p. 27). Para nossos propósitos, podem-se extrair das identificações as "características idealizadas dos objetos de amor" e "conceitos ideais do self' (ibid., p. 96) para sintetizar um ideal do eu. Além disso, o eu é capaz de testar a complexa identidade emergente do mundo para "desenvolver noções mais realistas" de "poder e força" (ibid., p. 101) e para moldar a "mágica", mas "indispensável" meta (ibid., p. 110) de tornar-se ele próprio, tanto dentro do mundo quanto em oposição a este (ibid., p. 111). Tal objetivo é individualizado e elaborado por valores durante a adolescência e além (ibid., p. 187). Fazendo isso, o eu é capaz de conter o supereu crítico, estabelecendo com ele uma harmonia de trabalho (ibid., p. 188). Além disso, é capaz de estabelecer um ideal que atinge a realização do narcisismo precoce do self "desejante" (ibid., p. 118) e a autonomia da dominação moral e pulsional (ibid., pp. 188-9), com uma "autorrepresentação consistente e desejável" e uma identidade (ibid., p. 192). O problema em Jacobsen é que as pulsões primárias são, segundo ele, tão amorfas quanto convencionais, envolvendo desejos de "felicidade eterna... glamour e riqueza" e "poder e força física e mental" (ibid., p. 112), pouco mais do que construções sociais internalizadas.

Fromm tem uma noção mais robusta do desejo de autorrealização e autoestima (FROMM, 1947, pp. 118-24), ainda que a libido seja muito menos importante para o cerne do "caráter" do que a forma como, através das capacidades do eu, o "homem se relaciona com o mundo" (ibid., pp. 58-59). Através de "ajuste à sociedade" (ibid., p. 60), o indivíduo busca o crescimento, felicidade, amor e liberdade, para "dar à luz a si mesmo" e realizar suas potencialidades (ibid., p. 237) e constituir um "self real" (ibid., p. 131). Esse self modelo representa nossa capacidade ótima de cumprir nosso desejo de realização como indivíduos socialmente produtivos das próprias faculdades egoicas.

A pulsão torna-se o prazer que "acompanha a atividade produtiva do homem" (ibid., p 177); caso contrário, é apenas "subjetiva", e nunca é "adequada como um princípio orientador" (ibid., p. 173).

Ao contrário dos psicólogos do ego, que ampliam a capacidade do self de estabelecer o seu ideal, mas drasticamente reduzem os desejos nucleares ao funcionamento social adaptativo, Marcuse, como o grande teórico pós-freudiano de Eros, concentra-se nas pulsões até a virtual exclusão do eu de consideração. Para Marcuse, a produtividade da sociedade pós-moderna, em certo sentido, cumpre a tarefa do eu histórico, tornando a descoberta e a realização do narcisismo primário possível e urgente pela primeira vez. Em oposição à visão de Derrida, segundo a qual Copérnico, Darwin e Freud teriam desferido golpes traumáticos para o lugar do individuo no universo, ilusões necessárias acerca de uma narrativa cósmica, sua visão sustenta que estes são estágios importantes na aceitação do lugar de cada um numa realidade mais ampla, na jornada para o modelar narrativo do próprio ambiente individual e coletivo.

O individualismo moderno culminando em Freud é, para Marcuse, um domínio de gratificação substitutiva, a deflexão necessária de desejos primários para objetivos secundários socialmente organizados pela necessidade de conter e regular/disciplinar o individualismo emergente. Em um mundo no qual a repressão pela organização econômica da escassez já não é mais exigida, incluindo a escassez do objeto sexual e libidinal da situação edipiana, a dominância histórica de objetivos substitutivos secundário e defletidos, o mundo de sombras de Platão não é mais necessário. Os seres humanos podem agora entrar na luz, não da verdade, mas dos desejos primários de gratificação, nos jogos, eros, fantasia, narração de histórias e produção estética. Marcuse diz muito pouco sobre o eu, exceto que seu objetivo atualmente é atender às demandas de libido, individual e coletivamente. Com o eu tão diminuído, o próprio ideal do eu nunca emerge, pelo fato de que o próprio tempo - o reino dos ideais tendo sido realizado - está absorvido no jogo do presente.

A visão do desenvolvimento mútuo do eros narcisista e do eu, funcionando para criar um ser capaz de perceber os impulsos dentro de um mundo socialmente ordenado de construção coletiva, deve ser atribuída a Rousseau. Em seu trabalho, o ideal do eu nunca surge como uma parte estrutural do self, que é integrável como parte do amadurecimento do sujeito (Rousseau chegou tão cedo ao ideal pós-moderno, que ele nunca o contextualizou em termos desenvolvimentistas para o sujeito, apenas para o filósofo - veja-se "o Vigário da Saboia" em Émile). Rousseau oferece, porém, em Émile, um modelo de autodesenvolvimento ininterrupto. Se o amor da criança por si mesma, ou narcisismo primário, não fosse rompido nem desviado por imposições da autoridade e repressão socializadora, dominação ou negação, aprisionando o desenvolvimento em níveis mais baixos, como preço para ingressar na sociedade, novas potencialidades internas se desdobrariam fundamentadas no prazer, libido e fantasia através da dinâmica narcisista. Como o amor por si mesmo surge e amadurece em seus encontros com o mundo, ele desenvolve, para Rousseau, capacidades estruturais internas que lembram as estruturas freudianas, embora radicalmente reformuladas. Uma vez que essas capacidades são o que se desenvolve, precisamos entendê-las para apreender o modelo que proponho.

Primeiramente, um eu libidinalmente investido substituiria o eu edipiano desviado e subordinado, reorientando nossa relação com o mundo. Esse eu já não internaliza mais a autoridade hierárquica ou persegue gratificação substitutiva de objetos do narcisismo secundário escolhidos pela autoridade social. Em vez disso, ele procura formas geradas internamente e relacionalmente de expressão libidinal, brincar e trabalhar dentro da realidade, não como uma força que derrota o prazer, mas constituindo o próprio local do prazer. Se lhe for permitido desenvolver-se plenamente, com desafios adequados para a maestria e o prazer dentro de espaços protegidos cada vez mais amplos, a maior capacidade do ego para obter e compartilhar prazer do mundo irá evoluir com o exercício e o aprimoramento de interesses, habilidades, envolvimentos e capacidades. Sob essas condições, a criança irá desenvolver um forte sentido do mundo - tanto de sua fluidez quanto de sua rigidez - e de como atualizar o self (e seu ideal emergente) dentro dele. Através de um processo de crescimento interno, o eu expandirá sua preocupação com o prazer na experiência, para os prazeres do domínio em atividades úteis, produtivas e criativas, para o prazer de tal domínio dentro de um mundo compartilhado de significação e moralidade, e contribuindo com ele. Como Rousseau argumenta poderosamente, o senso moral da criança se desenvolve juntamente com o seu sentido do próprio valor, e seu laço com os outros evolui com seu compromisso consigo mesmo. Só damos livremente quando estamos livres e capacitados para dar.

A segunda estrutura que emerge para conectar o indivíduo em crescimento à organização das relações culturais e sociais é o ideal do eu libidinalmente investido. É essa estrutura que o psicanalista Heinz Kohut esclarece. Kohut baseia o ideal do eu no desejo narcísico de investir o self, não apenas o eu, mas utilizando o eu a serviço da produção de uma identidade duradoura e autoidealizada. Isso é conseguido por uma transferência idealizadora ou idealização projetiva de pais e outras figuras-chave para a criação de um "self-objeto idealizado" (KOHUT, 1971, p. 43), que a criança, por sua vez, procura empregar em uma transferência especular, para garantir, "pelo eco confirmatório", que "sua alta valorização do Self-Outro" retorne como aprovação e alta valorização de seu próprio ser (ibid., p. 124). Dessa forma, a criança cria um ideal do eu utilizando os outros, e trabalha para internalizá-lo não como mera introjeção, mas como seu próprio eu. Kohut sugere ainda que uma das funções do ideal do eu é domesticar e neutralizar as primeiras idealizações, construindo e sintetizando um ideal do eu mais pessoal a partir das múltiplas identificações transferenciais. Esse novo ideal do eu substitui, portanto, o supereu freudiano como uma introjeção autoritária de valores tradicionais e expectativas, representativos das figuras edipianas idealizadas que exigem subordinação do eu e do id (e self) emergentes, em vez de uma síntese ótima do self da criança.

Meu próprio trabalho estende o de Rousseau e o de Kohut, remodelando a formação e reapropriação do ideal do eu, na medida em que o sujeito estabelece o desejo nuclear de autoidentificação ao longo do tempo. É claro que o próprio ideal do eu é refinado e ampliado à proporção que o sujeito em crescimento experimenta e integra novos self-objetos idealizados e seus traços; mas o mais importante para o desenvolvimento do self é a capacidade do eu em evolução - através do crescimento, funcionamento, experimentação (tentativa e erro) e consolidação - de atender às demandas do outro idealizado, para obter, como resultado, confirmação através do espelhamento e, a seu tempo, de demandar uma nova relação de maior responsabilidade e poder em relação a este self-outro.

É neste ponto, na relação ao Outro idealizado, que o projeto contemporâneo de reconfigurar o papel do ideal do eu se conecta à formação da identidade na história e aos ideais ocidentais do indivíduo ao longo do tempo. Minha sugestão é que, em sua ligação com os outros significativos, autoridades, a criança primeiro projeta seu ideal, a cada estágio, sobre esse outro como imagem da autoridade última, e então se reapropria progressivamente desses ideais como capacidades e características de seu self emergente. O crucial aqui, porém, é que, nessa renegociação contínua de seu papel em relação à autoridade, o sujeito atravessa, recapitula e estende os estágios primários de desenvolvimento do self em relação à autoridade na experiência ocidental. Explicarei.

Para traçar a evolução estrutural do ego em direção ao self emancipado, autêntico e democrático da era pós-moderna, voltamo-nos para o desenvolvimento da relação do indivíduo à autoridade, e para o espaço cultural em que a autoridade e a nossa relação com ela foi constituída, moldada, apropriada e internalizada, ou seja, para a experiência religiosa ocidental. Em tal domínio, um espaço projetivo liberado das pressões da realidade cotidiana, grupos culturais avançados criaram relações do ideal do ego com um Outro idealizado projetado, elaboraram as especificidades dessas relações e, mais importante, em períodos-chave de transição exigiram retrabalhar a fundação estrutural dessas relações para acomodar maior poder humano. Aqui, Deus serve, segundo Kohut, como o ideal do eu projetado, o self-objeto idealizado, a idealização narcísica do nosso próprio self ótimo, bem como o espelho idealizante do nosso próprio potencial emergente que, validando nossa conduta, aprova e legitima o desenvolvimento do nosso self.

Na época de cada ideal do eu, à medida que se consolida o poder, igrejas, teologias e práticas institucionais tornam-se esferas de coerção, casas prisionais ou gaiolas de ferro que exigem fidelidade aos projetos e subordinações existentes, e rejeitam a inovação como heresia. Nesse sentido, a ênfase maior no supereu do que no ideal do eu é um sinal fundamental de um desenvolvimento travado dentro da cultura. Em tempos de crescimento da identidade, através dessa relação com o divino, um laboratório velado de desenvolvimento interno, moldamos e expandimos o potencial de nosso eu narcísico através de viver em uma relação confiante e expansiva com o ideal, permitindo que o eu cresça cada vez mais em semelhança com as expectativas do Outro ideal da época. Como a divindade absorve e forma o modelo do nosso self idealizado, e em troca autoriza - por espelhamento e exigência - nosso desempenho do comportamento ideal em cada etapa, atingimos o desenvolvimento egoico requerido para perseguir e alcançar mestria naquele mundo, refletindo aquela época, em última instância, para demandar maiores poderes humanos.

Examinada nesse cenário maior, a relação do indivíduo com a autoridade máxima na cultura monoteísta revela três fases distintas, que podem ser proveitosamente exploradas em relação aos estágios de desenvolvimento moral de Kohlberg (com diferenças-chave): as relações de servidão, de agência e de autoautoridade ou principado. A primeira é a relação com o ideal do eu característico do mundo tradicional que se originou com o judaísmo. É organizado em torno de um Autor/Self-objeto absoluto e inquestionável que ordena que o universo e todos dentro dele sigam a letra da lei divina. O indivíduo aqui se constitui no papel de servo que internaliza tanto as finalidades do autor quanto os meios definidos como legítimos para seguir e desempenhar esse papel com deferência rígida; um papel que é, por sua vez, aplicado no autoritarismo tradicional e nas relações hierárquicas, sociais e institucionais. Ao ser uma relação de subordinação absoluta e inflexível, o sujeito ganha uma poderosa relação de espelhamento com o ideal do eu supremo que lhe permite adotar um comportamento íntegro e ser validado como um membro das legiões de Deus, embora escolhido para ser usado.

A Reforma foi uma rejeição total da relação servil nas regiões culturais mais importantes da Europa. Plebeus empoderados pela modernização econômica e social, e cada vez mais ativos no mundo, rejeitaram a subordinação social e a designação teológica de servo colocada sobre suas relações mundanas e transcendentes. Em uma revolução através da Europa, culminando na Inglaterra do século XVII, os sujeitos surgiram para forjar e exigir novo papel do agente - não agente como um ator moral livre e sem limites, mas no significado original de agente que se contrata para realizar a obra do diretor. Nesse avanço fundamental no papel, autorizado, espelhado e, em seguida, exigido pelo novo Deus protestante dissidente, o indivíduo assumiu novo papel ativo, engajado e modelador do mundo, subordinado, sem dúvida, aos fins da divindade e da coletividade, mas autorizado a operar ativamente no mundo com julgamento pessoal e autossuficiência para realizar e cumprir metas maiores através da elaboração de seus próprios meios adequados. Essa é a forma modificada e limitada do primeiro individualismo moderno adiantado que Hobbes tomou explicitamente da Reforma, e Freud incorpora em sua deferência ao poder do supereu. Dito papel demandado de um agente, uma nomeação direta como deputado, representa um grande avanço na capacidade do eu e requer novas e poderosas formas de domínio, todas decorrentes de um papel de mais próximo e pessoal com o Autor, que renunciou a algum controle para fornecer um papel de maior poder para os subordinados, e traz o modelo de ego para mais perto do papel essencial do self como ideal do eu.

A idade de transição em que vivemos agora, creio, é um tempo no qual a noção moderna anterior do agente modelando a formação nacional americana, e presente em muitos lugares, deixou de fornecer uma perspectiva ideal de futuro. Quando Tocqueville afirma que a América evitou o feudalismo, isso significa que seus imigrantes rejeitaram a servidão e começaram a moldar uma sociedade e instituições de agência, na imensa liberação de energia e força humana para refazer o mundo e suas instituições - político-participativas, economia de mercado, igualdade social e religiosa, igrejas democraticamente formadas, e escolas e famílias menos autoritárias. Esse modelo ascendente fundou uma formidável sociedade popular até o seu colapso nos anos 60. Nesse período, a alegação americana de ter atingido o ponto alto e a conclusão da história ocidental foi abalada. Essa geração reconheceu que a agência não era nem a liberdade nem a culminação de autodesenvolvimento. Quando eles demonstraram que a agência, que, na fase anterior, capacitava e autoexpandia, era também uma relação subordinada e estupidificante, a exigir deferência institucional, filiação política, domínio paterno, conformidade social e desenvolvimento aprisionado, a estrutura de agência dos Estados Unidos entrou em colapso, levando à noção de que novas formas de desenvolvimento são possíveis, enquanto a agência, lentamente, inevitavelmente cede lugar.

O que é possível atualmente? Começando na contracultura, um novo movimento fortalecido por teóricos como Marcuse lançou um desafio radical: com o pós-industrialismo, os compromissos fatais e desvios de desejo em um sistema ultrapassado de repressão e autorrepressão edípica já não mais representavam barreiras intransponíveis para uma ordem humana liberada. Os indivíduos começaram a mover-se para além da agência em direção a uma nova relação com o self-objeto idealizado, aquela de chefe ou autoautoridade. Nessa visão mais empoderada do individualismo, internaliza-se o autor juntamente com a sua capacidade de espelhamento do self para tornar-se o modelo para seu próprio eu e o modelador de sua própria narrativa de vida. Agora, define-se para si mesmo as próprias finalidades e os meios para atingi-las, ou a moldura valorativa do mundo. A responsabilidade e as obrigações de cada um cabem primordialmente a si mesmo - para o próprio self ser verdade - embora o mundo público retenha funções cruciais de habilitação e regulação. Dessa forma, a identidade entre eu e ideal do eu torna-se a própria identidade, eu sou eu, na medida em que se é tanto o autor quanto o encenador da própria narrativa de vida.

Nessa nova jornada desenvolvimentista, a criança, com a idade, iria atravessar servidão, agência e, finalmente, a autoridade do self, nesta e em nenhuma outra ordem, visto que cada estágio pressupõe os anteriores. Só quando as competências e responsabilidades de um nível são dominadas, o desenvolvimento subsequente pode ter lugar. Um Outro especularmente idealizado, um adulto primário que apoia esse crescimento permitirá à criança passar para níveis mais exigentes e autônomos de funcionamento, num processo que há de resultar em igualdade, uma vez que os jovens gradualmente se apropriam de todos os poderes do outro idealizado, a partir da projeção idealizadora. O Outro reconhecerá esses estágios de dependência e deferência como transições que precisam ser elaboradas no caminho para a individualidade, e não como pontos terminais que levariam à restrição de maior crescimento. O ponto culminante é a separação, com a possibilidade de relações igualitárias, recíprocas e não simbióticas, democracia política e social sem conformidade ou despotismo majoritário, e pleno fortalecimento pessoal, sem submissão ou exploração. Como esse processo requer que as autoridades socializadoras renunciem progressivamente às suas prerrogativas e, no final, à própria autoridade, a única compensação prometida no mundo edípico para a perda do próprio ideal do eu como uma criança é negada.

Os deslocamentos associados a essa transição, nesse nível central do desenvolvimento psíquico, dão conta da atual confusão sobre ideais e idealismo na cultura contemporânea. Muitos temem que não haja para onde ir, ou, mais profundamente, que o caminho será árduo o suficiente para que se questione se seria sensato empreendê-lo. O processo de desenvolvimento do eu narcisista e do ideal do eu acha-se, no entanto, bem encaminhado, conforme a evidência que emerge em minhas discussões com analistas e terapeutas que trabalham na cura narrativa com seus clientes. Há um vasto número que sente a iminência da transformação interna, mas que não tem linguagem para entendê-la. A era que chega será uma era que há de mover-se em direção a novas formas de convicção sobre o potencial humano, que transcendem o realismo contraído e trágico do momento presente. Em minha opinião, o trabalho das pessoas envolvidas na libertação, e que a franqueiam aos que anseiam por ela, será o de fornecer linguagens, discursos e imagens para as potencialidades que buscam realização em novas formas de individualidade. Será viável e oportuno o chamado para o mencionado trabalho?

 

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Recebido em: 05/05/14
Aprovado em: 12/08/2014

 

 

Tradução: Ana Maria Rudge