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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.11 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2019
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2019v1p.71
ARTIGOS TEMÁTICOS
(Des)velar imagens: derivações sobre o olhar na obra de Amedeo Modigliani
(Un)veiling images: derivations on the look in the work of Amedeo Modigliani
(Dé)voilement des images: dérivations sur le regard chez Amedeo Modigliani
Ariane Santellano de FreitasI; Edson Luiz André SousaII
IPsicóloga. Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura Universidade Federal Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: afsantellano@hotmail.com. Endereço: Armando Barbedo, 322/408. Bairro Tristeza. Porto Alegre (RS). Telefone: (51) 99833-0647
IIPsicanalista, Pós-Doutor na Universidade de Paris VII e na École Des Hautes Études En Sciences Sociales Paris. Professor do PPG Psicanálise: Clínica e Cultura e PPG Psicologia Social e Institucional (UFRGS). Pesquisador do CNPQ. Coordenador do Laboratório em Psicanálise, Arte e Política (RGS). E-mail: edsonlasousa@uol.com.br
RESUMO
Neste artigo, procuramos refletir acerca da questão do olhar no tocante aos campos da psicanálise e da arte. Para tanto, partimos dos questionamentos produzidos pelo encontro com a obra do pintor italiano Amedeo Modigliani, na qual a representação do buraco nos olhos desvela algumas inquietações acerca do olhar. Nesse sentido, as pinturas do artista convocam a nos debruçarmos sobre imagens construídas para perceber o fora de lugar que é o inconsciente. Discorremos, ainda, sobre o efeito unheimlich, ao sublinhar que o buraco nos olhos nas pinturas de Modigliani faz pulsar o assombro do estranho na categoria do olhar.
Palavras-chave: PSICANÁLISE; ARTE; OLHAR; UNHEIMLICH; MODIGLIANI.
ABSTRACT
In this manuscript we aimed to reflect about the look in the matter of psychoanalysis and art. To do so, we started by the questions raised facing of Amedeo Modigliani's art work, an Italian painter who portrayed holes instead of eyes, instigating unsettling questions about the look. Doing so, the artist's portraits invite us to reflect about images build to realize how misplaced the unconsciousness is. We further discuss the unheimlich effect by emphasizing how the holes in the eyes in Modigliani's paintings astonish us with the strangeness about the look.
Keywords: PSYCHOANALYSIS; ART; LOOK; UNHEIMLICH; MODIGLIANI.
RÉSUMÉ
Dans cet article, nous cherchons à réfléchir sur la question du regard dans les domaines de la psychanalyse et de l'art. Pour ce faire, nous partons des questions soulevées par la rencontre avec le travail du peintre italien Amedeo Modigliani dans lequel la représentation du trou dans les yeux révèle une certaine perturbation dans le regard. En ce sens, les peintures de l'artiste nous demandent de nous concentrer sur des images construites pour rendre compte du hors lieu qui est l'inconscient. Nous discutons en outre de l'effet unheimlich en soulignant que le trou dans les yeux des peintures de Modigliani palpite l'étonnement de l'étranger dans la catégorie du regard.
Palabras clave: PSYCHANALYSE; ART; REGARDE; UNHEIMLICH; MODIGLIANI.
"Em realidade, minhas imagens mal me pertenciam,
ou me pertenciam tão pouco que deslizavam de
minhas mãos vazias para se alojar nos olhos de
outrem, onde começavam a viver sua vida mais real."
(Evgen Bavcar, 2003)
Modigliani: um convite ao olhar
O artista italiano Amedeo Modigliani viveu e produziu na fecunda Paris dos anos 20, junto a diversos outros artistas atraídos para a capital francesa com sede de inspiração. Em meio ao fenômeno social e cultural da capital francesa, em que diversos movimentos artísticos se sobrepunham e relacionavam, a arte de Modigliani ocupava lugar de margem, não sendo reconhecida na cena artística da época. A obra do pintor Italiano Amedeo Modigliani chegou aos nossos olhos com um efeito de surpresa e estranhamento. Ante as pinturas do artista, em que os olhos das modelos não são retratados, sofrendo estas, por assim dizer, uma ação de cegamento, produzem-se indagações acerca da potência das obras de arte. Ao evidenciar o buraco dos olhos, Modigliani cria imagens que colocam a posição do sujeito em questão, ao lançar interrogações acerca do olhar.
Conjugamos os nossos sentidos diante da potência das imagens que nos ultrapassam, conforme lembra Lacan (1965/2003), em seu texto "Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein": "Arrebatadora é também a imagem que nos será imposta por essa figura de ferida, exilada das coisas, em quem não se ousa tocar, mas que faz de nós sua presa" (Lacan, 1965/2003, p. 198).
Imagens que emergem quando as pálpebras se fecham, suspendendo o sentido da visão, decantando, com isso, o olhar. Modigliani coloca em causa todo enigma derivado desse "invisível da visão", para citar uma expressão de Quinet (2002), ao cegar os olhos das modelos retratadas em suas telas e desenhos. Desprovidos de íris e/ou pupila, as amantes, os amigos, a sua mulher, não têm olhos, mas nos olham em caráter radical; pois, como nos marca Lacan (1964/2008, p. 109), "os olhos existem para não ver". É por não serem retratados que descortinam nossa voracidade de olhar, enlaçando-nos em sua ausência; lacuna que em vão tentamos preencher e que nos devolve, ao final desse ato, nossos vazios de significação.
O apelo que a obra de arte causa, como um convite para "borrar" com o olhar a pintura do artista, convoca o sujeito a experimentar e refletir sobre aquilo que para ele existe de mais urgente. As questões inconscientes atualizam-se na medida em que o ato criativo do artista encontra eco no espectador. A noção freudiana do a posteriori, nessa direção, toma seu valor mais radical, pois a ideia de temporalidade que perpassa a produção artística e sua contemplação não segue uma ordem linear de causa e efeito. A obra de arte, em sua essência, desmonta qualquer ideia de construção segmentada em um tempo irreversível. Com isso, a criação de novos lugares possíveis emerge dos efeitos desses encontros inesperados entre a produção artística e aquele que se sente fisgado por ela.
O que surge nesse ensejo em que o ato criativo encontra desdobramentos no ato analítico é fruto de uma surpresa, daquilo que não haveria como antecipar sem que o olhar do espectador pudesse repousar sobre a obra do artista. Nesse encontro, o que emerge é da dimensão do que claudica, do que aparece quando não há intenção ou controle por parte do sujeito. Essa noção vai ao encontro do que Lacan (1964/2008) propõe ao falar sobre os fenômenos inconscientes, quando aponta que o que chama atenção é o modo pelo qual eles aparecem.
Tropeço, desfalecimento, rachadura. Numa frase pronunciada, escrita, alguma coisa se estatela. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é neles que vai procurar o inconsciente. Ali, alguma outra coisa quer se realizar - algo que aparece como intencional, certamente, mas de uma estranha temporalidade. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado (Lacan, 1964/2008, p. 32).
Nessa direção, o que se faz presente, quando do ato da contemplação da obra de arte, são elementos relacionados à constituição subjetiva com todos os conflitos e dicotomias que lhe são peculiares, conjugando, desse modo, as nuances do inconsciente.
Lacan (1964/2008) propõe a obra de arte como um convite a que o espectador repouse seu olhar cheio de voracidade que demanda ser alimentado. Nesse sentido, sublinhamos a potência dessas criações artísticas na medida em que evidenciam a dimensão escópica que enlaça pulsão e desejo. Há, portanto, uma esquize entre olho e olhar que merece ser considerada, no ensejo daquilo que desenvolvemos acerca das obras de arte e sua consonância com a psicanálise.
O olho não se restringe à fonte da visão exclusivamente; ele traz toda dimensão do campo do olhar em que o conceito de pulsão possibilita engendrá-lo como fonte de libido. Não é, portanto, no campo da visão que o olhar se encontra, ainda que esteja aí seu lugar de causa. O que está em questão nesse campo toca em algo desconhecido que ultrapassa o sujeito, para além de uma possibilidade de apreensão. Sendo o avesso da consciência, e, portanto, um caminho trilhado à revelia do sujeito, no campo do olhar "algo escorrega, passa, se transmite, de piso para piso, para ser sempre nisso em certo grau elidido" (Lacan, 1964/2008, p. 76).
Ainda que visão e olhar sejam tomados por alguns como sinônimos, essa distinção também é retomada por Didi-Huberman (1998) quando diz que aquilo que vemos só existe em nossos olhos por aquilo que nos olha. O ato de olhar só se manifesta quando se desdobra em dois. Quando o sujeito olha para algo, é olhado por aquilo que ele olha. Essa potência de fisgar o olhar do espectador, trazendo à tona tudo aquilo que há de mais latente, que o racha no meio e o olha, é a qualidade que pensamos ser a mais essencial de uma obra de arte, uma vez que é nesse movimento de fazer laço com o outro que o ato criativo se completa.
Para Didi-Huberman (1998), uma imagem só se constitui como tal quando joga com a falta. Esse ponto nos é fundamental para avançarmos nas nossas reflexões acerca do enlace entre arte e psicanálise, pensando nos efeitos que colhemos quando do encontro com a obra. O crítico de arte retoma a passagem freudiana do fort-da, recuperando a cena em que o neto de Freud brinca com o carretel, emitindo o som "o-o-o-o" quando o objeto desaparece da sua vista e "da" quando ele retorna. Esse jogo de desaparece/reaparece é desdobrado por Didi-Huberman no que tange à formação da imagem, pois para o autor é preciso essa dimensão da falta para que o objeto carretel olhe para a criança, passando a ocupar a posição de uma imagem.
Quando uma criança pequena, deixada sozinha, considera diante dela os poucos objetos que povoam sua solidão - por exemplo uma boneca, um carretel, um cubo ou simplesmente o lençol de sua cama -, o que ela vê exatamente, ou melhor, como ela vê? O que ela faz? [...] Imagino-a na expectativa: ela vê no estupor da espera, sobre o fundo da ausência materna. Até o momento em que o que ela vê de repente se abrirá, atingido por algo que, no fundo - ou do fundo, isto é, desse mesmo fundo de ausência -, racha a criança no meio e a olha. Algo, enfim, com o qual ela irá fazer uma imagem. A mais simples imagem, por certo: puro ataque, pura ferida visual. Pura moção ou deslocamento imaginário. Mas também um objeto concreto - carretel ou boneca, cubo ou lençol de cama - exatamente exposto a seu olhar, exatamente transformado (Didi-Huberman, 1998, p. 79).
A arte oferece uma imagem que responde à sede dos olhos, ainda que não satisfaça aos vazios de significação do sujeito. Entre o visível e o invisível, elementos inconscientes entram em cena, compondo o ato de contemplação, decantando, com isso, o olhar. O seu movimento sempre fugidio é desenvolvido por Lacan (1964/2008) quando afirma que todo o quadro é uma armadilha de olhar, pois, na medida em que ele é procurado em cada um dos pontos da tela, é precisamente aí que se vê desaparecer.
Esse jogo de desaparecer/reaparecer é acompanhado ao longo da obra de Modigliani quando podemos notar que em algumas poucas vezes os olhos aparecem nas pinturas, ainda que de maneira peculiar. Esse fort-da que nos acompanha como espectadores de sua obra também obedece ao movimento da formação da imagem desenvolvido por Didi-Huberman (1998), sublinhando ainda mais o caráter radical que o jogo de ausência/presença ocupa no campo do olhar. Ou ainda, para citar o que Lacan (1964/2008, p. 87) lembra com respeito a Sartre: "no que estou sob o olhar, não vejo mais o olho que me olha, e se vejo esse olho, é então que esse olhar desaparece".
A função do olhar, portanto, remete a esse lugar que comanda na mesma medida em que escapa sutilmente a qualquer possibilidade de apreensão de uma visão que se satisfaz consigo mesma. Nesse sentido, a visão se relaciona à posição em que a consciência traça suas marcas, podendo com isso aperceber-se, ou seja, revirar-se em si mesma a exemplo do que Lacan (1964/2008) discorre sobre a Jovem Parca de Paul Valéry na sentença "via-me ver-me". Nesse ensejo, há um escamoteamento, evitação da função do olhar.
O fascínio que as obras de arte provocam desdobra-se em dois: na possibilidade de nos vermos na pintura, reconhecendo-nos nela como objeto que causa sensação de totalidade, e na de sermos olhados por ela, produzindo o estranhamento de onde a angústia emerge. Cabe indagarmos sobre as imagens em que podemos experimentar esse efeito unheimlich, que produzem algo perturbador, sob o véu da imagem construída no espelho, sublinhando a sua função crítica e reveladora da posição de sujeito.
A imagem como totalidade vela a falta introduzida no sujeito pelo simbólico. Remete ao campo do imaginário, proposto na psicanálise lacaniana, que não se restringe a um produto da imaginação, mas se relaciona com o registro da identificação especular ao semelhante, correspondendo ao conceito de narcisismo em Freud (1914/2006). O estádio do espelho desenvolvido por Lacan (1949/1998) coloca essa dimensão de um "insight configurador", como pontua Quinet (2002), ao salientar que o termo inglês in sight of significa "em vista de" ou "do ponto de vista de", ou seja, o ponto de vista do eu, conferindo-lhe o caráter narcísico de seu reconhecimento.
O triunfo jubilatório que a assunção da imagem do espelho causa traz consigo a ilusão de domínio do corpo e, por extensão, de tudo o que o sujeito vê. A imagem, desse modo, escondendo a falta, leva o sujeito a regozijar-se em uma posição de completude. O olhar trocado entre ele e o Outro, nesse brilho que recobriu esse instante, permanece junto ao sujeito como uma saudade, "mirada perdida" que visa ser reencontrada, ainda que seja encoberta pelas imagens que lhe fazem suplência.
Sobre esse aspecto da imagem como véu que vela o trauma, Rivera (2011) a postula como "imagem-muro", remetendo às lembranças encobridoras que Freud (1899/2006) desenvolveu. Nessa direção, as fantasias que encobriam as lembranças traumáticas não deixavam de apresentá-la ainda que de maneira cifrada. Há, portanto, deslocamento e condensação da essência do conflito em questão. Ainda que o caráter radicalmente perceptivo dessas cenas traga importantes elementos da percepção visual, não há garantia de que a lembrança mais vívida tenha de fato acontecido. Trata-se, pois, de uma ficção.
Ainda sobre essa concepção de "imagem-muro", Rivera (2011) discorre acerca de sua característica antianalítica, pois se trata de uma imagem que não deixa falhas, trazendo a ilusão de um mundo homogêneo, que nos faz esquecer a dimensão inconsciente que nos ultrapassa. Por entre lacunas e intervalos, encontra-se, contudo, aquilo que é da ordem do inapreensível, do insondável, que resiste à simbolização e insiste, colocando em risco a representação. Essas imagens inquietantes, o umbigo do sonho que faz contato com o desconhecido, como aponta Freud (1917/2006), causando efeito de estranhamento, Rivera (2011) chama de "imagem-furo":
Agenciamento de imagens que nos põe em questão, problematizando a realidade e pode nos colocar na vertigem, por vezes poética, de um mundo heterogêneo do qual não somos senhores. Brechas entre imagens, espaço irreconhecível, caos pulsante que é a própria vida (Rivera, 2013, p. 8).
Assim sendo, a imagem carrega consigo esse duplo efeito: por um lado é véu que tampona a falta constitutiva do sujeito, conferindo-lhe a ilusão de uma completude, de um preenchimento desse buraco essencial; por outro, na medida mesmo em que vela a castração, desvela as nuances íntimas do sujeito, apontando na direção daquilo que está oculto.
Quando o véu rasga
A imagem como véu esconde a vacuidade que há por trás dela. No instante em que o véu se rasga, a nudez da imagem emerge em meio ao brilho do olhar, efeito dessa ruptura. Sobre esse ato, Didi-Huberman (2013) propõe que diante da imagem a equação fechada do ver dá lugar a uma abertura, pois no mundo das imagens a estrutura seria rasgada, atingida e até arruinada. Nessa direção, o que resulta apontar perante a imagem é a força do negativo que há nela, isto é, a potência de uma sombra que escava o visível e fere o legível.
Sob o tecido da representação, a rasgadura, para cunhar o termo desenvolvido por Didi-Huberman (2013), abre a figura, engendrando infinitas constelações e incessantes produções visuais que não estancam a falta; pelo contrário, engastam-na e sublinham-na. Imagens que em sua própria essência guardam a possibilidade de se re-fazer e desfazer a cada dobra do seu tecido, fazem-nos colher esses efeitos de torção como espectadores. O que sustenta uma imagem por trás de seu véu? Como despi-la de sua ilusão, levando a experiência do olhar aos seus confins, ao seu limite? Ou ainda, como pergunta Didi-Huberman: "Como então sair do círculo mágico, da caixa de espelhos, quando esse círculo define nossos próprios limites de sujeitos conhecedores?" (Didi-Huberman, 2013, p. 185)
Lacan (1965/2003) retoma o romance escrito por Marguerite Duras, "O deslumbramento de Lol V. Stein" (1964), para tecer alguns apontamentos acerca da imagem, mais especificamente, da imagem como rapto e do objeto inapreensível feito de vazio que é o olhar. O romance em questão trata da história da jovem Lol V. Stein, cujo nó da trama acontece na cena do baile em que Anne-Marie Stretter entra na sala do Cassino de T. Beach e cruza o olhar com o noivo de Lol, Michael Richardson, convidando-o para dançar. Este fica deslumbrado e tomado pela bela mulher, indo dança para nunca mais voltar. Lol fica arrebatada por essa cena, sendo retirada de seu noivo como o vestido negro de Anne-Marie será tirado pelo amante.
No escrito "Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein", Lacan (1965) assinala o enigma na palavra ravissement, que é traduzida por "deslumbramento", mas que assinala também a noção de "rapto", de "devastação". Dessa forma, Lol, ao olhar a cena em que seu noivo lhe é tomado, é arrebatada, roubada, estando, portanto, nesse lugar de perda. Petrificada diante da cena, despida de seu amante, Lol passa a ser o centro dos olhares, pois todos a olham desde esse lugar. Olhada olhando, Lol transmuta-se em puro olhar, restando-lhe, após esse arrebatamento, a vacuidade. A partir desse instante, a personagem principal do romance passa ser o olhar: "Acompanhemos Lol, captando na passagem de um para o outro esse talismã de que todos se livram às pressas, como se fosse um perigo: o olhar" (Lacan, 1965/2003, p. 201).
Todo o romance será a reconstituição da cena do baile, na qual Lol está fixada na posição em que o olhar está sobre ela; ela é toda olhar, como diz Lacan (1965/2003). O romance avança e Lol deixa de ser o centro dos olhares e passa para o estado daquela que olha, sem, no entanto, ser vidente. A jovem, sempre na posição de terceira, reconfigura a cena nodal com outro casal, dessa vez sua amiga de infância Tatiana Karl e seu amante Jacques Hold. A cena do baile recompõe-se quando Lol, sentada no campo de centeio, observa o casal pela janela do hotel em que eles se encontram.
O que Lol olha desde o campo através da moldura da janela? Seu olhar está nos cabelos negros de Tatiana, sob o qual há um corpo desnudo. "Nua, nua sob seus cabelos negros" (Duras, 1964/1986, p. 202), fala Lol quando Jacques Hold tira o vestido de Tatiana. Sobre o vestido, Quinet (2002, p. 135) sublinha sua função de véu: "lá onde o véu esconde a falta, o vestido esconde a nudez e o vazio recebe a marca do sexual que conota a vacuidade do ser". Sem o véu, portanto, é a beleza de Tatiana que emerge nesse instante em que, já nua, tem sua nudez ainda ampliada pelo olhar de Lol.
Nesse romance, somos nós como leitores-espectadores que ficamos arrebatados por aquilo que Marguerite Duras nos dá a ver. Os acontecimentos do romance desfilam pelos nossos olhos, deixando-nos presos àquilo que retém Lol V. Stein prisioneira. A cena do baile, o rapto da imagem, a passagem do campo de centeio enquadrada pela moldura da janela e o rasgo do véu trazem a presença do olhar como personagem principal, convocando o nosso olhar a ser ali também disposto. Nosso olhar à procura do olhar de Lol, sempre pronto a reencontrá-lo e, na mesma medida, sempre fugidio, causando-nos efeito de rasgadura e, por conseguinte, efeito de beleza. Ou, como aponta Lacan (1965/2003, p. 198), "evoca-se a alma e é a beleza que opera".
A beleza que há na obra de Modigliani está sempre fazendo marca como traço peculiar vivo por entre as pinceladas, as esculpidas, as rasuras, os desenhos. Parece haver em sua arte o movimento trilhado pela imagem que véu por véu vai-se rasgando, havendo uma travessia de todo caráter visível, para então, por fim, algo do olhar se precipitar, sendo intolerável como objeto.
Um período importante de sua obra foi dedicado à escultura, em que a consolidação do seu estilo próprio se deu nessa modalidade artística na qual a construção se faz por meio da remoção do material existente. Modigliani disse certa vez ao escultor romeno Constantin Brâncusi ao vê-lo esculpir: "Se você soubesse como lhe invejo [...]. Eu pensei ser pintor, mas sou escultor. Eu penso como escultor" (Modigliani citado por Parisot, 2006, p. 103). Essa fase vivida entre 1909 a 1914 deixou marcas nas produções do artista, pois resignado a não mais esculpir devido aos seus problemas de saúde agravados pela poeira do gesso e do mármore, não renunciou, contudo, à escultura, conservando as formas alongadas esculpidas nas suas pinturas.
O trabalho da escultura parte do material bruto, imagem acabada, fazendo movimento de retirada desse material, revelando a criação final, onde "o escultor limita-se a libertar a escultura da pedra supérflua" (Krystof, 1997, p. 23). Esse trabalho de escavar a imagem tinha para Modigliani um tom especificamente poético, pois de acordo com relatos, o artista se referia às esculturas como "colunas de ternura", desejando vê-las colocadas em algum "templo da beleza". Esse trabalho de retirar as camadas da matéria até que, por fim, algo da imagem emerja, permite-nos pensar a escultura como descoberta da forma; revelação do segredo da beleza que veio à tona pela mão do artista em meio ao seu gesto de criação.
Krystof (1997) afirma que Modigliani construiu um segundo "templo da beleza" ao pintar sua série de nus, em um curto período entre 1917 e 1919. Para a autora, essas telas também expressam a sublimidade presente nas esculturas, cuja beleza idealizada passa pela mesma transfiguração poética. A entrega do artista a um dos mais importantes temas acadêmicos não se deu, contudo, sem uma passagem intensa e conturbada ao melhor estilo Modigliani.
A primeira e única exposição individual que o artista teve em vida foi marcada pela censura das autoridades devido à exposição de um dos nus de Modigliani na vitrine da galeria parisiense Berthe Weill. Foi a ausência de véu para cobrir as partes íntimas das mulheres pintadas que constituiu um verdadeiro escândalo para época, configurando essa interdição do olhar dos espectadores. Chegou-se ao ponto de censurar os olhos dos espectadores perante esse desvelamento, para que não pudessem experimentar o efeito de desassossego que o artista convoca, pois o que causou espanto nas autoridades foi a intensa inquietação do público diante dos nus.
A censura sofrida na sua mostra acentuaria esse fenômeno no qual o que estava em questão, para além de exposição, em que se evidenciava o trabalho do artista, era a disposição, em que o olhar do espectador ocupa lugar de excelência. Um escândalo para sociedade do século XX, os nus de Modigliani despiram mais do que as roupas das mulheres. Sua arte descortina a falta, colocando em causa o desejo. Nuas e sem olhos para poderem olhar. Pois, como afirma Lacan (1964/2008), os olhos existem para não ver. Sem eles, o olhar surge como efeito do invisível da visão; somos olhados em toda parte do quadro que nos interpela com o seu Che vuoi? - pergunta do diabo a Álvaro no conto "O diabo enamorado", de Cazotte (1992), com a qual Lacan constitui o paradigma do desejo, em que o sujeito se indaga "O quê o Outro quer de mim?".
O que se infiltra na imagem: Efeito Unheimlich
O homem da areia (1817), conto fantástico escrito por E. T. A. Hoffmann, é uma produção literária na qual Freud (1919/2006) se detém para pensar nos efeitos do estranho (Unheimlich). Para o psicanalista, o tema principal da história é aquilo que dá nome ao conto "e que é sempre reintroduzido nos momentos críticos: é o tema 'Homem da areia', que arranca os olhos das crianças" (Freud, 1919/2006, p. 245). Embora o efeito de estranhamento seja experimentado pelo leitor através da incerteza de se determinada personagem é um ser humano ou não, esse conto nos é especialmente importante por trazer em meio à sua narrativa os olhos como personagem principal, derivando disso questões referentes ao olhar.
A história inicia com as recordações de Natanael sobre sua infância. Ele conta que à noite, depois do jantar, costumava ir com a mãe e a irmã para o escritório do seu pai, que lhe contava histórias maravilhosas enquanto fumava. Nove horas em ponto, a mãe lhes dizia: "Vamos para a cama, crianças. O homem da areia está chegando, posso ouvir seus passos" (Hoffmann, 1817/1986, p. 16). Natanael, de fato, escutava os passos nas escadas e certa vez perguntou à mãe quem era esse homem da areia que sempre o separava de seu pai. A mãe respondeu que não havia nenhum homem da areia, que se trata do sono quando chega, impedindo as crianças de manter os olhos abertos, como se estivessem com areia nos olhos.
A resposta não satisfez Natanael que decide perguntar para a governanta que era, afinal, o homem da areia, ao que ela afirma:
É um homem mau que vem procurar as crianças que não querem ir para a cama. Joga punhados de areia em seus olhos, que tombam ensanguentados, e os apanha, os enfia numa bolsa e os carrega para a lua para alimentar seus netinhos. Eles estão lá, empoleirados em seu ninho, com os bicos recurvados como o da coruja. E bicam os olhos das crianças que não são boazinhas (Hoffmann, 1817/1986, p. 17).
A imagem do homem da areia fica registrada para Natanael "com cores atrozes" (Hoffmann 1817/1986, p. 18).
Quando Natanael já era maior e, portanto, já podia saber que a história do homem da areia não era verdadeira, o horror, entretanto, retornava sempre que escutava passos subindo até o gabinete do seu pai. A imagem aterrorizante do homem da areia não se apagava para Natanael. Determinado pela curiosidade e pela coragem, e impulsionado pelo desejo de finalmente conhecer a figura que lhe causava tanto horror, ele decide esconder-se no gabinete do pai para aguardar a chegada do homem da areia. Natanael constata que, na verdade, o homem da areia é o advogado Coppelius, conhecido da família. Não era mais o espantalho transmitido na história da governanta, ainda que Coppelius lhe causasse mais espanto que a imagem fantástica do homem da areia.
A passagem da narrativa em que Natanael revela que o homem da areia é, na verdade, o advogado Coppelius é precedida por uma passagem nodal na história, a saber: escondido atrás da cortina, Natanael, como presença velada na cena, observa o pai e o advogado. Diante do estranhamento das feições do pai, que fugiam à familiaridade dos traços honestos e doces que lhe eram próprios, em meio à fumaça espessa da qual se retiravam massas brilhantes e claras, Natanael lembra: "Tive a impressão de perceber à sua volta rostos humanos, mas sem os olhos, com espantosas cavidades negras e profundas em seu lugar" (Hoffmann, 1817/1986, p. 24). Ante a angústia de olhar aquilo que já não dava mais para subtrair como imagem, ouve Coppelius dizer: "Olhos! Dê-me olhos!" (p. 23). Tomado por um violento pavor que o fez gritar, Natanael é descoberto em seu esconderijo.
Essas lembranças de infância que marcaram Natanael sob a impressão do horror retornam diante do acontecimento em que um vendedor de barômetros chamado Giuseppe Coppola entra em seu quarto oferecendo-lhe alguns objetos. Natanael reconhece Coppelius, o fantasma do horror de sua infância, no oculista itinerante que insiste em lhe vender alguns instrumentos: "Ah, barômetros não. Mas eu tenho também olhos para vender. Olhos lindos!" (p. 59). O pavor de Natanael atenua-se somente quando descobre que os olhos oferecidos por Coppola são na verdade óculos. Natanael acaba comprando uma luneta.
Com a ajuda desse instrumento, Natanael observa a casa em frente, do seu professor Spalanzani, espiando a sua bela e estranha filha, Olímpia:
Sem querer, olhou para o quarto de Spalanzani. Olímpia estava sentada, como sempre, defronte à mesinha, braços à frente, as mãos juntas. Só então Natanael repara nos traços admiráveis do rosto de Olímpia. Apenas os olhos lhe parecem estranhamente fixos, mortos. Mas como olhasse insistentemente para ela através da luneta imaginou que dos olhos de Olímpia se desprendessem vaporosos clarões lunares (Hoffmann, 1817/1986, p. 61).
O jovem Natanael, envolvido pela imagem que faz de Olímpia, apaixona-se violentamente por ela, não percebendo que ela é um autômato, cujos mecanismos foram construídos por Spalanzani, e os olhos, colocados por Coppola. A cena em que Natanael presencia a discussão dos dois sobre o trabalho manual que resulta da desintegração de Olímpia é recoberta por angústia, fazendo-o sucumbir a um ataque de loucura.
Natanael permanece imóvel. Tinha visto tudo direitinho. O rosto de cera de Olímpia, de mortal palidez, não tinha mais olhos, apenas cavidades negras. Era uma boneca sem vida. [...] Natanael viu, então, os dois olhos ensanguentados no soalho. Os olhos olhavam para ele. Spalanzani os segura com sua mão intacta e os joga contra Natanael. Bateram com força em seu peito. Então a loucura enfiou nele suas garras ardentes, lacerando-lhe alma e pensamentos (Hoffmann, 1817/1986, pp. 78-79).
O conto convida-nos a acompanhar a trajetória do olhar que se desdobra entre as personagens, nas cenas, por entre os objetos. Ele se infiltra por entre as lacunas da imagem, pela cegueira dos olhos, pelos modos de apresentação daquilo que é terrorífico e angustiante. Freud (1919/2006) faz sua incursão pelo fenômeno do estranho através desse conto, em que há um estreitamento dos limites entre a realidade e o imaginário, desdobrando questões sobre o tema da estética, como "a teoria das qualidades do sentir" (p. 237), que impõe uma sensação de certa desorientação. Nessa direção, o tema do estranho, relacionado com o que é assustador, ocupa lugar diametralmente oposto à ideia do que é belo, atraente e sublime, presente em tratados anteriores de estética.
Nesse trabalho, Freud (1919/2006) assinala a possibilidade de aproximação entre a noção de estranho, angustiante, daquilo que é familiar: "o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar" (p. 238). A palavra alemã unheimlich usada por Freud conserva a equivalência entre estranho e familiar, na medida em que heimlich remete àquilo que é agradável, familiar, pertencente a casa; mas também o que é oculto da vista, sonegado aos outros. O negativo un- marca o que é misterioso, sobrenatural, que desperta o horrível temor. Ou ainda, "unheimlich é o nome de tudo aquilo que deveria ter permanecido [...] secreto e oculto, mas veio à luz" (p. 242). Desse modo, o vocábulo "estranho" (unheimlich) não se distancia do uso em que sua antítese "familiar" (heimlich) se faz presente, mas justamente vem movimentar essa oscilação: "Heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que finalmente coincide com seu oposto, unheimlich. Unheimlich é, de um modo ou de outro, uma subespécie de heimlich" (p. 244).
Essa vacilação experimentada por Natanael no conto de Hoffmann, própria do sentimento de estranheza, remete a um modo de apresentação dessas imagens que assinala a angústia e o horror que reverberam na íntima relação entre o estranho e o familiar. Diz de um instante de fenda em que a diferença entre os lugares cai por terra, ou seja, há uma fração de desconhecimento que diz da posição inquietante do sujeito. O retorno daquilo que deveria permanecer recalcado e que o sujeito não reconhece como próprio é, portanto, tomado como alteridade, convocando-o a operar como exterioridade. França (1997) afirma que essa dimensão paradoxal entre aquilo que é íntimo ao sujeito e é tomado como estranho a ele, retornando como o prenúncio da morte na figura do duplo, é própria da experiência unheimlich, pois ela é caracterizada pela ausência de representação, além de ser também uma manifestação. Ou seja, o fenômeno do estranho é manifesto como uma evidência do campo perceptual do sujeito, sem que, no entanto, nada se possa dizer. A autora assinala que aquilo que se revela na experiência unheimlich e se dá em um efeito relâmpago, sem mediação da palavra, é irredutível à imagem, lançando o sujeito inadvertidamente em um lugar inesperado.
No terreno do desconhecido, as imagens feitas por Modigliani encontram-nos e interpelam-nos ao colocarem em questão o furo dos olhos, traço pulsante e latente da sua obra. Não são, portanto, imagens-espelho, no sentido de devolverem a quem olha a noção familiar e a completude jubilatória. O angustiante nessas imagens reside no olhar que, espalhado por todas as partes do quadro do pintor, dá consistência à representação do buraco, destituindo, dessa forma, aquele que olha de seu próprio olhar. Nas imagens de Modigliani, o olhar do espectador não encontra lugar de ancoragem onde possa pousar no encontro daquilo que lhe é familiar. O que está em questão nesse ensejo é a queda da ilusão que tanto buscamos no ato de contemplar e que nos surpreende nesse átimo no qual algo estranho se infiltra na imagem. Modigliani pinta esse instante de ultrapassagem inesperada que o sujeito experimenta no fenômeno unheimlich, acompanhado pela angústia inquietante que o toma nesse efeito de vacilação.
França (1997) aponta que o que fascina na experiência unheimlich é a ausência de objetividade, pois não é o objeto inquietante que desencadeia o fenômeno do estranho, mas a sua queda. Dessa forma, a queda do objeto diante dos olhos remete a uma noção de indeterminação que representa o traumático da constituição do sujeito. O lugar desde onde se testemunha esse instante é o da angústia, encontro com o nada, uma vez que no fenômeno do estranho o mundo objetivo desaparece. Disso resulta uma experiência subjetiva enigmática em que a repetição é marcada na impressão angustiante do retorno do morto.
A presença do horror no campo do olhar faz marca no instante em que o véu da imagem se rompe, suspendendo o efeito da beleza, domínio da completude. O horrível surge como estranho e inapreensível, cuja angústia testemunha a ameaça que o sujeito experiencia quando a fragilidade da imagem se mostra.
Defrontar-se com o buraco dos olhos na obra de Modigliani, traz toda a dimensão do terror ao despir o olhar do véu que faria mediação entre a imagem assustadora e o sujeito. O olhar advém em excesso, com toda a sua intensidade estranha, colocando as coordenadas simbólicas em colapso. Há um "efeito de cegamento" em que o limite entre a vida e a morte é posto em questão nesse terreno em que o belo se metamorfoseia em horror. França (2001) nomeou esse cegamento angustiante de "lapso da imagem" para desenvolver sobre os efeitos inconscientes de quando o imaginário falha em sua função de barrar algo que não se pode ver, colocando em cena a nudez da imagem. Para autora, o sujeito lapsado das imagens que sustentam os objetos de desejo perde suas referências imagéticas, experimentando o efeito inquietante da estranheza. O lapso da imagem indica o vazio deslumbrante sob o qual o eu é despojado de suas vestes narcísicas diante da ruptura do aprisionamento imaginário relativo à sua onipotência.
Diante da imagem nua, o eu não pode se reconhecer em sua vertente especular, sendo traído em seu desejo e confrontado com a morte. Há, portanto, uma ruptura no sonho de imortalidade, em que o efeito de queda do véu da imagem desvela a fragilidade do sujeito diante do vazio.
O lapso da imagem é falha da miragem, efeito do inconsciente, tropeço no real, que movimenta o sujeito através de seu som angustiante e o recoloca enquanto desejante na busca incessante de significações, de novas inscrições e de novas apresentações do objeto de desejo (França, 1997, p. 85).
A nudez da imagem, desvelada por esse instante em que o imaginário falha na sua função de velar a falta, é experimentada em diferentes encontros com narrativas e imagens que suscitam o fenômeno unheimlich. O terrorífico é o retorno do vazio no lugar da imagem da ausência dos olhos, trazendo a angústia própria desse instante em que o estranho não suprimido do eu emerge.
A obra de Modigliani faz pulsar o assombro do estranho na categoria do olhar ao sublinhar o buraco dos olhos. O jogo de oscilação entre o familiar e o estranho traz consigo o efeito de vertigem quando do ato de contemplação das pinturas do artista. Por "vertigem", o dicionário denota "estado mórbido em que ao indivíduo parece que todos os objetos giram em volta dele e ele mesmo gira". E por "vertiginoso", "quem tem ou produz vertigens; que gira com rapidez; que perturba a razão ou a serenidade de espírito". Rivera (2011) sublinha que a vertigem está sempre à espreita da nossa relação com a imagem. Mesmo quando ela se propõe encobridora, remetendo para a vertente da imagem-muro, pode haver brechas que apontem seu avesso, convidando-nos ao estranhamento da imagem-furo.
Imagens que assinalam outra dimensão do olhar, não se limitando ao deleite dos olhos, mas potentes em fazer verter o estranho familiar que habita o sujeito. Colocam em suspenção o juízo da existência e a prova da realidade, em que emoções intensas não encontram lugar de ancoragem em nenhuma significação a priori. Apontam o olhar, mestre em desfazer as certezas, interrogando aquilo que o sujeito acredita saber, lançando-o na aventura de incertezas, no encontro com o enigma.
Considerações Finais
O giro que nos causa o encontro com a pintura de Modigliani, nesse instante em que somos olhados pelo quadro, colhendo os efeitos de dito encontro, coloca em relevo com toda a intensidade possível a proposição de Didi-Huberman de que aquilo que vemos vive em nossos olhos pelo que nos olha. Somos olhados desde esse lugar do furo dos olhos que nos captura no seu efeito unheimlich, no qual nosso olhar não encontra ponto de ancoragem. A angústia inquietante emergiu nesse ato de contemplação da obra, no qual somos surpreendidos no átimo em que o estranho se infiltra na imagem. Modigliani pintou, em nossos olhos, o momento em que somos ultrapassados inesperadamente pelos estilhaços do horror. A ausência dos olhos em Modigliani fez marca como presença do estranho no nosso encontro com a obra, retorno da imagem angustiante nessa série que traz à tona a dimensão do horror ao despi-la do véu que a recobre, desvelando a nudez do olhar.
O artista circunscreve o território em que somos ameaçados como senhores da imagem, para retomar a asserção freudiana da descoberta do inconsciente de que "o eu não é mais senhor em sua própria casa". Com os litorais entre o belo apaziguador e o horror ameaçador suspensos, Modigliani cria brechas para que o efeito unheimlich se infiltre na imagem no instante em que somos olhados desde o lugar de vacuidade. Nessa direção, o convite que nos faz Modigliani é o de não retirar das imagens sua potência de ferida, aquilo que delas punge, que fere os nossos olhos quando as olhamos, atestando o horror presente e pulsante nelas.
Referências
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Recebido em: 27/08/2018
Aprovado em: 01/02/2019