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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.11 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2019
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2019v1p.85
ARTIGOS LIVRES
Da queda livre ao encontro com o outro nas redes sociais: um estudo do narcisismo
Of the free fall to the encounter with the other in the social networks: a narcissism's study
De la caída libre al encuentro con el otro en las redes sociales: un estudio del narcisismo
Enzo Cléto PizzimentiI; Isis Graziele Da SilvaII; Ivan Ramos EstêvãoIII
IPsicanalista, Psicólogo. Mestrando do Programa de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política do Departamento de Psicologia Clínica da (USP). Av. Professor Mello de Morais, nº 1721 - Butantã, São Paulo - SP, 05508-030. Telefone: (11) 3091-4178. E-mail: enzopizzimenti@hotmail.com
IIFotógrafa. Psicóloga. Mestranda do Programa de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Membro do PsiA - Laboratório de Pesquisa e Intervenções em Psicanálise do Departamento de Psicologia Clínica da USP. Av. Professor Mello de Morais, nº 1721 - Butantã, São Paulo - SP, 05508-030. Telefone: (11) 3091 - 4178. E-mail: isisgraziele@usp.br
IIIPsicanalista, Professor Doutor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade São Paulo . Co-coordenador do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade São Paulo (USP). Av. Professor Mello de Morais, nº 1721 - Butantã, São Paulo - SP, 05508-030. Telefone: (11) 3091 - 4178. E-mail: irestevaao@usp.br
RESUMO
Um dos efeitos do avanço da psicanálise no campo social é a apropriação de termos psicanalíticos pelo discurso leigo. Um exemplo é a indicação de que o uso contemporâneo das redes sociais seria narcisista. No intuito de verificar a pertinência teórico-clínica do uso corrente desse termo, o presente artigo tem o objetivo de resgatar a noção freudiana de narcisismo, para, a partir disso, ponderar se a utilização do termo para caracterizar a utilização das redes sociais é compatível com a sua compreensão psicanalítica. Fez-se uso da análise de um episódio da série Black Mirror.
Palavras-chave: NARCISISMO; PSICANÁLISE; REDE SOCIAL; BLACK MIRROR.
ABSTRACT
One of the effects of the psychoanalysis advance in the social field is the psychoanalytic terms appropriation by popular discourse. An example is the indication that the social networks contemporary use would be narcissistic. In order to verify the theoretical-clinical relevance of this term's current use, the present article aims to rescue the Freudian notion of narcissism, to consider whether the use of this term to characterize the social networks' use is compatible with its psychoanalytic understanding. On this way, we used the analysis of a Black Mirror's episode.
Keywords: NARCISSISM; PSYCHOANALYSIS; SOCIAL NETWORK; BLACK MIRROR.
RESUMEN
Entre los efectos del avance del psicoanálisis em el campo social está la apropriación de términos psicoanalíticos por el discurso cotidiano. Uno de estos ejemplos es la hipótesis de que el uso de las redes sociales habría de ser narcisista. Com el objetivo de comprovar la pertinencia teórico-clinico del uso común de este término, el presente artículo busca recuperar el concepto freudiano de narcisismo y desde este punto de vista vamos a considerar si el uso de este término es compatible com las ideas psicoanalíticas sobre el mismo término. Hemos utilizado em esta analísis um episodio de la serie Black Mirror.
Palabras-clave: NARCISISMO; PSICOANÁLISIS; REDES SOCIALES; BLACK MIRROR.
Introdução
Este trabalho tem como objetivo propor uma análise sobre alguns efeitos das redes sociais a partir do conceito de narcisismo da psicanálise freudiana. Partimos da suspeita comum que supõe serem as redes sociais um instrumento de sustentação - e até de convocação - para a manutenção de certo narcisismo que tem como risco o cinismo social. Sendo ainda uma tecnologia pouco estudada no que tange à psicanálise, cabe levantar dúvidas em relação a seus efeitos. No sentido de apontar que a discussão está longe de ser simples, valemo-nos de um episódio específico da série Black Mirror a fim de traçar certas considerações sobre a dubiedade dos efeitos das redes sociais.
A psicanálise, outrora comumente vista como limitada (enquanto prática) ao par poltrona-divã e (enquanto campo e produção de saber) às escolas de psicanálise, tem cada vez mais em seu horizonte um campo vasto de alcance, com possibilidades clínicas e de pesquisa que vão além do modelo disponível e sustentado na época de Freud(1). Negar esse alcance, seja no que tange à clínica, como no que diz respeito às possibilidades de pesquisa e entrada na cultura, é negar a direção apresentada por Freud desde os primórdios de sua obra (Freud, 1910/2013, 1918/2010, 1938/2014).
O alcance em questão tem sido responsável por importantes diálogos, seja entre psicanalistas de diferentes escolas, seja entre a psicanálise e as políticas públicas, por exemplo. O fenômeno estende-se até mesmo às questões do cotidiano, que por vezes são discutidas por psicanalistas em meios de comunicação de larga circulação. É importante atentarmos, contudo, para o fato de que não só em profícuos debates pode resultar a articulação da psicanálise no social. No âmbito clínico, Freud (1910/2010) já alertava acerca dos riscos de se praticar uma psicanálise selvagem, em que noções psicanalíticas mal compreendidas serviriam para interpretações e usos danosos.
No que diz respeito às produções de psicanalistas acerca da interface psicanálise e arte, Freud também advertiu quanto aos perigos de leituras patologizantes sobre artistas e suas obras, como neste aviso durante um encontro da Sociedade das Quartas-Feiras: "A Psicanálise merece ser colocada acima da patografia, pois ela inquire acerca do processo de criação. Todo escritor pode ser objeto de uma patografia, mas esta não nos ensina nada de novo" (Chaves, 2015, p.11(2)). Sobre isso, Chaves (2015) oferece um importante alerta sobre os perigos da vulgarização de termos e conceitos freudianos, mesmo por aqueles que se debruçam com seriedade sobre a teoria psicanalítica.
Nesse sentido, um termo psicanalítico que se tornou amplamente utilizado, inclusive no cotidiano, é "narcisismo". Vemos isso quando pessoas vaidosas são chamadas de narcisistas, ou quando indivíduos com ideais "gananciosos", conduta avarenta ou postura dominadora são considerados da mesma forma. De um modo mais específico, chama-nos a atenção a indicação de que o uso contemporâneo das redes sociais é narcisista. Basta procurar brevemente sobre redes sociais e narcisismo na internet para se encontrar grande número de textos atuais que apontam essa ligação. Em 1988, porém, Costa já asseverava que o uso leigo, corrente, do termo, que o coloca praticamente como sinônimo de egoísmo, sobrepõe-se frequentemente ao seu significado psicanalítico, técnico, que indica uma etapa estrutural do desenvolvimento subjetivo. E foi a partir dessa observação que se formulou a seguinte questão: o uso popular do termo guarda alguma relação com as noções psicanalíticas de narcisismo?
A psicanalista Tania Rivera, em interessante entrevista realizada pelo projeto de pesquisa "Narciso no espelho do século XXI: Diálogos entre a Psicanálise, as Ciências Sociais e a Comunicação" (https://www.youtube.com/watch?v=5ozKfFAeD1M), de Alejandro Razé e Paula Sibilia, afirmou que:
Pensar o contemporâneo, mais atual, buscando por uma crise da identidade, traz o risco de cairmos numa posição narcísica, mesmo quando ela tenta justamente tematizar o narcisismo e colocá-lo em questão. O catastrofismo tende a encontrar o narcisismo de uma maneira muito íntima, por isso tendo a desconfiar de todo o discurso espetacular sobre o contemporâneo.
Com o mesmo cuidado e no intuito de verificar a pertinência teórico-clínica do uso corrente do termo, o presente artigo tem o objetivo de resgatar a noção de narcisismo na psicanálise freudiana, para, a partir disso, ponderar se a sua aplicação para caracterizar a utilização das redes sociais é compatível com a sua compreensão psicanalítica. Para isso, faremos uso da análise de um episódio da série Black Mirror, apresentando, de início, um resumo do seu conteúdo e, em seguida, uma reflexão sobre o uso de redes sociais na atualidade. Será posteriormente abordado o conceito de narcisismo para a psicanálise, em busca de uma relação possível deste fenômeno com a subjetividade contemporânea.
A arte é um tema recorrente na obra freudiana, mas é interessante notar a indicação de Freud de que ela parece ir à frente, indicando à psicanálise suas descobertas, como é especialmente evidente em "Delírio e sonhos na Gradiva de Jensen" (Autuori e Rinaldi, 2014). Os autores enfatizam que a obra de arte "relata que à ciência falta o reconhecimento do inconsciente, sem o qual não é possível nenhum entendimento dos fenômenos psíquicos. Freud considera a arte sua aliada, ela expõe artisticamente o mesmo que ele afere em sua pesquisa clínica" (p.312), e é a partir deste apontamento que justificamos a utilização de uma produção artística como chave de leitura do contemporâneo.
A série britânica Black Mirror foi lançada em 2011, mas foi nos últimos dois anos que chamou atenção mundial ao conjecturar sobre os efeitos da relação do homem com a tecnologia. O primeiro episódio da terceira temporada, "Nosedive" (traduzido para o português como "Queda livre") foi ao ar em outubro de 2016, e foi aclamado pela crítica como o enredo da série mais próximo da realidade. A partir da repercussão e comentários da crítica cinematográfica, sobretudo no que diz respeito à proximidade com nossa realidade, elegemos este episódio como chave de leitura da questão acima proposta.
"Queda livre"
"Queda livre" é protagonizado por Lacie Pound, uma bela jovem que vive em uma sociedade na qual todos são avaliados a partir de uma tecnologia presente nos aparelhos celulares e nos olhos, sendo classificados a partir de uma pontuação que é atribuída por outras pessoas, entre uma e cinco estrelas. Ao que parece, estabeleceu-se que, a partir de toda interação humana, os indivíduos devem avaliar-se mutuamente. Assim, seja qual for o contato que se tem com uma pessoa, imediatamente após, utiliza-se o celular para dar-lhe uma avaliação, de forma que a somatória destas avaliações caracterizaria aquele sujeito.
Cabe apontar, ainda, que a tecnologia presente nos celulares permite que os usuários compartilhem fotos de suas experiências, as quais também são avaliadas. As notas finais, atualizadas a todo segundo, são tão intrínsecas aos indivíduos que é possível visualizá-las quando se olha para alguém ou quando se pesquisa o seu perfil on-line. Em algumas das cenas, a direção da câmera nos confunde, pois não sabemos se a personagem encara o sujeito diante de si ou a nota dele, ao lado de seu rosto.
O status social é ditado pela avaliação de cada sujeito e, desde o início, Lacie se preocupa em agradar e avaliar bem os outros, com o intuito de também ser bem avaliada. Entretanto, a personagem, cuja avaliação é de 4,2, vê-se cada vez mais motivada a aumentar a sua nota, na espera de aumentar as vantagens sociais e econômicas que são dadas àqueles com melhor colocação no ranking. Ao tentar mudar-se para uma casa em um bairro seleto, cujo aluguel é muito mais do que ela pode pagar, descobre a possibilidade de conseguir um desconto se elevar a sua nota para 4,5. Para isso, consulta um especialista em imagem social, que a convence que o convívio com "pessoas valiosas" (termo que ele atribui àqueles com avaliação próxima de cinco) lhe trariam um aumento de nota.
A oportunidade perfeita aparece quando Lacie é convidada para ser dama de honra de uma amiga de infância que se casará em um evento em que "pessoas valiosas" estarão presentes. A oportunidade de alcançar o seu grande desejo, contudo, abre também as portas para que se realize um pesadelo. Devido a alguns desentendimentos, Lacie perde alguns décimos de nota e, ao chegar ao aeroporto, descobre que não conseguirá voar até o local do casamento devido à sua nova classificação. Muito nervosa, ela deixa o seu script de moça gentil e fala de forma agressiva com a funcionária do aeroporto, motivo pelo qual é penalizada por um segurança a perder temporariamente um ponto em sua nota e a ter todas as suas avaliações negativas recebidas com o dobro de valor.
Ao tentar ir de outras formas para o casamento, Lacie sofre todos os impactos de não estar bem colocada no ranking. Cada desventura vivida no caminho diminui ainda mais a sua nota, a ponto de a noiva proibi-la de comparecer ao casamento, esclarecendo que não a considerava uma amiga, mas que o convite havia sido apenas uma jogada de marketing pessoal. Por fim, a protagonista, sempre tão comportada, alinhada e agradável, entra escondida (e arrasada) na festa de casamento. Enquanto é perseguida pelos seguranças, Lacie declama o discurso que vinha preparando, mas agora misturado aos seus verdadeiros pensamentos sobre a noiva e sobre os demais presentes.
Depois de ser contida, a personagem é levada para a prisão, onde tem a sua tecnologia de avaliação confiscada. O episódio termina quando, em sua cela, Lacie começa a trocar insultos com um prisioneiro da cela vizinha e sua raiva se transforma em deleite mútuo à medida que percebem que estão livres para falar o que quiserem. Não é por acaso que, vestida de forma muito formal e cuidadosa no início do episódio, ela termina esta cena exposta, vestindo apenas a sua lingerie.
Dá-se destaque a vida enquanto marketing: os sorrisos, as roupas, as comidas, as viagens, tudo que diz respeito ao laço social passa a ser considerado uma mercadoria para a venda da sua própria imagem, que se paga com as avaliações alheias.
Avaliação na atualidade: as redes sociais
Mesmo para psicanalistas, Black Mirror não trata de tecnologias futurísticas, mas pelo contrário, exagera a narrativa sobre tecnologias já existentes (http://obviousmag.org/cinema_pensante/2017/02/black-mirror-nao-e-sobre-o-futuro-e-sobre-o-presente.html). Nesse sentido, é possível traçar muitos paralelos entre a tecnologia apresentada no referido episódio e os aplicativos da atualidade.
Para levantar a questão da avaliação individual por notas, a título de exemplo, é possível listar algumas aplicações móveis, como o Uber, o Peeple, o Rate Me ou o Lulu, e até mesmo redes sociais que permitem feedbacks anônimos de uma pessoa para outra, como é o caso do Sarahah, que em 2017 alcançou alguma popularidade no Brasil.
Tomando por base, no entanto, uma quantidade maior de usuários, podemos trazer como exemplo o Instagram, rede social criada em 2010, que em 2012 já contava com mais de 100 milhões de usuários ativos em todo o mundo.
De início, o aplicativo permitia apenas o compartilhamento e edição rápida de imagens, contudo, com o seu desenvolvimento, vídeos puderam ser publicados, links puderam ser patrocinados por marcas, chats puderam ser criados entre usuários, e a funcionalidade antes atribuída ao Snapchat também foi absorvida: os usuários agora podem compartilhar stories, que são fotos ou vídeos (inclusive em tempo real) com tempo de exibição restrito de 24 horas.
As características de personalização do Instagram exigem que constantes atualizações sejam feitas. Somente em setembro e outubro de 2017, várias gírias brasileiras foram inseridas no aplicativo na forma de emoticons, para que os usuários possam adicioná-las em suas publicações. Outra inovação desse período foi a possibilidade de adicionar uma enquete em uma publicação, de forma que os outros usuários possam interferir na postagem, dando a sua opinião. O resultado final é apresentado ao autor da enquete, que consegue ter acesso ao voto de cada usuário.
De forma geral, no Brasil, o Instagram é utilizado para compartilhamento de experiências pessoais, o que o aproxima da tecnologia apresentada em "Queda livre". O que se vai configurando, com os upgrades, é um aplicativo de publicação individual que se preocupa cada vez mais em estimular a interação e influência entre usuários. Não por acaso, um termo tornou-se altamente difundido nas referências às redes sociais: o engajamento. Além de publicar, é preciso engajar o público. Como explica Rafael Rez, para o marketing, "engajamento é envolvimento, interação, relacionamento com a marca, que vai além do número de seguidores em uma rede social ou likes em uma postagem" (http://novaescolademarketing.com.br/videos/o-que-e-mesmo-engajamento).
Um exemplo desse estímulo é o fato de que o Instagram se desenvolveu de forma a tornar-se um forte espaço mercadológico, no qual marcas patrocinam e presenteiam os ditos perfis "influenciadores", aproveitando da capacidade que eles possuem de, segundo Sibilia (2016, p.38), "apresentar as novidades da moda na linguagem cotidiana, de um modo que pareça espontâneo e desinteressado", e que por isso influenciam a decisão de um público massivo. Sobre isso, temos aqui uma aproximação com o episódio "Queda Livre", no qual as "pessoas valiosas" têm acesso privilegiado a determinados serviços, usufruídos, mas principalmente divulgados na rede.
Cabe, a partir de agora, perguntar quais as consequências subjetivas das novas tecnologias. Sibilia (2016) aponta que mudanças históricas influenciam a forma como o ser humano constitui a sua subjetividade. Assim, os componentes utilizados pelo homem para escrever, ler, pensar e se comunicar determinam a forma como vivemos. Hoje, por exemplo, temos que os smartphones dão vazão às demandas e ambições que articulam as subjetividades contemporâneas e o seu tipo específico de sociabilidade. A autora enfatiza que
as tecnologias são inventadas para desempenhar funções que a sociedade de algum modo solicita e para as quais carece das ferramentas adequadas. [...] os dispositivos tecnológicos são fruto de certas mudanças históricas. Uma vez criados e adotados pela população, porém, acabam reforçando essas transformações e contribuem para suscitar outros efeitos no mundo (2016, p. 25).
E se pode dizer que mudanças subjetivas redundam em efeitos sobre o sujeito. Para se pensar isso, vale retomar a linha proposta por Tania Rivera na entrevista já mencionada acerca da constituição do sujeito e aquilo que a autora denuncia como algo esquecido por muitos autores: o exuberante gesticular do bebê. A autora aponta que, a partir destes movimentos, o bebê passa a relacionar-se com o espaço a sua volta a partir da confirmação de sua imagem ante o espelho. Neste sentido, a relação se dá não apenas com o espelho e sua imagem, mas também com o entorno, que ganha novos horizontes a serem percorridos por um corpo passível de experimentar um espaço vivencial, num corpo real.
Cabe aprofundar a concepção de corpo. A partir de Lacan (1965/66), é possível pensar as dimensões do corpo pelos registros, ou seja, um corpo real, outro imaginário e um simbólico. O corpo imaginário é efeito justamente da passagem pelo estádio do espelho que pode levar a construção de uma imagem corporal. O corpo simbólico diz respeito à dimensão de organismo, comum ao discurso médico, por exemplo. Por fim, o corpo real pode ser lido como carne, e é de se esperar que o encontro do corpo a partir daí tenha como efeito angústia (efeito que é comumente explorado nos filmes).
Ora, não seria ir longe demais sustentar a hipótese de que, ante as novas tecnologias, o sujeito contemporâneo permaneça enredado no jogo especular que exacerba a experiência da vivência imaginária do corpo. Trata-se de um sujeito atravessado por nuances que nos dizem do espelhamento que as novas tecnologias podem sustentar, como a possibilidade de novos horizontes relacionais daí advindos.
Seguindo na mesma direção, podemos compreender que foi em razão da busca por uma imagem tida como correta a ser apresentada aos outros "que despontou atualmente um novo ramo na prestação de serviços: empresas de consultoria, personal stylist, cursos de criação e imagem e manuais explicativos sobre a avaliação de imagens projetadas" (Trinca, 2008), que justamente ilustram o especialista que auxilia Lacie a aumentar a sua avaliação no episódio.
Com computadores interconectados, correio eletrônico, canais de bate-papo, reality shows, talk shows, paparazzi, ligações com vídeos, aplicativos de conexão de parceiros sexuais, revistas de celebridades e blogs fica cada vez mais claro que os famosos diários íntimos da modernidade continuam a ser escritos, mas agora em outros meios e com o intuito de serem vistos por terceiros. Há inclusive uma nova nomenclatura para esse paradoxo: "diário éxtimo", numa referência ao termo criado por Lacan (1960/1991, 1969/2008) para indicar algo do sujeito que lhe é mais íntimo, mas que está no exterior.
Como podemos notar, contudo, ao observar o desenvolvimento do Instagram enquanto aplicação móvel, somente a divulgação de si mesmo e de suas experiências dá mostras de ser insuficiente, convocando, cada vez mais, que outro responda a tais publicações.
Narcisismo
Como é apontado por Costa (1988), ainda que tenha reconhecidamente uma atualidade clínica e teórica, o narcisismo é uma noção problemática; mas nem por isso ela perde em importância, pois "fato é que nenhuma psicanálise pós-freudiana parece ter como prescindir desse conceito" (Estêvão, 2016, p.128).
Cabe relembrar que Freud escolhe o termo narcisismo baseado no mito grego, que tem como ponto nodal a relação de Narciso com a própria imagem. Em certas variações do mito, há elementos que servem para avisar Narciso de que esse encontro especular seria perigoso, se não mortífero, contudo, as advertências não detêm o rapaz, que sofre as consequências ao mesmo tempo apaixonantes e trágicas.
Segundo Laplanche e Pontalis (2016, p. 287),
a descoberta do narcisismo leva Freud a propor - no Caso Schreber, 1911 - a existência de uma fase da evolução sexual intermediária entre o autoerotismo e o amor de objeto. "O sujeito começa a tomar a si mesmo, ao seu próprio corpo, como objeto de amor", o que permite uma primeira unificação das pulsões sexuais.
Apesar de já fazer uso do termo antes de 1914, é, entretanto, em seu texto "Introdução ao narcisismo", que Freud (1914) propõe o narcisismo como conceito, evidenciando suas incidências clínicas e considerando de forma particular os investimentos libidinais e o equilíbrio entre a libido objetal e a libido do ego. Assim, "o narcisismo já não surge como uma fase evolutiva, mas como uma estase da libido que nenhum investimento de objeto permite ultrapassar completamente" (Laplanche & Pontalis, 2016, p. 287).
Em Freud, a articulação dessa noção com o conceito de eu nasce de uma preocupação em responder a impasses da teoria psicanalítica, provocados principalmente pelas questões suscitadas por Adler e Jung no que tange à sexualidade. Costa (1988) explica que, para Freud:
[...] a libido da primeira infância investe objetos que, do ângulo da estrutura psíquica, têm todos o mesmo estatuto [...] e todos eles situam-se [...] com a mesma função de atender ao princípio do prazer ou à descarga sexual. Com o surgimento do Ego, o investimento libidinal pode tomar três direções que correspondem a "objetos" ou "locais" diferenciados, com estruturas e funções específicas: o próprio Ego, os objetos e os Ideais. Neste ponto começam a surgir as características deste objeto libidinal particular que é o Ego. Ao investir o Ego, o fluxo libidinal estanca e, embora guiada pelo princípio do prazer, a libido egoica funciona primordialmente segundo a vertente deste princípio que, de acordo com Freud, visa a "evitar a dor e a privação". (p. 154)
Em seu artigo inacabado, "Compêndio de Psicanálise", Freud (1938/2014) afirma que o eu se utiliza das sensações de angústia como sinal de ameaça ao perigo de ter sua integridade desfeita. O eu é, portanto, dominado pela preocupação com a sua integridade enquanto imagem, e tem como missão a conservação de si, de forma que toda tentativa de alteração da composição do eu responde à autodefesa narcísica.
Se tomarmos Freud mais para o final de sua obra, levando em conta os textos da década de 30, temos um quadro em que o narcisismo se torna central. A ideia de uma etapa narcísica, o narcisismo primário, que sucede ao autoerotismo e organiza a sexualidade infantil, será também o vetor da subjetividade da criança em uma posição privilegiada de objeto, o que Freud (1914) chamou de "sua Majestade, o bebê". No momento lógico posterior - no caso, a castração -, temos uma desmontagem da posição narcísica que supõe um efeito de queda imaginária e o estabelecimento de outra lógica libidinal, a relação de objeto. O que importa aqui, porém, é que, uma vez tendo caído o narcisismo primário, se estabelece uma miragem que situa o sujeito em termos de passado e futuro. Constitui-se o eu ideal, imagem idealizada do passado em que se supunha estar em uma posição de completude com o outro (inscrição do narcisismo primário) e um ideal de eu, outra idealização que sustenta a possibilidade de recuperação futura do narcisismo perdido.
No entanto, a pergunta que se levanta a partir dessa passagem é "como fazer para atingir esse ideal de eu?", o que equivale a perguntar como se faz para recuperar esse narcisismo. Nesse sentido, o conceito de identificação é fundamental: é a partir da identificação que o sujeito constitui seu ideal e consequentemente seu eu. Logo, é na sustentação da imagem do Outro, ou ainda no desejo do Outro, que o eu e o ideal se constituem. E abrir mão da imagem de si (eu) e dos ideais sociais (ideal de eu) significa renunciar à tentativa de recuperar o gozo narcisista suspostamente perdido. Nessa leitura, tanto o eu como o ideal de eu - imagens sustentadas pelo que resta do narcisismo do sujeito -tornam-se modalidades de determinação que precisam ser fixos pelo sujeito, para que não se abra mão da possibilidade futura de felicidade. Não obstante, tornam-se também modos de sujeição do ser a uma imagem fixa. Isso tem ressonância no que trabalharemos mais tarde em relação ao episódio do Black Mirror.
Podemos, a partir disso, trazer à baila o que se tem chamado de "narcisismo do homem pós-moderno", a fim de colocarmos em tensão tais usos para daí podermos pensar no narcisismo e sua possível relação com a contemporaneidade, a partir da psicanálise.
Muitos autores (Lasch, 1983, 1987; Lipovestky, 1983/2005; Baudrillard, 2005; Bauman, 2005) demonstram que a pós-modernidade, tida com a sociedade pós-industrial, é marcada pelo colapso dos valores tradicionais, pela escassez de ideais comuns e pelo consequente recuo da política na vida humana. Como resultado, tem-se a emergência de uma nova ética e valorização do bem-estar individual.
Nessas condições, o consumismo em massa desponta como outro aspecto do trabalho, colaborando para o apetite ilimitado do homem por mudanças, inclusive mudanças de si mesmo. Com isso, como aponta Maria Rita Kehl em apresentação recente no Café Filosófico (https://www.youtube.com/watch?v=kwxyT5n6E9o), a separação entre trabalho (lugar de produção) e lazer parece demasiadamente nublada, o que supomos culminar em uma ética da autogratificação, que impõe uma pressão constante para o desempenho de papéis que tragam algum benefício individual, exatamente como é praticado no episódio "Queda Livre".
Bauman (2005) destaca que esse contexto de mudanças apresenta muitos problemas para a antiga definição de identidade do sujeito, rígida e inegociável, pois "com o mundo se movendo em alta velocidade e em constante aceleração", estruturas de referência como a família, a igreja e o Estado já não são nem confiáveis nem necessárias, pois jamais acomodariam todas as "identidades novas, inexploradas e não experimentadas que se encontram tentadoramente ao nosso alcance, cada qual oferecendo benefícios emocionantes, pois [ainda] desconhecidos e promissores" (p.33). O sociólogo argumenta que o anseio por uma identidade vem do desejo de segurança (autodefesa narcísica?), contudo,
embora possa parecer estimulante no curto prazo [...], flutuar sem apoio num espaço pouco definido [...] torna-se a longo prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade. Por outro lado, uma posição fixa dentro de uma infinidade de possibilidades também não é uma perspectiva atraente. Em nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, "estar fixo" [...] é algo cada vez mais malvisto (Bauman, 2005, p. 35).
Lasch (1983, 1987) também trata da ansiedade generalizada provocada pela flexibilização do mundo e das relações. Ele afirma que, no mundo globalizado, a escolha é vivida não como a liberdade de escolher uma coisa ou outra, "mas como a liberdade de escolher todas as coisas simultaneamente" (1987, p. 29). E diante das tensões colocadas, o narcisismo é o recurso encontrado pelo sujeito para sobreviver à sensação de colapso.
O autor enfatiza que o homem narcísico tem a sua origem na desestruturação da família burguesa tradicional e no esfacelamento da vida privada, originada pela perda de uma demarcação clara dos limites entre esfera pública e privada. Estaríamos vivendo, então, uma cultura do narcisismo (ou cultura do sobrevivencialismo), marcada pela ausência de valores como justiça social e sentido de continuidade com gerações anteriores, marcada, portanto, pela ética da sobrevivência.
O narcisismo repensado por Lasch (1983, 1987) é uma indicação de um eu ameaçado pela desintegração e pelo sentimento de vazio interior. Na caracterização do autor, trata-se do homem que tem como sintomas a superficialidade emocional, o medo da intimidade, a hipocondria, uma pseudo-autopercepção, a promiscuidade sexual, o horror à velhice e à morte, a indiferença a tudo que não lhe diga respeito diretamente, a ansiedade, a insatisfação, a depressão, o desejo de aprovação e reconhecimento, a exigência de gratificação imediata, a baixa capacidade de sublimar, o tédio crônico, a descrença no futuro e desconexão com o passado. Em conformidade com o que é tratado por Bauman (2005), a aparente liberdade do narcisista dos laços familiares e dos constrangimentos institucionais aumenta a sua insegurança, que segundo Lasch, "ele somente pode superar quando vê seu 'eu grandioso' refletido nas atenções das outras pessoas, ou ao se ligar àqueles que irradiam celebridade, poder e carisma. [Pois,] Para o narcisista, o mundo é um espelho" (1983, p. 31).
Na mesma direção, Lipovetsky (1983/2005) aponta que a perda de sentido dos grandes sistemas caminha lado a lado com o hiperinvestimento do eu. Ele ainda afirma que:
[...] o narcisismo realiza uma estranha "humanização" escavando a fragmentação social: solução econômica para a dispersão generalizada, o narcisismo, em uma circularidade perfeita, adapta o Eu ao mundo que o gerou. O adestramento social não se efetua mais pelo constrangimento disciplinar e nem pela sublimação; mas sim pela autossedução. O narcisismo, nova tecnologia de controle suave e autogerado, socializa dessocializando, põem os indivíduos de acordo com um social pulverizado, glorificando o reino do Ego puro. [...] quanto mais se investe no Eu, quanto mais se faz dele objeto de atenção e de interpretação, mais aumentam a incerteza e a interrogação. O Eu se torna um espelho vazio à força de "informações", uma pergunta sem resposta à força de associações e de análises, uma estrutura aberta e indeterminada que exige sempre e cada vez mais terapia e anamnese (p. 37, grifos nossos).
Tendo como sustento a análise realizada acerca da produção de autores que, de fato, se debruçaram sobre a questão da contemporaneidade, fica evidente que o narcisismo é lido como uma defesa do eu erigida contra a angústia produzida pela falência do social no pós-industrialismo, mas que, quando posto em prática, produz outras (suas próprias) exigências, as quais levam o sujeito a novos comprometimentos que não o retiram da impossibilidade da completude, da ausência de perigo, da velhice, da morte e de outros tantos problemas apontados por Lasch (1983, 1987).
Considerações finais
Talvez o mais emblemático em Black Mirror seja o nome da série, que de forma alegórica faz referência a todas as telas de dispositivos tecnológicos que usamos na atualidade. O título brinca não apenas com a ideia de uma tela escura que nos apresenta o virtual, mas também com o fato de essa tela servir como uma superfície reflexiva, na qual podemos ver a nossa imagem enquanto contemplamos o virtual. A questão colocada é que, como Narciso, estamos constantemente diante de superfícies (tecnológicas) que capturam a nossa atenção e influenciam a nossa conduta.
Em conformidade com o que é trazido por Lasch (1983), Lacie supõe que, ao atingir a pontuação necessária para circular em outros ambientes, conquistará a tão almejada liberdade. Evidencia-se o engodo de uma nova modalidade de adestramento social, como bem aponta Lipovetsky (1983/2005), quando sustenta que o narcisismo é, no que tange a sua manifestação social, uma "nova tecnologia de controle suave e autogerado", que só teria seu potencial socializante na medida em que retira do social todo e qualquer impasse produzido pelo desencontro. Isso fica claro nas duas cenas em que Lacie, ao dar notícias de sua hostilidade frente à situação vivida no aeroporto e no casamento, sofre sanções que a excluem, cada vez mais, do convívio, até o extremo de ser presa e, por mais irônico que seja, ficar, enfim, livre daquela tecnologia.
Aqui é muito relevante relembrar o apontamento de Lasch (1979, p. 73):
A vida moderna é tão profundamente invadida por imagens eletrônicas, que não podemos deixar de responder aos outros como se suas ações - e nossas próprias - estivessem sendo registradas e simultaneamente transmitidas a uma audiência invisível, ou armazenadas para minucioso escrutínio posterior. [...] A intrusão na vida cotidiana deste olho que a tudo vê, deixou de ser surpresa para nós ou de nos surpreender com nossas defesas arriadas. Não precisamos de ninguém que nos lembre de sorrir. Um sorriso está permanentemente gravado em nossos rostos e já sabemos, entre os vários ângulos, qual deve ser o fotografado, com melhores resultados. A proliferação das imagens registradas mina nosso senso de realidade. [...] Desconfiamos de nossas percepções até que a câmera as ateste.
Como já foi sugerido, Black Mirror coloca em evidência modos de vida atuais, intensificando-os. Temos, então, que, não só o episódio selecionado, mas a série como um todo, serve como advertência acerca do anseio de ser visto e seus perigos. Ao mencionar a reflexão de Guy Debord sobre a espetacularização do mundo, Sibilia (2016) indica a importância das observações do francês "acerca das relações que se mercantilizam ao ser mediadas por imagens" e da "passagem do ser para o ter, e deste último para o parecer", deslizamento que acompanha "o triunfo de um modo de vida baseado nas aparências" (p. 347) e distanciado da liberdade para ser.
Nesse sentido, é relevante apontar o aborrecimento do irmão de Lacie com as pontuações e com a teatralização das interações humanas. Tanto este personagem quanto a motorista do caminhão demonstram alívio por não se importarem com o jogo da avaliação. Em uma cena em que critica pessoas como a noiva, que se preocupam tanto com a própria imagem, ele reclama: "Sinto falta de você quando não ligava para isso, quando até conversávamos, lembra-se disso? Aposto que as pessoas como Naomi por dentro querem se matar!" E assim nos diz da tensão constante provocada pela preocupação com a imagem que é projetada para os outros.
No que diz respeito ao comportamento falso apresentado em busca de uma boa avaliação, o discurso que Lacie prepara para o casamento também é digno de nota. Traduzindo livremente, a personagem anuncia apaixonadamente que "Neste mundo, todos estamos tão aprisionados em nossas próprias cabeças, que é fácil perder de vista o que é real, o que importa". Essa construção é duplamente falsa, considerando que a amizade entre Lacie e Naomi não era mais verdadeira e que para as pessoas pouco importava o real, tão implicadas que estavam com o virtual.
Nas redes sociais, o funcionamento das relações é balizado pelas publicações, que são aquilo que o sujeito coloca para ser visto, quase como um representante de quem ele foi, de quem é e de quem quer tornar-se. Podemos, assim, pensar a publicação como uma tentativa contemporânea de construção de identidade, se nos lembramos de que a identidade
[...] só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, "um objetivo"; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protege-la lutando ainda mais - mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta (Bauman, 2005, pp. 21-22).
Podemos pensar, assim, na postagem não só como a adequação do indivíduo a um modismo, mas como um pedido de validação pelo social. Não basta pensar ou saber que outros viram o que foi publicado, também é preciso que haja o envolvimento, engajamento do outro. Mas, por quê?
Defrontadas com momentos de solidão em seus carros, na rua ou nos caixas de supermercados, mais e mais pessoas deixam de se entregar a seus pensamentos para, em vez disso, verificarem as mensagens deixadas no celular em busca de algum fiapo de evidência de que alguém, em algum lugar, possa desejá-las ou precisar delas (Hargreavez, 2003, citado por Bauman, 2005, p. 31, grifos nossos).
Nesse sentido, cabe questionar se não seriam essas interações uma nova forma de laço social que tem como intuito assistir o indivíduo na luta contra a condição fundamental de desamparo. O que, em consonância com o argumento de Estêvão (2016), nos diz de uma lógica essencialmente fálica que produz, entre outras modalidades de alienação, um "empuxo ao efeito narcisista sobrepondo o imaginário ao real e ao simbólico" (p.135) de maneira desarticulada. O produto deste laço é "a manutenção de uma posição de não reconhecimento ou de um reconhecimento imaginário que homogeneíza" (p. 135).
Dessa forma, é possível compreender que, se o sujeito não se importa com o objeto, com quem curte a publicação, e sim com a quantidade de likes, a sua conduta é essencialmente narcisista: não há relação objetal que preencha afetivamente o sujeito, o que desemboca no sentimento de vazio, tão presente no nosso tempo. Por outro lado, se há preocupação com quem visualiza uma postagem (se importa o objeto) a publicação pode não ser uma conduta narcísica, a depender do efetivo encontro com o objeto e da qualidade desse encontro.
No que tange a essas formas de encontro pela via da virtualidade, Baudrillard (1997/2011) afirma que elas nos ameaçam, vindas de toda parte. Em "A impotência do Digital", o autor discute a distância entre aquilo que se vive em um "espaço virtual de altíssima frequência e um espaço real de frequência nula", e, de forma assertiva, sustenta que no futuro (nossa atualidade?) haverá uma completa abolição das distinções, uma desertificação do território onde circulamos, podendo culminar no "fenômeno da massa crítica". Isto se daria por uma ultrapassagem dos limites possíveis de armazenamento e circulação de informações digitais e, nesse sentido, vale relembrar que, no referido episódio, todas as informações sobre uma pessoa são armazenadas e divulgadas para acesso público.
Baudrillard (1997/2011) sustenta a hipótese de que, daqui em diante, a estratégia passa a ser apenas virtual; mas não sem consequências para aqueles que se inclinarem sem questionamentos diante dessa "supremacia do virtual, correndo o risco de nos aprisionarmos em mais uma forma, doravante informatizada, de servidão voluntária" (Baudrillard, 1995, p.25). Mais uma vez o autor sustenta, a partir da interatividade do virtual, a abolição do "separado", da distância entre os sexos, entre os polos opostos, entre palco e plateia, entre os protagonistas da ação, entre o sujeito e o objeto, entre o real e seu duplo:
Essa confusão dos termos e essa colisão dos polos fazem com que em mais nenhum lugar haja a possibilidade do juízo de valor: nem em arte, nem em moral, nem em política. Pela abolição da distância, do 'pathos da distância', tudo se torna irrefutável (Braudillard, 1997/2011, p. 129).
Podemos dizer que o que Baudrillard nos aponta é a tão almejada relação de totalidade que, a todo custo, tentamos reeditar desde o narcisismo primário? Se for, poderíamos sustentar que há um engodo em colocar no virtual a questão, quando na verdade estamos falando de modos de relação inerente ao humano. Nesta medida, a questão está menos nos gadgets tecnológicos, e muito mais em nosso processador interno que a todo custo busca a unidade.
À guisa de concluir nossas considerações acerca do narcisismo e do contemporâneo, concordamos com Tânia Rivera, quando nos diz da necessidade de certa parcimônia sempre que nos propomos a "iluminar" a parte obscura de qualquer que seja o elemento a ser estudado. Sustentamos a necessidade de, com cuidado e tempo de compreender, atentarmos para os discursos excessivamente iluministas que podem cair no engodo de anular a descontinuidade oriunda de qualquer estudo acerca do homem e suas relações. Pois, como alerta Bauman (2005, p. 96), "seria insensato culpar os recursos eletrônicos [...] pelo estado das coisas. É justamente o contrário: é porque somos incessantemente forçados a torcer e moldar as nossas identidades, sem ser permitido que nos fixemos a uma delas, mesmo querendo, que instrumentos eletrônicos para fazer exatamente isso nos são acessíveis e tendem a ser entusiasticamente adotados por milhões".
Sendo assim, nosso percurso aponta para a direção de que as publicações em rede social não seriam necessariamente um comportamento narcisista. Mesmo sabendo da preocupação de jovens e cada vez mais de adultos com a quantidade de likes e compartilhamento, pode ser que as redes sociais promovam um encontro de qualidade do sujeito com um objeto. Como afirma Tânia Rivera, é possível encontrar uma determinada potência "desses grandes murais", nos quais tentamos "domesticar as nossas imagens e reafirmar as nossas identidades, ou melhor, construí-las, não só com imagens, mas também com palavras". Isto porque, como aponta a psicanalista, "mesmo nesse espelho contemporâneo [...] há a possibilidade de isso dar lugar a um estranhamento e a um questionamento que têm lugar e potência na cultura. Um questionamento que põe em questão o próprio dispositivo". Por isso, consideramos fundamental sermos sempre cautelosos e estarmos continuamente atentos às possibilidades de surgimento da singularidade no virtual.
Referências
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Recebido em: 16/07/2018
Aprovado em: 01/02/2019
Notas:
(1) Sobre isso ver Sauret (2003); Kupermann (2009); Rosa (2001).
(2) Essa citação está em Chaves (2015) e segue a seguinte referência: Wiener psychoanalytische vereinigung. 1906-1908. Wien: psychosozial-verlag, 2008.