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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.13 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2021
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2021v1p.3
ARTIGOS TEMÁTICOS
Filme marcado para morrer: cinema, experiência e transmissão
Film destined to die: cinema, experience and transmission
Película marcada para morir: cine, experiencia y transmisión
Leonardo Bastos VelascoI; Ana CostaII
IPsicólogo do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutorando em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: lnrdvlsc@gmail.com
IIProfessora colaboradora do Programa em Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pós-Doutora pela Universidade de Paris XIII. Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). E-mail: medeirosdacostaanamaria@gmail.com
RESUMO
Em 1964, o cineasta Eduardo Coutinho se lança no sertão nordestino para realizar um filme sobre o assassinato de João Pedro Teixeira, líder das Ligas Camponesas, que reivindicavam melhores condições de trabalho. Com o golpe militar, a ficção foi interrompida, sendo retomada anos depois quando o cineasta vai ao encontro dessas pessoas que foram perseguidas pela ditadura e produz o que se tornou um dos maiores documentários brasileiros,"Cabra marcado para morrer". A partir da produção do filme, busca-se, com as referências de Freud e Lacan, extrair elementos que concernem à transmissão e experiência, perspectivando uma interlocução com Walter Benjamin.
Palavras-chave: PSICANÁLISE; CINEMA; EXPERIÊNCIA; TRANSMISSÃO.
ABSTRACT
In 1964, filmmaker Eduardo Coutinho went to the northeastern to make a film about the murder of João Pedro Teixeira, leader of the Peasant Leagues, that demanded better working conditions. With the military coup,the fiction was interrupted and reshoot when the filmmaker goes to seek these people who were persecuted by the dictatorship and produces what has become one of the greatest Brazilian documentaries, "Cabra marcado para morrer".Through the production of the film, with the references of Freud and Lacan, we look for elements that concern the transmission and experience, and perspectives of a dialogue with Walter Benjamin.
Keywords: PSYCHOANALYSIS; CINEMA; EXPERIENCE; TRANSMISSION.
RESUMEN
En 1964, el cineasta Eduardo Coutinho se lanza al noreste del país para realizar una película sobre el asesinato de João Pedro Teixeira, líder de las Ligas Campesinas,quien exigía mejores condiciones laborales.Con el golpe, la ficción se interrumpió y retomó años después cuando el cineasta va al encuentro de estas personas perseguidas por la dictadura y produce el que se ha convertido en uno de los mayores documentales brasileños, "Cabra marcado para morir".De laproducción de la película, con referencias de Freud y Lacan, se buscan elementos que conciernen a la transmisión y la experiencia, buscando un diálogo con Benjamin.
Palavras-clave: PSICOANÁLISIS; CINE; EXPERIENCIA; TRANSMISIÓN.
O presente trabalho investiga - a partir das referências de Freud e Lacan - as relações entre psicanálise e linguagem cinematográfica, tendo em vista a produção do filme Cabra marcado para morrer (1984), dirigido por Eduardo Coutinho. Advertidos de que os artistas, em sua prática, antecipam certas questões problematizadas pela psicanálise, o nosso objetivo específico é extrair elementos que surgem da peculiaridade da produção do filme, num primeiro momento como ficção, em 1964, e, num segundo, como documentário. Do mesmo modo, aventa-se uma possível interlocução com a obra de Walter Benjamin, ao reconhecer-se uma ruptura nos modos de narrativa com o advento da técnica em aliança com o capitalismo. O diálogo com o autor deve-se aos operadores conceituais "experiência" e "transmissão", que fornecem mais elementos em torno da articulação do singular e do coletivo.
Esse filme de Coutinho, especificamente, já foi objeto de uma série de artigos, teses e debates em diversos campos, tais como: a questão das ligas camponesas, da reforma agrária, (Medeiros, 2014) e do golpe militar (Almeida, 2009; Leme, 2013), além da tradição de documentário brasileiro, da qual o filme é considerado "um divisor de águas" (Bernardet, 1985). Segundo Lins (2004), Coutinho estabelece um duplo deslocamento em relação à história e ao documentário. O "Cabra/84"(1) não somente deixa de ser um filme de ficção, que teria a tarefa de reproduzir um evento factual desdobrado em uma sequência linear, como também rompe com a tradição do documentário brasileiro e sua separação radical entre diretor e personagem. Coutinho, ao se incluir como um dos personagens do filme e ao privilegiar o encontro, sempre contingente, com as pessoas filmadas, produz uma nova abordagem do estatuto da verdade no audiovisual.
A verdade da filmagem significa revelar em que situação, em que momento ela se dá - e todo o aleatório que pode acontecer nela... É importantíssima, porque revela a contingência da verdade que você tem... revela muito mais a verdade da filmagem que a filmagem da verdade, porque inclusive a gente não está fazendo ciência, mas cinema (Coutinho, 2004, p. 44).
As entrevistas de Coutinho, dadas a diversos meios de comunicação ou registradas em artigos e livros, terão uma importante participação na análise do filme que se propõe aqui. Uma pesquisa de arquivos e fragmentos das histórias em torno de Cabra encontra diversas falas que excedem a análise. Esse excesso diz respeito justamente ao caráter inesgotável das significações da obra. Atentos a isso, esforçar-nos-emos para transcrever falas atinentes aos pontos da pesquisa. Nesse movimento de ir desde a voz ao texto, temos a tarefa difícil, porém necessária, de perder algumas palavras, letras, imagens, enfim, restos nesse caminho de escrita.
A questão que inicia nosso percurso e que nos põe em trabalho é a transmissão de experiências que, de entrada, são impossíveis de expressar ou de ser compreendidas. Como algo singular, imprevisível, contingente só pôde ter sido realizado por Coutinho e com aquelas pessoas do filme? Outras questões não menos importantes surgem, tais como: Por que filmar? O que leva
Coutinho a ir ao encontro dessas pessoas anos depois? Tais questões não são simples nem se esgotam quando se trata de uma obra que se encontra na cultura; portanto, não é dos lugares analisante/analista que se espera algum saber. Veremos que a própria articulação entre psicanálise e os diversos campos de saber é delicada.
Como afirma Ana Costa, trata-se de um paradoxo: "De um lado a necessidade da transmissão de algo que, de tão singular, parece estar fora do discurso, ou seja, está por ser nomeado. De outro, a necessidade de inscrever essa experiência em uma tradição da clínica. E como se dá a transmissão do singular, tanto quanto sua inscrição em um discurso compartilhado?" (2015, p.17). Assim, o filme pode ser visto como uma necessidade de inscrição, de uma marca que circunscreve um limite. O próprio Coutinho testemunha nossa suposição em duas entrevistas: a produção do filme era "um troço do fundo do coração, um pesadelo, uma dor no fígado, um negócio brutal". Se ele não realizasse o filme, ficaria "envenenado para o resto da vida" (Lins, 2004, p. 30).
A interlocução da psicanálise com a obra de Coutinho será constante em nosso trabalho, e para tanto, será necessário um preâmbulo que apresente a forma como construímos o endereçamento a outros autores de diversos saberes. A partir de uma questão de Ana Costa, colocamo-nos a refletir sobre nosso "método" de trabalho: "Como estabelecer relações com campos distintos mantendo-se uma condição de extimidade, própria à psicanálise"? (2015, p.19) A princípio, o próprio percurso psicanalítico inaugurado por Freud atesta articulações diversas. De que lugar, entretanto, nos autorizamos quando aproximamos campos com métodos, questões e objetos heterogêneos? A própria psicanálise coloca em questão a relação com o saber, ao não ser uma teoria explicativa ou esclarecedora. A incidência de um saber inconsciente implica um lugar não articulável, ainda que seja "logiciável em discurso". (Lacan, 1954/1998, p. 30). Neste sentido, investigam-se os efeitos de uma lógica atravessada pelo inconsciente.
Freud reconheceu nos artistas aliados poderosos
cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com as quais a nossa filosofia ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência (Freud, 1907/1976, p. 18).
Em Lacan, encontramos a ressonância de tal posição quando afirma: "isso a que o artista nos dá acesso, é o lugar do que não poderia ser visto" (1961, p.254).
No texto de 1907, "Os delírios e sonhos na Gradiva de Jensen", Freud faz um estudo do romance alemão seguindo o caminho que havia aberto na interpretação dos sonhos, ao reconhecer um sentido inconsciente latente a ser exprimido. O modo como a trama nos é apresentada aproxima-se na escrita de um caso clínico, como corrobora Freud nesta passagem:
Meu procedimento deve parecer-lhes ainda mais incompreensível se considerarem que o autor classificou sua história de 'fantasia', negando-lhe qualquer semelhança com a realidade. Entretanto, descobrimos que todas as suas descrições copiam tão fielmente a realidade, que não nos oporíamos à apresentação de Gradiva como um estudo psiquiátrico (Freud, 1907/1976, p.22).
Anterior a esse texto, a própria exposição do caso Dora traz reflexões semelhantes acerca da forma como se escreve a história da paciente: "Sei que existem - ao menos nesta cidade - muitos médicos que (por revoltante que possa parecer) preferem ler um caso clínico como este, não como uma contribuição à psicopatologia das neuroses, mas como um roman à clef destinado a seu deleite particular" (Freud, 1905/1976, p.10).
As duas distintas situações, um romance e um caso clínico, assemelham-se, portanto, estruturalmente ao produzirem questões para a psicanálise. Não se trata de afirmar que o livro e até mesmo o caso estão a serviço da psicanálise como se ilustrassem algo que já estivesse ali. A relação é mais complicada. Ao dedicar-se ao texto de Gradiva e à Dora, Freud participa como leitor do romance que está em jogo para cada um. A transmissão desse olhar como leitor já se afirma como um segundo movimento, quando por exemplo, as pegadas de Gradiva são reconhecidas por Freud como constituintes no lançar-se criativo. Em outras palavras, a leitura de Freud pelas peripécias e quiproquós do arco dramático do protagonista de "Gradiva" traz elementos importantes para o percurso da psicanálise, sem subestimar o efeito que tal obra provoca.
Ainda que a arte, sobretudo a literatura, tenha trazido inúmeras contribuições para o campo psicanalítico, corre-se o risco de traçar um perfil psicológico ou uma psicobiografia que justificasse o ato criativo. Ora, por tratar-se justamente de um ato, há a dimensão de um corte, do passo do sujeito, ao retomar o paradigma do tempo lógico, que não revela nem se explica.
Como afirma Milner (2010), não se trata de uma crítica psicanalítica da arte, portanto, mas de reconhecer a obra como uma análise em ato, ou seja, tratar o trabalho do artista como produto de uma elaboração subjetiva da linguagem. Em vários momentos de sua obra, Lacan afirmou no que tange à literatura, por exemplo, "quanto à psicanálise, estar pendurada no Édipo em nada a habilita a se orientar no texto de Sófocles" (Lacan, 1971/2003, p. 16).
Do mesmo modo, Wajcman (2012) aponta para a unicidade encontrada em cada obra, em nosso caso, o filme de Coutinho, que não faz conjunto com outras, ainda que seja possível encontrar um estilo do autor.
O próprio das artes é, justamente, que elas pedem para serem tratadas no singular, uma a uma, e não juntas, numa produção homogênea; a unidade que opera na Arte é a obra, ao passo que a unidade da criação industrial é a série...A Arte é não-toda, portanto, falar de arte em geral é invocar um conjunto não consistente constituído de objetos que têm em comum apenas o fato de ser, cada um deles, singularidades distinguíveis e distintas (Wajcman, 2012, p. 56).
Isso não desobriga, no entanto, nem impede os psicanalistas de extraírem um saber da práxis artística. A nossa direção de trabalho vai naquilo que Lacan em "Lituraterra" (1971/2003) coloca como litoral, ou seja, a partir de limites que diferenciam campos heterogêneos, mas que a partir da escrita cria bordas no saber, onde ficções, teorizações e até mesmo operações científicas possibilitam a circulação por esses limites.
Partimos de um filme que, se não fosse um ato de Coutinho, seria assim como no seu título, marcado para morrer. Uma morte anunciada, que poderia repetir o assassinato que ocasionou o primeiro registro, se não fosse o dever de memória, esse fantasma de 1964, ou outros nomes para aquilo que traumatiza uma ordem de representação.
Com isso, investigamos as atuais condições que possibilitam "a arte de contar" como Benjamin escreve em seu célebre artigo "Experiência e pobreza", e que aparece de forma mais contundente no ensaio crítico sobre o escritor Nikolai Leskov, "O narrador". O termo "atual" coloca já de entrada temporalidades distintas, ou seja, compreende-se que há dois momentos - um primeiro e outro segundo - marcados por uma ruptura. Cabe, a partir da psicanálise, situar a relação entre tais tempos de modo a estabelecer o que está em jogo: a narrativa e a transmissão da experiência.
A questão da narrativa e suas condições de transmissão atravessa toda a obra de Coutinho, sendo em diversos momentos o próprio cineasta a levantar a questão sobre essa arte, e não ciência, de contar:
Você tem histórias maravilhosas e são mal contadas. Cinema é isso: se conta mal, não adianta a história ser boa. Se você não tem nada para contar, mas conta bem esse nada, você é bom, você é maravilhoso. Tem caras que viajam o mundo todo, são assaltados no Egito, viram Deus na Índia e contam pra você, você fala: 'Que saco!' Tem caras que foram ao Sumaré, em São Paulo, ou foram à favela de... mas, sabe, viveram uma vida de... o carteiro, carteiro trinta anos e ele é maravilhoso falando da vida que é igual todos os dias. Então, saber contar é essencial e esses caras, desses filmes, eles são contadores de talentos variados, [...] (Lins, 2004, p. 35).
Benjamin aponta que a modernidade traz como principal característica a derrisão da palavra e da narrativa enquanto transmissão de uma experiência coletiva que pudesse ser compartilhada entre seus semelhantes, e que assim, estabeleceria lugares estáveis na tradição. (1936/2012). O advento da ciência moderna aliada ao capitalismo promove um corte no laço social enquanto discursivo ao instrumentalizar a palavra a serviço de suas operações, promovendo em um só tempo uma disjunção entre significante e significado que poderia ser encontrado na cultura, e o encargo do sujeito advir em algum lugar no Outro (Costa-Moura & Fernandes, 2011).
A tese de que a ciência moderna produz abalos no campo da linguagem se reflete no que iremos estudar a partir da possibilidade de se transmitir uma vivência - Erlebnis - de caráter singular na cultura a partir do documentário de Eduardo Coutinho. Tal obra coloca em questão a ética do sujeito com a sua fala, como possibilidade de inscrição de algo que represente o sujeito na sua singularidade e que, ao mesmo tempo, seja reconhecido como um estilo, o inserindo e particularizando na tradição da arte cinematográfica atual.
Em "experiência e pobreza" (1933/2012), Benjamin descreve que os combatentes da guerra voltaram "mais pobres em experiências comunicáveis". Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se esmagada pelos monstruosos progressos da técnica, gerando uma nova barbárie. Na mesma linha, Freud, um pouco antes, em "Mal Estar na Civilização" (1930/1976), havia advertido que o progresso científico e tecnológico não era sinônimo de felicidade e que nem no macrocosmo nem no microcosmo, existiriam meios para alcançá-la na civilização moderna, que por sua vez deveria arranjar recursos (drogas, miséria neurótica, religião, a rebelião psicótica) para lidar com o inerente mal-estar intratável. Portanto, a tese que identifica tanto a ciência quanto a técnica a serviço da humanidade é derrogada pela guerra tal como Benjamin de maneira pungente descreve: "Seria uma nova barbárie que se impõe", mas em que isto, de fato, afeta o laço social na sua condição enquanto discursiva?
No mesmo texto, o autor dá pistas ao nos provocar com tais perguntas: "Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência?" (Benjamin, 1933/2012, p.123). Enquanto no período pré-capitalista, o ancião, no leito de sua morte, no limite da vida era o depositário de experiências a serem apropriadas pelos jovens ouvintes, atualmente seu discurso não encontra utilidade. Tal passagem é interessante pois evoca a diferença geracional e a juventude como ouvintes de um saber que orientaria suas vidas.
Em "O Narrador" (1936/2012), expõe que a arte de intercambiar experiências está em extinção. Tal tese central em sua obra e que nos interessa acerca dos modos de produção da narrativa moderna, diz respeito às radicais transformações na sociedade como o ritmo, adurabilidade das coisas e a moral vigente. Em detrimento da narrativa artesanal transmitida um a um onde as significações da história ficavam em aberto para apropriação pelas gerações futuras, surge na modernidade, a narrativa sintética, destituída de valores que balizam o indivíduo. Nesse aspecto, a narrativa e experiência não se confundem, há um hiato entre o que acontece e o que é dito, se aproximando da noção de trauma de Freud (1895/1976).
A modernidade ganhou em informação no que perde da experiência e de sua dimensão de comunidade que fundava a narrativa tradicional. As narrativas predominantes atuais caracterizam-se pela necessidade de encontrar um sentido e uma explicação plausível para o acontecimento. "Ora, a questão do sentido só pode ser colocada, paradoxalmente, a partir do momento em que esse sentido deixa de ser dado implicitamente e imediatamente pelo contexto social" (Gagnebin, 1985/2012, p. 14).
Na impossibilidade de dizer sobre o que ocorreu e na medida em que a dimensão de experiência comum se perde e a tradição já não fornece bases seguras, surgem narrativas como a informação jornalística e o romance. Estes, segundo Benjamin, são corolários da extinção da narrativa artesanal, passada como um anel, de pai pra filho, do mestre para o aprendiz. De um saber prático que balizava a vida dos indivíduos na comunidade, chega-se à desorientação de um eu que não encontra amparo a não ser na forma de conselhos ou algo exterior a si (Lo Bianco, Costa-Moura, Solberg, 2010).
Se o narrador contava, portanto, a história de uma tradição coletiva, o romancista conta sua vivência subjetiva. Esta pode ser transmitida aos seus semelhantes, mas ainda assim, não pode ser apropriada. Assim, a modernidade exila o sujeito de qualquer patrimônio simbólico que lhe dê garantias e o deixa com o encargo de se orientar no universo infinito sem qualidades ou valores apriorísticos ao contrário de como se encontrava no cosmos fechado.
Longe de sermos nostálgicos e idealizar uma imagem eterna do passado a partir das lentes do presente, nossa pesquisa centra-se nos condicionantes da narrativa moderna, ou seja, como é possível narrar e a inflexão que a narrativa sofre na atualidade. Assim como os romancistas, os cineastas relançam a necessidade de transmitir experiências que a princípio são intransmissíveis. A importância que tal vivência aparentemente ordinária ganha para o cineasta faz toda a diferença no ato de realizar a filmagem, uma vez que a significação da experiência se impõe como original, e é somente na elaboração do filme, a posteriori, que o sujeito vai se apropriando como algo que lhe é próprio.
Mas desde que filmei Elizabeth e a Galileia tinha certeza absoluta de que o filme era bom, entende? Que o filme era bom, a palavra é essa. Tinha conseguido, enfim, fazer o que queria. Meus outros filmes, não, tinham sido o contrário. Mas esse, eu tinha certeza, não foi uma surpresa pra mim. O filme pegava porque tinha uma força baseada no fato de que não existe outro filme igual... Sua importância se deve ao fato de ter uma história única (Lins, 2004, p.130).
"Graças a Deus estou viva para contar minha história" (3)
A história do filme "Cabra marcado para morrer" (1984) inicia-se quando o cineasta, integrante do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1962, assiste a uma manifestação na Paraíba pelo assassinato de um líder camponês, João Pedro Teixeira, fundador da Liga Camponesa de Sapé, interior da Paraíba, por policiais militares a mando de um grande latifundiário do nordeste. Coutinho que nunca havia pegado em uma câmera até então, filma o que seria a cena onde somos apresentados à Elizabeth Teixeira, viúva do líder assassinado. Coutinho decide, dois anos depois, recriar pela ficção o fato ocorrido com as pessoas envolvidas, com um roteiro escrito em três dias e filmado em Engenho da Galileia, em Pernambuco, próximo de Sapé, onde não pôde ser realizado devido à escalada de tensões locais entre camponeses e latifundiários.
A ficção de 1964 inscrevia-se na tradição do neorrealismo italiano - abordagem estética dominante no período pós-guerra que possuía traços técnicos e estilísticos como filmagem em cenários reais, pouco ou nenhum roteiro, utilização eventual de atores não profissionais inseridos naquela realidade, a imagem acinzentada e a câmera na função de registro tal como na maioria dos documentários (Fabris, 2006, p.205). Havendo assim uma tensão entre ficção e realidade que no documentário será uma sensível torção.
As filmagens são interrompidas no primeiro dia da instauração do golpe militar, tanto a equipe de produção quanto os atores se escondem exasperadamente pelo sertão nordestino por serem considerados alvos de perseguição militar. Coutinho é preso ao chegar ao Recife, mas os negativos filmados já haviam sido enviados para o Rio, e os copiões foram preservados. Assim, o filme entra em um perverso coma induzido por vinte anos.
A preservação dos copiões ficou por conta de um dos membros da equipe que tinha o pai militar e uma cópia na Cinemateca do MAM com o título modificado para "A Rosa do Campo", sendo assim bons esconderijos para o filme, nos moldes da carta roubada do conto de Edgar Allan Poe analisado por Lacan. O fantasma do filme de 1964, inscreveu-se e fica en souffrance por um endereçamento.
Coutinho volta a trabalhar na produção do filme mais de quinze anos depois, montando o material existente na TV Globo, onde trabalhava no programa Globo Repórter. A passagem pela televisão foi de extrema importância para se aproximar das pessoas de diferentes origens, e encontrar seu estilo de filmar como no episódio "Theodorico, o imperador do sertão". Tal experiência foi fundamental também para a realização de Cabra em um sentido mais objetivo, pois assegurava um trabalho regular que o permitia fazer um filme sem se preocupar com o retorno financeiro. O cineasta acumulou férias, tirou licença sem vencimentos e investiu o que podia para dedicar-se às filmagens que foram realizadas, em sua maioria, entre janeiro e fevereiro de 1981 (Lins, 2004).
Ao retomar as filmagens, Coutinho inclui-se como um dos personagens principais na busca daquilo que os unia, o desejo de realizar um filme. Com o golpe militar, as pessoas seguiram rumos variáveis: João Virgínio, importante líder camponês, foi preso e torturado, o que o deixaria cego de um olho; João Mariano que fazia o papel de João Pedro, foi expulso de sua igreja neopentecostal, sendo a intervenção da equipe de filmagem na cena em que conta o episódio, um instante analisador do tipo de filmagem que Coutinho realizava, assim como Zé Daniel e Duda que, na montagem, são os encarregados a narrar sobre o que aconteceu com a equipe e com os camponeses.
A personagem que condensa as forças do filme, porém, é dona Elizabeth Teixeira. Em 1981, ela vivia na clandestinidade como Marta Maria da Costa em São Rafael, interior do Rio Grande do Norte até a chegada da equipe de filmagem. Por dezesseis anos, ocultava seu passado aguerrido e o esfacelamento de sua família após a morte de seu companheiro, João Teixeira. O filme permite que ela retome seu nome original e compartilhe sua história com a atual comunidade.
São três encontros de Coutinho com Elizabeth no filme: O primeiro é tenso, com a presença do filho mais velho. Abraão, jornalista, pressiona a mãe a reconhecer a abertura política proposta pelo presidente Figueiredo em diversas interrupções. Coutinho dá lugar a esse pedido reiterado sem contestar, "eu registro tudo o que os membros da família quiserem". As fotos das filmagens passam de mão em mão por Elizabeth e os vizinhos que então têm a oportunidade de conhecer a vida da professora de alfabetização da região. Nessa multiplicidade de sons, sentimentos e imagens, surge uma sequência preciosa do documentário: "a ausência de controle por parte do cineasta, a impossibilidade de um único sentido para o que estamos vendo, a palavra de Elizabeth tomando corpo e encontrando pouco a pouco sua vitalidade" (Lins, 2004, p.47).
No segundo encontro, sem Abraão, Elizabeth pede a Coutinho para refazer a entrevista após ter visto as imagens do filme de que havia participado em 1964.
...Ontem à noite eu me deitei e fiquei imaginando. A entrevista, eu falei muito mal ontem, mas eu também fiquei muito emocionada... Porque eu devia ter começado direitinho, a vida como você queria, de início... Se você tinha deixado pra hoje eu tinha me expressado melhor (Lins, 2004, p.47)
Essa passagem permite conhecer melhor o vínculo que se estabeleceu entre o cineasta e aquela mulher, ou seja, atualiza a força do encontro entre os dois que foram separados por anos pelo fantasma de 64. O endereçamento de Elizabeth a Coutinho persiste e a posição que o cineasta ocupa dá lugar a essa fala. Sem julgar, contestar ou mesmo retirar do filme, o cineasta escreve a contingência da fala. Em outros termos, só Coutinho poderia produzir essa escuta tão sensível e cara à história de Elizabeth. A gramática do cineasta permite escrever essas experiências infames, anônimas, que estão à margem da história oficial.
Como reconhece Consuelo Lins, a transformação da vida de Elizabeth pelo filme produz um acréscimo terapêutico, onde há mudanças de lugares entre os outros, mas também em relação ao Outro. Há um tempo de compreender sua origem, seu nome, enfim, seu lugar no mundo, mas Coutinho permite, a partir desse endereçamento, um momento de concluir sobre a identidade de Elizabeth, ou então, de ela ressituar a sua vivência com o passado, como Benjamin entendia.
A sequência final que acompanhamos quando a equipe deixa a cidade e Elizabeth os interpela permite o surgimento de uma fala vigorosa (Lins, 2004, p.45), traço do estilo de documentário de Eduardo Coutinho. Tal fala produziu uma série de comentários, como se Elizabeth só pôde dizer, pensando que a câmera estivesse desligada. Essa fala já é, no entanto, efeito de um endereçamento, de uma abertura não apenas política, mas de uma autorização de si que só poderia ser feita com aquelas pessoas, e não outras.
"Cabra marcado para morrer" não é, portanto, somente um filme sobre uma obra inacabada que retrata o período intenso das lutas camponesas antes do apagar das luzes da ditadura e o resgaste à tela das pessoas que pagaram com próprio corpo, com a morte de familiares e migrações forçadas durante o regime militar. Trata-se também de escrever uma narrativa a partir da linguagem cinematográfica que, enquanto linguagem, para o Coutinho elabora de forma singular.
Em toda sua obra, nada parece mais distante a Coutinho que inscrever essas experiências em tipificações - o camponês, o operário, o favelado - como surgem em alguns documentários. Como afirma Bernardet, não há linearidade entre o desejo do cineasta e seu objeto, não há uma imanência entre as imagens e o que se entende como povo:
As imagens cinematográficas do povo não podem ser consideradas sua expressão, é a manifestação da relação que se estabelece no filme entre os cineastas e o povo. Essa relação não atua apenas na temática, mas também na linguagem. Cabra marcado para morrer é um divisor de águas nesse tipo de aproximação (Bernardet, 1985, p.9).
O modelo sociológico, cujo apogeu se dá nos anos de 1964 e 1965, tem seu declínio com a inquietação de diversos movimentos sociais, do cinema (Cinema Novo hegemônico) que não se satisfaziam com um simples registro das tradições populares, culturais, folclóricas. O próprio estilo de Coutinho escapava ao projeto político-pedagógico da CPC da União Nacional dos Estudantes que visava uma apresentação dos diferentes universos, e por que não, categorias da entidade chamada povo brasileiro.
Do mesmo modo, Coutinho decide não mostrar personagens políticas dominantes, ainda que tivessem sido mencionados. Tal decisão não é um lapso ou mero acaso, mas em seus outros filmes, preterem-se os poderosos, e até presidenciáveis, como em "Peões", em favor dos anônimos (Idem anterior). O que importa é o advento de uma fala inédita sobre as experiências com pessoas, objetos e até canções sob efeito de uma presença.
Coutinho fala, mais de uma vez, das condições frágeis da produção de seus filmes, que quase não são finalizados, isto é, ficam no limite da realização. Com Cabra, Coutinho, no entanto, temia que o filme e consequentemente a sua carreira como cineasta fosse reduzida a uma nota de rodapé de um filme inacabado. O filme não só foi resgatado como o próprio cineasta, que em conversa com Carlos Nader, no filme "7 de outubro", afirmou que se não houvesse um reconhecimento do público, não saberia se continuaria como cineasta.
Ao se lançar na travessia desse fantasma, porém, Coutinho se vale da história em fragmentos e, como um colecionador, realiza um trabalho de resgate.
Cabra é o duplo resgate de uma dupla derrota: O primeiro Cabra, o de 64 e o que sobraram apenas vestígios já era o resgate de um fracasso: o assassinato de um líder das Ligas Camponesas, João Pedro. Dele vivo, não sobrou nem uma fotografia, o filme de então, sob a forma de um espetáculo o fazia reviver e o fixava na história. O Cabra de hoje resgata o filme interrompido -e, dessa forma, também o João Pedro- e resgata a viúva do líder e sua família" (Bernardet, 1997, p. 228).
Um filme que trabalha com vestígios, os estilhaços que se produziram com o golpe e a história como fragmento. Como documentário, não se visa explicar, compreender ou apreender a complexidade da experiência. Ao lidar com os restos do que poderia ter sido, o cineasta compartilha uma vivência singular, uma Erlebnis, mas não para informar e aplacar o horror da ditadura com um sentido heroico.
Na perda da experiência, isto é, daquilo que organizava o laço social em uma determinada tradição, em que uma autoridade agenciava os sentidos a serem negociados em momentos de abalo e ruptura, encontra-se ainda a tarefa de cernir a experiência da perda, importante na produção de uma escrita.
Sem julgar ou pretender dar-nos uma moral da história, Coutinho exime-se de um humanismo utópico (Bernardet, 1985, p. 237). As marcas daquelas experiências não esgotam, são da ordem do excesso, que segue o esforço de uma restituição do que poderia ter sido perdido. Ao retomar as filmagens, Coutinho sustenta a fragilidade como o fogo que consome as ruínas do filme, sem se obrigar a entregar ao espectador um final cuja significação pudesse satisfazer o espectador enquanto consumidor de uma mercadoria. As cinzas, os rastros e os efeitos se condensam na montagem do filme, nada lhe é exterior ou deve ser explicado. Ainda que haja momentos de narração, encontramos a condição de um narrador narrado que se inclui na experiência transmitida.
Assim, não é do lugar de porta-voz ou de representante da fala dos personagens do filme. Diferente situação é, como Costa (2015) descreve, sobre os correspondentes de guerra. Os
jornalistas comprometem-se no objetivo último da Erlebnis, isto é, quanto mais informações, mais camadas de sentido são acrescentadas e, então, são produzidas histórias acabadas. No lugar de testemunha, Coutinho escreve a marca de uma experiência marcada para morrer, não sem antes deixar viver no documentário que concluiu em 1984.
Referências
Almeida, R. (2009) As ditaduras militares no cinema argentino e brasileiro: uma análise de A história oficial e Pra frente Brasil. Acesso em fevereiro de 2020 de https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/BaleianaRede/Edicao06/2_As_ditaduras_no_cinema.pdf. [ Links ]
Benjamin, W. (2012) Magia e técnica, Arte e Política. Obras escolhidas - Vol I. Rio de Janeiro: Brasiliense. [ Links ]
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Recebido em: 09/03/2020
Aprovado em: 19/03/2021
NOTAS
(1) Consuelo Lins em seu livro "O documentário de Eduardo Coutinho: televisão, cinema e vídeo" (Zahar, 2004) faz a diferenciação entre o filme de ficção interrompido em 1964 (Cabra/64) e o então documentário de 1984 (Cabra/84). A fim de melhor compreensão, faremos o mesmo.
(2) https://piaui.folha.uol.com.br/cabra-marcado-em-dvd/
(3) Fala da protagonista do filme, Elizabeth Teixeira, em "Cabra marcado para morrer".