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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.37 Belo Horizonte jul. 2012

 

 

O desejo de autonomia num caso clínico

 

The desire of autonomy: illustration in a clinic case

 

 

Fernando Cézar Bezzera de Andrade

Universidade Federal da Paraíba
Sociedade Psicanalítica da Paraíba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No contexto da teoria freudiana sobre o narcisismo e de sua crítica pela teoria laplancheana, neste artigo recorre-se ao conceito de “desejo de autonomia” (MAIA, 1991, 1996, 1997) para discutir dois fragmentos de um caso clínico em que o masoquismo mais se destaca. Do ponto de vista metapsicológico, argumenta-se que o desejo de autonomia desenvolve a revisão que a teoria laplancheana faz da teoria freudiana do narcisismo, por trazer à luz um princípio de funcionamento psíquico negado que, de modo mais parcimonioso que o modelo freudiano do autoerotismo e da pulsão de morte, explica aspectos narcísicos, de repetição e de autossuficiência em formações psíquicas. Para examinar essa hipótese e evidenciar o desejo de autonomia, apresenta-se a perlaboração do paciente em relação aos dois fragmentos do caso clínico, um sintoma e um sonho, inferida a partir do abandono de conduta de alto risco e de significativo aumento da disponibilidade para estabelecer vínculos amorosos.

Palavras-chave: Metapsicologia, Narcisismo, Desejo de autonomia, Caso clínico, Masoquismo.


ABSTRACT

In the context of Freud’s theory on narcissism and its revision by Laplanche’s theory, this article refers to the concept of “desire of autonomy” (MAIA, 1991, 1996, 1997) to discuss two fragments of a clinical case characterized by a masochistic defence. From the metapsychological point of view, it is argued that the desire for autonomy develops Laplanche’s review of the Freudian theory on narcissism, for bringing to light a denied principle of mental functioning, which (more parsimoniously than that the Freudian model of autoeroticism and of death drive) explains elements of narcissism, repetition and self-sufficiency in psychic formations. To examine this hypothesis and highlight the desire for autonomy, it is presented the working-through of the patient in relation to two fragments of the clinical case, a symptom and a dream, inferred from the abandonment of a high-risk behavior and a significant increase in willingness to establish bonds of love.

Keywords: Metapsychology, Narcissism, Desire of autonomy, Clinical case, Masochism.


 

 

Para o Dr. Luís Martinho Ferreira Maia: Non desinis oculos mihi aperire
(“Não cessas de abrir-me os olhos”)
. Marco Aurélio (citado por Tosi, 2000, p.170)

 

Narcisismo, tempo “auto” e desejo de autonomia

A considerar a história da teoria freudiana (LAPLANCHE e PONTALIS, 1991; ROUDINESCO; PLON, 1998), a década de 1910 a 1919 assistiu a uma intensa produção em torno da metapsicologia. Nela, um conceito em particular adquiriu, gradualmente, proeminência – o narcisismo. Pensado inicialmente como parte da explicação para a etiologia da homossexualidade (atualmente, não mais uma patologia) e da psicose, o narcisismo foi empregado como um termo cuja acepção é cada vez mais abrangente, a ponto de, a partir de 1914, designar “o complemento libidinal do egoísmo da pulsão de autopreservação, que, em certa medida, pode justificavelmente ser atribuído a toda criatura viva” (FREUD, 1974 [1914], p.90).

Ora, a ascensão desse conceito, de uma perspectiva epistemológica, não foi gratuita, pois se observa – como o faz Laplanche (1992, 1997) – na confluência de dois vetores: a fundamentação da teoria do inconsciente sobre bases argumentativas cada vez mais biológicas; e a modificação nos pontos de vista tópico, dinâmico e econômico sobre o psiquismo, em direção a uma nova polarização pulsional (com o surgimento das pulsões de morte) e à segunda teoria das instâncias psíquicas, para o que a consolidação do narcisismo teve valor de engrenagem que manteve o sistema teórico freudiano em funcionamento – a despeito dos problemas dele decorrentes.

Assim, o narcisismo foi inicialmente pensado por Freud, numa “encruzilhada de diversas linhas de pensamento e de associação”, com “fios há muito separados e relativamente independentes: o da ‘tópica’ e o da ‘teoria das pulsões’. Daí essa situação de ‘ponto nodal’ [...]” –pensa Laplanche (1985, p.72) – cujas tendências epistemológicas distintas são levadas a direções opostas.

De um lado, a relação entre narcisismo e identificação (FREUD, 1974 [1914], 1974 [1917]) registra, para explicar as origens e a natureza do psiquismo, a influência de argumentos fundados na primazia da alteridade (pelo recurso à intersubjetividade e à estrangeiridade interna do inconsciente). Em termos laplancheanos, é um traço da lógica “copernicana” (LAPLANCHE, 2008a) que se faz sentir na obra de Freud, originalmente associado às explicações de fenômenos considerados psicopatológicos. Por outro lado, porém, o mesmo conceito de narcisismo tem uma acepção muito mais autocentrada, na vertente da tendência própria à lógica “ptolomaica” (LAPLANCHE, 2008a), que prioriza uma versão solipsista e biologizante das origens do psiquismo.

Nesse sentido, a emergência do conceito de narcisismo atesta a convergência do que antes era distinto: se antes a libido era pensada do lado do inconsciente e dirigida aos objetos pelo ego, gradualmente será associada à autoconsevação e ao ego (FREUD, 1911, 1915, 1920).

Os adjetivos “primário” e “secundário”, aplicados ao narcisismo, serão prova das dificuldades enfrentadas por Freud para ajustar sua teoria das pulsões e sua tópica à ascensão duma hipótese genética. Por exemplo, o que viria primeiro, o ego – decantado de identificações com imagos dos primeiros objetos amorosos (as figuras parentais) – ou as excitações corporais prazerosas, de caráter autoerótico, anteriores ao próprio ego? O problema de atribuir a primazia a um ego-representação ou a um ego coextensivo ao corpo é somente em parte resolvido pela divisão entre dois tempos (primário e secundário) e pela associação entre ambos através de uma sequência genética – o primeiro tempo, biológico, reservado ao autoerotismo (narcisismo anobjetal), ultrapassado (mas não eliminado) pelo segundo tempo, psicológico, do narcisismo especular (de um ego em relação a objetos com que se identifica).

Aqui, portanto, o autoerotismo confunde-se com o narcisismo e com o início da própria vida psíquica. O narcisismo primário, que antes coincidia e era condição do aparecimento do ego-instância, agora coincide com o início da vida do indivíduo. Seu modelo é o sono ou, mais radicalmente, a vida intrauterina. [...] É o modelo da mônada primitiva (MAIA, 1991, p.32).

Ao examinar o problema freudiano, Laplanche adota uma posição clara: “o autoerotismo não é, portanto, absolutamente primeiro, que precede outra coisa no tempo, embora seja o primeiro estágio independente da sexualidade; não é o começo da relação com o mundo, mas marca o que chamamos o tempo ‘auto’ [...]” (LAPLANCHE, 1992, p.75). Dessa perspectiva, todo narcisismo, portanto, é secundário, por não existir desde o princípio (do ponto de vista cronológico e psicológico) e, na mesma medida, primário (do ponto de vista psicanalítico), por tornar patente o primeiro tempo de uma sexualidade cuja fonte é o inconsciente e cujo alvo é, ao lado dos objetos, também o ego. Portanto, “autoerotismo e narcisismo não definem modos fundamentais de relação com o mundo em geral, mas modos de funcionamento sexual e de prazer” (LAPLANCHE, 1992, p.77).

Na esteira do pensamento laplancheano e ao pensar a teoria freudiana sobre o narcisismo no contexto da década aqui considerada (sobretudo em comparação com os textos freudianos de 1911, 1915 e 1917, sem descuidar dos problemas apresentados no texto de 1920), Maia (1991, 1996, 1997) pensou a noção de desejo de autonomia, pela qual expõe a face radical do narcisismo, isto é, a busca de negar a dependência do sujeito em relação ao outro – este que intimamente passa a ser tratado como objeto controlável (no paradigma da brincadeira do fort-da, descrito por Freud em 1920), mas que também é ameaçador em seu estatuto de objeto interno inconsciente, a atacar o ego.

Ao explorar as polaridades ego-prazer e ego-realidade, apresentadas por Freud em 1911 e 1915, Maia (1991) constata nelas princípios de funcionamento psíquico (e não dois tempos da constituição do ego) relativos ao mesmo ego: um que consiste no amor aos objetos externos que garantem o prazer, enquanto o outro diz respeito ao domínio desses objetos, através da sua incorporação no próprio ego. “Delineia-se, pois, aqui, não apenas um princípio de prazer-desprazer, mas o que se poderia denominar um princípio de dependência-autonomia” (MAIA, 1991, p.34).

Nessa direção, o princípio de autonomia ressalta a feição narcísica do ego-realidade. Tem-se uma realidade específica – a do ego –, que não se confunde com a realidade externa: ao tempo em que a realidade externa remete sempre à interdependência humana (em última instância, própria ao campo da Psicologia e da Filosofia), a realidade que interessa ao ego (e de que trata a Psicanálise), contraposta ao prazer/desprazer, é a do próprio ego – logo, narcísica. “A oposição ego-prazer/ego-realidade trouxe-nos um narcisismo e uma anobjetalidade que se diriam essenciais, não fora suspeitarmos que se trata da negação da dependência ao outro” (MAIA, 1991, p.37). Não é da realidade externa que se trata, mas daquilo que o ego verifica de si mesmo como contraposto ao que vem do inconsciente.

Pode-se admitir que a teoria freudiana incorpora em sua metapsicologia um movimento que, na origem, é do próprio sujeito psíquico: negar a dependência – o que, na teoria, é simétrico a confundir realidade psíquica e realidade externa, empurrando a oposição que mantém a dinâmica dualista freudiana para uma contraposição entre indivíduo e realidade empírica (MAIA, 1996).

Desse modo, pela própria acepção do conceito de autoerotismo na obra de Freud e por seu lugar na sequência pretendida para situar o narcisismo numa perspectiva genética, Maia identifica uma negação do princípio de autonomia, oculto por trás de um modelo biologizante, adaptativo, relativo a uma realidade externa (que, pela negação, encobre a realidade interna):

O autoerotismo é um... complexo, solução de compromisso entre dois princípios interdependentes. Como Freud nega o princípio de autonomia, princípio de negação, tenderá cada vez mais a descrever uma criança solipsisticamente orientada. Tendo desistido de encontrar qualquer derivação razoável entre o real e a fantasia, Freud tende cada vez mais a fazê-la brotar de uma endogenia e, sobretudo, de uma filogenia, com a memória da espécie restabelecendo uma equação perdida. Freud esperava que a fantasia se derivasse da realidade assim como a representação se deriva da percepção. Mas a fantasia não se deriva da realidade, a fantasia é a negação da realidade da dependência (MAIA, 1991, p.42).

Se o princípio de autonomia descreve uma tendência para funcionar narcisicamente, mantendo (e ocultando, simultaneamente) o conflito no interior da sexualidade (erótico versus narcísico), o desejo que lhe corresponde faz atuar esse princípio no contexto das relações de objeto. Com isso, o desejo de autonomia é a hipérbole do narcisismo, que consuma o paradoxo de desejar não desejar o outro (nem dele precisar), não reconhecer a interdependência que caracteriza a condição humana, pela ótica da subjetividade. Por conta da ação psíquica orientada por esse não desejar, o outro e a dependência em relação a ele desaparecem das origens do conflito. Assim, esse desejo corresponde à fantasia de não precisar do outro, de estar imune as suas vicissitudes. Mais: de eliminar qualquer traço de desejo (MAIA, 1991, p.44-45).

Esse desejo concorre para interpretar, de modo muito eficaz, o frequente movimento ptolomaico do eu, pois, como em outros casos da metapsicologia, o desejo de autonomia não consiste apenas numa hipótese explicativa de um fenômeno clínico, mas, também, na descrição das linhas gerais de uma tendência psíquica de caráter universal – “que emerge em reação ao descentramento copernicano da sedução originária” (MAIA, 1997, p.50) – típica a qualquer humanização e que pode, também, derivar para quadros psicopatológicos:

Falo de desejo de autonomia, no sentido literal do termo: desejo de ser governado por suas próprias leis. Insubordinação à lei do desejo enigmático do outro. No limite extremo poder-se-á até imaginar uma criança que, cansada de se perguntar: “o que me quer este seio?”, cansada de não obter respostas, possa até desertar pela indiferença ao enigma da mensagem do outro. Afinal, um enigma só existe para quem o quer decifrar (MAIA, 1996, p.4).

Por esse ângulo, o desejo de autonomia não apenas pode explicar manifestações narcísicas da sexualidade (em que, por exemplo, o sexo pode ser utilizado como linguagem para negar a dependência afetiva em relação ao outro), mas – numa hipótese alternativa àquela da pulsão de morte – esse desejo também explica a destrutividade com que os objetos que remetem à alteridade são tratados (MAIA, 1991).

Logo, a indiferença ou o ódio destruidor ante o enigma são reconhecidos como expressões de oposição narcísica à sexualidade erótica. Não mais se deixar mover pelo que vem do outro equivale ao esforço (narcísico) de evitar qualquer brecha que permita a esse outro (interno e/ou externo) desorganizar a feição egoica. “O desejo de autonomia aparece como negação da dependência a este outro que, enquanto protetor é amado, enquanto se recusa é odiado, mas, sobretudo, enquanto emissor de uma mensagem enigmática é excitante e persecutório” (MAIA, 1996, p.4). O paroxismo dessa tendência leva ao paradoxal sofrimento do sujeito que se esforça por não sofrer em razão do outro.

O desejo de autonomia é um conceito que desenvolve a crítica laplancheana à noção de narcisismo primário, ao evidenciar que, na metapsicologia freudiana como no funcionamento psíquico, com a presunção de um autoerotismo primário se dá a negação da dependência em relação ao outro, gerando axiomas que são mais ideológicos que científicos (no caso da teoria) e (no caso da clínica) sintomas psíquicos fortemente atravessados pela compulsão à repetição, por comportamento autossuficiente e narcisístico.

Expande-se o conceito freudiano de narcisismo: enquanto este explica o amor (e os desejos) pela própria imagem, o desejo de autonomia implica na busca de nada desejar, dando ao princípio de Nirvana, por Freud definido no contexto da perspectiva econômica e associado à pulsão de morte, um claro significado dinâmico e, do ponto de vista psicanalítico, sexual – já que todo narcísico é libidinal.

Dessa forma, sempre emoldurado pela interpretação laplancheana da obra de Freud, também permite articular narcisismo e agressividade de modo mais epistemologicamente parcimonioso do que pelo recurso à pulsão de morte. Esta articulação, inclusive, também contribui para a teoria laplancheana, já que emprega sua força explicativa a fenômenos associados à linguagem da violência, tanto nas relações sociais quanto em figuras psicopatológicas, como o sadismo ou o masoquismo.

O exame de dois extratos de um caso clínico (uma cena erótica e outra cena onírica) de um paciente neurótico cujo psiquismo era marcado por uma configuração masoquista que pesava contra suas relações amorosas e profissionais, a seguir, serve de ilustração para a capacidade explicativa do desejo de autonomia.

 

Expressões do desejo de autonomia: sintoma e sonho de um paciente masoquista

Se o narcisismo está na confluência das polaridades e dualismos econômicos, dinâmicos e mesmo tópicos que constroem o psiquismo, muitas podem ser suas expressões, cada uma conforme a combinação única de identificações que vêm a constituir o ego. As transformações do narcisismo em desejo de autonomia também ganham feições próprias a cada patologia e a suas fantasias.

No caso do masoquismo, o próprio sofrimento aparece como uma resposta autoagressiva para mensagens enigmáticas parentais cuja tradução é marcada por um esforço narcísico de preservação em relação ao que houver de restos recalcados da sedução originária da criança pelo adulto. Desse processo, a sequência já apresentada por Freud (1974 [1919]) é um exemplo primoroso: meu pai bate na criança que eu odeio (porque me ama) ? meu pai bate em mim (porque me ama) ? bate-se numa criança. Nessa fantasia, o desejo de autonomia aparece no terceiro tempo: “uma criança é espancada” é uma formulação tão neutra que, manifestamente, nada expressa de desejo, é puramente descritiva – nela, graças a um verbo na voz passiva sintética (“espanca-se”) ou analítica (“é espancada”), apenas o objeto da ação, e não seu autor, é identificável. Nenhum rastro do desejo, portanto, a não ser disfarçado pelo espancar.

Reconhece-se, então, que o desejo de autonomia realiza-se, nas configurações masoquistas mais complexas e acabadas, em um prazer decorrente do poder suportar a dor, do ser forte para aguentá-la até o limite da vida, em rituais (eróticos, fantasmáticos ou relacionais) tão fixos e autossuficientes que, ao lado da gratificação erótica, são mais narcisicamente defensivos do que aberturas para o outro na relação. Se algo diferente ocorre na rotina (erótica, fantasmática ou relacional), reaparece a agressividade, refletida sobre si mesmo por não ter impedido o risco de voltar a desejar.

Quer o pai bata na criança que odeio, quer em mim, o ego está no centro da solução porque a posição passiva, tanto na fantasia erótica quanto na cena agressiva, já indica uma forma particular de reagir, através da tolerância à (e da busca pela) dor, à inexorável passividade egoica, em relação ao inconsciente. Suportar a dor (distante, impessoal) torna-se expressão de não desejar, de anular a força do outro, de eliminar o risco de vir a precisar (ou reconhecer que precisa) de quem bate. A violência é desejada por afirmar uma autonomia imaginária que afasta do plano consciente a dependência em relação ao objeto ou ao perpetrador da agressão.

Um jovem, a quem se emprestará o nome de Gregório, de origem financeira e socialmente difícil, na infância apanhara com frequência da mãe, insatisfeita com o próprio casamento. Em sua psicanálise, descreveu surras em que ela parecia gozar com o cansaço decorrente do esforço físico de manter preso por uma mão o filho que, sovado, corria à sua volta para escapar das pancadas. Ao final, os espancamentos eram seguidos de cuidados e palavras ternas. Seu pai, indiferente a todos da família numerosa, desejado pela esposa a ele submissa, vivia em bares e jogatinas: não batia, mas não parecia importar-se. Adulto, Gregório não conseguia acreditar em relacionamentos nos quais, ao contrário da fórmula sádica materna ou do narcisismo paterno, seu parceiro demonstrasse ternura e interesse sem violência. Sua vida profissional também estava ameaçada por inibições e desvalorização do trabalho, sempre tratado como um fardo obrigatório, fortemente marcado pela relação com a mãe.

Nos primeiros três anos de sua análise (finda há mais de uma década), Gregório foi refratário ao setting e às intervenções de seu psicanalista. O que o mantinha em psicanálise, inicialmente, eram seus sintomas, intensas dores pelo corpo diagnosticadas como fibromialgia, em razão das quais a análise foi recomendada por seu médico. “Parecia que levava uma surra todo dia”, queixara-se na primeira entrevista. Nesse período inicial, parecia testar os limites do enquadre, como se quisesse ver repetidas, na tina analítica, as cenas sadomasoquistas implantadas por sua mãe e, em parte, seu pai.

A forma mais evidente disso eram os sucessivos relatos de seu sintoma mais preocupante: a atuação de uma fantasia erótica de alto risco em que ele, quando muito angustiado, saía à noite para deixar-se penetrar por homens pobres e menos escolarizados, pertencentes à sua antiga classe social, num encontro sexual sem repetições em que, durante e após o sexo, era fisicamente maltratado e moralmente ofendido com palavrões homofóbicos, arriscando-se a apanhar e a ser roubado por seus parceiros, que não usavam preservativo. Porteiros e vigias, inclusive os do prédio em que atendia seu psicanalista, eram todos envolvidos, sem que Gregório se dispusesse a analisar o significado de tudo aquilo nesse período.

Algumas sessões após um evento que quase lhe custou a vida, foi-lhe interditada a atuação – ou parava de repetir aquele comportamento provocativo e começava a falar desses desejos em análise (ao invés de simplesmente relatar comportamentos, sem adentrar em seus eventuais significados), ou a análise seria interrompida. Graças à força da transferência, sustentado o lugar do enigma pelo analista, Gregório decidiu manter-se em análise, em que passou a investir consideravelmente mais. Um sonho veio algumas sessões após essa adesão ao processo analítico: “Voltava para casa, ia almoçar antes de trabalhar. Passando por um restaurante self-service, sem querer entrar, inicialmente, olhei, gostei e fiquei. Ao ser mal servido por uma moça que lhe lembrou uma garçonete protestante de uma lanchonete na universidade em que estudava, foi reclamar com o avô dela, que aparentou neutralidade, mas ficou do lado dela, afirmando não quererem mesmo muita clientela e não ser aquela uma hora (meio-dia) de pique. Repeti o prato.”

A garçonete parecia-lhe atraente, rígida como um homem; o avô, também severo, parecia um dirigente do banco em que trabalhava. O restaurante foi associado ao banco.

Evidentemente que aqui são apresentados fragmentos de uma análise mais complexa e minuciosa, para explicitar, na cena erótica (principal sintoma) e na cena onírica o desejo de autonomia do paciente. Primeiramente, deve-se lembrar que o arranjo erótico protegia o analisando de qualquer imprevisto que ameaçasse sua fantasia: antes submisso a um mundo em que somente através do revestimento erótico é que a dor lhe parecia suportável, na cena Gregório tudo dominava. Mesmo sofrendo, o controle dos homens por quem se deixava possuir – determinado pela superioridade financeira e social – dava, ao lado do anonimato, um enorme prazer ao jovem. Ele não estava mais sujeito à fúria materna ou à indiferença paterna – por sua fantasia, a escolha agora era dele, uma escolha que sugeria, em sua repetitividade e inviabilidade afetiva, o desejo de não se submeter a quem quer que pudesse evocar seus desejos infantis. O desejo era de não desejar – estando a cena erótica desprovida de profundidade outra senão a de ativar o gatilho do curto-circuito narcísico. “Quanto mais eu suportar as pancadas, menos dor sentirei – pois menos precisarei de quem me bate (ou de quem assiste minha surra)”, parecia ser a tradução da cena masoquista. Quem quer que fugisse a esse esquema era eliminado – os que queriam namorá-lo sem dor eram vistos como fracos ou enganosos, traiçoeiros como pai.

Maia (1997) não ignora que, num primeiro plano, a fantasia masoquista, por sempre incluir um outro que assuma as funções sádicas, parece atentar contra essa autonomia. Todavia, num segundo plano, percebe-se que a ritualização da cena masoquista (seja ela erótica, fantasmática ou moral) vem a serviço do disfarce e da neutralização do desejo. Pode-se até gozar, desde que não se deseje: “Desejo ou gozo? Esta é toda a questão: o curto-circuito do desejo operado pelo gozo apaga as marcas desta sutil dialética da emergência de um sujeito de desejo – e, portanto, de falta – e determina a compulsão de repetição” (MAIA, 1997, p.57).

Como o sintoma masoquista, o sonho de Gregório, com a bela metáfora do alimento, é paradigmático, condensando e deslocando seus principais conflitos, e permite entrever tanto a identificação ambígua com o feminino – que tende para o masculino (a moça tem atributo associado ao masculino, a rigidez) – quanto seu desejo de proteção por uma imago ao mesmo tempo paterna e masculina (o avô, homem mais velho), diante do mal-estar provocado pela figura feminina.

O self-service (um autosserviço, tradução que Gregório conhecia bem) que o paciente melhor conhecia era o de seu esquema erótico masoquista, de fundo narcísico. Ele, sem precisar das relações típicas a um restaurante à la carte (os garçons, por exemplo, com quem se mantém uma conversa, e a escolha por um prato do menu, que completa a sedução, já que o desejo por esse ou aquele prato se manifesta), podia alimentar-se quase sem recorrer ao outro e, claro, sem ter de pagar preços mais altos, inclusive os afetivos, para além dos sexuais.

Protegido em sua passividade, o sonho, nesse “sem querer entrar” inicial, seguido de “olhar, gostar e ficar”, resume tanto o compromisso com a interdição acordada com seu analista quanto à realização desse desejo fantasmático: ele não só gosta, fica e come, mas repete o prato!

A imago do analista parece, também, incluir-se na sequência masculina iniciada pelo avô: este aparenta ser neutro, mas toma partido (pela neta). Em contexto transferencial, o paciente poderia estar a dizer: “sim, o service não é tão self assim, afinal... Mas você me paga, por não me ter deixado à vontade, por ser um homem a quem eu não posso ter e que ainda me proíbe de brincar lá fora!...”. Repetia-se o prato, ele voltava a cada sessão, mas se sentia maltratado, pois sua fantasia estava ameaçada pela análise. As resistências, naturalmente, não sumiam no ar como por encanto, e o não poder servir-se sozinho, em paz, no self-service da fantasia até antes da interdição provocava também queixumes contra o analista e a análise.

Considerando as variações da resposta masoquista, já apontadas por Laplanche (2008b) – a submissão e a despersonalização do algoz –, pode-se formular, respectivamente, ao menos duas traduções masoquistas: “eu me submeto a meu senhor, que de mim cuida e sobre mim investe como sua coisa, batendo-me (sem precisar que eu o queira)”; e: “sou tão capaz de gozar com a dor que me infligem que quem me bate não tem a menor importância (e, portanto, não preciso querê-lo)”.

Nelas, o investimento libidinal narcísico recai sobre a capacidade do eu em suportar a irrupção (pela submissão ou dor) do outro em si para, exatamente, não precisar desejar o outro, não se excitar pelo que comporta sua alteridade: aliás, a alteridade é esvaziada ou tornada inócua – é, por assim dizer, “decifrada” através da submissão/dor. Com isso, a fraqueza e a vulnerabilidade são transformadas, paradoxalmente, em força e inexpugnabilidade do ponto de vista egoico, poupando-se o eu dos movimentos que o fazem desejar, enquanto durar a fantasia masoquista.

Gradualmente refinado, esse mecanismo termina por dar ao masoquista um grau considerável de autonomia, pois, como já percebera Freud e ressaltou Laplanche, a partir de um certo estágio, a tensão entre o outro e o sujeito é internalizada, restando o estranho e o eu num conflito permanente que, necessariamente, supõe o complemento sádico para que o circuito sadomasoquista se feche.

É quando, nesse circuito, o masoquista carrega consigo o sádico, que consegue neutralizá-lo: trata-se, aqui, novamente, de um exercício do que Laplanche chama de “tempo auto”, para cuja compreensão a noção de desejo de autonomia, formulada por Maia (1991; 1996; 1997), traz uma contribuição decisiva, no campo da clínica.

Note-se que, nesse contexto, o desejo de autonomia permite entender por que (e como) o componente narcísico entra em jogo para manter o conflito, explicando-se como a sexualidade pode voltar-se contra si mesma, já que manifesta em diferentes avatares: aquele, já realçado pela Teoria da Sedução Generalizada (TSG), da estrangeiridade própria ao inconsciente, e o narcisista, em que, a serviço do eu, ela se presta a movê-lo em direção ao objetivo... de não desejar. No mesmo universo, o da sexualidade, duas de suas formações, decorrentes da plasticidade da pulsão sexual.

A mortífera autonomia da sexualidade narcísica: considerações finais
Com o desejo de autonomia, completa-se e se detalha o modelo que permite entender tanto o prazer quanto o desprazer a partir de um único vetor pulsional, o da sexualidade, tida, a partir da TSG, como a única pulsão possível.
Neste paradigma, a pulsão de morte é “excesso de bagagem”, só compreensível num outro projeto de viagem, que já se demonstrou, para os fins pretendidos segundo os critérios epistemológicos consagrados para um roteiro de viagem científica, tortuoso, arriscado e desbaratador, por levar a becos sem saída...

O que está para além do princípio de prazer não é outra senão a própria sexualidade desligada de objetos externos e totais, que investe contra o eu – cuja relativa autonomia permite que ele se volte contra quem ele percebe como ameaça à autoimagem, construída, paradoxal e dialeticamente, à custa do que o constitui! Prazer sexual, expresso no desejo, e prazer do eu, expresso no não desejar, confrontam-se.

Assim também fica claro por que a angústia e o mal-estar não são inerentes a nenhuma pulsão, mas a seus efeitos sobre o eu, que, compulsivamente (porque narcisicamente), tenta repetir esforços para reparar-se numa dinâmica que, como o mito grego de Sísifo, reabilitado pelos filósofos contemporâneos, não tem fim, precisamente por dar conta de um conflito essencial desenvolvido a partir da Situação Antropológica Fundamental, modelo de compreensão do que universalmente constitui a sexualidade infantil, perversa, polimorfa, recalcada, apanágio dos humanos.

Essa sexualidade, funcionando ora sob o registro da alteridade, ora o do autocentramento entra, assim, em conflito consigo mesma. Por ser pulsão, como indicara Freud (1915/1974), o objeto em que investe é menos relevante que o próprio investimento e, com isso, a descrição do conflito pela tensão entre Eros e Tânatos não importa: se admitida, seria só fenomênica, não revelando a natureza última desse jogo.

Dirigir-se-ia a teoria, com isso, a um monismo? Absolutamente não! Adere-se aqui ao instrumental que Freud apresentou em sua primeira teoria das pulsões, no que a TSG conseguiu desenvolvê-lo com originalidade. Nele, o dualismo permanece e é essencial, a pulsão sexual continua a ameaçar o eu, que, se pode, defende-se, valendo-se para tanto, inclusive, do arsenal de sexualidade narcísica de que dispõe. O conflito, então, permanece estruturalmente, sendo explicado no plano tópico e dinâmico a partir de uma clara posição sobre a natureza do plano econômico.

Responder de forma masoquista é, ainda assim, reagir à dependência que o sofrimento e a humilhação, em princípio, podem dolorosamente lembrar. Gozar com o sofrimento não só pode comportar uma resposta em que se verifique a influência da mensagem de internalização do outro que bate, mas também a luta para negar essa ascendência do outro sobre a vida psicossexual, particularmente no que ela comporta de constatação da própria interdependência em relação a esse intruso que não só humilha e bate, mas debocha da fragilidade do eu.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Avenida Epitácio Pessoa, 753/809 – Bairro dos Estados
58030-904 – João Pessoa/PB
E-mail: frazec@uol.com.br

RECEBIDO EM: 14/03/2012
APROVADO EM: 04/04/2012

 

 

Sobre o Autor

Fernando Cézar Bezerra de Andrade
Doutor em Educação (UFPB). Psicanalista da Sociedade Psicanalítica da Paraíba. Professor do Departamento de Fundamentação da Educação/Centro de Educação/Universidade Federal da Paraíba.