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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.48 no.88 São Paulo dez. 2015

 

RESENHAS

 

Interpretações, crítica literária e psicanálise

 

 

Noemi Moritz Kon

Psicanalista, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Mestre e Doutora pelo Departamento de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP e autora de Freud e seu duplo. Reflexões entre psicanálise e arte. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1996 e A viagem: da literatura à psicanálise: São Paulo: Companhia das Letras, 2006 e organizadora de 125 contos de Guy de Maupassant. São Paulo: Companhia das Letras, 2009

 

 

Autores: Cleusa Rios P. Passos e Yudith Rosembaum (Orgs.)
Editora: Ateliê Editorial, Cotia, 2014
Resenhado por: Noemi Moritz Kon, São Paulo

 

Vasos comunicantes: literatura e psicanálise

Eu creio que, de futuro, será possível reduzir esses dois estados aparentemente tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, a uma espécie de realidade absoluta, de sobre-realidade.
(Breton, 1924, p. 28)

Interpretações, crítica literária e psicanálise é o mais novo fruto da bela parceria entre Cleusa Rios P. Passos e Yudith Rosembaum. Os três Colóquios de Crítica Literária promovidos por elas na fflch-usp e a organização das duas coletâneas (Escritas do desejo, crítica literária e psicanálise, a primeira coletânea foi publicada em 2011) dão mostras da potência da dupla e da contribuição significativa que têm oferecido para a constituição de um campo fecundo de diálogo entre a literatura - mais especificamente da crítica literária - e a psicanálise entre nós.

Entre as várias estratégias possíveis para o estudo da interface entre literatura e psicanálise, as organizadoras, já na apresentação do mais recente livro, estabelecem a sua: permitir que o "profícuo arsenal psicanalítico ilumine sentidos obscuros, problematize procedimentos estilísticos, sublinhe e reveja processos implicados na fruição da obra" (p. 10). Aqui a psicanálise é convocada para, desde seu ponto de vista, contribuir para a compreensão do enigma da criação literária e artística, do humano e das obras de arte por ele realizadas.

Ao todo, doze prestigiosos críticos literários e/ou psicanalistas1 foram convidados para, com seus textos de alta abrangência e profundidade - e que mereceriam, certamente, cada qual uma resenha particular -, compor Interpretações. Não seria de se esperar, portanto, que uma univocidade perspectiva se sobrepusesse à singularidade das falas: são muitas as psicanálises, como são muitas as vertentes críticas, assim como são muitos os temas e muitas as inter-relações que cada um dos autores assume.

O efeito imediato da leitura desse exercício de múltiplas vozes é uma espécie de rumor difuso, resultante da diversidade e da força dos diferentes timbres que ressoam no livro - nem sempre harmônicos, é verdade, mas que parecem clamar em coro, todos e cada qual a seu modo - pela potência criadora da palavra. Não de qualquer palavra, mas sim da palavra poética, "[d]essa trapaça salutar, [d]essa esquiva, [d]esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem", palavra a que Roland Barthes (1977) chama, justamente, de "literatura".É essa força de literatura que transpassa a grande maioria dos textos e que viabiliza e ao mesmo tempo instiga o movimento de busca de uma outra cena, a cena inconsciente. A ousadia, a que nos instigam os autores, seria, então, a de, assumindo essa força, ir além do limite estabelecido por Freud e romper o lacre do umbigo do sonho, mergulhar no desconhecido, alcançar o solo primeiro do humano, o originário ainda sem palavras, o micélio de onde nasce o cogumelo freudiano,2 para, então, com sorte, estabelecer um caminho de volta, construir uma ponte, a obra, entre vigília e sonho.

Mas é preciso coragem para quem se atreve a participar dessa aventura instituinte, pois, como escreve Maurice Merleau-Ponty,

o que há de risco na comunicação literária, e de ambíguo, irredutível à tese em todas as grandes obras de arte, não é um delíquio provisório do qual se pudesse esperar eximi-la, mas o esforço a que se tem de consentir para atingir a literatura, ou seja, a linguagem a explorar, que nos conduz a perspectivas inéditas em vez de nos confirmar as nossas. (1980a, p. 170)

Convidam o leitor a deixar-se levar por essa "linguagem a explorar", linguagem que nos impele a olhar pelo buraco da fechadura, a penetrar a boca aberta e nos forçar pela passagem da garganta,3 a nos enfiar pela fenda aberta por essa língua que escapa ao poder, rasga a representação e roça o indizível da experiência; esse parece ser o anseio que mobiliza os autores, tanto psicanalistas como críticos, em suas criações e que constitui, desse modo, o ponto nodal de Interpretações.

E assim, de algum modo imprevisível, os vasos se comunicam, como na feliz expressão de André Breton (1955/1932)4 retomada por Alfredo Bosi (p. 164), e o agir e o sonhar se reencontram; e é a palavra poética o agente dessa comunicação entre psicanálise e literatura, entre vigília e sonho, entre razão e um modo original de estar no mundo; é ela que viabiliza a conexão possível com o solo primeiro, com aquilo que antecede a palavra, que pede por ela para sua explicitação e que ganha sua forma na expressão do sublime, mas também na do terrífico.

A palavra poética, veículo da viagem humana, ecoa nas diversas vozes de Interpretações e recebe dos viajantes muitas e fortes imagens: ela é simplesmente linguagem, espaço poético, idioma do Outro, nova língua, escrita estrangeira, mentira, delírio, ficção, ética, de leitura e de escuta; é também não pensamento, ignorância, confiança no só "depois", espera, ato de resistir, vislumbre epifânico, silêncio; é ainda voz, espectral aparição, imaginal, força de fora, estrangeira ao lar, inquietante familiaridade; é sonho, espelho sofiânico, terceira margem, olho da sabedoria, mão, modelo, fonte tectônica, águas do símbolo, substância viva, poder arcaico e mágico, pulsão do fazer; a palavra poética toma, ainda, a forma da noite dos campos, do rio corrente, do atalho para a floresta, da serpente, do estrangeiro, da eremita, de seres pré-linguísticos; ela é corpo, alma-corpo, "elaboração inerente à própria narratividade" (Wisnik, p. 164).

O destino dessa viagem, essa outra cena, recebe também figurações singulares: ele é retorno àquilo que já foi íntimo e conhecido, é a mãe, a figura primordial; é, ao mesmo tempo, o avesso de si, o inconsciente, o desconhecido, o real, a coisa, o recalcado, o virtual, a quase-imagem, a dimensão oculta, a presença da presença, a testemunha da testemunha, a história; é também mundo, natureza longínqua, floresta arcaica, estrada, rochedo, falésia, jardim no qual eu fico sozinho e muito bem, tesouro inalcançável; é, ainda, o indizível, o irrepresentável, a dimensão invisível, o fundo nadificante, o imaginário sem cisão, o real indivisível e divinizado, o absoluto (livre de toda determinação), o não cindido, o um: nascimento abissal, o nada.

O destino a que se busca é também o outro, ou seja, nós todos - leitores, artistas, psicanalistas, analisantes -, elos vivos do testemunho, que nos deixamos tocar sensivelmente pela pulsão invocante e, então, criamos "não mais [por] deduções inteligentes, mas [por] um trabalho da mão que se deixa dirigir pela pedra, não mais [por um] passado que planeja, mas [por] um futuro que se desenha, não mais [por uma] estratégia, mas [pela] confiança no 'só depois'" (Willemart, pp. 198-199).

É tudo isso e muito mais que Interpretações nos oferece, em várias versões e caminhos.

E é para lá que nós, homens, nos dirigimos. Na busca de geração de sentidos, na "alegria da escrita" (Szymborska apud Rosembaum, pp. 242-243) de si e na invenção de nossas obras (esse "discurso que exige e que engendra uma ligação contínua entre a voz que existe e a voz que vem e deve vir" (Valéry apud Zular, p. 214), como testemunhos solidários que somos de nosso desamparo original.

Avançamos munidos de "uma potência que acede à realidade através de uma impotência de dizer, e uma impossibilidade que acede à existência através de uma possibilidade de falar" (Agamben apud Koltai, p. 63).

 

Referências

Barthes, R. (1977). Aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França (pp. 16-19). São Paulo: Cultrix.         [ Links ]

Breton, A. (1955). Les vases communicantes. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1932)        [ Links ]

Breton, A. (2001). Manifestos do surrealismo. Rio de Janeiro: Nau Editora. (Trabalho original publicado em 1932)        [ Links ]

Freud, S. (2006). A interpretação dos sonhos. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., vols. 4-5, pp. 39-649). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1980a). A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1952)        [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1980b). Sygnes. Paris: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1960)        [ Links ]

Zizek, S. (2001, 08 abr.). A fuga para o real. Folha de São Paulo. Recuperado em 13 de outubro de 2014, de http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0804200105.htm.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 15/10/2014
Aceito em: 21/10/2014

 

 

Noemi Moritz Kon noemi.m.kon@gmail.com
1 De acordo com a sequência dos textos no livro: Alfredo Bosi, Adélia Bezerra de Meneses, Camille Dumoulié, Caterina Koltai, João Frayze-Pereira, Joel Birman, Cleusa Rios P. Passos, José Miguel Wisnik, Marcia Marques Morais, Philippe Willemart, Roberto Zular e Yudith Rosembaum.
2 Refiro-me aqui à famosa passagem de Sigmund Freud em "A interpretação dos sonhos", cap. vii, item A, "O esquecimento dos sonhos": "Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intricada rede de nosso mundo do pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio". (p. 229).
3 Refiro-me ao sonho da "Injeção de Irma" (Freud, 1900/2006), sonho princeps da psicanálise, que Freud teve na noite de 23-24 de julho de 1895, no qual Freud examina a boca aberta da paciente, "dando", conforme as palavras de Slavoj Zizek, "com a visão horrível da carne viva e rubra, nesse ponto de horror insuportável" (2001).
4 No parágrafo final de Les vases communicantes, André Breton escreve: "le poète à venir surmon tera l'idée déprimante du divorce irréparable de l'action et du rêve" (1955/1932, p. 170). ("O poeta que virá ultrapassará a deprimente ideia do divórcio irreparável da ação e do sonho").

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