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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013

 

EM PAUTA - FÉ E RAZÃO

 

Fé e razão

 

Faith and reazon

 

 

Frei Carlos Josaphat*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O confronto da Fé e da Razão passou por etapas de crise e conflito em razão de posições parciais ou de definições inexatas dos temas, o que dividia os antagonistas. A análise histórica das fontes religiosas e das doutrinas filosóficas leva à atitude serena e objetiva de compreensão das diferenças. Entre as correntes culturais, cujo progresso concorreu para o melhor conhecimento da fé e da razão, destacam-se a filosofia existencial, a fenomenologia, e os nomes de Martin Heidegger e Emmanuel Lévinas. A conjunção desses fatores favoráveis faz com que hoje predominem na cultura a busca objetiva da verdade e mais estima da liberdade. Superam-se as antigas crises e as antinomias e afirma-se a visão compreensiva das diferenças entre Fé e Razão, Religião e Secularidade.

Palavras-chave: Fé, Razão, Religião, Teologia, Filosofia, Cultura, Tradição, Progresso, Equívoco, Compreensão.


ABSTRACT

The clash of Faith and Reason went through stages of crisis and conflict due to partial positioning or inaccurate definitions of issues, which divided the antagonists. A historical analysis of the religious sources and philosophical doctrines leads to serene attitudes and to an objective understanding of the differences. Among the cultural currents which progress contributed to a better understanding of Faith and Reason, it can be highlighted the existential philosophy, phenomenology, as well as the names of Martin Heidegger and Emmanuel Lévinas. The combination of these favorable factors helps nowadays to predominate in culture the pursuit of objective truth and the cherish freedom. Crises and the old antinomies are overcomed as are affirmed the comprehensive view of the differences between Faith and Reason, Religion and Secularism.

Keywords: Faith, Reason, Religion, Theology, Philosophy, Culture, Tradition, Progress, Misconception, Understanding.


 

 

Fé e razão

 

Para além de crises e antinomias, emerge a visão compreensiva das diferenças

Esse desafio histórico, evocado pelo binômio Fé e Razão, terá chance de inspirar uma reflexão promissora, histórica e analítica, na medida e só na medida em que despertar o empenho de bem afinar a linguagem, de delimitar os campos das experiências intelectuais e existenciais em jogo nesse confronto extremamente complexo e sujeito a uma infinidade de equívocos.

 

Explosão da crise na aurora da modernidade

No espírito e no quadro desta reflexão que convida a dialogar e a superar as controvérsias estéreis discernindo as contribuições dos diferentes parceiros das disputas, convém partir da emergência histórica desse debate na aurora da modernidade. Ele surge então em toda a agudeza de uma crise, portanto dotado de maior visibilidade. Mas a análise ganha em abrir-se e manter-se atenta a dados mais amplos, anteriores e posteriores a esse momento colorido e caloroso da história ocidental.

Uma das primeiras reivindicações e fortes aspirações da Renascença se cristalizava na exaltação e exigência da emancipação da razão. Que ela viesse reconquistar os espaços do saber e da normatividade da vida ocupados pela ortodoxia religiosa, imposta por pressão, se não por opressão autoritária. Em contraste com a Fé, entendida na estreiteza desse contexto inquisitorial, surgia a Razão também com maiúscula e designando o livre e autêntico pensar.

Toma corpo e seduz as inteligências realizando-se na ciência que investiga e comprova, na filosofia que demonstra e, a golpes de evidência, quer alargar os campos da sabedoria teórica e prática. De início a reivindicação relega as soluções teológicas, então ressentidas como totalmente comprometidas por formas superadas de pensar e falar, pois vinham transmitidas por um sistema escolástico, que ocultava posições serenas e bem fundadas de mestres como Tomás de Aquino.

No entanto em si, à distância, a marcha histórica da fé e da razão se mostra progressiva em capacidade de diálogo e de entendimento. Hoje, os estudos das doutrinas e das fontes, a reflexão compreensiva da fenomenologia, dos paradigmas e modelos do saber, das teorias da comunicação, vão tornando viável uma visão histórica imparcial, abrindo a porta a uma análise rigorosa de todos esses dados.

É o projeto que se há de realizar, ao menos de forma sucinta, articulando assim uma reflexão abrangente e, enquanto possível crítica, discutindo as posições modernas e as tradições por elas relegadas. Prioriza-se a construção filosófica, sobretudo fenomenológica, e se apreciam a elaboração teológica clássica e sua atualização. Esta é favorecida pela busca de encontros, sobretudo por eventos maiores como o Concílio Vaticano II, o movimento ecumênico das igrejas cristãs e o Parlamento das religiões mundiais. E, de maneira mais ampla, a aspiração por uma ética mundial, pressentida como uma necessidade pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU em 1948 e continuada discretamente pela UNESCO.

Convém partir das origens e apreciar os bons encontros ou os desencontros menos felizes da fé e da razão.

 

O ideal bíblico da harmonia nas alturas

O imperativo bíblico primordial: "convertei-vos", "tende fé no Evangelho", nessa mensagem salvadora, juntava em um paradoxo existencial a necessidade e a liberdade da fé. Assim, levantava-se o ideal da transcendência com a sensação de desamparo da condição humana. O destino do ser humano é colocado em suas mãos, depende do rumo que imprimirá à sua existência. Mas essa livre escolha que confere o valor e a autenticidade à pessoa e ao seu agir tem algo de uma luz dentro de uma noite inexorável. A inteligência é intimada a reconhecer a grandeza do Princípio e do Fim que a toca em seu íntimo, mas é anunciada como aquela que supera totalmente sua capacidade de compreensão.

Aceitando o desafio do que angustia como o supremo desamparo, um existencialismo desabusado lançará o clamor: somos condenados à liberdade, a rasgar nossos caminhos, na total e exclusiva responsabilidade de sentir-nos autênticos, sem contar com normas, leis, nem quaisquer códigos de mandamentos, de verdades ou direitos. Na bela literatura causticante de Jean-Paul Sartre era a última rejeição, indignada e ressentida, que a razão moderna lançava contra a religião que pregava a obediência (tida por degradante) da fé.

Que a existência emerge como uma noite tecida de penumbra e do imperativo de ter de andar encontrando ou inventando caminho no escuro é a condição inexorável para a razão, ao despertar contando só com a minguada candeia que é pensar. Talvez fosse acertado explicitar a sentença primeira do despertador da modernidade: "penso, logo existo", traduzindo: "vejo-me qual inegável lampejo, um pingo de evidência luzindo dentro da noite".

O confronto dos extremos pode ser o mais significativo e oportuno para clarear os conflitos. Em antagonismo radical, mas, tranquilo com a revolta existencial contra a condição da noite guiada pela fé, surge o extremo da exultação proclamando e cantando a "noite escura e ditosa". Nela, a Fé resplandece para o místico João da Cruz como a verdade humana, desprovida de evidência, mas enviando a inteligência a se reconhecer e aceitar com luz limitada, testemunhando por ela mesma ser razoável que venha da plena Luz e para ela possa se encaminhar.

A poesia não argumenta. Mas oferece a rara sorte de uma intuição a saborear:

Ó noite que guiaste,
Ó noite mais amável que a alvorada!
Ó noite que juntaste
Amada com Amado,
A Amada no Amado transformada!
(São João da Cruz, Noite Escura)

Assim, no extremo oposto da rejeição da fé como absurda ou degradante, emerge uma tentativa de sabedoria, a coragem de ser limitado porque se pressente o Infinito como rosto amigo, e mesmo se afirma o Infinito testemunhado como Fonte da capacidade que o finito tem de marchar, evoluir e crescer. Ele tem ou mesmo é uma humilde transcendência virtual.

A modesta sabedoria de manter a simples lâmpada acesa dentro da noite se realiza como a experiência de um crer que não se contém no limite da razão, mas se elabora como inteligência teológica. É a fé tomando consciência de si e se confrontando com outras formas do saber.

E, finalmente, discreta, menos percebida, persiste escondida e fraterna a maior das audácias do espírito, a sabedoria mística que aposta a vida na transcendência do Infinito, amável precisamente porque se revela dentro da noite. É a experiência mais alta e fecunda do vazio de coisas e de si na descoberta do Outro. A mística das grandes religiões, especialmente do cristianismo, é enaltecida por pensadores de ponta, de que se indicarão exemplos no seguir desta reflexão.

Esses testemunhos e essas testemunhas das diferentes estâncias ou etapas da Sabedoria nos incitam hoje a estimar, a analisar e articular as duas formas de base do conhecer, a Fé e a Razão. É o que nos leva a fraternizar como os grandes mestres da cultura, tendo, quem sabe, a sorte grande de aproximar e reconciliar fachos dispersos no itinerário dessas prodigiosas figuras que merecem a atenção de uma modernidade por vezes gulosa de curiosidades mais rasteiras.

 

Fé e Razão, a questão teológica do cristianismo nascente

Concentrar a reflexão sobre o cristianismo não significa uma opção restritiva ou confessional. Quanto ao essencial, o processo que se verifica no cristianismo se realiza e é estudado de forma semelhante e simultânea, bem acessível, nas outras duas religiões monoteístas: o judaísmo e o islamismo.

Na verdade, o primeiro debate bem conduzido e bem formalizado sobre a dupla experiência humana e religiosa, a Fé e a Razão, aconteceu em duas etapas do confronto da religião bíblica com a filosofia e o conjunto da cultura grega. Primeiro o judaísmo da diáspora, depois as comunidades cristãs implantadas nos grandes centros culturais helênicos ou helenistas, redefiniram a fé de modo a poder confrontá-la com a sabedoria que os gregos tanto prezavam.

A fé bíblica está na base da vida dos grandes chefes e líderes como de toda a comunidade do povo. Este se diz de Deus, a Fé sendo a atitude que faz com que o povo seja justo e santo. Ela é uma forma de conhecimento que suscita uma forma de vida. O que domina é a força transformadora da livre e convicta adesão a Deus, ao "Deus que é" e à sua palavra eficaz, criadora das coisas e da bondade do coração e da vida social.

Ora, essa fé do povo bíblico se vê desafiada pela Razão, pela beleza e prestígio da inteligência, em suas diferentes formas teóricas e práticas, pela sabedoria filosófica, pelo esplendor estético, esportivo, teatral, que constitui a magia dominadora da civilização helênica e helenística. A Bíblia hebraica traduzida em grego comporta uma linguagem e mesmo certos acréscimos de máximas e narrações que acentuam sua dimensão de sabedoria, ostentando-a como o maior dos escritos da Sabedoria.

É dentro desse contexto espiritual e cultural que se compreende esta espécie de redefinição da fé, realizada na chamada Bíblia dos Setenta, que data de uns dois séculos antes de Cristo. Em uma bela passagem em que o povo bíblico oscila entre a vida e a morte, a Palavra profética se eleva proclamando que a força de subsistir está na livre convicção da fé. Mas, lá onde a Bíblia hebraica insistia: "Se não tiverdes fé, não subsistireis" (Is 7,9), a tradução grega, sem dúvida em atenção ao novo contexto cultural do judaísmo da diáspora, propõe: "Se não tiverdes fé, não tereis inteligência".

De maneira unânime, toda a tradição dos primeiros séculos, dos grandes mestres como Irineu, Ambrósio, Agostinho, Basílio, Crisóstomo, afirma o primado da fé, como fonte primeira da sabedoria. E a utiliza e valoriza precisamente o versículo de Isaías em sua versão grega, na Bíblia dos LXX, Isaías, 7, 9. Os Santos Padres da Igreja latina guardarão e explicarão esse primado da fé no registro da vida cristã, mostrando que algo de semelhante se passa no plano da experiência humana. O ser humano se realiza como um aprendiz em tudo e por tudo, formando-se na cultura humana, abrindo-se, se desabrochando sob o influxo da Palavra, em um processo de educação global e constante, em um aprender a viver e conviver para além das pulsões e impregnando-as de racionalidade.

Merece ser retido e analisado esse primeiro dado de uma tradição ampla e bem elaborada. A fé é reconhecida como uma experiência humana universal e complexa, a se realizar em modalidades e qualidades variáveis segundo uma apreciação racional. É preciso crer para viver. E é imprescindível medir e orientar o crer para bem viver e conviver. É a primeira evidência da sabedoria ética. Aprender sempre a discernir o que e quem merece fé. Grandes mestres cristãos, especialmente na metrópole cultural que foi a Alexandria dos primeiros séculos de nossa era, formados na cultura grega e imbuídos da Fé cristã, puseram-se a analisar e a ordenar o universo do conhecimento, articulando as formas progressivas da fé e da inteligência. Com os filósofos da época, admitiam uma etapa de pré-compreensão, de prolepse, uma marcha progressiva culminando na inteligência contemplativa, na sabedoria. Legitimavam então esta espécie de cosmo do saber, realizando-se na experiência comum, na prática da religião, e no estudo da filosofia e na reflexão à luz da fé.

Semelhante reflexão teológica contava com um dado importante da revelação bíblica, a compreensão da fé religiosa como certo conhecimento de Deus na penumbra, porque Deus sendo a Verdade total, dele se aproxima quem pratica os elementos de verdade que já conhece. O Evangelho de João (nos capítulos 6-8 especialmente) explica com a maior das insistências: quem "é da verdade", quem acolhe e vive a verdade em seu coração se dispõe a acolher Deus que se revela no esplendor e na suavidade da bondade e da santidade. No texto grego desse Evangelho, os teólogos alexandrinos podiam ler: os que abraçavam a fé eram "teodidatas", aprendizes, discípulos direta e imediatamente do próprio Deus (cf. Jo 6,45).

Antecipando o resultado de um rude caminhar, podemos dizer: a elucidação do binômio Fé e Razão chegará a se tornar viável hoje precisamente porque o universo mental de uma e de outra foi e vai sendo assumido na sua integralidade e esclarecido na hierarquia de seus elementos. O núcleo da história está nessa marcha um tanto escondida da cultura.

 

Paradigma integrador de Tomás de Aquino

Aprofundando e aprimorando o que se tornará uma doutrina clássica no mundo ocidental, Tomás retoma a tradição dos Santos Padres da Igreja e tenta homologar uma posição, à primeira vista, ingênua, mas que merece uma reflexão e uma elaboração quase sofisticada desde Aristóteles: o ser humano é jogado neste mundo como um aprendiz em tudo e por tudo. E a aprendizagem supõe e exige a fé como primeira atitude que abre todas as portas do saber, na medida em que a confiança em quem fala vai despertando o discernimento em quem escuta.

Essa compreensão da transcendência do ser humano, que implica a vocação à fé como condição do finito, realidade limitada, mas portadora de potencialidade infinita, correspondia em termos bíblicos à relação plenamente aceita da criatura ao Criador. Mas, trata-se da criatura criada criativa e mesmo criadora de si pela livre marcha em tendência ao Bem absoluto. Essa é a vocação ética do ser humano, definida no Prólogo da II Parte da Suma teológica de Santo Tomás.

No limiar e no decurso de toda essa obra, sempre prolongando e por vezes superando Aristóteles, o mestre medieval, em sintonia com uma lógica da igualdade, elabora uma lógica da transcendência. Esta deve fundar e permitir que se possa exprimir de maneira menos imperfeita certa ideia do Criador e das suas relações com as criaturas. Estudando a natureza do conhecimento, como forma primordial de comunhão dos seres humanos com a realidade e entre si, Tomás estabelece no universo diferenciado dos "graus do saber" a harmonia e a sinergia do sensível e do intelectual, das paixões, da inteligência e da liberdade. Com o maior empenho, tece a articulação da razão e da fé, na experiência humana e nas formas eminentes das religiões que conhecia: o judaísmo, o islamismo e, sobretudo, o cristianismo.

Distingue as modalidades inferiores do crer, nas relações comuns do dia a dia, e sua realização plena e superior do "crer em Deus", em que a totalidade do ser humano se eleva no conhecimento e na orientação a Deus, qual fonte de perfeição no campo da vitalidade religiosa e de toda a vida da pessoa e da comunidade dos que creem. Assim, a fé é junção de crença e confiança. Surge, primeiro, qual experiência comum e necessária em formas rudimentares de discernimento na vida humana. E toma um modelo eminente de uma orientação da inteligência e da vida optando pela transcendência de Deus, elevando o íntimo da sua criatura para o bem, para o amor. O ato de "crer", a qualidade e a "virtude da Fé" são objetos de um estudo rigoroso e preciso.

Tomás descreve e analisa o processo da história íntima do ser humano crescendo na inteligência, na percepção das coisas e na razão, que é o conhecimento se desdobrando em experiências de verificação, culminando todo esse processo na constatação dos limites do conhecimento a superar, dando confiança a quem sabe e ensina. O que há de se dominar é o amor à verdade. Conhecer e viver a verdade já sabida para avançar no que está por conhecer, tal é o estatuto ético e epistemológico das "Questões Disputadas", experiência acadêmica, universitária, que está na origem das Sumas teológicas e dos grandes escritos de mestre Tomás de Aquino: na Suma impropriamente chamada de Contra os Gentios, e que melhor se denominaria de diálogo com os que não creem, e a Suma de Teologia, que é sua obra-prima.

Assim se evidencia: Tomás de Aquino é um mestre pelo conteúdo de seu ensino e mais ainda por seu paradigma de verificar convidando à verificação. Após sua morte, foi prejudicado pela inversão dessa prioridade. Perdeu com a fixação dos discípulos no que ele disse, os quais deram menor atenção a seu método de abordar as interrogações de hoje no contexto de hoje. Convém aprender a caminhar com ele, como, aliás, com os outros mestres, tendo um medo razoável da esclerose da ortodoxia.

 

Entender-se e dialogar em uma civilização multicultural

A história da religião e da cultura do Ocidente, particularmente desde a Renascença, caracteriza-se por uma fragmentação opondo a cristandade como expressão tradicional e o advento da razão sob as formas da mentalidade comum, e do seu aprimoramento científico e filosófico. No entanto, essa série de conflitos opõe um aspecto particular da cristandade, o ortodoxismo que será contestado por um movimento de reivindicação de liberdade, de contestação do poder absoluto, sobretudo, traduzindo-se em dominação ou imposição religiosa.

Um ponto de referência esclarecedor do desafio enfrentado pela cristandade e das posições divergentes por ela assumidas vem a ser o IV Concílio de Latrão (em 1215). O papa Inocêncio III convoca essa assembleia levado pela convicção de que todo o mundo se converteu e constitui hoje a cristandade (termo que ele adotou e difundiu). Sem dúvida, fora da cristandade, há infiéis a converter. E, sobretudo, no seio da cristandade, persistem homens e mulheres que – segundo ele – se recusaram a crer e por sua infidelidade obstinada ameaçam a segurança e a paz da Igreja e da sociedade.

Bem aconselhado por figuras proféticas como Francisco de Assis, Domingos de Gusmão, o Papa toma a decisão de enfrentar o desafio pelo caminho certo da pregação, da formação dos fiéis e do diálogo com os infiéis. Infelizmente este chefe da cristandade e seus sucessores imediatos optaram por diversas formas de repressão, deram urgência à constituição da Inquisição (estruturada definitivamente em 1234).

A visão desse processo histórico de polêmicas e controvérsias se completa com a consideração de uma etapa de sabedoria bastante compreensiva, levando a acolher posições diferentes em relação às grandes questões humanas especialmente no que toca a fé e a razão. Assim, a evocação dessa dupla posição da cristandade, o incentivo da pregação, do estudo nas universidades nascentes em contraste com recurso à repressão, à violência, à tortura, à Inquisição, tem seu lugar oportuno porque marca bem o ponto de partida dos conflitos entre fé e razão que marcarão mais da metade do segundo milênio. Convém insistir no lado simpático, menos conhecido, o rumo seguido por aqueles que perceberam e trilharam os caminhos da tolerância e mesmo da fraternidade. Chega-se a reconhecer os aspectos positivos da pluralidade de atitudes, uma vez que a fé só tem sentido se é uma livre adesão e a nenhuma autoridade se atribui competência para apreciar a consciência de quem crê ou não crê.

Pode ser significativo aproximar Tomás de Aquino, frade dominicano, e Raimundo Lúlio (ou Ramón Llull), de espiritualidade franciscana, em suas atitudes convergentes sobre a pluralidade de atitudes intelectuais. Tomás se empenha em discutir com adversários judeus, árabes, manifestando a convicção: os que pensam diferentemente nos ajudam a ampliar nossa visão dos problemas. Lúlio vai mais longe e escreve um livro sob o título O gentio e os três sábios, mais ou menos na época em que Tomás compõe as suas Sumas da doutrina cristã, em torno de 1265. Pois bem, o teólogo católico Raimundo Lúlio mostra três representantes, respectivamente da religião judaica, cristã e islâmica, em um esforçado trabalho de expor e defender suas doutrinas. E Raimundo o faz com toda serenidade e objetividade. E conclui que o infiel não chega a se decidir admirando as três exposições, mas continuando a guardar e exercer sua plena liberdade.

O que é mais ilustrativo é que a atitude e a obra de Raimundo Lúlio são exemplos modelares de uma situação geral de convivência pacífica de judeus, cristãos e muçulmanos, especialmente na península Ibérica durante os séculos XIII e XIV. Aliás, até hoje há cidades, como Toledo, que se gloriam de ser triculturais, o que lhes serve de bom argumento turístico. Uma boa teologia e uma espiritualidade sadias concorriam para harmonizar no meio de toda a população o jogo tranquilo da Fé e da Razão na pluralidade religiosa que se implantara na cristandade medieval.

 

Fora as sombras lunares, afugentadas pela Cidade do Sol

Ao contrário, na segunda metade do século XIV, o surto da filosofia moderna coincidia com a perpetuação e a acentuação dos conflitos. Opondo-se às ondas crescentes do ortodoxismo intolerante e inquisitorial da aristocrática autoridade da cristandade, a modernidade optará pelas atitudes e pelos valores da autonomia, da estima e afirmação do individualismo, do livre pensamento e das formas independentes de viver, conviver e comunicar.

Uma das características da modernidade é a aspiração cada vez mais forte e progressiva por uma emancipação em todos os setores da vida pessoal e social, atingindo ao mesmo tempo todas as categorias sociais. Essas aspirações se afirmam com mais intensidade na classe média e entre os mais pobres, chegando a despertar certo rancor entre os excluídos da sociedade. É preciso abater o poder absoluto, civil e religioso, que estende a sua dominação nas famílias, no mundo econômico da propriedade e do trabalho. Sobretudo há uma aversão por uma ortodoxia religiosa imposta, de mãos dadas com uma ordem social fechada por um sistema jurídico coibitivo.

Assim, a ortodoxia e a ordem caracterizam a junção da Igreja e do Estado, como sistema típico da cristandade. Portanto, a Renascença traduz, antes de mais nada, um clamor que se espalha por toda parte, no começo sob formas disfarçadas, pois não ousava manifestar-se publicamente contra a ordem estabelecida correndo o risco de uma repressão, concretizando-se na perda da liberdade e quase sempre da própria vida.

No que toca a religião, a fé se manifesta como uma adesão às verdades ensinadas pela Igreja ou pelo menos como profissão exterior em acordo com este ensino. É muito expressiva a utilização da imaginação na literatura e nas artes, para tecer uma imagem ideal de uma sociedade livre, abrindo espaços para o pensamento, para a estética, e muito particularmente para a fé, permitindo que ela se afirme como convicção pessoal. E, se é partilhada em grupo, que seja em virtude de uma livre escolha e um consenso estabelecido como laço de consciências. E não com uma submissão imposta de fora e do alto.

Tal é o amplo domínio da utopia como gênero literário. Ela não visa primordialmente divertir descrevendo a beleza de um paraíso e de uma humanidade perfeita em suas relações de amor e de amizade. Quando ela pinta uma ilha da total igualdade, gozando da supressão de todas as exclusões e injustiças, a sua primeira intenção é denunciar outras tantas ilhas e outros tantos países onde dominam as desigualdades e as exclusões. Tal é o caso conhecido da Utopia de Thomas Morus. Mas o que nos interessa diretamente aqui é a utopia que aponta para os horizontes de uma religião da liberdade, da fraternidade, da solidariedade, em oposição à Igreja estabelecida, dominadora e ressentida como opressora.

Por vezes essa utopia de feitio religioso é o fruto de uma análise, de uma reflexão, de uma reconstrução das instituições e das formas de vida almejadas como a comunhão da humanidade com Deus. Essa comunhão se exprime em termos de um conhecimento e de uma intimidade com o próprio Deus, ele mesmo considerado, contemplado e proposto como o amor perfeito e universal.

Assim, teólogos arraigados na fé, na esperança e na caridade, mas insatisfeitos com as instituições estreitas e dominadoras da cristandade, consagram suas inteligências a tecer o que um deles, o dominicano Tommaso Campanella, chama A Cidade do Sol (em 1623). Essa cidade do astro que difunde a plenitude da luz e do calor contrasta com a cidade da lua, apreciada de forma negativa e restrita, como uma espécie de penumbra. Essa menor claridade resulta ainda da influência do Sol, mas é ofuscada ou ensombreada por agentes, fatores, instituições, formalidades e legislações, que impedem o influxo generoso e luminoso do astro rei.

Nesta alegoria utópica da Cidade do Sol, a fé e a razão encontram-se reunidas e contrapostas. A fé considerada em seus elementos de inferioridade, sendo vista e descrita como uma submissão da razão, que cede a uma imposição autoritária e se encontra em uma situação de escravidão intelectual e de demissão da dignidade humana.

Em contraste com essa situação de inferioridade não se exalta diretamente a razão, como oposição à fé, mas como destinada a se elevar e a elevar a humanidade a um plano de pleno conhecimento de Deus que se revela como a verdade suprema e é acolhido como a plena luz para toda a humanidade. Resplandece no ideal da Cidade do Sol aquela mesma aspiração de uma inteligência e de uma condição humana, tais como são enaltecidas e apregoadas pela filosofia moderna nascente.

 

Descartes, precursor da "Deusa Razão", pioneiro da fenomenologia do saber

A expressão dessa filosofia se afirma e foi reconhecida na clara expressão da obra de René Descartes (1596 – 1650), especialmente útil para a nossa reflexão, o Discurso do Método e as Meditações Metafísicas.

A inovação encontra bom espaço de acolhida, devido à rejeição da filosofia escolástica medieval e ao que mais tarde se chamará de neoescolástica, que entulhava de silogismos e demais formalismos o ensino eclesiástico de seu tempo. Nessa forma pouco valiosa de teologia e filosofia predominavam duas graves deficiências, que decorriam da estima excessiva de dois fatores limitados. Nela preponderavam uma ortodoxia autoritária e um discurso formalista, abstrato.

Tomás de Aquino está então ausente do ensino e da reflexão de uma filosofia viva. Não sendo conhecido, era deixado de lado sem ser considerado e menos ainda refutado.

Bom seria se suas posições tivessem merecido a atenção da filosofia moderna. Esta poderia ter reconhecido e criticado o tema delicado, exposto e explicado que vem a ser as relações da Fé e da Razão, em toda a sua amplidão e complexidade. Hoje, convém ousar essa proeza de fazer uma leitura do paradigma teológico de Tomás de Aquino, abordando sua doutrina em si e em sua comparação com as posições modernas e pós-modernas.

Seria descabido até mesmo evocar simplesmente o conjunto da obra de Descartes. O que é relevante e mesmo imprescindível é esboçar a contribuição singular do filósofo à reorientação da filosofia moderna no sentido do primado reconhecido ao pensamento, à evidência do pensamento, como critério único da validade da filosofia e da autenticidade da existência humana. Na linha do Discurso do Método (de 1637), ele relega a fé divina ao domínio da religião, sem interesse para a inteligência que assume a soberania no reino do conhecimento e da orientação racional e digna da vida. Nos caminhos dessa vida humana que redescobre na modernidade sua dignidade e sua autonomia, o filósofo reconhece os espaços de um conhecimento "provisório", sobretudo de uma moral provisória, a ser respeitada como etapa que se impõe na caminhada em busca da evidência, meta imprescindível da razão, entenda-se, sem dúvida, da razão individual. Só esta se realiza plenamente qual "cidade do sol". Ela se afirma e estende como o universo das "ideias claras", evidentes a uma primeira percepção intelectual ou se confirmando como termo de uma articulação ordenada de ideias evidentes.

 

Advento revolucionário da filosofia existencial

Sobretudo em torno e a partir de Martin Heidegger (1889 – 1976), realiza-se uma grande, se não total revirada filosófica, relegando uma metafísica abstrata e "neutra" do ser, atribuída à herança intelectual grega, prolongada por mestres cristãos como Tomás de Aquino. Consuma-se a dissociação da razão teórica e da razão prática, prolongando a posição central de Emanuel Kant. Essa dimensão prática não designa a forma de ação produtiva, modificadora do mundo, mas sim sua identificação com o Ser, considerado e exaltado com o próprio existir do sujeito humano. A existência, todas as dimensões existenciais do ser, do agir e do comunicar constituem a nova metafísica que passa a ter algo de generosidade e de exigência, invadindo ou assumindo os domínios da ética.

O que mais interessa à nossa reflexão é que esta espécie de tonalidade generosa, certo primado do bem sobre o ser, entra no mais profundo da metafísica de Heidegger. O filósofo aborda a questão primordial do ser e do não ser, levantando a interrogação primeira: por que o ser, em vez do nada. Então, o ser emerge no existir do sujeito. E a doutrina oferece uma explicação que se abre à transcendência metafísica, apoiando-se na linguagem: o que "se dá" nesse existir, não é um simples "dado", um dado neutro de que se ocupam o pensamento, a ciência, a filosofia. Mas, é, sim, um "dom", uma doação, um dado gratuito, não da "gratuidade" sem sentido, do casual, nas gratuidades de pura bondade, da graça, do absolutamente grátis.

Essa metafísica do ser emergindo como dom, se não coincidia, tinha certa afinidade com a compreensão bíblica da criação, em sua generosidade primeira abrindo caminho para a revelação e a fé no Amor, qual Princípio e, em consequência, como Fim de tudo.

Assim, a filosofia existencial, relegando o que se designava como o ser vago, abstrato, "neutro", apontava no existir o imenso campo de doação, abrindo-se à atitude razoável, bem fundada da fé e da esperança em uma Transcendência causadora, que antecede e coroa a existência. É o que dará origem ao chamado existencialismo cristão, sobretudo de Gabriel Marcel (1889 – 1973).

Não se incide na confusão da filosofia e da teologia, da Fé e da Razão, mas se aponta para sua afinidade na distinção. Pois a filosofia reconhece que a inteligência se prolonga em uma transcendência potencial, que a Revelação e a Fé vêm assumir como capacidade de elevação, de supersublimação no mistério da criação e da graça.

 

A fenomenologia aponta para o Infinito: Henri Bergson e Emmanuel Lévinas

Aparentemente, sem conhecer a tradição elaborada por Tomás de Aquino, Henri Bergson (1859 – 1941) aportará uma confirmação valiosa dentro de um contexto e em um paradigma doutrinal totalmente diferentes. Em toda a sua carreira, o filósofo cultiva uma reflexão fenomenológica muito original procurando "intuir", atingir e analisar a interioridade inicialmente instintiva e sempre progressiva, que anima "de dentro", e "por dentro" põe em movimento todas as instâncias ou etapas da vida – o mesmo elã emergindo e se diferenciando na vida vegetativa, animal, espiritual. No rigor desse método e dessa prática fenomenológica, Bergson estuda os místicos cristãos e põe em relevo esta conclusão surpreendente para a mentalidade positivista então dominante: "Ao considerar a vida dos místicos, tudo se passa para o filósofo como se Deus tivesse querido criar nos seres humanos parceiros dignos de seu Amor" (Bergson, 1978; nesta obra o tema vem desenvolvido em todo o capítulo III).

Nessa perspectiva e sempre em continuidade com sua análise e sua reflexão fenomenológicas, o filósofo francês retoma por sua conta e em total independência a sentença de Tomás de Aquino: o ser humano, pela autonomia de sua liberdade, se vê limitado como uma criatura, mas criada para ser criadora de sua existência espiritual. Essa dualidade, criada em seu ser para ser criador por seu agir, joga um facho de luz sobre o binômio Fé e Razão. A articulação da Fé e da Razão resplandece no cimo de uma reflexão filosófica que reconhece a transcendência inatingível de Deus, e a capacidade e a energia criativas que conferem ao próprio ser humano a dignidade de sua autonomia. Ele se vê dotado de um conhecimento que culmina na abrangência da ciência e da sabedoria racional, teórica e prática, abrindo-se ao indefinível encontro místico com a Transcendência divina.

Emmanuel Lévinas (1906 – 1995), relegando toda a filosofia moderna à metafísica aristotélica do ser e seguindo as sendas da fenomenologia de Descartes, assumida e afinada por Husserl, chegará a conclusões similares a Henri Bergson sobre a vocação do ser humano à transcendência da ética.

Em estreita fidelidade com seu povo judaico, vítima do holocausto, este filósofo se universalizou identificando-se com o desamparo e transcendência da humanidade. E passou a propor a síntese da sabedoria que libertasse o mundo do egocentrismo homicida e suicida pela revelação e acolhida da alteridade salvadora. Destacam-se aqui umas simples ideias do grande pensador que interessam particularmente à reflexão sobre a análise e o acompanhamento histórico do binômio Fé e Razão.

Em sua doutrina, para além da metafísica, põe em relevo o Infinito, a Transcendência exigindo e intimando o esvaziamento de todo conhecimento possessivo. Há de prevalecer a certeza radical de que o ser humano, quando se aceita em relação autêntica, vive a relação do finito com o infinito. Em um empenho pedagógico, Lévinas propõe que se veja no "in" da palavra Infinito a dupla relação de negação e de interioridade. O Infinito não é finito, transcende totalmente o finito, mas está no finito, como uma Transcendência que o penetra, reservando e sublimando. Verdade vivida, existencial, que se realiza na descoberta e no encontro com o Outro no outrem que aí está, gerando a atitude que há de ser de dom e de transformação espiritual de si.

Bem parece que a intenção desse filósofo incomparável (com quem tive a sorte grande de conviver nos anos 80, quando ele era professor convidado da Universidade onde eu ensinava, em Friburgo na Suíça) foi de oferecer em Totalidade e Infinito uma espécie de Suma, a menos incompleta de todo seu pensamento. Na perspectiva de nossa reflexão, diga-se: Lévinas desconstrói a razão como instrumento de qualquer prepotência. O Mesmo, o eu do sujeito que pensa, se afirma em toda a verdade no reconhecimento, na acolhida do Outro e no dom de si, no cuidado e serviço do Outro. Indica-se aqui essa revolução metafísica total, essa desconstrução da "totalidade", da pretensão (dominante ou grandemente dominante) de somar realidades e pessoas, numa falsa igualdade que seria a massificação de indivíduos, simples números (números de consumidores, de admiradores, de personagens sem conteúdo pessoal). E consagra toda a sua obra a construir o mundo de relações, em que a singularidade qualitativa do Outro é a "Verdade" fundadora.

Essas simples indicações de uma doutrina que foge a qualquer síntese ou explicação vêm apenas testemunhar essa convicção: a ética transcendente de Emmanuel Lévinas condensa o progresso do pensamento moderno e ainda supera a visão compreensiva da Fé e da Razão, levando a uma visão da verdade que o ser humano é chamado a descobrir na medida em que se transforma na correlação vivida, existencial do finito e do Infinito, na transcendência do encontro libertador e criador com o Outro.

 

O magistério da Igreja ontem e hoje

O binômio Fé e Razão atravessa com certa constância o ensinamento da Igreja católica, sobretudo no decurso dos três últimos séculos. O que é significativo e mesmo resplandece como um facho de luz sobre nossa reflexão é certa qualidade progressiva de diálogo a que tendem as intervenções eclesiásticas dos últimos tempos. Não se pode precisar até que ponto a Igreja chegou a abranger a universalidade complexa desse desafio religioso e cultural. Como assinalado acima, a Renascença, em boa parte acolhida em suas vagas de renovação estética, ocasionou na Igreja uma desconfiança permanente para com a filosofia ou as hipóteses científicas sobre as origens do mundo e da vida, levando o ensino eclesiástico e particularmente a formação do clero ao apego a uma metafísica, tida como clássica, adaptada à teologia desde a Idade Média.

O I Concílio do Vaticano homologa de maneira oficial o essencial da doutrina de Tomás de Aquino, ensinando que não pode haver desacordo entre fé e razão, pelo motivo fundamental que ambas vêm de Deus, e Deus não se pode contradizer. A razão em si é incompetente para afirmar ou menos ainda negar a verdade dos dogmas, cujos objetos são mistérios acima da capacidade natural do ser humano. Bem conduzida, a razão pode estar a serviço da fé, apreciando a credibilidade da revelação divina e ajudando o encaminhamento à adesão a Deus que se revela. Mais ainda, o ensino da Igreja insiste em exaltar a função da razão, quando devidamente assumida a serviço da fé, constituindo um "intellectus fidei", uma sabedoria teológica fundada nas verdades da fé, mas se desenvolvendo no plano da razão, aprimorada por uma cultura ajustada para o bem dos fiéis e da comunhão eclesiástica.

Uma encíclica recente de João Paulo II, Fides et Ratio, de 14 de setembro de 1998, desenvolve amplamente esses temas gerais. Em tom apologético e com uma argumentação em geral fundada em textos bíblicos e tradicionais, a encíclica sintetiza um ensinamento comum desde Leão XIII, Pio XI e Pio XII. Insiste particularmente na estima da filosofia e de sua necessidade para que se obtenha uma boa teologia, em sua dimensão teórica e prática. Recomenda, de maneira enfática, o diálogo do pensamento cristão com a filosofia, sem excluir a filosofia moderna. João Paulo II chega a citar elogiosamente a audaciosa sentença de Tomás de Aquino: "A verdade, proferida por quem quer que seja, vem do Espírito Santo" (Enc. Cit. n. 45. Suma de Teologia I-II 109, 1, 1).

No entanto, persiste um julgamento restritivo lançado sobre a filosofia moderna que se teria concentrado no tema do conhecimento humano e seria desprovida de metafísica. Note-se, aliás, que em geral as obras dos filósofos clássicos do Ocidente, Descartes, Spinosa, Kant, Hegel, foram colocadas no malfadado Index dos livros proibidos ou desaconselhados aos formadores dos clérigos, que só os poderiam ler com permissão especial.

Portanto, a recomendação teórica do diálogo, fundada em uma sólida doutrina, não corresponde desde longa data à orientação prática das autoridades eclesiásticas romanas, sempre marcadas pelo contexto polêmico, assinalado acima, como persistente desde a Renascença. Uma significativa atitude, em sentido positivo e construtivo, veio da maior autoridade doutrinal da Igreja, o Concílio Vaticano II (1962-1965). Ele evoca o ponto central da doutrina do Vaticano I sobre a harmonia da fé e da razão (Constituição Sobre a Revelação, n. 6). Mas, sem fazer teoria a propósito da filosofia e outras orientações da modernidade, ensina e inaugura o diálogo da Igreja com o mundo. No que toca os valores humanos e os rumos a imprimir à sociedade, chega a dizer que a "Igreja tem o que ensinar ao mundo e o que dele aprender" (Cf. Gaudium et Spes, n. 43).

É essa orientação do grande Concílio – Paulo VI, ao concluí-lo, declarava que foi o maior de todos – que corresponde melhor às posições e convicções do conjunto do episcopado mundial e vai no sentido do que parece ser a marcha da história cultural e religiosa da humanidade.

 

Da abordagem redutiva e parcial à visão integral e diferenciada

A compreensão positiva da fé e da razão tem decorrido dos progressos da cultura, estando em afinidade bem fundada com a filosofia existencial e com as formas mais e mais afinadas da fenomenologia. Esses progressos no conteúdo, no espírito e nos métodos do saber favorecem a releitura fiel e criativa da tradição religiosa. Ortodoxismo religioso autoritário, confessionalismo egocêntrico que visa impor a fé por violência ou qualquer forma de pressão social, não são apenas o pior adversário da civilização e da democracia. Constituem, sobretudo, a negação mesma de qualquer religião autêntica. Sigmund Freud foi admirável e terrivelmente profético aproximando e denunciando as formas autoritárias da organização e da disciplina dos exércitos e das igrejas, em sua submissão e identificação maciça aos seus chefes. O que o leva a sentenciar então: "Toda religião prega amor para os seus e ódio para os outros" (Freud, 1923/1976), na síntese do capítulo V de Psicologia das massas e psicanálise do eu.

A valorização do outro é o fundamento da religião, da ética e da civilização. Dentro das quatro paredes do egocentrismo, será inevitável que, no fracasso tanto da Fé quanto da Razão, o desamor esclerosado lance o clamor desesperado formulado por Sartre: "O inferno são os outros". É a negação do outro em sua singularidade e seu valor de critério primordial e universal de autenticidade, de triunfo sobre o egocentrismo individual, corporativo, social ou religioso. É o que o mundo atual pondera ao tomar melhor conhecimento da mensagem essencial de Emmanuel Lévinas e, por outras vias, também de Lacan.

A religião autêntica proclama a fé como a adesão bem informada e livre à Verdade que orienta o ser humano para o bem e para o amor. E não compete à religião julgar, menos ainda condenar, a livre atitude de quem não se vê motivado para crer. Pois, crer sem motivo de crer é e deve ser apregoado por toda religião como alienação degradante. O respeito a quem não crê, a quem crê em um modelo diferente de profissão ou de comunidade de fé, é o grande progresso do catolicismo, sobretudo desde o Concílio Vaticano I. O mesmo se diga de todas as confissões cristãs que se abrem ao ecumenismo e de todas as religiões que hoje se unem na busca da fraternidade, da paz e de uma ética mundial para o mundo globalizado.

Neste contexto e neste quadro positivo, as religiões ganham em ser bem estudadas, em seus valores, em suas falhas, desvios e omissões, por disciplinas como as Ciências e a História das religiões. E sendo portadoras de uma mensagem que visa ajudar a reconhecer o sentido da vida, o destino histórico e transitório da humanidade, o que escapa aos objetivos das ciências, professam a estima da verdade, buscada e reconhecida pela diversidade dos paradigmas e métodos científicos. "Verificar e convidar a verificar", tal é o paradigma proposto por Tomás de Aquino, nem sempre seguido.

Apesar dos equívocos lamentáveis opondo os protagonistas do crer e do saber filosófico, científico, tecnológico, na medida em que predominam a autenticidade, o amor da verdade e do outro, religião e secularidade, a fé e a razão têm hoje a grande oportunidade, jamais tão real e ampla, de coexistir e conviver na pluralidade. Esta não é uma simples tolerância de um mal menor. É a condição da verdadeira sociedade humana, tecido harmonioso de estima da verdade, da liberdade, da inteligência e da consciência.

Não seria nessa visão positiva que bem se situa hoje a reflexão sobre a bipolaridade tradicional Fé e Razão?

 

Referências

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Tomás de Aquino. (1995-2005). Suma de teologia. São Paulo: Ed. Loyola.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
FREI CARLOS JOSAPHAT
Convento Sagrada Família
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E-mail: frei_carlos@uol.com.br

Recebido: 11/04/2013
Aceito: 17/05/2013

 

 

* Sacerdote Dominicano, Doutor em Teologia pela Faculdade Dominicana de Paris, Professor Emérito de Ética Cristã e Comunicação Social, na Universidade de Friburgo na Suíça, onde lecionou por 27 anos. Autor de vários livros, publicados na Europa, na Ibero-América e em nosso país.