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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.8 n.13 São Paulo jun. 2004

 

RESENHAS

 

Do corpo de sensações ao corpo falado - uma trajetória psicanalítica

 

 

João Alberto Carvalho1

Universidade Federal de Pernambuco. Departamento de Neuropsiquiatria

Endereço para correspondência

 

 

FERNANDES, Maria Helena. Corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. (Coleção Clínica Psicanalítica, vol. XXII). 132p. ISBN 85-7396-278-X.

O corpo está em alta! Dessa forma Maria Helena Fernandes inicia seu livro Corpo. Em um tom provocativo e instigante, ela ultrapassa de forma brilhante a adesão do culto ao corpo para fazer uma importante reflexão psicanalítica sobre o lugar e função deste na atualidade. Considerações inteiramente pertinentes à nossa contemporaneidade, com sua inexorável velocidade, individualismo exacerbado, queda de referenciais familiares e coletivos, além de grande culto à imagem. Nesse panorama muitas vezes o “retorno” ao próprio corpo físico constitui-se na busca última de ideais, quer seja pela estética, exposição do nu, con-sumo de grifes oferecendo referenciais para sermos parte da sociedade, ou pelas patologias que afetam o corpo físico proliferando-se e criando novas nosologias napsiquiatria e na medicina em geral – des-de transtornos alimentares a múltiplas cirurgias, estéticas ou não, até a dor crônica. A psicanálise tem sido convocada a en-tender esses fenômenos.

Maria Helena oferece uma inestimável ajuda nessa discussão. Sem a pretensão de oferecer respostas definitivas, percorre o texto freudiano com precisão, apoiando-se também em outros autores, mantendo-se voltada para a clínica, fazendo-nos refletir sobre a prática psicanalítica diante desses novos desafios. Como demonstra, a “velha dimensão do sofrimento humano” parece se reinventar exigindo nossa escuta. Afirma que o corpo muitas vezes aparece como tema central do “sofrimento que parece ter dificuldade para se manifestar psiquicamente”. Lembramos que uma das dificuldades atuais é exatamente a destituição do Outro, a insistência, própria do individualismo levado ao extremo, em desconsiderar a filiação a uma ordem simbólica, por isso talvez ao sofrimento e ao corpo faltem desfiladeiros simbólicos por onde fluir.

Uma pergunta é feita pela autora, que nos parece essencial: “que corpo é esse que se mostra, às vezes insistentemente, e que pode ser ‘acolhido’ pelo psicanalista na sua escuta?” Acrescentando que nossos pacientes, não sendo seres exclusivamente “psíquicos”, com que ouvido o psicanalista “ouve” o corpo dos que o procuram para tratamento?

Um aspecto valioso nesse livro é o cuidadoso e interessante resgate de textos na obra de Freud, que dão subsídios para pensar a questão do corpo já desde 1895, e que, curiosamente, alguns deles foram um tanto quanto esquecidos e são resgatados pela autora. Por meio da abordagem dos sonhos, por exemplo, Freud permite a exploração das relações entre o corpo e o inconsciente, e em 1900 falará da “natureza hipocondríaca” do sonho, ressaltando posteriormente a importância dos estímulos somáticos do sonho. Nossa autora demonstra cuidadosamente que o sonho e suas fontes somáticas reafirmam, como faz a histeria, a idéia de que o corpo não é uma fonte explicativa em uma hegemonia fisiológica, mas “lugar” de realização de um desejo – o corpo revestido de uma operação de linguagem, “lugar” de inscrição do psíquico e do somático.

Detendo-se de início na histeria e no sonho, enfatiza a originalidade da abordagem do corpo desde os primórdios da psicanálise. A histeria propiciou a comparação entre sintomas psíquicos que se apresentavam no corpo e aqueles possíveis de classificação diagnóstica na medicina, permitindo a Freud propor “a idéia de que o corpo narra o que mostra, como nas imagens visuais e no discurso do sonho”.

Salientamos, a partir das reflexões propiciadas pelo livro apresentado, que já no Projeto para uma psicologia científica Freud faz referência à contribuição de questões orgânicas ao psiquismo, porém se afastando de modelos médicos e biológicos da época, esboçando uma relativa metáfora, diferente das proposições homeostáticas de Breuer. Muito mais tarde, na Conferência XXII (1933), Freud descreve um caso clínico, no qual o sofrimento físico substitui uma neurose, descrevendo no decorrer de uma análise sintomas neuróticos substituídos por acidentes, além de repetidos episódios infecciosos como amigdalites, estados gripais e sintomas reumáticos. Note-se que este texto freudiano não faz referências explícitas aos pontos de vista estritamente biológico ou fisiológico, mas sim pelo que se coloca além ou aquém desses elementos.

Maria Helena destaca a oposição entre os fenômenos de conversão e somatização, bem como a distinção entre as neuroses atuais e as psiconeuroses, e sua relação com a libido, apontando para a retomada da idéia de que as histéricas transitam em um terreno que revela, além da inexistência de uma anatomia descritiva, uma anatomia fantasmática. Esses são pilares que conduzem a escuta psicanalítica até hoje, estabelecendo que sintomas corporais de doenças somáticas ocupam um lugar importante na economia fantasmática do sujeito. Sintomas histéricos e somáticos se distanciam e se aproximam por meio da dimensão subjetiva. Nesse sentido, prossegue, a conversão sugere um “corpo da representação” e a somatização um “corpo do transbordamento”, com o sintoma corporal funcionando como descarga da pulsão de morte, pulsão sem representação.

A familiaridade com que Maria Helena transita no terreno psicanalítico e suas articulações com as múltiplas noções do corpo revelam o aprofundamento teórico que marca sua trajetória, bem como o inabalável compromisso com a prática clínica. Assim sua pesquisa refaz o percurso de Freud, focada na noção de inconsciente, pulsão de morte, compulsão à repetição, para chegar às discussões sobre o princípio de prazer e o princípio de nirvana. Noções que problematizam a prática clínica, na medida em que os próprios sintomas são fonte de prazer – pensamos que poderíamos situar aqui o conceito de gozo.

A exploração do campo semântico em torno do corpo – feita por Assoun (1993) e referida pela autora – é útil, indo do “Körper” (corpo real, objeto material) ao “Lieb” (corpo tomado em seu enraizamento). Assim, não podemos nos apoiar apenas na idéia de um corpo, mas O corpo, princípio da individuação. Levando em conta então a noção de pulsão e o desenvolvimento desse conceito, demonstra que “...o corpo biológico, essa materialidade do “Körper” animado pela pulsão, nos remete de uma certa forma, ao “Lieb...”.

Segue retomando algumas considerações freudianas, como o estudo do ego, para demonstrar que este recebe excitações externas e internas, e que o fenômeno da dor, por exemplo podendo ser uma maneira, de forma geral, de se chegar à representação do nosso próprio corpo. Recorrendo às considerações de Fedida (1997), salienta que a dor oferece acesso ao conhecimento de nossos órgãos, permitindo então alguma representação do nosso corpo, e portanto uma certa “metapsicologia do corpo”.

Consideramos de grande valor a posição que vai se delineando no livro, não só para a clínica psicanalítica, como também para a presença da psicanálise no hospital geral, na interconsulta – e portanto para a psicanálise e sua utilidade em diversos campos do saber. Isso nos endereça a emergência de fenômenos dolorosos, cada vez mais freqüentes, oriundos ou não de lesões físicas e tendendo à cronificação. Caracteriza-se assim um outro desafio à onipotência médica, que faz surgir associações medicamentosas diversas, cirurgias para controle da dor, muitas vezes calando o próprio sujeito.

Um outro aspecto muito interessante trazido pelo livro é o fato de que o encontro da histeria com o “mundo médico” proporcionou um efeito de natureza transferencial – a impotência da medicina diante do “engano” provocado pela histérica e seus sintomas corporais. Nesse ponto, a contribuição de Maria Helena conduz com delicadeza o leitor para a transferência e seus desdobramentos. Isso será fundamental no desenvolvimento de seu trabalho.

Muito se fala de que em psicanálise, teoria e clínica não devem ser separados. Nossa autora utiliza-se disso, sem em momento algum ser redundante, para mostrar que o instrumento transferencial fundamenta a psicanálise e propicia nossa redescoberta permanente, a cada situação clínica, utilizando as vicissitudes da clínica psicanalítica para nos demonstrar que aparentes obstáculos transferenciais abrem na verdade a possibilidade de pensar a utilidade da psicanálise para os desafios clínicos com os quais nos defrontamos, como por exemplo, a dor física e o corpo doente.

Para essa discussão a autora nos lembra que, desde sua chegada ao mundo, o bebê tem no outro um elemento essencial. A dor, e não angústia, oriunda da ausência materna caracteriza uma situação traumática. O desamparo original coloca o bebê em absoluta dependência. Dessa forma – sempre apoiada em Freud e em outros autores, como Birman –, reafirma a idéia de que o outro estará sempre presente na origem e na própria constituição do sujeito em si.

A figura materna, além da garantia de sobrevivência, possibilita o acesso ao prazer por meio da promoção da sexualidade. O outro é pois, o pólo investidor que vai transformar o corpo biológico em corpo erógeno habitado pela linguagem. De um corpo de sensações para um corpo falado. Na clínica psicanalítica o corpo muitas vezes se anuncia justamente pelo sintoma físico. Cabe a nós escutá-lo, ou ao menos tentar, no terreno da transferência.

Maria Helena, com a precisão daqueles que efetivamente se situam no terreno psicanalítico, demonstra que as construções teóricas têm interesse, sobretudo se possibilitam desdobramentos na clínica, e portanto na escuta do psicanalista. Ouçamos o que ela diz: “em psicanálise a teorização exige, como em nenhum outro domínio, a pesquisa de seus fundamentos metodológicos e nos ecos que emanam da especificidade da sua clínica”.

É na especificidade da psicanálise, e portanto na transferência, que a demanda de análise e sua sustentação são essenciais. Sobre isso, é importante verificar o que é pontuado com segurança, “Se o médico pode se abstrair de seu corpo e permitir assim que o doente faça o mesmo (...) o analista não pode esquecer que seu corpo é o cenário no qual vem atrair os fantasmas do paciente”. Neste sentido, salientamos a importância da escuta, com atenção “àquilo que somente um ouvido atento e experimentado na arte da escuta pode acolher”.

Assim sendo, salientamos o que Maria Helena chama, com sensibilidade, de “delicadeza” da escuta, demonstrando-nos que a palavra do analista deve incentivar o paciente a desenvolver seu poder imaginativo, de maneira que acontecimentos que tocam o corpo possam ter possibilidades metafóricas.

Lembramos ainda que a autora salienta as implicações psíquicas que permitem o surgimento e manutenção de doenças somáticas, bem como o contrário, com conseqüências psicopatológicas que se originam da doença orgânica. Prudentemente, como nos ensinou Freud, Fernandes assinala o cuidado necessário para não se afirmar etiologias psíquicas para certas doenças somáticas. É da relação da palavra com o corpo que devemos voltar essencialmente nossa atenção, ficando também claramente demonstradas as especificidades de diferentes saberes, como o saber psicanalítico e o saber médico.

Assim, de maneira brilhante, o livro atendendo plenamente ao tom provocativo inicial, parte das premissas freudianas do recordar, repetir, elaborar, passando pela “delicadeza” da escuta, na transferência, para demonstrar que é possível acolher a dor do outro, muitas vezes no próprio corpo – e mais do que acolher, o faz falar, levando-nos a “entender a diversidade do funcionamento psíquico, que se revela hoje, cada vez mais, por meio de formas corporais do sofrimento”.

Apresentar o trabalho de Maria Helena Fernandes foi um privilégio, pela clara utilidade para nossa ciência, pela discussão transdisciplinar que reafirma as características essenciais da teoria freudiana, além da magnífica contribuição ao entendimento de um grande desafio da psicanálise hoje – a necessária atenção ao corpo, que diz respeito ao sujeito, mas também à sua relação com os imperativos da cultura do individualismo. Ou seja, posiciona-se, de certa forma, na contra-mão das tendências culturais predominantes.

 

 

Endereço para correspondência
João Alberto Carvalho
E-mail: mh_santos@terra.com.br

 

 

1Médico Psiquiatra; Professor Adjunto do Departamento de Neuropsiquiatria da UFPE; Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Pernambuco; Mestre em Antropologia Cultural (UFPE); Doutor em Medicina Social (UERJ); Autor do livro O Amor que rouba os sonhos: um estudo sobre a exposição feminina ao HIV.