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versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.9 n.9 Salvador  2008

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

A arte e o ato

 

 

Aurélio Souza

Espaço Moebius

 

 


RESUMO

Não existe psicanálise aplicada. Mesmo que o discurso analítico tenha servido para desenvolver explicações sobre o ato criativo, não se pode implicá-lo ao sujeito do inconsciente. Esse sujeito da psicanálise, testemunho do ensino de Lacan, não corresponde ao homem, a um indivíduo, nem mesmo a um artista. Ele só se realiza no curso de uma análise em intenção, em ato, que o funda como um lugar de gozo.

Palavras-chave: Gozo; Arte; Ato.


 

 

Mesmo que os artistas ensinem aos analistas, este é um enunciado que deve ser tomado com alguma prudência, pois não se faz análise a partir de uma obra de arte. Não existe psicanálise aplicada.

Desde que Freud inventou a psicanálise, que ela tem servido de instrumento para abordar, interpretar ou justificar os diferentes atos criativos no humano, através de uma via que ele nomeou de sublimação. Uma das vicissitudes da pulsão. Todavia, ele não deixou de considerar que o desejo inconsciente era a causa destes atos.

Lacan, por sua vez, procurou também manter a idéia da criação relacionada à noção de sublimação. Diferente de Freud tomou-a como uma operação que teria a função de colocar um objeto da realidade com a hierarquia do real. Procurou dar ao objeto, a dignidade da Coisa, formulando a idéia da criação a partir da presença de um vazio, de um vacúolo que viria desempenhar uma função inaugural como causa do ato criador.

A finalidade da sublimação seria a própria reprodução da falta de onde ela procede. É uma repetição indefinida do engendramento de um buraco fundado pelo próprio significante e em torno do qual ele gravita para produzir na estrutura o próprio ato criativo. A atividade significante vem fundar só depois o in-mundo do sujeito, num tipo de criação ex-nihilo. Algo que surgiria do nada, como na concepção religiosa. Aqui, no entanto, Lacan não guarda qualquer idéia a respeito do mito das origens.

Mais tarde, procurou ainda colocar a sublimação, como algo que viesse suprir a não proporção sexual que existe entre o homem e a mulher.

A partir daqui, vou procurar formalizar um limite entre a modalidade impossível do discurso analítico, em oposição ao possível das Artes, levando em conta noções do sujeito e do ato.

 

DO LADO DA PSICANÁLISE

O que é a psicanálise? Uma prática que não deve ser vista como uma terapêutica, mas submetida a uma ÉTICA que passa a ter conseqüências clínicas. Mais tarde, no ensino de Lacan, a psicanálise adquiriu o estatuto de um Discurso conduzido pelo analista. Assim, não mantém qualquer relação com a bioquímica, com o individuo, nem com o homem como um ser vivo que se mantém submetido às noções do normal e do patológico. O objeto da psicanálise é um ser mental que é afetado pelo sujeito do inconsciente.

A ética da psicanálise, portanto, é relativa ao discurso-do-analista. Aquele que segue uma pequena etiqueta que regula e propõe as vias que se deve seguir numa psicanálise em intenção, procurando estabelecer uma reflexão do que se pratica e como se pratica.

Trata-se de uma prática que se mantém submetida a uma Lei que não busca um ideal, nem mesmo de colocar o sujeito numa condição de harmonia em suas diferentes realidades. A psicanálise tem como princípio regulador para seu ofício, um enunciado que intervém sobre o desejo: “não ceder quanto ao desejo”. Uma condição que guarda uma estreita relação com a ordem e com o dever... com fazer o dever e com uma ética que Lacan designou do Bem-Dizer.

Embora a noção de Ética esteja relacionada aos usos, costumes, normas, leis que regulam as relações entre os indivíduos, ou entre os sujeitos do conhecimento, para a psicanálise é algo que fundamenta as relações do sujeito com o objeto. A ética do Bem-Dizer, portanto, não procura determinar que se diga bem ou bonito aquilo que diz, mas de buscar um bem-dizer que satisfaça.

Tendo colocado estas questões iniciais sobre a Arte e do Ato, do ponto de vista da psicanálise e de seu efeito na cena social, vou formular três perguntas: o que é o sujeito, o sujeito do inconsciente? O que é o ato, na psicanálise? Qual sua diferença com o ato criativo, aquele que se realiza nas Belas-Artes?

Para encaminhar minhas respostas, vou afirmar que esta noção de sujeito vem testemunhar uma hipótese do ensino de Lacan. De início, existiria um sujeito primitivo que deverá ser contaminado, que será adoecido pela linguagem. Como um produto desta operação linguageira, esse sujeito primitivo se desnaturaliza, perde seu saber instintivo e se transmuda num sujeito dividido, num ser de linguagem e de sexo.

Essa concepção do sujeito divido não é contemplada em nenhuma acepção filosófica ou psicológica. Nem mesmo corresponde a qualquer modelo existente na história do pensamento, anterior ao ensino de Lacan. É uma formulação nova. Ele não se constitui a partir de qualquer substancia ou essência. Só realiza sua presença e seu sofrimento, no curso de uma análise em intenção, quando é solicitado a tomar a palavra em associação automática.

Esse sujeito dividido, esse sujeito da psicanálise não corresponde ao homem, a um indivíduo ou a uma pessoa. Ele não deve ser confundido com o sujeito gramatical, com o interlocutor e nem mesmo com essa instância que é eu [moi], com a qual mantém uma relação de alteridade radical. De uma maneira equivocada, muitas vezes se afirma que essa divisão se faz entre a consciência e o inconsciente.

O sujeito é uma função, é um buraco, é lugar vazio. É um lugar de gozo. Ele só se realiza como uma metonímia de seu ser e, como tal, estará sempre representado por um significante. Por isso mesmo sua divisão se realiza entre o UM do significante que o representa (S1) e o Saber inconsciente (S2), que é equivalente à própria rede de significantes, aonde o sujeito habita numa relação de extimidade. Uma exterioridade lógica e topológica em relação à estrutura da linguagem aonde habita, assim como em relação ao próprio corpo que o sustenta.

Ele se multiplica e se manifesta na dependência do significante que o representa e, desta maneira, não corresponde àquele que pensa. É um sujeito que guarda ainda uma disjunção com a idéia do subjetivo. O sujeito do inconsciente se fundamenta numa condição lógica de certeza e não de uma subjetividade psicológica e imaginária.

Como o tema da Jornada implica a ARTE, as Belas-Artes, vou me utilizar de um eufemismo, para afirmar que esse sujeito dividido pode ser considerado como aquele que participa destas posições que estão contempladas numa das estrofes de Baudelaire, em As flores do mal:

Eu sou a ferida e a faca! [Je suis la plaie e le couteau!]
Eu sou a bofetada e a cara que apanha![Je suis le soufflet et la joue!]
Eu sou os braços e a roda que tortura, [Je suis les membres et la roue,]
E a vítima e o carrasco![Et la victime et le bourreau!]1

No ato de constituição do sujeito, o efeito que a linguagem causa sobre o organismo, determina uma perda radical e irreversível em sua estrutura. Isso que se perde, Lacan vai atribuir o estatuto de objeto. O objeto pequeno [a].

Essa noção de objeto percorre uma variação de sentidos, sem que possa ser identificado a qualquer um deles, desde quando ele só pode ser fundamentado no campo da psicanálise. Esse a-objeto torna-se causa do sujeito e de sua divisão. Assim como causa do desejo. Ele se constitui também como uma produção do discurso analítico sob a condição de mais-gozar e relacionado à própria noção de repetição. Lacan o considerou como um “ludion lógico”. Embora se o nomeie objeto, ele deve ser tomado como uma letra, letra [a].

Lacan ainda atribuiu ao objeto [a] o estatuto de Real. Na análise em intenção, é a partir desse caroço do real, ou ainda como Lacan o também o chamou de uma “semente que é tirada da arte”2, desta “semente da arte”, que adquire o estatuto topológico de um buraco, que o inconsciente será inventado. Por isso mesmo, não é o desejo que preside o Saber inconsciente, mas é o real. É a partir do objeto [a], o que de horror e de dejeto que existe no objeto que o inconsciente é inventado.

Para o sujeito, portanto, o início não é o Verbo, a Ação, ou o Movimento. É esse buraco em-forma de [a], que passa a corresponder à própria noção de estrutura e de Lei, que irá manter uma relação de alteridade com o sujeito e se torna causa do inconsciente. Como um corolário, nenhuma ação, movimento ou objeto podem desfazer ou preencher esse buraco em-forma de [a].

No plano ético da psicanálise, portanto, essa noção de buraco será definida através de uma condição lógica e topológica. Trata-se de um lugar impossível do real que não pára de se não inscrever e que vem se realizar como lugar de gozo e causa do desejo. De um desejo sem objeto e, como tal, se torna inimigo do Bem.

Mais tarde, em seu ensino, Lacan também veio colocar objeto [a] fazendo parte de uma estética da modernidade, algo que equivaleu a uma estética do dejeto. Antes da modernidade, o in-mundo do sujeito não conhecia uma superprodução de destruição, como aconteceu a partir do discurso-do-capitalista. Com essa estética do dejeto, a civilização se constitui no próprio esgoto da cultura.

Aqui, ao me referir ao efeito da linguagem sobre o organismo, tornando-se responsável pela inauguração do sujeito e causa do inconsciente, assim como pela ex-sistência do objeto [a], ela não corresponde àquela dos lingüistas e que se fundamenta no signo. A estrutura da linguagem passou a ser nomeada por Lacan de lalíngua.

Uma estrutura que não se inscreve na dimensão do espaço-tempo euclidiano, como a lingüística saussuriana. Neste caso, os significantes não mais obedecem a um sistema simples de diferenciação, nem mesmo a idéia da polissemia deve ser privilegiada. O que passa a importar em lalíngua é uma relação de vizinhança dos elementos que a constitui. Um tipo de coexistência de significantes onde “se injeta uma ponta a mais de onomatopéia”, determinando com isso um sistema fonemático (“A Terceira”).

Lalíngua, portanto, é uma estrutura topológica que se torna solidária à polifonia, isto é, àquilo que de sonoro vem impregná-la. Trata-se de uma estrutura que visa o real e, desta maneira, agrega uma importância essencial às noções de letra e de escritura, como elementos essenciais do discurso analítico.

Por isso mesmo, a jaculação mesmo isolada de um significante vai reduzi-lo ao que ele é — “a uma torção da voz”. Algo que não se define como um som que se registra num disco ou numa fita magnética, mas que corresponde à própria idéia de escansão. Assim, a voz se torna um objeto, uma das mostrações do objeto [a] que vai permitir que numa psicanálise em intenção, as palavras possam ser dobradas, fletidas, curvadas, decompostas e deformadas, produzindo diferentes sentidos. A voz pode permitir ruídos e efeitos fonéticos, caindo como letras que se prestam também a equívocos, anagramas e aliterações.

Desta maneira, o sujeito do inconsciente por sua implicação à lalíngua desenvolve um tipo de paixão, uma pura e simples paixão pelo significante. Não se trata de qualquer relação de prazer, mas ao contrario, guarda uma referência ao sofrimento e ao gozo, como efeitos do real. Essa dimansão que não pára de não se escrever e que afeta o sujeito de diferentes maneiras através da noção de repetição.

Para a psicanálise, a noção de repetição não corresponde à reprodução no presente de um acontecimento passado, nem mesmo a reprodução de algo idêntico a um fato já realizado anteriormente. Trata-se de uma operação significante que funda o sujeito e celebra a satisfação, o gozo de seus desencontros com o real, que sempre vem fazer rupturas em sua hystória.

No discurso analítico, diferente dos outros discursos, toda persistência do sujeito em seu in-mundo de linguagem, toda a idéia da continuidade é substituída por uma descontinuidade, por uma fratura causada pela própria intervenção de lalíngua, causando repetições.

Vou insistir nesta questão, pois na prática da análise em intenção, o valor da repetição não implica necessariamente a fala, desde quando as palavras ficam esvaziadas de significação e passam a fazer parte de um Dizer que transforma a psicanálise num tipo de discurso essencialmente sem palavras.

A estas duas noções — a paixão pelo significante e a repetição — Lacan as elevou à categoria de ato. Após esse desvio, retorno à minha segunda questão: o que é essa noção de Ato? O que é o ato analítico?

Não é excessivo se dizer que essa noção do Ato tornou-se uma referência de passagem entre a topologia do significante e a topologia da cadeia borromeana. O Ato, na análise, resulta numa operação significante. O analista investido desta condição de Sujeito suposto ao Saber, elemento essencial da transferência, sustenta a análise como semblante de objeto. Desta maneira, ele se converte em causa de um dizer que satisfaça ao sujeito, um dizer que faça o suficiente.

Tornando-se uma operação topológica, ele deixa de se realizar através da fala, de uma ação, de um movimento, de uma descarga motora, nem mesmo de um “ato reflexo”. Até mesmo o que se considera como “ato falho”, para que ele possa ser inserido no campo analítico, será necessário que passe a fazer parte de uma “pulsação do inconsciente”. Isto é, que esteja incluído numa análise em intenção.

Desta maneira, o Ato o sujeito que só pode ser recolhido numa psicanálise em intenção. Diante do real, deste buraco em-forma de [a], o sujeito deve usar de sua arte e de sua poiesis para instituir limites ao gozo do Outro, ainda que este Outro nem mesmo exista. Ele o faz, utilizando-se das letras ou mesmo do significante que o representa. Elementos que se repetem, mapeando o ato de um dizer que institui, dá contornos e consistência à própria noção do buraco.

Diante do real, portanto, o Saber inconsciente se reduz ao próprio tempo do ato que o constitui. Ele se transmuda num saber, em ato. Um Saber que é inventado pelo sujeito e que se contenta sempre em começar, realizando-se como um redobramento do significante.

Assim, o sujeito inventa o Saber inconsciente em ato, fibrando no simbólico estes pedaços do real, essa “semente do real”3. Ele o faz através de uma função contínua, com cada uma das unidades do espaço-tempo do real. Assim, diferentes pontos no simbólico são produzido, numa operação equivalente àquela do modelo de Kripke dos “mundos possíveis”. Isto quer dizer, “mundos” que são dotados de um caráter de acessibilidade e aonde se pode identificar, localmente, os efeitos de sujeito, onde se realiza condições de gozo que vão possibilitar diferentes fixcões do real que buscam dar conta do sexo, da vida, da morte, de sua origem, dos eventos de sua ex-sistência.

Para a psicanálise, portanto, o Saber inconsciente não se origina de qualquer substância, de um conhecimento científico ou epistemológico, nem mesmo se trata de um saber pré-existente. Não guarda qualquer relação com as origens, com a ontologia, ou com algo que possa existir nas profundidades da mente ou da alma e que poderia emergir na consciência.

O inconsciente é um saber singular que se estrutura como uma linguagem solidária à lalíngua, à polifonia e ao real. Um Saber que se cola na superfície do corpo que sustenta o sujeito e que ainda trabalha fora de sua vontade. Torna-se testemunho de um Saber topológico que não se estrutura como uma cadeia, mas como um conjunto aberto em que não se pode enumerar os elementos que contém, nem encontrar lugares definitivos para eles. Nem mesmo se trata de um Saber que possa ser investigado a partir de seus conteúdos, como muitas vezes tem sido concebido, ou mesmo que se possa deduzi-lo pela dialética.

Desde quando a psicanálise é um discurso, qualquer enunciado recolhido na prática de uma análise em intenção se constituirá sempre num enigma para o analisante. Isto é, num tipo de enunciação que não é de ninguém e que não corresponde a qualquer enunciado de saber. É uma verdade que o sujeito terá que decifrá-la a partir de seus efeitos, desde quando na análise o sujeito não pode se reconhecer no ato que o funda. Ele fica sem saber o que era antes e mesmo o que vai vir a ser após o ato, pois o ato o modifica4.

No ato é o real que responde. Na análise em intenção, embora o ato não comporte no momento em que se realiza a presença do sujeito, ele o constitui como uma resposta do real. O sujeito da psicanálise, portanto, é uma resposta do real.

Por isso mesmo, o sujeito do inconsciente se inventa numa operação significante que se realiza num só golpe. Um pequeno golpe, uma pequena manipulação no discurso do analisante fará ressoar algo de sonoro que “deve consoar com o que é do inconsciente”. Portanto, é por tocar em pedaços do real, num caroço do real, que o pensamento brota.

O sujeito através de um saber fazer aí com… pedaços do real (“savoir y faire avec”), ele inventa o Saber inconsciente, que o determina. A partir de uma constelação de “falas impostas” que não necessitam ser compreendidas, nem mesmo elocubradas, vai-se produzindo um elemento novo, um significante novo, um sinthoma. Uma condição que vem instituir efeitos de estrutura que estarão ligados à hystória do sujeito.

Este “saber-fazer aí com”, o sujeito o adquire como um Estilo. Não se trata de um Estilo-Tipo do analista, mas de uma função que ele se apropria no curso da análise que realiza. Para a psicanálise, o Estilo não corresponde à maneira de falar ou àquilo que pode identificar um analista em sua forma de conduzir uma cura. Trata-se de algo que é apre(e)ndido como coordenadas do discurso, sob a forma do objeto [a]. Será através de seu estilo que o analista vai definir sua posição, seus limites e a maneira que, sem saber, irá intervir na associação automática do analisante.

Quando o “pensamento brota” para o sujeito, numa análise em intenção, instituindo “uma nova harmonia”, ele se ordena e se desenvolve seguindo um duplo caminho, num “bivium5”, num tipo de bifurcação que guardará sempre um duplo sentido.

O primeiro que vou considerar tem como paradigma a Ciência. Embora Lacan tenha afirmado que o discurso da Ciência é equivalente ao discurso-do-histérico, não se pode deixar de considerar que a Ciência se fundamenta no discurso-do-mestre. Uma estrutura discursiva que foraclui o sujeito inconsciente e se volta para que “isso funcione”. O discurso-do-mestre, portanto, se encaminha para uma “tentação irresistível de fazer” algo que possa estar relacionado com a ordem e a eficiência.

Quando ao segundo sentido, o paradigma será dado pela psicanálise, pelo discurso analítico. Aqui, o pensamento se escreve fazendo borda no real e determinando um efeito sujeito que vai estar relacionado ao ato, à repetição e à própria invenção do Saber inconsciente. Trata-se de um ato que se apreende no tempo em que se produz e que funda de um único golpe o Saber, ou melhor, o sujeito do inconsciente.

Mais tarde, com a topologia da cadeia borromeana, Lacan retoma esta questão do ato para afirmar que é preciso escrever a cadeia borromeana e tomá-la neste sentido de que ela dá um apoio ao pensamento (“appensée6). Ele vai afirmar que “se eu posso dizer… isso pode se fazer” e que, portanto, “é preciso fazê-lo” (“il faut le faire”). Um enunciado que vem dar suporte à própria atividade mental, assim como a esse “osso”, que é a letra [a], e que passa a ter um efeito na cena social, desde quando “parece bem ser algo”7.

Aqui, nas vezes que esta injunção da Ciência não funciona, o discurso que se produz pode alcançar outras condições na cena social, inclusive o ofício das ARTES.

 

DO LADO DAS BELAS-ARTES

Para dar suporte ao título de meu trabalho — A ARTE e o ATO — vou apresentar, de início, o fragmento de um caso relatado por Melanie Klein (19298) e que Lacan também o comenta em vários momentos de seu ensino.

Melanie Klein se refere ao artigo de uma psicanalista Karin Michaelis – “O Espaço Vazio”. É o relato de algo ocorrido com uma amiga, Ruth Kjär.

Embora não se saiba bem qual era o problema de Ruth, ela sofria de crises depressivas com alguma freqüência, um tipo de “melancolia suicida”, como aparece no texto. Nestas ocasiões sempre se queixava de algo que a afetava com intensidade: um espaço vazio, em seu interior. Um espaço que nunca pôde ser preenchido, ou desfeito, por qualquer coisa que tivesse realizado até então. Com a ajuda da analista, que era sua amiga, Ruth veio a se casar. Após o casamento, passou um período sem maiores problemas, sem depressão.

Embora não fosse pintora, Ruth possuía um grande interesse pelas artes. Assim, logo em seguida ao casamento passou a usar sua casa como uma espécie de galeria, como um local de exposição para os quadros do irmão de seu marido, que era um artista conhecido e renomado. Um dos melhores do país.

Certo dia, perto do Natal, o cunhado vendeu um dos quadros que se encontrava exposto em sua casa. Foi até lá e o retirou da parede, deixando um “espaço vazio”. Algo que parecia coincidir com aquele vazio que existia em Ruth. Uma condição que se transformou num fato precipitador de uma nova crise de depressão: “o espaço vazio zombava horrivelmente dela”.

Essa condição se arrastou por algum tempo, até que num determinado dia, de uma maneira súbita, Ruth resolveu fazer algo. Disse ao marido: “vou dar umas pinceladas” (“to daub a little”) Ele provavelmente gostou da idéia e procurou incentivá-la. Logo em seguida, comprou as tintas necessárias para ela pudesse dar “suas pinceladas”. Comprou-as nas mesmas cores que seu irmão utilizava para pintar seus quadros.

Ruth se lançou ao trabalho. Ela não usou de pranchetas, preferindo se utilizar do “espaço vazio” que havia ficado na parede para fazer um esboço inicial. Em seguida, deu “suas pinceladas”. Pintou um nu. Uma mulher negra, em tamanho natural. Após ter concluído seu trabalho, aguardou com grande expectativa a presença do cunhado, que foi chamado para opinar sobre a pintura. Ele ficou espantado e não acreditou que ela pudesse tê-lo feito. Era a obra de um artista. Não poderia, portanto, ser de sua cunhada.

A partir desta primeira experiência, Ruth continuou a pintar. Excluindo um único quadro de flores, dedicou-se a pintar retrato de mulheres, inclusive mulheres já envelhecidas. Sua obra serviu de motivação para a interpretação de Melanie Klein sobre o ato criativo.

Era uma tentativa de reparação pelo que ela havia feito ao corpo da mãe. Por ter lesado o corpo materno, ela procurou lhe restituir os objetos roubados: o pênis do pai, os filhos, as fezes... .

Após algum tempo, Ruth conseguiu reconhecimento público, fazendo seu nome como artista e tendo um sucesso financeiro com seu trabalho.

Tendo colocado este pequeno fragmento desse caso clínico, vou procurar estabelecer os pontos de convergência e disjunção que existem entre estes dois tipos de Ato: aquele que se realiza no curso de uma análise em intenção, em oposição àquele que se desenvolve na cena social como um ato criativo relacionado às diferentes artes, tais como a pintura, a literatura, a música, a escultura, o cinema, a poesia, entre outras.

Como me referi, anteriormente, o Ato, na análise, resulta numa operação significante que funda o sujeito e só pode ser recolhido numa análise em intenção, sob transferência. Como tal, submetido aos efeitos sugestivos da invenção do inconsciente.

Todavia, se digo algo e faço, e isso não se encontra sob transferência, deve-se se olhar como algo que participa ou mesmo que interfere na cena social.

Uma produção que mesmo mantendo alguma relação com o objeto [a], ex-siste do real e passa a fazer parte das realidades plurais do sujeito.

Com o ARTISTA, mesmo que se leve em conta as diferenças que existem na produção de um poeta, de um escritor, de um pintor, do escultor, do músico..., pode-se considerar algo de comum, de invariante, entre eles, na sua produção. Refiro-me a uma dimansão do Real que venha funcionar como causa, determinando uma condição ética ou mesmo estética que possa sensibilizá-los a produzir um objeto que lhe proporcione uma outra satisfação.

Dito de outra maneira, trata-se sempre de uma estética e de uma ética que se direciona através de um aspecto político que busca corresponder à perspectiva de ideais da cultura. Uma Ética do Bem, da Felicidade, do Belo, mesmo nos casos em que a estética considerada, possa conter uma marca de horror e que possa causar espanto.

Ainda nestes casos, pela implicação que estas produções artísticas possam ter, de um ponto de vista lógico e topológico, com o objeto [a], um a-objeto, um ab-jeto, Lacan vai inferir que em qualquer obra de arte o que atrai o olhar é aquilo que ela é desde sempre e por toda parte: uma ob-scenidade.

Qualquer ato criativo, qualquer pesquisa, toda ação, toda deliberação refletida, todo “se dar conta”, tendem para algum BEM (13/02/1973). Ou ainda, toda criação é uma mimesis, a busca de se realizar a imagem de algo inimaginável. Como tal, é uma ficção que busca dar contornos à ex-sistência desse buraco do real. Em qualquer ato criativo, da literatura à escultura, mesmo que se realize algo que retorne sobre o sujeito num tipo de percurso acéfalo e guarde alguma relação com a sublimação, ele se dirige para o público através das galerias, das exposições, dos livros e adornos... .

Desta maneira, a noção de sublimação talvez não deva só corresponder a cada uma das obras de um artista, ou de um autor, mas a uma operação capaz de produzir suas obras. Uma condição que poderia determinar o reconhecimento do perfil de um autor ou de cada artista, mesmo que sua obra não se mostre homogênea. Não quis me referir ao “estilo”, pois na psicanálise o estilo não possibilita a produção de um traço que possa sequer identificar o analista em sua prática.

Através de sua arte o artista pode até mesmo fissionar o significante e introduzir no in-mundo algo como uma imagem, uma escultura, um texto. Ele pode procurar com isso, sem saber, contornar, limitar, ou mesmo tornar ausente isso que Freud identificou como A Coisa.

Qualquer processo criativo que venha comparecer nas diferentes formas de “arte”, nas Belas-Artes, como uma produção de gozo capaz de justificar sua existência num espaço público, mesmo que ela venha ocupar o lugar do vazio, ela não poderá tamponar ou desfazer o buraco do real que causa o sujeito. Só dará ao objeto que vem substituir ao objeto [a] a dignidade da Coisa, essa condição do real que padece do significante e que, por uma condição lógica e descritiva, será sempre representada por “outra coisa”.

A ARTE se converte num instrumento para que, através de um elemento estético ou mesmo de uma natureza ética, o artista venha criar com sua obra um lugar que possa dar acesso àquilo que não se pode ver ou falar — o real.

A Arte, portanto, é a produção de algo que possibilita uma visibilidade do que não se pode ver. Ela serve para se produzir algo onde o irrepresentável, o que causa horror do real possa ser mostrado através de uma representação. Ou aquilo que no pensamento é impensável, possa aparecer. Ou ainda onde aquilo que não se pode dizer ou ver do real, possa ser mostrado. Desta maneira, se o que o pode ser dito, pode ser visto e vice-versa, o visível e o dizível se recobrem na obra de arte.

Se uma obra de arte reserva para o artista uma quota de gozo que tem justificado sua condição de sofrimento, ou mesmo de horror causado pelo real em sua ex-sistência, também para cada um que é capturado e afetado por ela, isso goza. A arte, de alguma maneira, vem interrogar os efeitos que esta condição de gozo pode determinar para o artista e para o observador, onde cada um sofre à sua maneira.

A Arte serve para aplacar, circunscrever, minimizar o horror do real. Diferentes pedaços do real vêm causar o desejo e produzir gozo, como uma condição que leva o artista a produzir sua arte. Não é, portanto, o objeto de arte que produz o artista. Ela se revela fazendo parte da produção de um artista, sendo capaz de determinar um conjunto para sua obra. Trata-se de algo que pode até mesmo se diversificar no tempo e em diferentes doutrinas, como causa de uma miragem que venha dar suporte para uma noção idealizada das realidades do artista.

Uma produção artística pode se constituir num conhecimento estético, ou mesmo se transformar num tipo de objeto que possibilite uma narrativa ou uma descrição que venha se converter num tipo de janela para aquilo que se chama a História. Mesmo que uma peça ou uma obra de arte possa ser tratada como parte de um conjunto, em que se pode se identificar, ou seguir o traço de um artista, em sua singularidade ela não deve ser vista como algo que contenha uma homogeneidade. Por isso mesmo, Lacan chega a afirmar que as obras de arte, assim como as religiões são uma lata de lixo, não guardam qualquer homogeneidade.

O que é essencial, portanto, é que em nenhum caso de uma produção artística, pode-se produzir um Ato que venha determinar um efeito sujeito. Nos atos criativos dos artistas, as noções de Ato, de Repetição e, sobretudo, a Invenção são fundamentos excluídos de suas realizações. O que se pode considerar como um ato criativo do artista está “fora” do discurso, não obedecendo à pequena etiqueta do discurso analítico.

Por isso mesmo, a arte é algo incapaz capaz de realizar e, sobretudo, inventar o Saber inconsciente. Nenhum Ato criativo realiza um dispositivo topológico e discursivo que possa produzir esta resposta do real que é o sujeito do inconsciente. No ato criativo não existe um discurso onde se possa revelar a languidez desse ser do sujeito como lugar de gozo que o identifica ao próprio objeto [a]9.

Com sua arte, o artista pode mesmo fazer um Nome, um Nome-Próprio, até mesmo um Sinthoma, inscrevendo no real algo do simbólico. Condições que podem convocar a psicanálise ou os psicanalistas a falarem algo sobre eles.

Todavia, quando a psicanálise é convocada para tratar destas questões, ela se realiza como psicanálise em extensão. Uma condição diferente da psicanálise aplicada, já que esta não existe.

Na análise em intenção, o objeto [a] se produz como um efeito do discurso analítico, realizando-se como mais-gozar. Uma condição que escapa não só a uma medida comum com o significante, mas à idéia de uma universalidade, desde quando o objeto [a] é incomensurável e irracional. O sujeito no Ato que o funda, torna-se equivalente a um lugar de gozo, ao efeito da repetição e mesmo àquilo que diz respeito ao mais além do princípio do prazer. Condições essenciais da Ética que regula a psicanálise: a do Bem-Dizer, que se separa dos ideais, do prazer e mesmo do Bem-Estar.

 

REFERÊNCIAS

LACAN, J., Seminário 21, Les non-dupes errent, aula de 09/04/1974. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale.         [ Links ]

LACAN, J., Seminário 15. L'acte psychanalytique, aula de 29/11/1967. Publicação interna da Associação freudiana internacional.         [ Links ]

LACAN, J., Seminário 24. Le Sinthome, aula de 11/05/76. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale.         [ Links ]

LACAN, J., Seminário 21. Les non-dupes errent, aula de 18/12/74. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale.         [ Links ]

KLEIN, M., Situações infantis de angústia refletidas em uma obra de arte e num impulso criador. In:____. Contribuições à Psicanálise. Rio de Janeiro: Mestre Jou, 1980. p. 289/293.         [ Links ]

LACAN, J., Subversion du sujet et dialectique du désir dans l'inconscient freudien. In: ____. Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 819.         [ Links ]

 

 

1Baudelaire, C., L’Héautontimorouménos In : Les fleurs du mal. As flores do mal. Rio de janeiro: Nova Fronteira. A tradução é de minha responsabilidade
2Lacan, J., Sem. XXI, Les non-dupes errent, aula de 09/04/1974. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale.
3Idem, aula de 15/01/74.
4Lacan, J., sem. XV, L’acte psychanalytique, aula de 29/11/1967. Publicação interna da Associação freudiana internacional.
5Idem, aula de 20/05/68. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale.
6Lacan, J., Sem. XXIV, Le Sinthome, aula de 11/05/76. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale.
7Lacan, J., Sem. XXI, Les non-dupes errent, aula de 18/12/74. Publicação interna da Association Lacanienne Internationale.
8Klein, M., Situações infantis de angústia refletidas em uma obra de arte e num impulso criador, em Contribuições à Psicanálise, Mestre Jou, 289/293.
9Lacan, J., Subversion du sujet et dialectique du désir dans l'inconscient freudien, Écrits, Seuil, 1966, p. 819.

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