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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.5 no.3 Ribeirão Preto dez. 1997
PROCESSOS SOCIAIS E DESENVOLVIMENTO
A importância do outro na transmissão e apropriação do conhecimento e na construção da consciência de si e do mundo
Sandra Francesca Conte de Almeida1
O socius ou o outro é um parceiro perpétuo do eu na vida psíquica. (Wallon, H., 1946).
A afirmação de Wallon aponta, de forma inequívoca, para a importância do outro social no desenvolvimento da subjetividade do ser humano e na constituição da consciência de si e do mundo. As concepções da tradição filosófica, e de algumas correntes da psicologia, segundo as quais a consciência é uma realidade individual, derivada da introspecção do mundo íntimo e subjetivo, dão origem à idéia de que o sujeito toma consciência de seu próprio eu antes de tomar consciência do alter eu. A consciência seria uma "entidade" primitiva e essencialmente individual e a consciência do eu seria adquirida por intuição, introspecção ou experiência direta, enquanto o outro eu seria conhecido por analogia ou por projeção do primeiro sobre o segundo (Wallon, 1946).
Para afirmarmos a importância do outro no desenvolvimento da personalidade do sujeito, seja no nível da consciência de si e do mundo, seja no nível da constituição da sua subjetividade e do desenvolvimento de suas funções psicológicas superiores, no seio da família e da escola, servir-nos-emos de dois referenciais teóricos: a psicologia genética de Wallon e a teoria psicanalítica, formulada por Freud e relida por Lacan. Tanto uma quanto outra acentuam o papel e a importância do outro na vida psíquica da criança e afirmam que a consciência de si e a formação do eu se desenvolvem em estreita dependência do outro.
A FORMAÇÃO DO EU E DO NÃO-EU, EM WALLON
Para Wallon (1979)
"a consciência não é a célula individual que deve abrir-se um dia sobre o corpo social, é o resultado da pressão exercida pelas exigências da vida em sociedade sobre as pulsões de um instinto ilimitado que é exatamente o do indivíduo representante e joguete da espécie. Este eu não é pois uma entidade primeira, é a individualização progressiva de um libido ao princípio anônimo ao qual as circunstâncias e o curso da vida impõem que se especifique e que entre nos âmbitos de uma existência e de uma consciência pessoais" (p. 150).
O estado inicial da consciência, na concepção walloniana, é confuso e nebuloso, pois sujeito e realidade exterior se confundem. A simbiose afetiva com o outro cede progressivamente, pela influência do meio e das interações sociais, e a distinção entre o eu e o não-eu, inicialmente categorias indiferenciadas, dá-se através de um processo que ocorre no sentido da socialização para uma crescente individuação. A primeira categoria a se recortar é, para Wallon, a da consciência do eu e a segunda a do não-eu. Wallon não admite, portanto, a concepção piagetana de autismo e egocentrismo, como etapas do desenvolvimento infantil, pois essa concepção supõe a passagem de uma consciência individual (egocêntrica) para uma consciência social. "Não há autismo e depois egocentrismo: sistema fechado que deverá mais tarde abrir-se às exigências da compreensão recíproca em meio social" (Wallon, p. 150). Para Wallon, o indivíduo é essencialmente social, desde a origem, em função "desse estranho essencial que é o outro" (p. 156). A distinção entre o eu to não-eu resulta de uma "bipartição mais íntima entre dois termos que não poderiam existir um sem o outro, apesar de ou porque antagônicos, um que é uma afirmação de identidade consigo mesmo e o outro que resume o que é preciso expulsar dessa identidade para a conservar" (Wallon, p. 156).
Na concepção walloniana, portanto, o outro se constitui como um elemento essencial, estruturante da formação do eu, e a consciência se si e do outro (e do mundo) se elaboram a partir do estabelecimento de uma relação conflitual entre o eu e o não-eu. No percurso de desenvolvimento da pessoa, Wallon aponta que a diferenciação entre a realidade objetiva e a realidade subjetiva ocorre, primeiramente, no nível do recorte de um eu corporal, condição para a construção do eu psíquico. Este, por sua vez, é o resultado de um processo crescente de individuação, em que os conflitos, os confrontos e as crises de oposição entre o eu to outro assumem um papel fundamental: o da construção da pessoa humana, progressivamente mais diferenciada e individuada. O socius, incorporado e expulso, em fases alternadas de conflitos interpessoais, no desenvolvimento da pessoa, "é normalmente reduzido, inaparente, recalcado e como que negado pela vontade de dominância e de integridade completa que acompanha o eu" (Wallon, 1979, p. 156). Mas, adverte Wallon, trata-se de um "desaparecimento por redução, mas não eliminação total" (p. 157). Na análise de Pino (1993) "a consciência da própria subjetividade, nascida na oposição/reconhecimento do 'outro* como um 'não-eu', permite ao 'eu' distanciarse do modelo mas não liberar-se das marcas que ele deixou no 'eu', como signo agora da relação 'eu-outro' " (p. 19). É neste sentido, e na afirmação de Wallon de que o indivíduo é geneticamente social, que se compreende a citação em epígrafe: o socius ou o outro é um parceiro perpétuo do eu na vida psíquica.
Por outro lado, com a teoria das emoções (Wallon, 1987) e o estabelecimento de seu papel nas interações da pessoa com o meio social, Wallon reafirma a importância das ações e das atitudes do outro no desenvolvimento da personalidade. As emoções da criança agem, primeiramente, sobre o meio humano e social, e, secundariamente, sobre o meio físico. Ao interpretar as manifestações e reações emotivas do bebê, isto é, a afetividade corporificada dos primeiros meses de vida, o outro lhes atribui um sentido, um significado, ou seja, responde, da posição de sua própria subjetividade, às manifestações puramente orgânicas e viscerais (emocionais) da criança. Pela sua ação, o outro transforma, pouco a pouco, disposições orgânicas de bem-estar ou mal-estar em expressão de disposições afetivas. É o outro social que, pelas relações e interações sociais e afetivas que propicia à criança, permite sua entrada no mundo simbólico da linguagem e da cultura.
As emoções que, na psicologia genética de Wallon, constituem as primeiras manifestações sociais da criança e situam-se na origem de toda linguagem, servir-nos-ão como ponte de passagem para destacarmos a importância atribuída ao outro, pela teoria psicanalítica, na constituição da subjetividade humana. Com efeito, já acentuamos, em trabalho anterior (Almeida, 1993), a proximidade do pensamento de Wallon com o de Lacan, no que se refere ao papel do outro na formação do eu.
A FUNÇÃO DO OUTRO NA ESTRUTURAÇÃO IMAGINÁRIA DO EU, EM LACAN
As reações da criança diante do espelho servem para exemplificar, em Wallon, a formação do eu corporal, isto é,"a integração do corpo das sensações ao corpo visual, (...) à junção do corpo tal como sentido pelo próprio sujeito à sua imagem tal como vista pelos outros" (Galvão, 1995). Frente ao espelho, a criança leva um certo tempo para se reconhecer na imagem refletida.
Em Lacan (1966), o "estádio do espelho" é a metáfora utilizada para dar conta da identificação primordial da criança com esta imagem "outra", promotora da estruturação do eu e da conquista progressiva da imagem do corpo próprio. É através da imagem especular que a criança toma consciência de si e do outro. Para Lacan, o estádio do espelho situa-se entre os seis e os dezoito meses de idade e é por uma antecipação imaginária que o corpo é percebido como corpo unificado.
"O estádio do espelho é um drama cujo alcance interno se precipita da insuficiência para a antecipação e que, para o sujeito, preso no logro da identificação espacial, trama os fantasmas que se sucedem de uma imagem esfacelada do corpo para uma forma que chamaremos ortopédica de sua totalidade" (Lacan, p. 97).2
O estádio do espelho é a matriz simbólica onde o Eu (Je) se precipita em uma forma primordial e o eu (moi) assume seu princípio constitutivo de alienação no imaginário. O estádio do espelho é uma experiência estruturante do sujeito, pois permite não apenas o re-conhecimento de sua imagem própria como também a do outro, o seu duplo, o alter-eu. Este eu-ideal (ideal-ich) assim constituído imaginariamente, invoca uma função essencialmente narcísica, que "comporta uma identificação primária com um outro ser, investido de todo o poder, isto é, a mãe" (Lagache, s.d., citado por Richard, 1977, p. 120).
A estruturação do eu requer, portanto, uma relação imaginária e uma identificação narcísica a um outro, elevado à categoria de Outro, o que marca a captação e a alienação do sujeito à sua própria imagem ou à imagem do outro. Esta relação dual, especular, entre o eu e o outro é caracterizada, sobretudo, pela agressividade e pela identificação com a imagem do outro, pois trata-se de uma relação imaginária, intersubjetiva, a qual atesta que o eu não constitui o sujeito como tal, sendo apenas sua fachada imaginária. Para que a criança se constitua como sujeito, será necessário que se insira na ordem da linguagem, do simbólico. Na construção da subjetividade desejante, o Outro é convocado novamente, mas na posição de sujeito marcado pela falta-a-ser. Para concluir, sobre o papel do outro, na estruturação imaginária do eu, resta-nos reafirmar, com Richard (1977), que "é por uma identificação com a sua imagem e com a de outrem que a criança realiza a sua própria unidade. O seu Eu é constituído na origem como seu outro. O Eu e o outro têm, pois, não só uma origem comum, mas uma estrutura comum" (p.121)
A psicanálise acentua a importância das relações afetivas entre a criança e os pais e aponta a função estruturante do Complexo de Édipo na formação psicossexual do ser humano. "O sujeito constitui-se como tal no seio da situação edípica, porque, se o superego e o caráter se formam em consequência do que acontece nela, então esta situação aparece como estruturante do sujeito" (Bleichmar, 1984, p. 14). Pode-se dizer que o Édipo marca a passagem do biológico para o cultural, no sentido de que promove o acesso do infans à lei simbólica do Pai, inserindo-o, via linguagem, na ordem da cultura. A relação imaginária, dual, com a mãe cederá e, pela função paterna, significante da lei, a criança será inserida numa relação trinaria. A saída do Édipo, a criança terá recalcado seu desejo pela mãe e ,via identificação com a imago paterna, novas possibilidades desejantes lhe são abertas. A ordem simbólica, instaurada pela função paterna, introduz a mediação necessária na relação imaginária mãecriança, promovendo a passagem do princípio do prazer ao princípio da realidade e permitindo o advento do superego ou supereu que é, na expressão de Freud, o herdeiro do Complexo de Édipo.
O outro, cuja função permite a construção da consciência de si e do mundo, estende a sua influência por todas as etapas do desenvolvimento da criança, como outro significativo, tanto no contexto das relações socioafetivas, no interior da família, quanto no contexto da escola e de outros grupos sociais. O outro é fonte de identificações e de modelos que, (re)signifícados e internalizados pela criança, constituirão a base e o núcleo de seu eu e de seus ideais e valores, representados pela instância do supereu. Os padrões de relação intersubjetiva estabelecidos entre a criança e o Outro primordial constituirão a matriz de toda a relação do sujeito a outrem, isto é, serão (re)atualizados (inconscientemente) nas escolhas de objeto, marcando a particularidade de cada um na inserção da cultura, no estabelecimento dos laços sociais e na constituição de uma subjetividade, cuja organização tenderá para a formação de uma estrutura psíquica determinada.
A passagem pelo Édipo, bem como a afirmação do eu, em termos de uma identidade psíquica, não se dá, sempre, de forma pacífica. Situações de crise, de conflitos, de ambivalencias e de regressões marcam as renúncias às pulsões e a entrada da criança na cultura. É importante ressaltar, aqui, que as renúncias impostas pela situação edípica têm valor, a um só tempo, subjetivo e culturaleducativo. A angústia de castração, vivida no Complexo de Édipo, institui a falta que cria o desejo e permite, por outro lado, aceder à afirmação de si próprio, amar, criar , trabalhar, viver em sociedade.
Também Wallon (1950), ao descrever o desenvolvimento psicológico da criança, observa que o ritmo pelo qual suas etapas se sucedem é descontínuo, marcado por crises, conflitos e rupturas. As crises e conflitos não são considerados fatores negativos, mas fatores que impulsionam e dinamizam o desenvolvimento, sempre marcado, em suas etapas, por predominância ora afetiva ora cognitiva.
Procuramos apresentar, de forma sucinta, como a psicogenética walloniana e a teoria psicanalítica atribuem ao outro uma função insubstituível no processo da tomada de consciência de si e do mundo e na constituição da subjetividade humana. Da mesma forma, procuraremos, agora, articular o papel desse outro na transmissão e apropriação do conhecimento, na medida em que esse outro, investido da autoridade de professor, educador ou mestre, exerce influência na formação da personalidade dos alunos, a partir dos modelos de relações interpessoais estabelecidos, dos conteúdos selecionados para o ensino, e dos valores éticos, políticos e sociais presentes, de forma explícita ou oculta, nos modos de mediação do conhecimento.
O PAPEL DO PROFESSOR E DA ESCOLA NO DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE
Na nossa concepção, as finalidades da educação devem visar a formação integral do ser humano, considerado, portanto, nos seus aspectos evolutivos, psicossociais, afetivos, e político-culturáis. Esses aspectos comporão uma subjetividade particular, isto é, os seus modos de integração e de expressão caracterizarão a singularidade de cada pessoa, tornando-a única entre todas as outras. No entanto, a particularidade de cada um deve conviver com a particularidade e a diversidade de tantos outros, pois o ser humano não habita apenas a sua própria ilha; antes, pelo contrário, habita uma "aldeia global". Neste sentido, os objetivos educacionais não devem visar apenas a formação do indivíduo e a livre expressão de seus desejos e interesses, como também não deve orientar-se tão somente para objetivos socialmente determinados, que pretendem, em nome do funcionamento harmonioso da sociedade, moldar e adaptar os indivíduos à ordem social vigente. A dicotomia indivíduo-sociedade, presente em muitas teorias e práticas educativas, pode ser superada, se a escola e os professores visualizarem e praticarem uma pedagogia e uma psicologia que tenham como base a compreensão do desenvolvimento da criança como resultante da interação dialética entre o indivíduo e o outro (ou o meio), tal como postulam Wallon e a psicanálise.
Em Wallon, como já afirmamos em outra ocasião,
" a educação não é uma qualidade contingente da infância, mas uma qualidade que lhe é inerente, própria à sua natureza e condição. Na criança, desenvolvimento, aprendizagem e educação são aspectos complementares, sendo que a dialética dessa interação é que permite superar a antinomia indivíduo-sociedade" (Almeida, 1995, p. 25).
Esta questão, tal como colocada pelo autor, tem grande importância se pensarmos nas conseqüências que acarreta, no nível das práticas educativas e, principalmente, da formação para a cidadania, isto é, para o exercício pleno da dignidade humana, que comporta a expressão da subjetividade individual e a expressão da subjetividade social, sem que uma, necessariamente, se conforme ou aniquile a outra.
Para Wallon, a formação e a função desempenhada pelos professores, bem como os conteúdos a serem ensinados, têm grande relevância no desenvolvimento da personalidade infantil. Um dos princípios básicos, inferidos da teoria walloniana, que pode orientar, positivamente, a atitude pedagógica do professor, é o reconhecimento de que não se conhece a criança se não se conhecem as condições concretas de sua existência e a natureza das sucessivas e diferenciadas relações que ela estabelece, ao longo do desenvolvimento, com seu meio familiar, social e cultural. Na expressão de Tran-Thong (1969), a criança acede ao estatuto de ser humano através de uma verdadeira osmose biossocial. Por isto, "o mestre que verdadeiramente tenha consciência de sua responsabilidade deve (...) solidarizar-se com seus alunos, aprendendo deles suas condições de existência" (Wallon, s.d., citado por Palacios, 1978, p. 150).
Na formação dos educadores, Wallon insiste na necessidade de uma cooperação recíproca entre a Pedagogia e a Psicologia, incluindo também, no campo pedagógico, conhecimentos advindos da Neuropsiquiatria e da Sociologia. O objetivo da Educação, para Wallon, é o conhecimento da criança como um ser total e, para isto, a Pedagogia deve constituir-se comouma pedagogia científica, capaz de elaborar métodos e técnicas de estudo e de investigação que levem em conta os vários componentes da personalidade infantil. Wallon recomenda, aos professores, o uso do método da observação como fonte privilegiada de conhecimentos sobre a criança, pois seu ensino não deve ser apenas livresco, composto de fórmulas abstratas e mal-compreendidas.
A escola é um dos grupos sociais que maior influência exerce sobre a vida da criança, pois é responsável por grandes transformações nas suas condições de existência. Wallon chega a dizer que "a escola é toda a vida da criança" (1948, citado em Tran-Thong, 1969, p. 77). Assim, é grande a responsabilidade da escola e dos professores, pois, para Wallon, o desenvolvimento da inteligência, na criança, está estreitamente ligado ao desenvolvimento de sua personalidade total. A escola, segundo Wallon, tem várias funções e objetivos a cumprir, de acordo com as características das diferentes etapas do desenvolvimento infantil. A escola maternal, por exemplo, deve preparar a emancipação e a autonomia da criança, através de sua iniciação em atividades de grupos, favorecendo o desenvolvimento da solidariedade e da cooperação, ao invés da inveja e do ciúme. Na idade escolar, propriamente dita, os educadores devem desenvolver, na criança, o espírito de iniciativa e de cooperação, bem como a ajuda e a cooperação inter-individual. Nesta importante fase de individuação, Wallon (1979) acredita que "é mau tirar proveito desta idade da criança para desenvolver nela o espírito de concorrência e de antagonismo coletivo" (p. 211). É fundamental, diz ele, que haja "tomada de consciência, pelo indivíduo, do grupo de que faz parte, há tomada de consciência pelo grupo da importância que pode ter em relação aos indivíduos" (pp. 210-211). O acesso aos valores sociais e ao espírito de responsabilidade são finalidades educativas que a escola deve procurar desenvolver nos adolescentes, evitando "que se instituam entre os seus alunos distinções dada a sua origem social ou étnica" (p. 219).
A educação, tal como proposta por Wallon, é uma verdadeira formação para o desenvolvimento pleno da noção de cidadania, onde o outro, o professor, assume uma responsabilidade total. Para Wallon, nenhum conhecimento ou conteúdo de ensino pode ser desvinculado da análise da realidade social e política na qual estão inseridos os alunos. A prática pedagógica deve valorizar a expressão do eu sem exacerbar as tendências competitivas e individualistas; deve ensinar conteúdos que não camuflem a realidade e as contradições sociais e que permitam à criança e ao adolescente escolherem valores sociais e morais que não resultem em submissão e conformismo, mas que promovam o desenvolvimento da pessoa, nas suas dimensões individual e social. Para Wallon, sem dúvida, a escola é um espaço privilegiado de vivência da cidadania, onde os conteúdos de ensino e as atitudes pedagógicas do professor são organizados e planejados de modo a atender o princípio de justiça social e de desenvolvimento integral da pessoa. Tal perspectiva supõe, necessariamente, que "o relacionamento do professor (adulto) com o aluno (criança), se dará sob novas formas, já que a educação deverá elaborar um novo conceito de infância (Almeida, 1995, p. 26). Miguel Arroyo, Secretário Municipal Adjunto de Educação de Belo Horizonte, partilha a mesma opinião, pois a sua proposta de política educacional para o município advoga "uma escola viva, em que se viva a cidadania e não uma escola onde se sonhe um dia ser cidadão. A infância já é cidadã, é ser vivo, é ser cultural já, é ser social já" (Arroyo, 1995, p. 21).
A IMPORTÂNCIA DAS RELAÇÕES INTER E INTRASUBJETIVAS PROFESSOR-ALUNO
Do ponto de vista da teoria psicanalítica, o professor assume um papel significativo na transmissão, construção e apropriação do conhecimento em função, principalmente, das relações inter e intra-subjetivas que estabelece com os alunos. Para Richard (1977)
"é característico da escola colocar permanentemente a transmissão do saber numa relação professoraluno, que é o seu fundamento. Desde logo, se a psicologia consiste em compreender o sentido da relação e em desenvolver a palavra do sujeito, encontra na escola um meio privilegiado de inserção e de razão de ser3 , porque a atividade escolar subentende uma atividade psicológica intensa e de todos os instantes, em que entra o desenvolvimento afetivo e intelectual da criança (...) " (p. 16).
Na nossa concepção, entendemos o ensino e a aprendizagem como um processo único, interativo e dialógico, pois não há ensino sem transmissão de conhecimento a um outro, suposto aprendiz, assim como não há aprendizagem sem a mediação de um outro, suposto detentor de um saber. Ensinar e aprender constituem, portanto, ao mesmo tempo, um processo e uma relação, pois só adquirem sentido, como função, na medida em que o processo se realiza na relação. Essa relação, no entanto, não é simétrica, mas assimétrica, pois trata-se da relação de um adulto (professor) com uma criança/adolescente (aluno), no caso do ensino fundamental e médio. Por outro lado, a assimetria estará sempre presente, no ensino-aprendizagem, já que um dos sujeitos da relação, o professor, é investido e reconhecido como autoridade pelo outro sujeito, o aluno, aquele sobre o qual o professor projetará seus ideais e expectativas. O processo de transmissão, aquisição e apropriação do objeto de conhecimento dar-se-á, de forma harmoniosa ou conflitiva, em função das características e padrões relacionais que estabelecer-se-ão entre os dois sujeitos em relação.
A psicanálise fornece um aporte teórico que nos permite melhor compreender e aprofundar a complexidade das relações professor-aluno e a influência que exercem, no processo de mediação do conhecimento. O sucesso ou fracasso desse processo não se situa apenas nas condições objetivas e concretas nas quais se realiza, e nem se explica, tão somente, pelos níveis de dificuldade do ensino transmitido ou pela capacidade de compreensão do aluno.
Para a psicanálise, processos inconscientes do professor e do aluno atuam na relação pedagógica, de modo que estão nela presentes e articuladas, intimamente, as dimensões do desejo e do saber. A escola, muitas vezes, nega o aluno como sujeito desejante, enxergando-o apenas como sujeito epistêmico, sujeito cognitivo, pura razão. No entanto, a criança transfere para o mestre, símbolo da autoridade parental, toda uma série de sentimentos, de afetos e de expectativas que se referem às experiências pulsionais vividas primitivamente com os pais. A transferência, na relação pedagógica, é o processo inconsciente pelo qual o aluno atualiza, no presente, na pessoa do professor, o protótipo de uma relação vincular passada. O professor, por sua vez, como depositário desses desejos, que oscilam do amor à hostilidade, devido à ambivalência das relações amorosas primitivas, principalmente em relação ao pai, pode responder pela sedução, pelo exercício de um poder onipotente, pela omissão ou pelo reconhecimento de que se trata de uma relação imaginária, logro resultante de projeções e identificações inconscientes. Quando seduzido egoicamente pelo poder e autoridade que lhe confere o desejo de saber do aluno, o professor confunde saber e verdade. Seu conhecimento é inquestionável, só ele tem direito à palavra. Quando seduz o aluno, aprisionando-o numa relação de dependência e de exclusividade, não permite o seu crescimento, a sua autonomia e a expressão do seu eu, sustentando, na criança, a fantasia da imagem especular. Responder pela omissão significa nada querer saber sobre o desejo do outro, deixando-o abandonado ao drama de seus fantasmas e conflitos. Configura-se, aí, um campo de relações imaginárias, onde, em cada uma delas, o aluno jamais terá direito à palavra, único meio de expressão de seu desejo, pois só se sai do campo imaginário das identificações e projeções, pelo simbólico. Por isso,
"para que a escola e o educador cumpram uma função 'continente', capaz de abrigar e de conter, em seu interior, as múltiplas, surpreendentes e conflitantes manifestações do desejo infantil, há que se reconhecer que o que a criança deseja é ser amada. E épelapalavra epelo desejo do Outro que a criança se reconhecerá e espera ser reconhecida" (Almeida, 1995, p. 10).
Não é sem angústia e sem medo que a escola se tornará um lugar privilegiado de acesso da criança à palavra, pois não é fácil renunciar à onipotência e ao poder conferidos pelo saber como equivalente da verdade. O confronto com a palavra do outro e com a expressão do seu desejo é sempre angustiante, pois remete o educador, inevitavelmente, à sua falta, à diferença, até então obturadas por uma fantasia de completude, a cuja função se prestava o conhecimento, investido imaginariamente.
No campo específico do contexto escolar, o professor deve, portanto, deixar aos alunos um espaço para o questionamento e a contestação de seu ensino e de sua palavra, pois, "se deixar na sua palavra uma articulação possível entre o saber que representa e a verdade que visa, os conflitos de grupos, na escola, passarão a um nível simbólico, em que a palavra mediatizará os conflitos" (Richard, 1977, p. 44).
Estamos, com base na teoria psicanalítica, valorizando a importância da sensibilidade do professor na relação educativa, pois, como escreveu Freud (1969), a propósito de um encontro casual que teve com um de seus velhos mestre-escola, "é difícil dizer se o que exerceu mais influência sobre nós e teve importância maior foi a nossa preocupação pelas ciências que nos eram ensinadas, ou pela personalidade de nossos mestres" (p. 286).
Na realidade, embora os conteúdos a serem transmitidos, na escola, tenham, em si, valor educativo, na medida em que promovem o acesso à cidadania e desenvolvem valores éticos e sociais, a personalidade do professor, na mediação desse conhecimento, assume um papel decisivo. A relação professoraluno depende, em grande parte, da constituição subjetiva inconsciente do professor e de seu grau de maturidade afetiva. A reação do professor às manifestações dos sentimentos ambivalentes do aluno e ao seu desejo (ou não desejo) de saber depende, sobretudo, de seu próprio desejo inconsciente.
"Pode projetar no aluno suas próprias fantasias e seu Ideal de Eu e enveredar por embates e rivalidades imaginários, que alienam e subjugam o desejo da criança ao desejo inconsciente do professor. Pode, inversamente, articular essas moções infantis ao nível da linguagem simbólica, permitindo à criança expressar, pela palavra, seus desejos, conflitos e tensões" (Almeida, 1995, pp. 9-10).
Com esta breve análise psicológica do papel do outro na constituição da consciência de si e do mundo e na transmissão e aquisição do conhecimento, com apoio nas teorias psicogenética e psicanalítica, esperamos ter contribuído com uma reflexão construtiva sobre as possibilidades de uma educação voltada para a formação integral do sujeito, compreendido, dialeticamente, como indivíduo e socius, condição para o desenvolvimento da subjetividade e para o exercício pleno da cidadania.
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(1) Endereço: Instituto de Psicologia - Laboratório de Psicogênese - ICC Ala Sul - Campus Universitário Darcy Ribeiro - 70910-900 - Brasília - DF. Tel. (061) 348-2664, FAX: (061) 349-9747
(2) A autora deste trabalho autorizou a tradução, para o protuguês, da citação original, em francês
(3) O grifo é do autor da citação