56O medo sem face na pandemia da covid-19Breve revisão das "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise" (Freud, 1912) em tempos pandêmicos 
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Estudos de Psicanálise

 ISSN 0100-3437 ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  no.56 Belo Horizonte jul./dez. 2021

 

MESAS E TRABALHOS – XXVI CONGRESSO DO CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE - PARA ALÉM DA PANDEMIA: ECOS NA PSICANÁLISE

 

Uma vida paralela na UTI: a escuta psicanalítica do paciente pós-covid 191

 

A parallel life in the ICU: the psychoanalytic listening of the post Covid 19 patient

 

 

Elizabeth Samuel LevyI, II

I Círculo Psicanalítico do Pará
II Universidade Federal do Pará

 

 


RESUMO

Trazemos fragmentos clínicos autorizados de um paciente em pós-covid, que relatou sua experiência nomeada por ele de "vida paralela" durante o tempo em que ficou entubado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para pacientes com covid-19, o chamado "covidário". Os relatos seriam delírios, fantasias, devaneios? Como sobreviver a 3 meses de hospitalização: 45 dias de UTI e quase 30 dias entubado? Ainda com poucas respostas e muitas perguntas, contamos com as contribuições da psicanálise na escuta clínica para reconstruir a história particular de cada um diante dos destroços deixados até agora pela pandemia e seus efeitos psíquicos. Na e pela transferência, foi possível sair do estado de angústia e desamparo, e atribuir um sentido ao que foi vivido e revivido na UTI.

Palavras-chave: Pandemia, Angústia, Desamparo, Medo, UTI.


ABSTRACT

We are here surviving with many scratches, reverberating the horror still in the memory of the skin. The covid-19 pandemic has summoned us and still summons us to each wave of variants of the coronavirus, to the variations of feelings that throw us into helplessness, anguish and fear. We all seem to be identified with this sequence of anguished expectations in the face of the traumatic reality we are going through. Still with few answers and many questions, we continue and count on the contributions of psychoanalysis in its clinical listening to reconstruct the particular history of each one in the face of the wreckage left so far by the pandemic and its psychic effects. And how to survive 3 months of hospitalization, with 45 days in the ICU and almost 30 days intubated? We will bring authorized clinical fragments of a post-covid patient who reported his experience that he called "parallel life" during the time he was intubated in the Intensive Care Unit (ICU) for patients with Covid 19, the so-called "covidário". Were the reports delusions, fantasies, daydreams? In and through the transference, it was possible to leave the state of anguish and helplessness and assign meaning to what was experienced and relived in the ICU.

Keywords: Pandemic, Anguish, Helplessness, Fear, Intensive Care Unit.


 

Diante das reverberações da pandemia em nós, a psicanálise também teve que se reinventar e escutar de onde o sujeito pudesse falar. As manifestações transferenciais e contratransferenciais ecoam frente ao desamparo, à angústia e ao medo que afetam todos. Gostaríamos de dividir com vocês nossas reflexões sobre as manifestações do sofrimento psíquico vividas e revividas diante da pandemia, que ainda nos assombra sobremaneira. As questões que abordaremos se baseiam no que escutamos na clínica psicanalítica on-line com um paciente que acabava de sair do hospital.

Chamarei de Danilo um paciente de 66 anos, 1,90 m, 125 kg, que contraiu a covid-19 num encontro de família no Natal de 2020. Foi internado e no 6.º dia transferido para a UTI- covid. Seu quadro foi se agravando a cada dia: saturação baixa, pulmões comprometidos; enfim foi entubado e passou quase 1 mês entre a entubação clássica e a traqueostomia (procedimento de ventilação). Entre a vida e a morte, Danilo foi se mantendo. Passou 3 meses internado entre UTI e apartamento com isolamento. Ao receber alta em março de 2021, Danilo pediu imediatamente para ver um analista, pois dizia que precisava entender o que havia acontecido com a "sua mente" no período em que passou na UTI (quase inconsciente o tempo todo).

Danilo foi indicado para mim por uma colega que sabia que, além de psicanalista, eu tinha experiência em hospitais e principalmente em UTI/CTI. No momento em que entrou em contato comigo, os atendimentos estavam apenas on-line, sem chance de encontro presencial. Falamos ao telefone inicialmente e ele dizia:

Preciso entender o que aconteceu, naquela UTI. Eu senti tudo que você possa imaginar. Mas preciso entender. Agora continuo com medo, angústia e vontade de chorar o tempo todo. Dores pelo corpo inteiro. Sequelado sabe?

Para entender sobre Danilo ter ficado internado 3 meses no hospital e 1 mês em UTI, nos remeteremos à intersecção entre psicanálise e hospital. Desde trabalhos anteriores, na minha dissertação Desamparo, transferência e hospitalização em CTI (LEVY, 2008), tenho investido e investigado sobre a escuta psicanalítica em ambulatórios e instituições hospitalares com pacientes inicialmente com demandas após enfermidades orgânicas.

Sabemos que Freud era médico neurologista e sua trajetória foi se desenvolvendo em suas pesquisas clínicas que o levaram a elaborar um método de investigação científica baseado em suas experiências que estavam ligadas, no início de sua prática profissional, a pacientes internados em hospitais para tratamento de doenças orgânicas. Ao atender as histéricas e escutar o que elas tinham a falar, Freud deu um passo fundamental que marca a invenção da psicanálise. Freud deu voz às mulheres e seus sintomas ( Levy , 2008, p. 73). Viemos de uma tradição da psicanálise em que seu criador, que era médico, transformou o leito em divã. Porém, em sua técnica, Freud cada vez mais se distanciou do biológico e foi penetrando na alma humana pela via do reconhecimento dos processos inconscientes.

O hospital é um campo vasto, fértil e ao mesmo tempo árido, que traz consigo os contrastes e a ambivalência da condição humana, num panorama em que a vida e a morte se misturam representados pela dor e pelo sofrimento daqueles que passam por essa experiência (LEVY, 2008, p. 10). Ao se internar na UTI, o paciente fica longe de sua família e de seus amigos, sem seus pertences, muitas vezes sem nada que o identifique, nem mesmo seu nome. Passa a ser um número ou uma patologia. Veste-se com roupas do hospital ou, às vezes, fica sem roupas, dependendo inteiramente de alguém que possa vir ajudá-lo, alimentá-lo ou cuidar de algo que está impossibilitado de fazer sozinho (LEVY, 2008, p. 75).

Além de inúmeras restrições de toda ordem, Danilo está no que se chama de "covidário", sem poder ter nenhum contato externo e familiar, a não ser com a equipe de saúde. Esse nome parece remeter o sujeito ao que se imagina um espaço de pessoas contagiosas e condenadas à morte. Ainda mais que as pessoas que vêm ajudar estão vestidas como astronautas, com roupas especiais para não serem contagiadas.

Esse estado de total dependência em que o paciente de UTI se encontra nos levou a pensar no que Freud ([1950/1895] 1976, p. 336) postula sobre o desamparo inicial, quando afirma, de forma objetiva, a impotência do recém-nascido humano de realizar uma ação específica que garanta sua sobrevivência, além de sua total dependência do outro para a satisfação de suas necessidades. E na UTI o paciente fica totalmente à mercê do outro como um bebê desamparado.

Decat de Moura (2000), que também trabalha com essa hipótese, afirma:

[...] na urgência, em situação de hospitalização, o sujeito é lançado no estado inicial de desamparo, estado que pode se repetir em qualquer momento da vida, revelando a precariedade da condição humana [...] (DECAT DE MOURA, 2000, p. 9).

No paciente que a princípio é hospitalizado pelo sofrimento físico, se revela algo que ele traz consigo e que emerge se presentificando pelo medo do abandono, da morte e fundamentalmente frente ao desamparo.

Danilo passou muitas sessões falando com riqueza de detalhes do que vivera na UTI e que chamou de "vida paralela". Inicia seu relato dizendo que morreu 3 vezes e voltou. Nessa quase morte, lembrava que as pessoas que ele mais amava estavam abandonando-o ou fazendo algo que o descontentava. Seu maior medo era que ele se via impotente diante de sua própria morte. Contou que, nessa vivência de uma vida paralela, seus 3 filhos e sua ex-esposa estavam presentes durante toda a sua hospitalização na UTI.

Mas; eu falava com eles, eles não me escutavam! Eu queria falar e minha voz não saía! Eles vendiam as minhas coisas, usavam meu dinheiro e eu não queria. Por que eles estavam fazendo isso comigo?

E começava a chorar. Assim se passaram várias sessões. E Danilo, ainda em fisioterapia, acamado, cansado e taquicárdico, dizia:

Tenho medo de nunca mais me livrar da covid. Mesmo sabendo que não estou mais com covid, a sensação não passa.

Ao sair de casa para uma consulta médica presencial, Danilo sentia medo e angústia:

Só consigo sentir medo, muito inseguro de sair na rua, parece que sou uma criancinha aprendendo a andar novamente.

Um dia Danilo precisou ir ao dentista e, ao sentir o aparelho de jogar água adentrando em sua boca, ficou em pânico, quase vomitou associando a ideia de voltar a ser entubado. Enfim, muitas reverberações do que foi traumático na UTI, agora sendo revividas em seu dia a dia. Em seu relato, Danilo insistia que não estava sonhando ou delirando ao longo do tempo em que ficou entubado. Foi como se tivesse uma vida paralela. Será que Danilo precisou dessa vida paralela para se manter ligado à vida? Sonho? Devaneios? Delírios? Não temos exatamente como responder, mas podemos tentar refletir sobre essa vida paralela que o sustentou na UTI por um mês entubado, em estado "inconsciente".

Quase morri de verdade. É incrível chegar tão perto assim da morte. Uma vez, eu lembro de meu coração ter parado e eu estava dentro de um caixão. Mas eu abria os olhos e via meus filhos. Senti muito medo deles fecharem o caixão e eu ficar ali sozinho. Será que eles não ligavam para mim? Meus irmãos também estavam, mas eu estava totalmente desamparado!

Danilo disse que antes não tinha medo da morte, mas agora tem. Freud ([1914] 1976), em Reflexões para os tempos de guerra e morte, diz que nossa tendência diante da morte é negá-la. Quando refletimos sobre nossa própria morte, ela permanece inimaginável, porque não temos essa representação no inconsciente. O acontecido com Danilo reflete o real traumático vivido naquela situação entre a fantasia e a realidade. E quando somos convocados a pensar na morte como possibilidade real, mesmo assim, ainda parece difícil de aceitar.

Na pandemia, parece que a pulsão de morte se instalou em forma de angústia, que deixa marcas sintomáticas. É o pathos fazendo suas manifestações das mais variadas formas. Assim estamos vivendo nestes tempos, em que a morte se avizinha, e eu ou você podemos ser os próximos infectados.

Danilo, por várias vezes, relatava que viu a própria morte:

Parece que eu me olhava de cima de mim e que eu queria lutar contra a morte e eu pensava que estava num campo de guerra!

A Grande Guerra, a que Freud se refere ([1915] 2020) em Transitoriedade, radicalizou a transitoriedade dos objetos. Freud se questiona sobre os limites e as possibilidades do trabalho de luto, posto que a guerra destrói não apenas as belezas da natureza e as obras de arte, mas, igualmente e de forma jamais vista, as mais nobres aquisições da cultura, "deixando nua nossa vida pulsional (Triebleben)" (FREUD, [1915] 2020, p. 223-224). Se pensarmos na guerra contra a covid-19, principalmente antes das vacinas, poderemos fazer uma analogia com a Segunda Guerra Mundial e suas consequências psíquicas, principalmente, é claro, naqueles que passaram por ela e a ela sobreviveram.

No caso de Danilo, ele é um sobrevivente que ainda duvida de estar vivo. Parece nu em sua vida pulsional, como sugere Freud em sua analogia da transitoriedade dos objetos diante de uma guerra, da impotência e da finitude. Parece estranho, mas somos até agora sobreviventes desta guerra pandêmica. O trauma comparece nas experiências de cada sujeito afetado, como vimos em Danilo.

Braunstein (2003, p. 93), citado por Ceccarelli e Levy (2020, p. 139) afirma:

O trauma corta a vida em duas partes: antes e depois. Só que aquele que respira depois não e´ o mesmo de antes. Um morreu; outro ficou em seu lugar [...]. Aquele que "voltou a nascer" e´ um lesado, um sonâmbulo que carrega os restos mortais daquele que não voltara´ mais.

Laplanche e Pontalis (1983, p. 678) citados por Levy e Ceccarelli (2020, p. 146) definem:

O trauma se caracteriza pela impossibilidade do indivíduo em responder adequadamente a um afluxo de energia que ultrapassa sua capacidade de elaboração psíquica. Um excesso de excitação que paralisa o sujeito deixando-o sem reação, pois atualiza situações pregressas de desamparo. Como consequência, ocorrem transtornos que podem ter efeitos patogênicos na organização psíquica do sujeito.

A invasão de energia provocada pelo trauma obriga o psiquismo a encontrar outras formas de dar vazão ao excesso produzido pelo acontecimento traumático. Esse excesso só pode ser descarregado através do representante psíquico da pulsão. Caso a ligação pulsão-representante não ocorra, a integridade do sujeito se vê ameaçada.

O trauma se constitui, então, como um

[...] encontro com o real, mas esse encontro e´ coberto por outro encontro onde nos falta a representação, o que causaria esse excesso de excitação do traumatismo [...] o efeito disso e´ o olhar vazio, um sujeito vazio (HARTMANN, 2019, p. 405).

Assim, Danilo segue entre seu próprio estranhamento familiar, entre a quase morte e a meia-vida que se depara. Cada um de nós responde de uma forma diante do inédito da situação traumática, com seus próprios recursos internos e estruturais a lidar com a angústia e o desamparo avassaladores aos quais somos arremessados. Em seus atendimentos on-line, Danilo menciona angústia, medo e falta de ar. Às vezes é uma falta de ar lembrada. A falta de ar mergulhada na angústia, invade o sujeito e o move para um sentimento de desamparo mais primitivo, algo da ordem do ‘insocorrível', como nomeia Ceccarelli (2005) ao se referir ao desamparo de cada um de nós.

No Apêndice B de Inibição, sintoma e angústia ([1926] 1976), na seção Observações suplementares sobre ansiedade , Freud trata do afeto da angústia e apresenta algumas características sobre o assunto. Afirma que a angústia tem relação com a expectativa, tem uma qualidade de indefinição e falta de objeto. Nesse contexto, Freud ([1926] 1976, p. 190) afirma que, em linguagem precisa, emprega-se a palavra "medo" [ Angst] em vez de ansiedade ou angústia.

Freud distingue a angústia do medo, pois o medo estaria sempre ligado a um objeto, (alguém tem medo de algo). A angústia faz abstração dessa determinação do objeto e implica uma indeterminação do perigo (não se sabe o porquê de estar angustiado). A angústia é, por um lado, uma expectativa de um trauma e, por outro, uma repetição dele em forma atenuada. Assim, os dois traços de angústia têm uma origem diferente. Sua vinculação com a expectativa pertence à situação de perigo, ao passo que sua indefinição e falta de objeto pertencem à situação traumática de desamparo – a situação que é prevista na situação de perigo (FREUD, [1926] 1976, p. 191).

Seguindo a sequência angústia-perigo, desamparo-trauma, podemos resumir que Freud ([1926] 1976) sustenta que uma situação de perigo é uma situação reconhecida, lembrada e esperada de desamparo. A angústia é a reação original ao desamparo no trauma e é reproduzida depois da situação de perigo como um sinal em busca de ajuda. O eu que experimentou o trauma passivamente agora o repete ativamente numa versão enfraquecida, na esperança de ser ele próprio capaz de dirigir seu curso.

A vivência de Danilo parece confrontá-lo com sentimentos diversos. E talvez, ao longo da análise, ele possa simbolizar no futuro justamente como acontece com as situações traumáticas que só serão simbolizadas a posteriori. A pandemia da covid-19 nos coloca de frente com sentimentos que nos causam angústia, medo e desamparo. Tantas marcas traumáticas! Tantos medos! Tantas perdas! Quais serão os destinos dessas marcas da pandemia na forma de subjetivação contemporânea?

Antes de finalizar, faremos considerações sobre a escuta psicanalítica para além do divã. Temos debatido bastante sobre os novos dispositivos que a clínica psicanalítica vem utilizando. A clínica on-line nos coloca frente a frente com novos arranjos de um setting possível mantendo o principal: a ética da psicanálise. Repentinamente, nos vimos diante do inédito da técnica, tendo que ressignificar nossa prática sem técnicas preestabelecidas, a não ser a própria que já temos, ancorados em Freud e suas recomendações e regras fundamentais.

A proposta da psicanálise está justamente na possibilidade de oferecer escuta à singularidade do sofrimento psíquico, suas implicações no processo de subjetivação do sujeito, levando em conta as condições de possibilidade da situação atual, priorizando a escuta ao setting tradicional. Ao atender pessoas em condições diversas e adversas, nos deparamos com novas formas de manifestação da transferência. Estamos atendendo pessoas que nunca vimos pessoalmente. Como acontece o estabelecimento da transferência? Como atender pessoas que ficavam no divã e agora estão cara a cara conosco?

Se pensarmos no que Freud ([1912] 1976) postula em Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, podemos fazer uma analogia com este momento virtual. Ele afirma que o analista

[...] deve voltar seu próprio inconsciente, como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente [...] (FREUD, [1912] 1976, p. 154).

Mesmo on-line, devemos nos deixar flutuar para que os inconscientes se conectem. Segundo Lindenmeyer (2020), a conexão com uma pessoa que não está próxima pode remeter o sujeito à sensação de desamparo. A autora afirma que a qualidade da presença do outro tem efeitos paradoxais: de um lado, pode produzir uma dependência e, por conseguinte, aumentar a vulnerabilidade; de outro lado, pode colaborar no surgimento de novas alternativas.

Nesse sentido, afirma Lindenmeyer (2020, p. 2-3),

[...] é fundamental compreender que não se trata apenas de conectar o sujeito a uma resposta, mas de conectá-lo a uma pessoa.

Essa pessoa é o analista, que, na e pela transferência, poderá promover o movimento que transforma numa saída criativa a excitação insuportável ligada ao desamparo. Ao escutar, o analista possibilita que o sujeito se escute. No modo on-line, temos que aguçar nossa atenção para a qualidade dessa escuta, no sentido da própria comunicação, na forma como as associações livres comparecem e na representação do silêncio que, na maioria das vezes, se torna mais enigmático: seria um processo inerente ao momento de elaboração, ou a internet travou?

Dessa forma, gostaria de destacar também as manifestações contratransferenciais que comparecem ao atendermos em settings tão diferentes do divã no consultório. Os atravessamentos desse novo momento em que conhecemos a casa do paciente, ou ele está sentado no vaso sanitário, ou comendo, ou posicionando o celular de forma que você enxerga detalhes de seu corpo que causam sensações no analista. É o encontro com o real do encontro? Que tipo de contratransferência ocorre nesse setting?

Na minha dissertação sobre psicanálise e hospital ( Levy , 2008), durante os atendimentos a pacientes em situação de doenças orgânicas, criei o termo "contratransferência visceral" para designar o impacto do corpo do paciente no corpo do analista, o que causa um certo mal-estar como enjoo, suor frio ou qualquer desconforto, ou até mesmo uma repulsa. Geralmente essas sensações tinham a ver com feridas expostas ou cirúrgicas, ou odores que são peculiares ao setting hospitalar.

Porém, aqui neste modelo de atendimento, também podemos nos sentir atravessados por essas sensações algumas vezes com alguns pacientes como Danilo, que era atendido on-line em sua cama, sem camisa, com marcas pelo corpo, com dificuldade de se locomover, fazendo expressão de dor no rosto durante todo o tempo. As reações contratransferenciais compareciam, mas eram bastante observadas pela analista para que o andamento das sessões fluísse.

Danilo vem atribuindo significados em sua vivência no que chamou de "vida paralela na UTI", podendo ressignificar o que foi vivido e revivido lá, diante do que passou e pelo desejo de saber sobre si. Sua posição na dinâmica familiar, a forma como vinha lidando com os filhos e familiares em geral, tudo parecia começar a fazer sentido quando remonta sua história particular. Em sua vivência de quase morte, relatada em análise, as perdas e os mortos anteriores também reapareceram. Mesmo diante de tanto sofrimento físico e psíquico na UTI, Danilo se manteve vivo! Seus sonhos, seus devaneios ou seus delírios o mantiveram em funcionamento? Foi uma saída na guerra de Eros versus Tânatos?

A escuta psicanalítica, na e pela transferência, ao acessar o inconsciente, possibilitou dar um contorno interessante em sua "quase morte". Na análise, foi possível que Danilo pudesse nomear os vivos e os mortos. E agora as perguntas se tornam questões. Ao falar em análise, ao querer saber sobre si, talvez Danilo não seja apenas um sobrevivente advindo de uma batalha entre a vida e a morte, mas alguém que possa se apropriar de sua história de vida.

Ao se escutar, Danilo parece atribuir significado não somente ao que aconteceu consigo no auge de seu desamparo vivendo e morrendo naquele hospital, mas para que possa simbolizar seus conflitos familiares, seus traumas e dar alguma direção ao seu desejo.

 

Referências

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Recebido em: 12/11/2021
Aprovado em: 28/11/2021

 

 

SOBRE A AUTORA

Elizabeth Samuel Levy
Psicanalista e sócia fundadora do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).
Psicóloga pela Universidade Federal do Pará. (UFPA).
Mestre em psicologia clínica e social (UFPA).
Especialista em psicologia hospitalar pelo Conselho Regional de Psicologia 10.ª Região.
Pesquisadora do Laboratório de Psicanálise e Psicopatologia Fundamental (UFPA).
Presidente do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA) 2020/2024, filiado ao Círculo Brasileiro de Psicanálise (CBP) e associado à International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS).

E-mail: bethslevy@gmail.com

 

 

1 Trabalho apresentado no XXIV Congresso de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise - Para além da pandemia: ecos na psicanálise, realizado pelo Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro, de 4 a 6 nov. 2021, por meio da plataforma Zoom.

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