SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.44 número73Linguagem de alcance psicanalítico: uma diferença transcendentalPorcelana índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo jan./jun. 2022

 

LANÇAMENTOS

 

 

Os poetas românticos e a psicanálise: a religião da mente1

 

The romantic poets and psychoanalysis: the religion of the mind

 

 

Meg Harris WilliamsI; Tradução: Tania Mara Zalcberg

ILondres / megwill@gmail.com

 

 

Bion disse que os românticos foram os primeiros psicanalistas (repetindo Freud, mas de modo mais enfático). Em que sentido isso é verdadeiro? Evidentemente, se por psicanálise, ou protopsicanálise, queremos dizer a investigação da condição espiritual do homem, isso é algo que remonta às verdadeiras origens da humanidade em diversas formas de expressão mítico-religiosas.

Existe o modelo da mente e o método de investigação. Muito provavelmente poderemos dizer que novo de fato na psicanálise é o uso da transferência entre duas pessoas como método, com seu setting específico; ainda que, com certeza, isso tenha origens e paralelos em muitos contextos culturais e religiosos anteriores.

Portanto, em lugar de falar do método, resumirei as características do modelo da mente que existia em alguma forma poético-filosófico-teológica antes do estabelecimento da psicanálise como método e profissão. De fato, nos primeiros tempos da psicanálise, esse modelo artístico romântico se perdeu ou ficou submerso sob o modelo neurofisiológico freudiano, mas [Meltzer destaca] que a partir do surgimento do modelo estrutural de Freud, seguido pelo modelo geográfico-teológico de Klein, isso começou a mudar, e todas as implicações do modelo romântico começaram a encontrar seu lugar no interior do modelo psicanalítico, embora com terminologia diferente.

No período romântico, a poesia era o receptáculo definitivo para as ideias contemporâneas sobre a mente e sua natureza religiosa que começava a ser considerada internalizada, ao menos em sua forma mais adulta ou avançada.

Shelley declarou em seu Apology for poetry (Em defesa da poesia) que "os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo". Bion diz o mesmo ao afirmar o valor do "brilho ígneo da verdade que os 'geradores' não conheciam, pois não tinha acontecido - quando escreveram" (na Autobiografia [Memoir] e também em Bad job [Mau negócio]). Tradicionalmente, existe concordância em que a poesia pode conter mais verdades do que é possível simplesmente parafrasear na linguagem cotidiana. As gerações subsequentes encontram novas implicações ou novas maneiras de parafrasear partes da verdade em sua linguagem contemporânea própria. Mas o contato profundo com a evolução psíquica existe na estrutura da linguagem poética, tenha ou não sido "descoberta" e posta em termos mais limitados, mas explicáveis, por leitores de uma nova era.

Para Bion, a "vida das ideias" não era apenas uma metáfora: as ideias realmente têm uma história de vida, passando por gerações, enraizando-se em vários indivíduos ou em culturas, em que se manifestam de maneiras diferentes.

É a mesma no indivíduo e na história da humanidade como um todo: as ideias podem viver ou serem mortas, e Bion ressalta que "não se trata apenas de uma metáfora". Mas, se forem mortas em uma área, acredita Bion, podem ir para a clandestinidade, talvez desaparecer por períodos de tempo e, depois, reaparecer em um indivíduo ou em uma cultura diferente. Esse é um jeito de considerar a ligação entre os poetas e a psicanálise: a ideia central da evolução psíquica ou o crescimento mental era dominante na filosofia romântica, depois ficou oculta e ressurgiu na psicanálise pós-freudiana. Essa ideia central de certa forma foi obscurecida pela teoria freudiana, mas, ainda assim, funcionou nas relações vivas estabelecidas pelo método psicanalítico (ao menos, essa é a visão que Meltzer tem de Freud como descobridor da transferência, versus Freud como teórico pseudocientífico).

Portanto, o que os geradores da verdade "não sabiam, porque não tinha acontecido - quando escreveram" -, refere-se a essa verdade subjacente da evolução psíquica com a qual os poetas têm contato especial. Eles não previram a existência histórica literal da psicanálise, mas conheciam intuitivamente os princípios nos quais o novo método se basearia, e estes tiveram sua própria manifestação contemporânea na poesia. Na poesia, essas ideias podem "falar por si mesmas", não exigem comentários. Elas se comunicam por meio da beleza e da energia, ou do "gosto", como disse Hazlitt - descartando a moralidade estabelecida.

 

Quais são esses princípios ou ideias?

Examinarei as contribuições de alguns dos poetas mais importantes, a fim de nos fazer recordar sua familiaridade com alguns dos principais conceitos que depois encontraram seu trajeto na psicanálise: conceitos como capacidade negativa (desconhecimento); onipotência versus dependência de um objeto superior; o valor da dor mental; autoaprisionamento no inferno ou no claustro; o impacto espiritual da beleza; o básico da relação mãe-bebê além e acima da regulação paterna; as lutas contínuas da personalidade dividida entre seu potencial angelical e suas tentações diabólicas; e, acima de tudo, a ênfase na evolução mental como o bem último, substituindo a manutenção de qualquer moralidade fixa ou estabelecida, ou seja, a busca individual por identidade que acontece por meio de um endoesqueleto orgânico em vez de um exoesqueleto mecânico.

Mas antes de tudo há o conceito da mente em si. A ideia não poderia ressurgir sem a visão de Klein da mente como seu "lugar próprio", como diria Milton - uma visão espacial e geográfica em que a relação entre o self e Deus, ou objetos internos, tivesse espaço para se manifestar de forma dramática e complexa. Embora Wordsworth afirmasse que seria o primeiro a fazer da "mente do homem" seu tema declarado, ele esqueceu-se de que Milton, pai dos poetas românticos, já instituíra isso 150 anos antes - mas sem a ênfase revolucionária na relação mãe-bebê que a visão de Wordsworth gera.

Em termos de religião da mente, contudo, pode-se atribuir a Milton o uso moderno do termo "mente" - não apenas ao termo, mas também ao enfoque na mente como tema adequado para a poesia, como, na verdade, a principal razão para a existência da poesia.

Pois a mente é o seu lugar próprio e em si mesma
Pode transformar o inferno em paraíso, e fazer do céu um inferno.

Além disso, ao mesmo tempo, Milton põe essas palavras na boca de Satanás, desempenhando o papel de advogado do diabo. Ele sabia bem que qualquer revolução (queda do céu) que pusesse a mente em primeiro lugar, em vez do livro das regras de Deus, poderia facilmente fazê-la sofrer maus tratos e transformar o céu em inferno. Milton começa sua jornada além do Caos e nos recônditos da mente invocando a "Musa celestial" que tem o poder de se abrir para enxergar "coisas invisíveis à visão dos mortais - o mundo interno". Essa foi a grande aventura que ele chamou de Paraíso perdido e que termina com sua versão do "admirável mundo novo" de Shakespeare, quando nossos "genitores originais" renunciam ao seu Jardim do Éden e viajam para um mundo de trabalho, provação e turbulência, no entanto potencialmente rico e fértil, em que nunca se pode garantir, mas é possível conquistar a felicidade.

O mundo estava todo diante deles, onde escolher
Seu lugar de descanso, e a Providência seu guia:
Eles andam de mãos dadas com passos errantes e lentos,
Através do Éden tomaram seu caminho solitário.

Essas belas palavras no final do seu épico certamente dão a sinalização para o início da psicanálise.

Não falarei de Shakespeare, que, como todos reconhecem, conhecia tudo o que há para conhecer sobre a natureza humana. Mas a personalidade e os conflitos de Shakespeare não são evidentes da mesma forma que os de Milton e, de algum modo, essa luta subjetiva é necessária para a psicanálise existir como fenômeno cultural, para ser claramente necessária para a humanidade. Na verdade, Coleridge considerou Milton e Shakespeare como os principais exemplos de dois tipos complementares de gênio. Onde Shakespeare "projeta sua mente para fora de seu ser particular" e entra em estados de espírito que em certo sentido não lhe pertencem, Milton é mais facilmente identificável como indivíduo, uma vez que as lutas são declaradamente suas e o drama está todo reunido no interior da sua própria mente. Nós nos identificamos de maneira fraternal. A mente de Shakespeare "torna-se aquilo a respeito do que medita"; a mente de Milton medita a respeito de si mesma, disfarçada de outros personagens e histórias, e, na psicanálise, somos como Milton, usando a transferência para compreender nossos próprios conflitos internos. O caráter de Shakespeare pode estar longe de ser perfeito, mas sua genialidade era grande demais. A psicanálise existe devido à facilidade com que o céu e o inferno podem ser confundidos pelo indivíduo em situação de julgamento - e Shakespeare não precisava disso.

Além disso, foi Milton quem pôs o conflito estético no centro da luta individual: "o odioso cerco dos contrários" que Satanás sentiu com inveja quando se defrontou pela primeira vez com a beleza dos novos bebês de Deus, Adão e Eva, vendo-os "com admiração" e quase com amor. Mas isso é doloroso demais para quem foi expulso e substituído, o bebê primeiro ou caído que não é mais o favorito.

Todos os poetas românticos tinham intensa relação de amor e ódio com Milton, um verdadeiro conflito estético do tipo que está por trás de qualquer evolução mental. Resumirei a filosofia de três desses "primeiros psicanalistas" - Blake, Coleridge e Keats. Considerando-os cronologicamente, começo com William Blake, ao final do século XVIII.

 

William Blake

Blake reforçou a ideia de Milton, da mente como um lugar próprio, um mundo em constante expansão:

Não descanso de minha grande tarefa,
Para abrir os Mundos Eternos, para abrir os Olhos Imortais
Do Homem para o seu interior, para os Mundos do Pensamento, para dentro da Eternidade
Sempre se expandindo no Seio de Deus, a Imaginação Humana.

Para ele, era esse o significado de divindade: uma família interna da imaginação. É interna, uma vez que "todas as divindades residem no seio humano", e nesse espaço "mãos das fadas" trabalham e criam dramas imaginários - isto é, reais - em linhagens familiares. Esse trabalho interno de imaginação contrasta com a invenção ou a alegoria, uma história inventada pela "individualidade", como Blake a denomina. Em termos psicanalíticos, é a diferença entre onipotência e dependência do objeto.

Para Blake, a maldade do homem em essência é um problema de percepção: falta-lhe visão interior, apreciação do espaço interno da imaginação em que o trabalho psíquico é conduzido em nosso nome por esses objetos internos. (Chamado por Milton de "coisas invisíveis à visão dos mortais" - frequentemente citado por Bion.) O homem aprisiona a si mesmo em seu claustro, incapaz de ver (como diria Meltzer) que a porta está sempre aberta:

Se as portas da percepção fossem limpas, tudo
apareceria ao homem tal qual é, infinito.
Pois o homem se fechou, até ele ver todas as coisas através
de fendas estreitas da sua caverna.

Para Blake, a realidade é o "infinito", e o contato é impedido apenas pelo encerramento em si mesmo. O infinito é equivalente ao "O" de Bion. Para ver as coisas como realmente são, o homem precisa remover as barreiras ao seu autoconhecimento - o "cisco no olho", como na história bíblica. Assim, o mundo não é um vale de lágrimas quando é percebido adequadamente, mas, para isso se tornar verdadeiro para a humanidade em geral, a visão precisa ser esclarecida por todos.

Blake também acreditava na santidade da paixão (o oposto da visão religiosa convencional). A emotividade é o fundamento da verdade e do bem, e a falta de emoção é a base para o mal e a irrealidade - uma visão que só reapareceu na teoria psicanalítica na obra de Bion, com sua distinção entre LHK e menos LHK, ligações emocionais positivas e negativas. Blake viu a tarefa do homem de construir uma "casa para as paixões", para "organizar" sua "forma interior" - como no modelo continente-contido de formação de símbolo, em que o símbolo evolui em resposta aos conflitos emocionais e os capta harmoniosamente em formato de continência, no qual podem ser vistos e compreendidos. É o fator da compreensão, de considerar o conflito todo, que torna estético o movimento - mesmo que as emoções sejam dolorosas ou odiosas em si mesmas.

 

Coleridge

Blake distinguiu dois tipos de memória, que tendem a resultar em dois tipos de símbolo: a memória imaginativa, que é exploratória, e a alegoria, que tem um significado fixo e onipotentemente controlado. Poderíamos chamar isso de conhecer versus conhecer sobre (na diferenciação de Bion), e corresponde à ênfase moderna no aqui e agora da experiência transferencial, em lugar de considerar que a psicanálise desenterra traumas passados: o abandono da memória e do desejo para a "relembrança" construtiva (Bion). Na verdade, é uma diferenciação muito antiga entre o conhecimento - que é externo e informativo - e a sabedoria, que é interna e formadora do caráter, resultado do aprender com a experiência. Coleridge também pensou que seria "uma afirmação estranha a Essência da Identidade residir na Consciência rememorativa". De acordo com Coleridge, uma ideia só pode estar contida em um símbolo, e "toda ideia é viva, produtiva, compartilha do infinito" e "contém poder infinito de fertilização". Ou seja, as ideias resultam da imaginação criativa e semeiam-se em outras mentes, criando perpetuamente novas ideias.

Meltzer também escreveu sobre a diferença entre símbolo e alegoria, usando sua leitura da filosofia estética de Cassirer e Langer (ela própria fundada em Coleridge). Em essência, a criação de símbolos pertence ao mundo dos sonhos da fantasia inconsciente, em comunicação com os objetos internos, enquanto a alegoria é um tipo de linguagem de código usada pelo eu consciente ou onipotente. Codifica o que já é conhecido, mas nada pode ensinar de novo à personalidade. Como Coleridge diz, as ideias não são apenas "reguladoras" (como a moralidade), mas "constitutivas" - elas se incorporam na constituição ou estrutura de nossa mente e na maneira pela qual ela cresce e se desenvolve. Elas nunca são estáticas. Ele denominou isso sua filosofia "progressiva" - ou seja, não apenas avançada em si mesma, mas, na verdade, a respeito da evolução. É a maneira construtiva de lidar com nossa ignorância: "Nossa ignorância com todos os intermediários da obscuridade é a condição de nosso Conhecimento cada vez maior". As ideias fazem a mente "despertar e avançar".

Coleridge expandiu a respeito de símbolo e alegoria em suas famosas formulações sobre tipos orgânicos e mecânicos de fantasia e "imaginação" versus "ilusão". A ilusão lida com "fixidez e limitação", enquanto a imaginação conecta a mente com a fonte platônica de ideias - os territórios do "O" de Bion. Ele escreveu:

A forma é mecânica quando imprimimos uma forma predeterminada a qualquer material dado, não necessariamente decorrente das propriedades do material. A forma orgânica, por outro lado, é inata; ela se forma à medida que se desenvolve a partir de dentro e a plenitude de seu desenvolvimento é a mesma com a perfeição de sua forma externa. Essa é a vida, essa é a forma.

Isso é ressuscitado no "endoesqueleto" versus "exoesqueleto" de Bion. A mente que se desenvolve a partir do interior segue a analogia com o corpo endoesquelético; se buscar proteção externa de modo que aprisione o espírito em crescimento e usar o conhecimento dessa forma exoesquelética, isso resultará na "caverna" de Blake de aprisionamento de si mesmo, e não percepção.

Coleridge, já se disse, cunhou o termo "psicanálise". Certamente foi Coleridge quem se concentrou no termo "consciência" e expandiu suas implicações para o significado ou os significados modernos. Por consciência, queremos dizer conhecer-com-a-mente, seja isso previsto em termos de níveis, perspectivas ou timings. É uma palavra que retém um vestígio de sua "consciência" original, a relação do superego.

 

O encontro de Coleridge e Keats

Curiosamente, foi a Coleridge que Keats se referiu ao formular a ideia de Capacidade Negativa - não como se ele fosse exemplo dessa capacidade, mas como exemplo de alguém desprovido dela. Ele sentia que Coleridge era uma dessas pessoas que não se contentavam com conhecimentos pela metade. É divertido ler o contexto desse conceito no relato de Keats acerca de um encontro com Coleridge certo dia em uma caminhada em Hampstead Heath, em Londres, para observar o impacto dos tópicos em giro perpétuo na mente do homem mais velho:

Nesses 3 quilômetros ele abordou mil coisas - deixe-me ver se posso fazer uma lista - Rouxinóis, Poesia - na sensação poética - metafísica - diferentes gêneros e espécies de sonhos - pesadelo um sonho acompanhado por uma sensação de toque - toque único e duplo - um sonho relacionado - primeira e segunda consciência - monstros - o Kraken1 - sereias - Southey acredita neles - A crença de Southey muito diluída - uma história de fantasmas - 'Bom dia' - ouvi sua voz quando ele veio em minha direção - Eu ouvi enquanto ele se afastava - eu tinha ouvido durante todo o intervalo - se é que se pode chamar assim. Ele foi suficientemente educado para me pedir que o visitasse em Highgate. (carta de 11 de abril de 1819 para George e Georgiana Keats)

Eis aqui um fluxo de consciência em ação cem anos antes de Joyce ou Woolf (reconhecidamente, Sterne o praticava ainda antes). Os poetas se cumprimentaram apertando as mãos e se separaram. A absorção em si mesmo de Coleridge era tão grande, que ele recordou que a reunião teria durado apenas alguns minutos; tudo o que ele conseguiu dizer foi "Havia morte naquela mão" - mas não antes de Keats ter metabolizado as associações livres de Coleridge na poesia das Odes.

Com seu toque caracteristicamente leve, Keats indica de maneira vívida a natureza dos temas que se agitam e aglutinam continuamente na mente de Coleridge, e do impacto do seu modelo de ensino por meio de conversas. E, apesar das críticas leves de Keats à falta de capacidade negativa de Coleridge, esse conceito de fato ecoa a diferenciação de Coleridge, em sua Biographia Literaria, entre dois tipos de "homens de gênio" - o homem de "gênio comandante", que organiza de forma projetiva outras faculdades ou pessoas, e o homem de "gênio absoluto", que introjeta e assimila a experiência de forma mais passiva, menos onipotente. Essencialmente, esse é o conceito de identificação introjetiva versus projetiva, operando em um contexto vital.

Pois naquela primavera de 1819, conhecida por seus inúmeros rouxinóis, Keats - apesar de sua estupefação - considerou que Coleridge era uma espécie de rouxinol e, durante as semanas seguintes, escreveu não apenas a "Belle Dame", mas todas as suas grandes Odes (exceto "Autumn"), incluindo aquela em que a canção pulsante do rouxinol, embora não seja mais audível, é imaginada sendo potencialmente cantada nas clareiras próximas do vale. Ele era a antítese do tipo de ouvinte que faria a voz de Coleridge "morrer imediatamente". Coleridge correspondeu à receptividade de Keats, e Keats continuou a ouvir sua voz enquanto ela desaparecia além do Vale da Saúde, transformando seu conteúdo em seu próprio poema. O início da psicanálise, de fato - enraizado em uma espécie de relação de transferência em que o homem mais jovem é o analista que desempenha a função alfa necessária para dar forma a esse caos primário de objetos parciais rodopiantes - Coleridge, no entanto, tinha um nome para o processo, o "espírito modelador da imaginação". Meltzer descreve que a observação do analista está "alerta para o movimento da pedreira, movimentos mínimos de objeto parcial que, com paciência, podem ser vistos como um padrão de significado incipiente "produzido antes".

O avanço triunfante de Keats como autoanalista veio com sua "Ode à Psique", em que a musa interna do poeta é descoberta na forma de objeto combinado de Cupido e Psique, e instituída como a verdadeira divindade da mente:

Sim, eu serei teu sacerdote e construirei um templo
Em alguma região inexplorada da minha mente,
Onde pensamentos ramificados, recém-crescidos com dor agradável,
Ao invés de pinheiros murmurarão ao vento:

É a nova religião da mente, rica em áreas de experiência desconhecidas "inexploradas". O poema culmina em uma imagem da mente como um jardim fértil ambientado em uma paisagem selvagem, "com a coroa de flores de um cérebro funcionante", com o poeta como sacerdote de uma relação mãe-bebê com a Musa, o "profeta de pálida boca sonhando".

Keats reúne o quadro geral em sua formulação do "vale da criação de almas":

Pode haver inteligências ou centelhas da divindade em milhões - mas não são Almas até adquirirem identidades, até cada uma ser pessoalmente ela mesma. ... Por mais diversas que sejam as vidas dos homens - assim diversas se tornam suas almas, e, assim, Deus cria seres individuais, almas, almas idênticas nas centelhas de sua própria essência.

Trata-se do mistério da identidade individual que também está no cerne da psicanálise - na definição de Bion, uma atividade destinada a "apresentar o indivíduo a si mesmo, pois é um casamento que durará enquanto ele viver". É formado por relações de objeto interno (a alma e Deus) no contexto de aprender com a experiência. Esta é a visão romântica da evolução ou consciência progressiva, orgânica em vez de mecânica, guiada pelo mundo imaginado de uma "terra incógnita" além dos horizontes da consciência existente. E no pensamento pós-kleiniano, com suas orientações estéticas e epistemológicas fundadas nas relações objetais internas, este é também o novo objetivo da psicanálise.

 

 

1 Seminário Ide, 20 de novembro de 2021.
2 N. T. Kraken: era uma espécie de lula, que ameaçava os navios no folclore nórdico, tinha fama de destruir navios.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons