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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.55 no.3 São Paulo jul./set. 2021
TEMÁTICOS
Abordagem em psicanálise de áreas de impenetrabilidade mental1
Psychoanalysis approach in areas of mental impenetrability
Enfoque en psicoanálisis de áreas de impenetrabilidad mental
Approche en psychanalyse des zones d'impénétrabilité mentale
Maria Inês Baccarin
Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro do Núcleo de Psicanálise de Uberlândia (NPU). Professora aposentada da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Doutora em saúde mental - ciências médicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Uberlândia / minesbaccarin@gmail.com
RESUMO
Este texto é resultado de investigações e reflexões teórico-clínicas, motivadas por vivências, em sala de análise, de situações de impasse e crise na dupla analítica. Nessas situações se evidenciavam questões relativas a perturbações na comunicação na vigência de áreas de impenetrabilidade mental. Na construção de ateliê psicanalítico, a analista, tomando as situações de impenetrabilidade mental como função e focalizando o olhar nos movimentos da dupla analítica, levanta fatores dessa função relativos a estados mentais e mecanismos psíquicos presentes no funcionamento do analisando, da analista e da inter-relação de ambos. A identificação desses fatores favorece o desenvolvimento de recursos em direção ao encontro de códigos de aproximação com as referidas áreas de impenetrabilidade mental. As atividades em construção de ateliê psicanalítico constituem exercícios dinâmicos, que propiciam a afinação da função analítica, com ênfase no desenvolvimento da intuição.
Palavras-chave: comunicações psicanalíticas, estados mentais, impenetrabilidade, relações, ateliê psicanalítico
ABSTRACT
This article is the result of investigations and theoretical-clinical reflections, motivated by experiences in the analysis room, of situations of impasses and crisis within the analytic couple. In such situations, issues related to communication disturbances operating in areas of mental impenetrability stood out. In the construction of a psychoanalytic atelier, the analyst, taking situations of mental impenetrability as a function, and focusing on the movements of the analytic couple, raises factors of this function related to mental states and psychic mechanisms present in the functioning of the analysand, of the analyst and of the interrelationship between both. The identification of the referred factors favors the development of resources towards finding codes of approximation to the referred areas of mental impenetrability. The activities under construction of a psychoanalytic atelier constitute dynamic exercises that favor the fine-tuning of the analytical function, with an emphasis on the development of intuition.
Keywords: psychoanalytic communication, mental states, impenetrability, relationships, psychoanalytic atelier
RESUMEN
Este texto es el resultado de investigaciones y reflexiones teórico-clínicas, motivadas por experiencias en la sala de análisis, de situaciones de problemas y crisis en la pareja analítica. En estas situaciones, se evidenciaron problemas relacionados con los trastornos de la comunicación en presencia de áreas de impenetrabilidad mental. En la construcción del estudio psicoanalítico, la analista, tomando las situaciones de impenetrabilidad mental como función y centrando la mirada en los movimientos de la pareja analítica, plantea factores de esta función relacionados con los estados mentales y los mecanismos psíquicos presentes en el funcionamiento del analizado, de la analista y de la interrelación de ambos. La identificación de los factores mencionados anteriormente favorece el desarrollo de recursos en dirección al encuentro de códigos de aproximación con las áreas de impenetrabilidad mental antes mencionadas. Las actividades en la construcción del estudio psicoanalítico constituyen ejercicios dinámicos, que favorecen la afinación de la función analítica, con énfasis en el desarrollo de la intuición.
Palabras clave: comunicaciones psicoanalíticas, estados mentales, impenetrabilidad, relaciones, estudio psicoanalítico
RÉSUMÉ
Ce texte est le résultat d'investigations et de réflexions théorico-cliniques, motivées par des expériences en salle d'analyse, de situations d'impasses et de crises dans la paire analytique. Dans ces situations, des questions relatives aux troubles de la communication en présence de zones d'impénétrabilité mentale étaient évidentes. Dans la construction de l'atelier psychanalytique, l'analyste, prenant les situations d'impénétrabilité mentale comme fonction et portant son regard sur les mouvements de la paire analytique, soulève des facteurs de cette fonction, relatifs aux états mentaux et aux mécanismes psychiques présents dans le fonctionnement de l'analysé, de l'analyste et de l'interrelation des deux. L'identification desdits facteurs favorise le développement de ressources en vue de la rencontre de codes d'approche avec lesdites zones d'impénétrabilité mentale. Les activités de construction d'un atelier psychanalytique constituent des exercices dynamiques qui favorisent l'accord de la fonction analytique, en mettant l'accent sur le développement de l'intuition.
Mots-clés: communication psychanalytique, états mentaux, impénétrabilité, relations, atelier psychanalytique
No cotidiano do ofício psicanalítico é frequente nos depararmos com situações nas quais encontramos portas fechadas à penetração interior. Necessitamos, então, procurar por chaves que possam abri-las. São interiores petrificados por catástrofes primitivas, dores não sofridas, lutos não elaborados, experiências não significadas, nos quais não foi possível o emergir do Desejo, que singulariza e põe o indivíduo em comunicação com sua própria subjetividade; interiores em que não se pôde desenvolver a condição de sonhar e simbolizar, onde os meios de enfrentamento do viver encontrados foram a hipertrofia de áreas de onipotência, onisciência, arrogância e dogmatismo. Neles a evasão pode se apresentar - ora sob a forma da excitabilidade, ora da violência, ora do anestesiar-se - tamponando as angústias e levando a mente a fazer escolhas por caminhos distantes da alegria e do sentimento de realização pessoal, uma vez que estes são funções de um eu que pode sentir-se habitado por si próprio.
A vigência dessas áreas de impenetrabilidade mental pede ao psicanalista um refinamento de suas funções analíticas, em direção à possibilidade de encontrar "códigos de aproximação" (A. Sapienza, comunicação pessoal, 2016), visando possíveis restaurações de vitalidade, esperança e crescimento psíquico.
Esse refinamento pressupõe desenvolvimentos da condição psíquica e do instrumental do psicanalista para colocar-se em uníssono com o outro, o que pode acontecer por meio de exercícios com o método, a teoria e a técnica psicanalítica e com alguns instrumentos que compõem o ateliê de cada psicanalista (Bion, 2000).
Quanto ao uso desses instrumentos, em minha experiência, destaco: anotações reflexivas de fragmentos de sessões analíticas, exercícios com a grade de Bion (1964/1973, 1963/2004a), conversas esporádicas com colega experiente, estudo de recortes da teoria e da técnica psicanalítica, e a escrita psicanalítica com fins de public-ação.
As situações clínicas de impenetrabilidade mental por mim vivenciadas com alguns pacientes configuraram-se como crises na dupla analítica, nas quais a comunicação apresentava-se como elemento a ser investigado e burilado.
A comunicação na dupla analítica se constitui num constante e variadíssimo desafio. Embora tenhamos alguma familiaridade com os mecanismos psíquicos que se entretecem na composição das personalidades e dos relacionamentos humanos, cada pessoa é singular. E o analista, ao mesmo tempo que único, é múltiplo, o que resulta na singularidade de cada dupla. No suceder dos encontros, múltiplas são as possibilidades de entrelaçamento de recursos e de limitações, de ambas as partes.
Há pessoas que, ao buscar uma análise, apresentam um quantum de contato com a própria subjetividade que lhes possibilita perceber que a vida emocional precisa ser cuidada. Outros procuram a análise em função de angústias intoleráveis, sintomas paralisantes, relacionamentos doentios, estados de pânico, depressões graves - doloridas vivências para as quais não contam, em sua personalidade, com instrumentos para enfrentar. Entre estes, encontramos o predomínio, em diferentes graus, de partes psicóticas da personalidade e situações de impenetrabilidade mental, favorecedoras de impasses na situação analítica.
É a partir de sua função de observação para com o empobrecimento da subjetividade e de compaixão madura para com áreas de dor que o psicanalista buscará códigos de aproximação que permitam estabelecer condições de penetrabilidade mental, viabilizando ao analisando a experiência de estar sendo compreendido e mentalmente nutrido - requisitos para a estimulação de esperança e coragem em prosseguir neste caminho de procurar-se por meio do desvelamento de si mesmo, em companhia de outro.
O encontro desses códigos está na dependência de condições de continência, função alfa e reverie do analista - particularmente para com identificações projetivas -, como também de sua capacidade de nomear e ter compaixão madura - fatores da função analítica de sua personalidade (Rezende, 2000).
No entanto, a experiência com alguns pacientes me pôs diante de situações em que continência, compaixão e nomeação não eram fatores suficientes para desmobilizar dinâmicas ora de vitimização e persecutoriedade, ora de hipérboles, alucinoses e rivalizações com o método analítico. Consequentemente, não eram o bastante para favorecer a curiosidade do analisando por sua vida emocional, algo básico para transformações em crescimento.
As angústias provenientes dessas situações foram para mim a mola propulsora da busca por novos caminhos. Nesse percurso, a reflexão clínica ressaltou a importância de tomar em consideração a comunicação que transita na dupla analítica em situações de impasse e impenetrabilidade mental. Na observação cuidadosa do que ocorre nesse "trânsito", é possível ao analista identificar fatores presentes nos descompassos entre ele e "aquele" analisando, fatores que dizem respeito a cada um e favorecem os movimentos de encontro ou desencontro de ambos.
A grade de Bion se constituiu em um exercício favorecedor de percepções mais finas de movimentos da dupla, permitindo-me identificar quando a comunicação entre mim e o(a) analisando(a) acontecia em níveis mentais diferentes. Isso mapeava o desencontro, expandindo o campo de percepção da relação analítica e de fatores de minha função analítica, possibilitando novas compreensões da dinâmica psíquica do(a) analisando(a).
No trabalho analítico com Régia, por vezes, vinha-me à mente a música "Samba do crioulo doido" (Quarteto em Cy, 1968), reverie que me levou à detecção de um imbróglio, uma confusão na comunicação, angustiante na medida em que era acompanhada por fortes sentimentos de impotência e, às vezes, de raiva. Em linhas gerais, o movimento na dupla analítica era: a analista criava um vínculo, Régia o desfazia. Que caminhos tomar, em tal situação, com alguém que não faz cópula emocional/afetiva?
Régia raramente faltava às suas três sessões de análise, e falava de seus impasses na vida relacional com emoção, dor e ênfase, despertando em mim, a analista, o desejo de "curá-la", a despeito de minha compreensão de não ser esta a função da análise. No entanto, minha vivência com seus movimentos de retração às minhas aproximações era a de estar numa relação tantalizante.
O termo tantalização ... remete-se ao mito de Tântalo, que sofreu o suplício de ficar mergulhado para sempre num lago rodeado de árvores frutíferas, com sede e com fome e impossibilitado de beber e de comer. Esse mito representa a forma de viver da pessoa que passa sua vida tentando atingir objetivos que, pelos mais variados motivos, vão além de uma possibilidade viável de ser realizada, e, por essa razão, é marcada por uma insatisfação constante e torturante. (Sapienza, 2016, p. 396)
As relações tantalizantes se faziam presentes em vários âmbitos da vida de Régia. Tanto no exercício de sua profissão quanto em seus relacionamentos, sua vida era marcada por insucessos constantes. Na análise essas relações eram caracterizadas, entre outros mecanismos, por frequentes movimentos de reversão de perspectiva, os quais tinham por função evitar o contato com a dor mental, advinda da percepção de aspectos de sua própria subjetividade. O trabalho analítico se apresentava, assim, com constantes desafios na busca por penetrabilidade mental.
O uso da grade revelou momentos da sessão nos quais nos comunicávamos a partir de diferentes níveis de funcionamento psíquico. A presença frequente de alucinoses na comunicação de Régia ficou mais evidente, como também meu desejo de "curá-la" - mobilizado, em parte, pela compaixão decorrente da captação da intensidade da dor sentida mas não sofrida por ela.
O desafio que encontramos diante das transformações em alucinose é o de discriminar, numa conversa aparentemente articulada, se elas revelam a busca por compreensão da vida emocional ou uma evasão dessa compreensão.
Para Bion, a construção de um sistema de alucinose está na dependência do nível de intolerância à frustração e da escolha que o indivíduo fará a partir deste:
Ou ele permite que sua intolerância à frustração utilize o que eventualmente poderia ser uma "não coisa" para se tornar um pensamento ... ou usa aquilo que poderia ser uma "não coisa" para ser o alicerce de um sistema de alucinose. Dessa última brotará a série de transformações em alucinose; será necessário diferenciá-las de transformações em pintura, música, matemática e do âmbito da comunicação verbal. A importância de fazer essa última discriminação aumenta pelo fato de as palavras serem usadas tanto na comunicação verbal como nas transformações em alucinose. No entanto, considerando a natureza da reação diversa à "não coisa", veremos que a palavra que representa um pensamento não é idêntica à mesma palavra quando representa uma alucinação. Uma vez que a similaridade das palavras empregadas em ambos os sistemas é muito grande, e algumas vezes também no método pelo qual essas palavras parecem ser combinadas, é importante descobrir em que consiste a diferença [grifos meus]. (1970/2006, pp. 32-33)
Isso, segundo o autor, só pode ser feito no âmbito da situação emocional.
Essas ideias nomearam aspectos angustiantes da relação de difícil cópula emocional que eu vivenciava com Régia e trouxeram-me contribuições significativas em direção ao lidar com áreas de impenetrabilidade mental. Percebi que, ao mapearmos um pouco mais o sistema de alucinoses, ganhamos força em relação ao movimento de auto-observação e continência, tanto para com memória e desejo como para com os movimentos tantalizantes, e nos sentimos mais livres para acompanhar o analisando, mantendo, ao mesmo tempo, uma atenção vigilante para possíveis brechas, a partir das quais possa haver penetrabilidade psíquica. Antonio Sapienza aponta um modelo interessante para expressar essa situação na dupla: "É como o funcionamento de máquinas fotográficas com guilhotinas muito rápidas. Há que se ficar atento para perceber o momento em que surge uma mínima brecha para penetrar, e então fazê-lo" (comunicação pessoal, 2016).
Minha disposição mais firme de acompanhar Régia, em meio ao exercício de conter meus desejos de "cura", favorecia momentaneamente um abrandamento de seus estados mentais esquizoparanoides. As alucinoses permaneciam, mas o clima emocional das sessões ficava mais ameno. Prenúncios de melhores condições de penetrabilidade? Alguma esperança ganhava lugar nesses momentos. O acompanhar sem "desejar" supunha perceber e tolerar manter-me no vértice em que ela estava: o da mente em posição esquizoparanoide.
Outras relações analíticas, com configurações fenomenológicas e psicodinâmicas diversas, traziam-me também esse desafio de buscar meios psicanalíticos favorecedores de aproximação com áreas de impenetrabilidade mental. Como já mencionei, tais áreas, decorrentes de núcleos psicóticos da personalidade, permeiam a comunicação mediante alucinoses, reversões de perspectiva, comunicações hiperbólicas, atuações, entre outras. Todos esses mecanismos psíquicos impedem a cópula emocional/afetiva e, consequentemente, o desenvolvimento do trabalho analítico, colocando o analista frente a seu "não saber", necessitando encontrar linguagem de achievement (Bion, 1970/2006).
Se, convidado por aspectos de sua própria personalidade e/ou da personalidade do analisando, ele tomar tais situações relacionais como enigmas propostos pela Esfinge, tanto ele quanto aquela análise acabarão por ser devorados. As partes psicóticas da personalidade do analisando o convidarão a batalhas inócuas, uma vez que visam, por vezes, confirmar que seus métodos, particularmente os alucinatórios, são muito mais eficientes que o método analítico (Bion, 1965/2004b), como pude perceber no percurso analítico com Régia, Robson e Júlia.
Nesse contexto, o conhecimento da psicopatologia psicanalítica, que amplia nossos horizontes, não constitui, no tête-à-tête da relação analítica, um meio suficiente para que encontremos os códigos de aproximação que nos possibilitem penetração mental.
Nossas angústias e nosso grau de intolerância a elas também podem nos conduzir a caminhos mortíferos ao trabalho analítico: a sentimentos de onipotência ou de impotência, à polêmica estéril (representada pelo convite da Esfinge: "Decifra-me ou te devoro"), a atitudes superegoicas, pedagógicas e, até mesmo, civilizatórias. Os desejos de "curar" (aliviar, transformar, desenvolver) podem fazer com que as nossas tentativas de penetração ou sejam estéreis, ou sejam sentidas como violência, estupro verbal e emocional, quando não há continente mental para penetração frutífera.
As dores e os aprisionamentos do pensar que o analista capta, e também vivencia, quando o paciente está predominantemente em posição esquizoparanoide podem convidá-lo a outra "armadilha": desejar, com urgência, mostrar ao analisando que ele pode olhar por "outros prismas", visando ampliar seus horizontes e lhe possibilitar certo alívio com a saída do absolutismo para a relativização e a percepção do objeto total. São tentativas de introduzi-lo na posição depressiva fadadas ao insucesso. Se olhadas com maior microscopia, com o auxílio da grade, apontam movimentos de retração do analista, relacionados à sua dificuldade em acompanhar o paciente em estado mental esquizoparanoide. O que aparece como desejo de "cura" pode estar sendo acionado por demandas primitivas onipotentes e superegoicas. Ao favorecer tais apreensões, os exercícios com a grade abrem caminho para que o analista, percebendo e levando em conta suas áreas de dor e de dificuldade, desenvolva fatores de sua própria personalidade, que compõem sua função analítica.
A consideração dessas questões possibilita compreender o fato de que pensar psicanaliticamente se constitui numa espécie de ascese - servindo-me do modelo místico, proposto por Bion. Essa ascese supõe mudança de prisma e também o que chamarei de exercícios psíquicos, que favoreçam o uso da intuição. Bion considera que o uso de memória e desejo pelo analista se constitui em fator prejudicial à sua capacidade analítica:
Todo aquele que esteja acostumado a lembrar o que os pacientes falam e a ficar querendo seu bem-estar, terá dificuldade de avaliar o dano infligido à intuição analítica, inseparável de toda e qualquer memória e qualquer desejo. ... Pode-se perguntar qual seria o estado de mente bem-vindo, já que memórias e desejos não o são. Um termo que expressaria de modo aproximado o que necessito expressar é "fé" - fé de que existe uma realidade última e verdade [grifos meus] - o "infinito desprovido de forma", desconhecido, incognoscível. (1970/2006, pp. 45-46)
No início de cada sessão de análise, estamos ambos, analista e analisando, em estado mental esquizoparanoide, em parte porque não sabemos ainda o que está por vir. Colocamo-nos na disposição de ouvir, tolerando um natural estado de fragmentação do material, até que emerja alguma conjunção constante. No entanto, experiências de impenetrabilidade mental - como as que serviram de fundamento a este texto -, permeadas por estados mentais esquizoparanoides, solicitam ao analista lidar com várias outras demandas psíquicas.
Por que meios se efetiva na prática a tolerância a tais situações emocionais? Isso só poderá ser delineado no contexto das vivências de cada dupla analítica, a partir do campo relacional que se cria e se recria a cada instante entre as duas personalidades em inter-ação. Mas a experiência me permite dizer que tolerar a situação mental esquizoparanoide do analisando consiste, primeiramente, em abrirmos dentro de nós espaços de continência para vivências de desespero, absolutismo, onipotência, onisciência, ataques ao vínculo, dores...
Tolerar estados mentais esquizoparanoides e consequentes situações relacionais de impenetrabilidade mental, permeadas por mecanismos de área psicótica, supõe exercícios de escuta receptiva amorosa e de curiosidade investigativa (vínculos L e K). Nesse contexto, os dois primeiros elementos de psicanálise apontados por Bion (1963/2004a) se apresentam como preciosos vértices de observação: a relação dinâmica entre continente e contido, e a oscilação entre posição esquizoparanoide e posição depressiva.
Betty Joseph (1983/1992) tece considerações que alertam para a atenção à comunicação que transita na dupla analítica, a partir da observação dos estados mentais predominantes na mente do analisando.
De acordo com ela, embora nos procurem para serem compreendidos, muitos pacientes são contrários à compreensão, o que, a seu ver, ocorre em função de dois aspectos da dinâmica psíquica: 1) ataques, destruição e solapamento, de modo agressivo e invejoso, do que compreendem que o analista compreendeu; nesse âmbito, penso que podem ser incluídos também os mecanismos de área psicótica antes mencionados: alucinoses, reversões de perspectiva, atuações e hipérboles; 2) a própria natureza dos estados mentais esquizoparanoides. A autora diz:
Todos os nossos pacientes chegam até nós ... para obter compreensão, mas sugiro que o modo como esperam alcançá-la deve variar de acordo com a posição em que estão, isto é, de acordo com a natureza básica de suas relações de objeto, de ansiedades e de defesas. A própria natureza das defesas utilizadas na posição esquizoparanoide por si própria milita contra a compreensão; a compreensão frequentemente, mas não sempre, não é o que esses pacientes desejam. (pp. 144-145)
Segundo Joseph, e conforme minhas experiências clínicas têm apontado, tais situações psíquicas (itens 1 e 2) apresentam-se frequentemente misturadas na psicodinâmica de um mesmo paciente.
Robson, que também encaminhava sua relação comigo por vias de um vínculo tantalizante, chegara à análise assustado com a percepção que tivera, em dado momento da vida, de que estava em suas mãos a escolha entre morrer e viver. Essa situação emocional sugeriu-me, a princípio, o interesse dele por conhecer-se, compreender-se e cuidar de sua vida emocional. Mas na continuidade do trabalho e da observação psicanalítica mais acurada foi se evidenciando nele uma barragem à penetração mental, em razão de aspectos hipocondríacos e de sua fobia em se conhecer. O "médico interno" de Robson impedia a penetração das falas de sua analista, assim como das de seu psiquiatra. Tal como Tirésias, Robson "sabia tudo". Trazendo elementos saturados, dificultava o exercício de minha função alfa, o que consequentemente dificultava que eu encontrasse e articulasse as palavras de maneira a me aproximar de sua vida emocional. Além disso, minhas atitudes investigativas eram sentidas por ele como perigosas, levando-o a dizer, com relativa frequência, que "não respondia a perguntas", colocando-me diante da angustiante e desafiadora busca por caminhos para lidar com "Tirésias".
A tantalização do vínculo analítico era expressa por ele mediante atuações que iam além daquelas presentes na comunicação em sala de análise, tal como acontecia com Régia. Na minha presença, ele resistia, por meio, entre outros, dos mecanismos antes mencionados. No entanto, na minha ausência, ele impunha, de algum modo, sua presença - por exemplo, levando um pagamento fora do horário combinado e fora da sala de análise.
O funcionamento mental primitivo, que se expressava fortemente por mecanismos de onipotência e onisciência, curiosidade intrusiva e atitudes para consigo próprio que indicavam forte atuação da pulsão de morte, mobilizava também em mim o desejo de encontrar uma linguagem "eficiente", que pudesse rapidamente penetrá-lo, propiciando mudanças: "salvando-o" de sua autopericulosidade, ou "contendo" sua atuação autoritária e intrusiva na vida de familiares. A comunicação por identificações projetivas era bastante frequente, acionando emoções e sentimentos intensos e variados, que ora me constrangiam pela intrusividade, ora me impactavam pelo primitivismo, mobilizando em mim o desejo de "civilizá-lo", o que colocava em risco a continuidade do trabalho analítico.
Por vezes, contendo e transformando as emoções comunicadas, eu buscava aproximar-me dele, gradual e cautelosamente, com vistas a favorecer condições de penetrabilidade mental. Robson, usando de sua perspicácia e astúcia, num movimento reverso, em lugar de considerar aquilo que lhe era oferecido, dizia-me rindo e evadindo-se: "A senhora faz curvas para falar comigo".
Também nessa experiência a observação dos movimentos da dupla com o auxílio da grade foi de grande valia, ao evidenciar algumas áreas de conflito: a analista tentando, por meio de elementos insaturados, uma investigação, e Robson não se abrindo. No aprofundamento dessa constatação foi possível perceber ainda que eu, a analista, buscava um objeto psicanalítico, mas o analisando funcionava no nível de elementos parciais, como o paciente citado por Bion (1967/1988) que se negava a usar meias porque ele não conseguia vê-las - em sua microscopia, o que via era um conjunto de furos; como então vesti-las? Nesses momentos, a crise que se instalava era entre o desejo de ampliação por parte da analista e o desejo de restrição por parte do analisando.
Vivências dessa natureza permitem-nos perceber que, em tais situações psíquicas, continência e compaixão por parte do(a) analista não podem funcionar se forem na direção de "oferecer a meia para agasalhar". A continência, aqui, precisa decorrer da captação desse nível tão cindido de funcionamento psíquico, o qual suporta apenas aproximações quase que gemelares.
Quando estamos trabalhando com personalidades cujo funcionamento psíquico é predominantemente esquizoparanoide, permeado por mecanismos de área psicótica, a questão da penetrabilidade mental demanda do analista atenção vigilante a fragmentações e a parcas e efêmeras brechas que possam surgir para penetração, contenção de memória e desejo, exercícios contínuos de tolerância à frustração e "fé", no sentido apontado por Bion (1970/2006).
Minhas experiências com Robson trouxeram-me evidências de que, na busca por comunicações que favoreçam aproximação da vida emocional e chances de penetrabilidade mental, a preocupação em perceber dinâmicas mais complexas e em fazer interpretações mais elaboradas - muitas vezes resultante de nossas demandas superegoicas - contribui para desencontros e, consequentemente, para dificuldades de aproximação às áreas de impenetrabilidade mental.
É a observação simples do fenômeno, a apreensão e a consideração do que emana do sensorial, que nos possibilita abstrair e chegar ao simbólico. No entanto, esse é um caminho a ser percorrido. Ele se encontra ilustrado na grade de Bion, na medida em que caminhamos gradativamente de elementos beta para elementos alfa, para pensamentos oníricos, sonhos e mitos, preconcepções, concepções, conceitos, até os pensamentos que supõem capacidade simbólica mais desenvolvida, presentes no que Bion denominou sistema dedutivo científico e cálculo algébrico. A abstração se constitui, pois, num processo não apenas para o analisando, mas também para o analista, em seu caminhar com este ou aquele analisando, em seu lidar com os variados ataques e/ou com o subdesenvolvimento, que se relacionam com a manifestação de áreas psicóticas da personalidade.
Também Júlia chegou à análise com sofrimentos intensos, que abriam espaço para momentos de desespero e estimulavam em mim frequentes desejos de colaboração.
Embora bem-sucedida financeiramente, sentia-se insatisfeita com a vida profissional, dizendo-me que o curso dos acontecimentos havia se desviado de seus desejos. Mas queria Júlia o que desejava? Quando pensava em mudanças, expressava o desejo por elas de forma radical e idealizada, a partir de cisões que geravam nela uma estéril polarização entre o vivido e o idealizado. Nesses momentos, falas da analista do tipo "Nem tanto ao mar, nem tanto à terra... Eu penso que você pode fazer o que gosta sem alterações tão radicais em sua vida" lhe causavam surpresa e momentâneo alívio, mas a questão seguia descartada.
Na área amorosa, Júlia vivenciava um relacionamento permeado por desencontros e conflitos, acerca do qual seus sentimentos predominantes eram de exploração e rivalidade. Embora insatisfeita, não conseguia se desvencilhar dele, afirmando não ser capaz de conviver com seu imenso e insuportável vazio interior. Em que "confins" se encontrava seu próprio eu? Acossado por fortes sentimentos de desvalia, transitava perdido em meio a relacionamentos marcados pela polarização entre fragilidade e violência - a fragilidade expressa na busca por relacionamentos fusionados, e a violência expressa em condutas reativas explosivas e cruéis.
Na sala de análise, às vezes, anotava em uma pequena caderneta algo dito por mim que lhe fizera sentido. Era como se aquele conteúdo, que poderia nutri-la psiquicamente, pudesse se perder rapidamente em meio ao turbilhão mental em que vivia, apontando para uma situação psíquica na qual ela não podia contar com uma eficiente função de introjeção e com um continente suficiente para suas emoções - e consequentemente com uma capacidade de simbolizar que lhe permitisse olhar as experiências por diferentes prismas.
Servindo-me de uma metáfora musical, a impressão que me ficava de grande parte das sessões com Júlia era de um blues de "oceânicos" lamentos, os quais tinham, entre outras, a função de evitar a aproximação da analista e, por conseguinte, o contato com sua própria subjetividade. A cópula afetiva que dizia desejar em seus relacionamentos era evitada e, dentro da sala de análise, o vínculo estabelecido era predominantemente tantalizante.
Demonstrava desejo por colaborações da analista, no entanto, sobre um pano de fundo mesclado por sentimentos de dor e de onipotência, estabelecia um modelo para o trabalho "analítico": queria tratar de forma pontual seus problemas atuais. Anunciava que não queria "sofrer dor" e por essa razão não queria falar de suas catástrofes na infância, sobre as quais "já falara demais" em outras análises. Por isso, delimitava os territórios em que a dupla analítica deveria se manter. Queria encontrar caminhos para a felicidade sem ter que percorrer seus interiores. À analista ela atribuía a função de magicamente apontá-los. Em que nível de funcionamento mental estava Júlia, com seus desejos de encontrar uma analista-fada-madrinha, que lhe trouxesse com varinha de condão a felicidade? Ansiedades persecutórias, angústias catastróficas, cisões, onipotência versus impotência, identificações projetivas, enfim o predomínio de mecanismos característicos de posição esquizoparanoide mesclava-se a réstias de esperança de que algo seria possível naqueles encontros.
Também aqui era mister observar os movimentos da dupla analítica para, mapeando-se os movimentos de cada membro do par, buscar caminhos que favorecessem aproximações com áreas de impenetrabilidade mental. Embora eu também tivesse que me haver com mobilizações do desejo de "cura", como nas experiências analíticas com Régia e Robson, aqui diferentemente tinha que me haver com sentimentos mobilizados contratransferencialmente, relativos à minha competência e à urgência por "resultados", solicitados pela analisanda tanto verbalmente quanto por meio de comunicações por identificação projetiva. Sentimentos contratransferenciais de impotência e de ameaça de ruptura do vínculo analítico, com possibilidades de difamação, me invadiam em várias sessões.
Muitas vezes ela chegava denotando intenso sofrimento e insistente descrença para com a vida, as pessoas, o trabalho e também para com as suas possibilidades de mudança. Em tais situações mobilizava em mim a sensação de estarmos num beco sem saída em relação a qualquer possibilidade de colaboração que a psicanálise e nosso trabalho analítico pudessem oferecer. Mais que desesperança, os sentimentos que permeavam esses momentos eram de impotência, provocando em mim o desejo de desistir. Tais momentos me impulsionavam a me haver com questões de estimulação e preservação de áreas de autoestima, esperança e vitalidade. Buscava ultrapassar o fosso, com o auxílio de minha função alfa. Por instantes, minha continência parecia tocá-la. No entanto, logo em seguida prosseguia com a ladainha de indignações e desesperanças. Movimentos de reversão de perspectiva no funcionamento psíquico de Júlia eram frequentes.
Que caminhos poderiam favorecer que o "campo de batalha" proposto pela analisanda se transformasse, com a colaboração da analista, em um "tatame", no qual a "luta" viesse a possibilitar aproximações favoráveis ao resgate de potências e de potencialidades de desenvolvimento?
Tocada por tantas carências e embalada por minhas realizações acerca da experiência analítica enquanto espaço favorecedor do desenvolvimento da subjetividade e do fortalecimento do eu, percebi a possibilidade de um pouco mais de sustentação da conversa analítica ao manter-me com Júlia no vértice esquizoparanoide. Em alguns desses momentos ela detinha sua fala evacuatória e demonstrava sentir-se acolhida, dizendo algo do tipo: "É isto!". Mas logo a seguir suas portas mentais se fechavam novamente, ora pelo desespero, ora pela persecutoriedade e vitimização, ora pela onipotência destrutiva - a partir da qual manifestava o desejo de substituir o processo analítico por um oásis de ócio: "Um day off é o que eu preciso!". Alucinatoriamente, Julia acreditava que isso era sinônimo de liberdade e de paz. E sua crença, em momentos como esse, era de que seus métodos alucinatórios, evasivos, eram muito mais eficientes que o método psicanalítico (Bion, 1965/2004b).
Minhas experiências psicanalíticas aqui relatadas encontraram consonância nestas observações de Joseph:
Se nossos pacientes estão operando em grande parte com mecanismos de defesa arcaicos - e até certo ponto todo paciente está -, então podemos esperar que nossa técnica tenha de lidar com dois fatores: um, o de que o paciente que vem para ser compreendido na verdade vem para usar o analista e a situação analítica para manter seu equilíbrio em curso, numa miríade de maneiras complexas e únicas; dois, o de que a comunicação verbal, portanto, precisa ser escutada não apenas ou mesmo principalmente em relação ao seu conteúdo, mas em termos do que está sendo atuado na transferência. Defesas tais como identificação projetiva, cisão, negação onipotente não são apenas pensamentos - são vividas em fantasia na transferência. ... Estou sugerindo que a compreensão enquanto tal pertence à posição depressiva. Os pacientes que estou tratando de discutir mal alcançaram, e certamente não elaboraram, a posição depressiva, e, como eu disse, embora acreditem estar buscando compreensão, de imediato, outras forças de suas personalidades assumem o controle, e eles inconscientemente tentam engajar o analista em todos os tipos de atividades, atraindo-o para dentro de suas estruturas defensivas, e assim por diante. Essas são, então, as coisas que necessitam ser compreendidas [grifos meus]. (1983/1992, pp. 146-147)
Ampliações metapsicológicas e técnicas se constituem em necessários e preciosos instrumentos no fazer analítico. Mas serão tais instrumentos suficientes para o exercício desse trabalho, que transita todo o tempo no âmbito de oscilações entre o conhecido e o desconhecido, pulsões de vida e de morte, o representável e o irrepresentável?
Esse instigante e laborioso ofício de psicanalisar nos demanda constante busca por refinamento de nossa função de comunicação. Tal refinamento, que supõe desenvolvimentos na capacidade de simbolizar do analista, no que diz respeito à abordagem de áreas de impenetrabilidade mental, inclui necessárias delicadeza e simplicidade para a aproximação a áreas de desastres psíquicos.
Como é de conhecimento comum a todos nós, psicanalistas, essa busca faz-se necessária sempre, com cada paciente, a cada encontro.
O que vamos obtendo, ao longo do percurso em sala de análise, acompanhado de constantes exercícios em ateliê psicanalítico, é a compreensão interna de que essa simplicidade - diferente de ingenuidade - demanda contínuas re-visões e elaborações do analista sob ótica binocular, no enfoque do outro e de si próprio.
Referências
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Quarteto em Cy. (1968). Samba do crioulo doido [Música]. In Em Cy maior. Elenco Records. [ Links ]
Rezende, A. M. (2000). A identidade do psicanalista: função e fatores. Cabral. [ Links ]
Sapienza, A. (2016). Reflexões psicanalíticas sobre tantalização de vínculos. In A. Sapienza, Reflexões teórico-clínicas em psicanálise (pp. 395-406). Blucher. [ Links ]
Recebido em 15/7/2021
Aceito em 5/8/202
1 Trabalho apresentado em reunião científica da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), no dia 2 de setembro de 2017.