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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021
TEMÁTICOS
Uma visão particularíssima de Bion1
Bion's extremely particular view
Una visión muy peculiar de Bion
Une vision très particulière de Bion
Jansy Berndt de Souza Mello
Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Professora do Departamento de Psicologia da Universidade de Brasília (UNB). Cofundadora da revista Alter. Ex-membro efetivo e analista de didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBSB). Brasília / jansy.mello@outlook.com
RESUMO
A autora trabalhou como tradutora dos seminários clínicos de W. R. Bion em 1975 e 1978, conviveu com esse psicanalista e sua família quando moraram em Brasília por um mês e manteve correspondência com eles. Neste artigo, apresenta suas observações sobre esse contato intensivo com a psicanálise bioniana.
Palavras-chave: psicanálise, seminário clínico, supervisão, transferência, memória e desejo
ABSTRACT
The author worked as a translator during W. R. Bion's clinical seminars in 1975 and 1978, spent time with Bion and his family, when they lived in Brasília for a month, and corresponded with them. In this study, she presents her observations on this intensive contact with the Bionian psychoanalysis.
Keywords: psychoanalysis, clinical seminar, supervision, transference, memory and desire
RESUMEN
La autora trabajó como traductora de los seminarios clínicos de W. R. Bion en 1975 y 1978, convivió con ese psicoanalista y su familia cuando vivieron a Brasilia durante un mes y mantuvo correspondencia con ellos. En este articulo presenta sus observaciones sobre ese contacto intensivo con el psicoanálisis bioniano.
Palabras clave: psicoanálisis, seminario clínico, supervisión, transferencia, memoria y deseo
RÉSUMÉ
L'autrice a travaillé comme traductrice des séminaires cliniques de W. R. Bion en 1975 et en 1978. Elle a fréquenté le psychanalyste et sa famille lorsqu'ils ont habité à Brasilia pendant un mois, et après a continué à entretenir correspondance avec eux. Dans cet article, elle présente ses remarques concernant ce rapport intensif avec la psychanalyse bionienne.
Mots-clés: psychanalyse, séminaire clinique, supervision, transfert, mémoire et désir
Resolvi escrever um trabalho para esta jornada porque, de alguma forma, sentia-me em falta ante a memória de W. R. Bion, de quem acompanhei importantes momentos nas ocasiões em que esteve no Brasil. Achei que seria interessante oferecer um testemunho daquilo que presenciei durante nossos encontros de trabalho.
Conheci Bion quando ele veio pela segunda vez ao Brasil. Vi-o apenas de longe, quando participei de algumas supervisões e conferências. Já em sua visita seguinte, quando ele decidiu passar um mês em Brasília, graças à iniciativa de Virgínia Bicudo, tive a oportunidade de organizar sua estadia naquela cidade, ficando encarregada de atividades que iam dos arranjos domésticos mais triviais à tradução dos seminários clínicos e conferências na Universidade de Brasília.
Desde aquela época, em 1975, mantive-me em contato com quase toda a família Bion, acompanhando passo a passo suas viagens e publicações. Uma simpática fantasia de W. R. Bion ganhou expressão em sua escrita quando ele me agradeceu pela remessa de um livro sobre pássaros, que eu lembrava interessarem-lhe em especial. (Quem sabe foi devido a esse interesse que um dos personagens da sua trilogia Uma memória do futuro se chamou Robin [tordo]? Ou seria Robin apenas o anagrama do seu nome, R. Bion?) Em sua carta, Bion referiu-se à suposição de ser uma "personalidade adastral",2 porque o livro sobre pássaros o alcançou inicialmente como uma encomenda anônima, um encontro com a sorte.
O período sobre o qual pretendo me estender é o da sua última viagem ao Brasil, em abril de 1978, porque foi apenas nessa ocasião que pude perceber que havia algo muito especial sendo comunicado através de recursos não verbais e que corria em paralelo ao conteúdo manifesto das falas de Bion. Até então, apesar de dona Francesca referir-se frequentemente à enorme capacidade de improviso de Bion, eu havia observado (por ter ficado como intérprete ao seu lado durante alguns jantares e recepções) que ele ensaiava antes, em suas conversas (comigo ou com quem estivesse ao seu lado), o que diria mais tarde, durante a conferência. E foi por isso que, no início, ele me parecia ser, simplesmente, um velho psicanalista, um tanto repetitivo, que praticava uma espécie de biomisticismo apocalíptico.
Bion se servia de um caminho que me parecia desnecessariamente complexo para expressar uma atenção pessoal. Foi assim que, após um seminário no qual me senti atrapalhada para traduzir o bate-boca entre dois analistas (eu me vira tentada a omitir trechos das falas, ou a atenuar-lhes o tom belicoso...), ele me chamou de lado e, quase sussurrando, recomendou-me o nome de um livro. Descobri bem mais tarde que se tratava da história de Richard Sorge, um espião que, durante a Segunda Guerra Mundial, trabalhou para a Rússia no Japão, onde foi preso e fuzilado como traidor.
Percorrendo o livro por alto, bastante desapontada, nada encontrei que me servisse para relacioná-lo ao que havia se passado durante o seminário. Mas, na orelha do livro, algo que talvez sintetizasse o espírito do texto chamou minha atenção. Ali, Sorge era descrito como pessoa que traiu os amigos e abandonou a pátria porque pretendia manter-se fiel a uma única verdade. Teria Bion escolhido aquele caminho para me convidar a fazer-lhe a tradução completa da briga, sem tantas hesitações? Seria, mesmo, essa a fidelidade requerida?
Já em 1978, em São Paulo, pude dedicar-me à tradução de uma maneira nova, como não havia ocorrido em Brasília. Foram 49 seminários clínicos aos quais assisti em sucessão, concentrados nas duas primeiras semanas de abril:
três seminários na parte da manhã e dois à tarde. Ouvi repetirem-se as mesmas questões, frases e analogias, mas comecei a perceber que não se tratava de meras repetições. O que eu vislumbrava não se assemelhava ao Bion "oficial", e minha vivência, perturbadora e inquietante, parecia-me uma espécie de delírio. Por sorte uma cartinha de Bion forneceu-me algum alento. Ao referir-se às traduções que eu fizera, ele escreveu: "I would like to thank you for the part you played in translating for me; I know how very difficult that must be, especially to get as close to my meaning as you did". E era isso mesmo que eu sentia, uma dificuldade especial que provinha daquilo que estava acontecendo durante os seminários. Nestes, cabia-me "tomar parte" e "desempenhar um papel" que ia além da tarefa da tradução. Chegar perto do sentido do que Bion expressava era mais do que entender o que ele estava dizendo. Era uma experiência emocional que, algumas vezes, provocava em mim uma sensação de estranheza e me privava das garantias comuns da realidade quotidiana.
Um exemplo bem simples, extraído de um dos seminários clínicos de 1978, servirá como introdução a uma dessas questões.
A paciente da apresentação clínica havia entrado no consultório muito assustada, porque não tinha visto sair o analisando que a antecedera. Bion comentou, então, que ela estava "all alone with the analyst, all alone with the room, all alone with the couch". Enquanto eu descrevia a paciente como estando muito sozinha com o analista, muito sozinha com o consultório e assim por diante, fui me sentindo pouco confortável. O tom de voz de Bion, ao pronunciar a palavra with, era mais nítido e vinha após uma discreta pausa. Também não me parecia correto supor que ele estivesse descrevendo cada detalhe do consultório como se o convocasse para fazer companhia à solidão da moça. Quem estivesse assim tão sozinho deveria estar "sem" alguma coisa, em vez de estar sempre "com" algo, pensei. Minha tradução alterava o sentido principal do que estava sendo comunicado, porque este não dependia da correção das transposições verbais conseguidas. Interrompi-me e confessei-lhe que não estava encontrando as palavras certas para descrever aquilo que se passava com a analisanda, "sozinha com o analista, sozinha com a sala...". E ele respondeu: "E a analisanda também não! E quando ela for capaz de falar disso, já terá se esquecido da experiência que viveu".
Pronto. E essa agora? O intraduzível havia ganhado uma expressão diferente e atual através das vivências de solidão e dependência enquanto manifestações de uma característica básica, associada ao desamparo e à crueldade. E para quem se dirigia a resposta de Bion? Eu sabia que ele não se aproveitaria de uma situação em grupo para interpretar algo que dissesse respeito à vida particular de um dos presentes. Embora tudo apontasse para uma atribuição, a mim, de um splitting entre razão e emoção, ou entre acontecimentos do período pré e pós-natal, não era esse o significado comunicado. Havia um recado mais amplo e que se servia de mim, da minha incompetência, como porta-voz para o que estava acontecendo com todo o grupo. Naturalmente, a forma pela qual esse recado se deu atingiu-me diretamente. No entanto, em vez de me sentir "interpretada" ou rotulada, senti-me convidada a acolher e dar espaço para aquela emoção desconcertante e trêmula, para as minhas vivências de solidão e dependência que ali tomavam forma e me pressionavam como a intuição de algo já vivido e não totalmente passado.
Talvez fosse esse um dos motivos pelos quais Bion não entendia aquilo que fazíamos como uma supervisão, apesar de aceitar a designação seminário clínico. Nestes, ele não se dispunha a falar sobre o analisando, ou sobre o analista-apresentador, ou sobre o que havia acontecido alguns dias ou horas antes em um consultório. O que ele realizava era, acima de tudo, um trabalho com um grupo e, para esse fim, ele provocava a atualização de eventos que diziam respeito não apenas ao que o analista tinha vivido com seu analisando. Ocorria outra coisa ali, algo muito especial. O grupo reunido para o seminário, quer o percebesse, quer não, era levado a tomar parte naquilo que ali se oferecia. E o que o apresentador trazia nem sempre era o que ele acreditava estar comunicando. Suas falas, lapsos, pausas, hesitações - e até mesmo as dúvidas que ele suscitava em mim, como tradutora, ou nos demais participantes - eram tomados, por Bion, como parte do material clínico que estava sendo apresentado.
Bion3 insistia na ideia de que a mente, ao contrário do cérebro, não tinha limites físicos, como os do contorno do crânio e do corpo. Trabalhando com ele, às vezes eu duvidava da minha capacidade de transpor, para o português, o que ele descrevia quando se referia à "mente humana" ou à "mente individual" - para diferenciá-las dessa mente ilimitada, uma realidade mais abrangente do que a "mente grupal" -, ou às ocorrências no campo "protomental". Também existia a possibilidade de ele estar considerando, nessas horas, que "um indivíduo fosse um 'grupo'", ou que a palavra mente pudesse ser tratada como sinônima de "alma", "personalidade", "psique", "verdade última", "consciência" ou "O" (tudo isso!). Seja como for, a investigação em andamento durante os seminários clínicos quase sempre se endereçava a essa mente sem limites, enquanto seus participantes eram tomados como elementos de um conjunto, figurantes de um mundo interno, como os personagens da trilogia.
Uma questão de fé
Num achado feliz, a poeta Emily Dickinson descreveu a fé como "uma ponte sem pilares", e é esse o convite que emerge das falas e dos textos de Bion. Entendo que para ele será preciso buscar aquilo que nos chama de outra margem, sem nos agarrarmos ao concreto e ao sensorialmente apreensível. Como ele escreveu em seu trabalho "Cesura" (1981), enquanto analistas devemos investigar a sinapse, o corte, a cesura, para desse modo percebermos o vínculo que aproxima uma margem da outra e o que se expressa entre elas. É quando nem mesmo as palavras ou as frases servem para veicular o significado do que estiver acontecendo.
Temo que me falte uma fé como essa, pois reconheço que me sinto mais à vontade quando estou lidando com conceitos e teorias, ou seja, prendendo-me aos pilares do pensamento lógico. Assim, apesar do encantamento com o "meu" Bion, e da profundidade que suas falas alcançaram em meu coração, não me reconheço como bioniana (seja lá isso o que for). Poderia eu acreditar, sem hesitar, que a identificação projetiva seria mais do que uma fantasia de onipotência? Ou que, no consultório, eu esbarraria em uma mente com qualidades reptílicas vestigiais ? Ou que, na plateia de um jogo de futebol, eu estaria assistindo a uma cena que ocorresse mais além daquele jogo? Ora. Não creio em bruxas...
Mas... "que las hay, las hay" - ou, como Bion o descrevia, se não eram bruxas, seriam uma divindade destrutiva, cujos esforços arrasavam acordos e pontes, atacando os vínculos como aquele deus que pôs por terra a Torre de Babel e que montou uma armadilha para nela prender o próprio filho. Nos últimos seminários clínicos de Bion em São Paulo, havia um tom de urgência que se fazia sentir, lado a lado à cautela contra alguma explicitação "precoce" que ele viesse a propor aos participantes de um grupo ainda imaturo para lidar com ela. Em vários momentos tive a impressão de uma luta silenciosa sendo travada contra a emergência daquilo que ele chamava de -K, porque alguma ideia que ele parecia precisar transmitir naquele momento não encontrava acolhida.
Às vezes eu tinha a sensação de que eu era mais forte e corajosa do que os colegas, como se fosse alguém muito especial com quem Bion pudesse contar para arcar com o peso de alguma ideia nova. Messiânica? Felizmente (para mim), um ou outro participante, em conversa comigo, confessava-me ter sentido algo parecido e estar vivendo a impressão de que Bion se dirigia exclusivamente a ele.
É fazendo essa ressalva que confessarei algumas das fantasias que me acometeram, porque sei que o que se passou comigo foi pouco importante enquanto "coisa individual", embora tivesse valor como informação sobre a emergência de um aspecto inconsciente daquilo que o apresentador estava expressando sobre o paciente.
Quando, por exemplo, o analista construía suas frases deixando-me sem saber se o paciente era do sexo feminino ou masculino, e eu tinha que lhe perguntar, diretamente, se o sujeito da frase seria he ou she (em português, o emprego do sujeito oculto é mais fácil do que em inglês), Bion utilizava esse percalço como mais um dado sobre a relação transferencial na sessão descrita e que se presentificava novamente no seminário.
Acontecia a certos analistas de lerem sem fazer pausas, ou sem notificar o grupo de que, depois de terem discorrido sobre o paciente, haviam começado a reproduzir suas falas. Recitavam as palavras do analisando com expressão e mímica, como se estivessem conversando com o grupo. Involuntariamente, eu reagia de modos distintos quando isso acontecia. Algumas vezes, eu introduzia, por iniciativa minha, a informação de que, a partir daquele ponto, eu havia começado a traduzir a fala do analisando. Em outras, eu hesitava e tentava obter um esclarecimento do analista para ter certeza de que se tratava da reprodução do diálogo analítico. Minha dúvida apontava para um clima de confusão entre analista e analisando, às vezes entre ambos e uma figura parental, e essas indeterminações eram elementos que Bion utilizava nas suas interpretações. Era o material das sessões, no seu efeito sobre o grupo, que determinava se Bion iria permanecer em silêncio, sem interromper a exposição, ou se a cortaria logo no começo. Ele levava em conta quando todos falavam ao mesmo tempo, ou mudavam de cadeiras, ou se empilhavam num canto da sala, e conectava essas ocorrências ao "analisando", somando-as àquilo que o analista, "funcionando como os ouvidos e os olhos do grupo", oferecia como pensamento bruto ainda por ser pensado.
Bion era tímido no contato pessoal, mas às vezes expressou desânimo e reclamou do clima de psychobabble (psicobabelcios ou psicobalbucios). Conversava pouco nos breves intervalos entre uma turma e outra, e apesar de próximos na hora dos seminários, mandava-me recados através da mulher, Francesca. Foi por meio dela que recebi seu pedido para permanecer traduzindo os seminários durante mais uma semana, porque lhe era mais fácil trabalhar com uma tradutora constante.
Minha participação era incômoda para alguns analistas. Uns ressentiam-se do meu privilégio de privar de uma companhia tão ilustre; outros rivalizavam comigo diretamente. Mas também havia aqueles que se associavam a mim, generosamente, nos momentos mais complicados da tradução. Essas diferentes atitudes durante os seminários serviam a Bion para caracterizar o tipo de transferência em operação, os supostos básicos e (muito mais raramente) a constelação edipiana. Nos momentos em que todos pareciam estar falando ao mesmo tempo, qual seria e como operaria a resistência?
Durante a terceira conferência em São Paulo, tive oportunidade de apresentar uma questão, e a resposta de Bion mostra como ele permanecia sensível aos acontecimentos do grupo, mesmo diante de um auditório enorme. Em minha pergunta, aludi ao risco de usar o pensamento para propagar o não pensamento, e Bion iniciou sua resposta pausadamente, referindo-se à superpopulação do planeta e ao risco da bomba de nêutrons. Quando a tradutora hesitou na palavra impervious, a plateia se agitou para propor vários termos alternativos e, segundo Bion, naquela hora "alguém deixou cair uma bomba verbal!".
Quando esteve em Brasília, três anos antes, Bion comentou:
Se eu pensasse que isto é uma conferência, eu me lembraria de vários acontecimentos experimentados no passado como "antigas conferências", me lembraria de vários conhecimentos e nada novo ocorreria. Se eu pensasse que vocês querem ouvir algo que tenho a lhes dizer sobre isso, eu não observaria o curioso arranjo do público nas cadeiras desta sala. ... Como eu tenho um preconceito a favor do que posso ver e ouvir com meus órgãos sensoriais, acho que vale a pena considerar o que esta distribuição peculiar significa. O que ocupa esses lugares vazios? Que força é essa que impulsiona as várias personalidades nesta sala aos assentos do fundo? (1976, p. 10)
Com humor, prosseguiu:
Considerando o grupo que tenho diante de mim, pessoas reunidas para ouvir algo como uma conferência, sinto que a pressão exercida pelos ouvintes é tão grande no sentido de que eu diga alguma coisa que eu mal posso esperar para ouvir o que eu tenho a dizer! É difícil conciliar isso com a noção que vocês têm a respeito daquilo que eu vou dizer. ... Poderíamos dizer que todas as ideias e pensamentos que ocorrem nesta sala desaparecem no momento em que se nota que há alguém ouvindo estes pensamentos. (p. 12)
Forma ou conteúdo?
Empregamos páginas na montagem de um livro, numerando-as segundo uma ordem que vai da primeira até a última folha. Organizamos o texto impresso para que ele seja lido de cima para baixo, da esquerda para a direita, segundo a estrutura gramatical das frases. Desse modo, as ideias impressas se estendem ao longo do fio da narrativa numa sequência temporal, dividida em capítulos, que passa a ser aceita sem crítica, como se a diagramação e o tempo histórico fossem parte daquilo que se pretende transmitir.
Descrevendo esse impasse, Bion pergunta:
Será correto supor que a idade dos répteis antecede à de Hitler, ou será que isso decorre de um traço, em nosso processo de pensamento, que se tornou uma aberração que não foi levada em conta e, por isso, tornou-se parte do que foi observado? (1989, p. 95)
Ele entende que o padrão estético dos poetas chineses permitia-lhes sacrificar a sonoridade do poema para melhor cuidarem da beleza da sua forma desenhada sobre o papel e conclui que as convenções, que obrigam que uma mensagem seja representada de um modo e não de outro, impedem que se perceba que o que está sendo transmitido seja pouco mais do que um reflexo dessas mesmas convenções.
Para descrever o que ele designava pela letra O, ou melhor, para comunicá-lo a um grupo de pessoas, era preciso que ele adotasse táticas que revolucionassem as formas convencionais do discurso, que quebrassem a ideia de uma fala com princípio, meio e fim, ou que impedissem uma enganadora transparência quando seu significado fosse intraduzível. Penso que essa era uma das intenções de Bion e que era isso mesmo que ele praticava nos seus seminários e conferências. Se as palavras dele funcionavam como pilares, é porque ele precisava delas como plataforma de lançamento - elas deviam ser descartadas logo depois, para que se pudesse alcançar aquilo que insistia em permanecer oculto e não explicitado.
No entanto, como seria possível que um tradutor ousasse ir além da tradução das palavras que estivesse ouvindo, ou das que encontrasse escritas, para falar do que estivesse vivendo naquele instante, sem com isso assemelhar-se aos psicóticos que dão mais atenção ao ritmo respiratório da fala de uma pessoa do que às suas formulações verbais? Para se reapresentarem as mensagens bionianas, talvez fosse preciso que seus tradutores (passados, presentes ou futuros) habitassem as caóticas regiões da posição esquizoparanoide para dali retornarem com uma linguagem nova.
Esse problema foi introduzido pelo próprio Bion quando tratou da sua experiência com a psicanálise:
Não posso descrever essa experiência de um modo convincente para alguém que não a esteja partilhando comigo. ... É uma ilusão supor que a contemporaneidade a tornará comunicável. Mesmo enquanto ela estiver acontecendo posso não conseguir chamar atenção para ela, menos ainda se ela tiver sido uma experiência que eu soubesse um dia ter vivido, mas da qual não pudesse, então, "lembrar-me". (1989, pp. 120-121)
Acho que Bion tinha alguma esperança no sucesso desse empreendimento, porque, mesmo se ele acreditasse que
todos esses sonhos e coisas não nos conduzirão à descoberta de uma mente ainda mais distante e desenvolvida - porque tal mente não existe -, ainda assim esses sonhos, fantasias e ideias brilhantes talvez pudessem ser observados de modo tal que revelassem a presença de alguns elementos em conjunção constante, assim tornando possível que se detectasse uma configuração subjacente ... que tivesse realidade e sentido. E aquele sentido poderia então, como em um bom raio x, ser interpretado. (p. 108)
Para mim não se trata de ter ou não esperança de entender o que Bion dizia, ou de ajudar a quem me ouve ou lê a compreendê-lo melhor ou a dar-lhe uma interpretação mais precisa. Pretendo apenas oferecer meu testemunho crítico, porque não passei incólume na minha breve experiência ao seu lado.
As conferências que Bion fez em São Paulo, em 1978, foram cuidadosamente editadas por Francesca Bion, que delas eliminou as partes mais repetitivas e apagou as analogias mais cansadas. A diferença entre o que se passou no vivo das falas de Bion e o que acabou aparecendo por escrito salta aos olhos de quem se der ao trabalho de comparar os textos publicados e a gravação das conferências. É por esse motivo que pretendo dar um exemplo que se baseia na sua última conferência de 1978, porque serve para ilustrar aquilo que observei ocorrer, de modo semelhante, nos seminários clínicos, nos quais o acesso era restrito.
Os seminários de 1978 também foram bastante mutilados antes de serem publicados, e sua ordenação não considerou as datas em que aconteceram, mas seguiu um critério desconhecido. O encontro 43 foi numerado como 10, o seminário 44 foi publicado como 21, e o último, como 25. Com isso, desapareceu o efeito cumulativo que se fazia sentir, a partir do primeiro seminário do dia, até o tema da conferência da noite - porque havia uma relação entre todos.
Essa conexão pode parecer indesejável na medida em que, se os seminários clínicos estiverem, de fato, relacionados tematicamente uns aos outros e servirem como uma antecipação ao tema da conferência, eles terão perdido o frescor de serem momentos únicos, reservados para os trabalhos de diferentes analisandos e analistas. A não ser que, como estou propondo aqui, se possa entender que a novidade de cada seminário não decorria do tema tratado, das inovações técnicas ou de teorias revolucionárias. A novidade, a meu ver, estava na experiência emocional partilhável, atual e potente, que Bion deixava acontecer com o grupo, para estabelecer uma comunidade de "pensadores sem pensamentos", por meio da qual ele buscava transmitir ou captar uma ideia nova.
A evolução dessa sensibilidade, que atravessava grupos distintos, permanecia constante devido ao fator unificador da presença de Bion. Isso é o que se perde quando não se pode acompanhar os textos em sua ordem cronológica.
Apesar de valorizar as cautelas associadas ao sigilo profissional, gostaria de acreditar que os documentos, inalterados, possam algum dia vir a ser publicados, numa data em que isso não crie problemas.
Retornando ao exemplo anteriormente prometido:
Na primeira conferência que Wilfred Bion fez em Nova York, um ano antes da sua série brasileira, ele apresentou um poema de Kipling que era obrigado a recitar quando menino. Nas palavras de Paulo César Sandler, tradutor para o português do texto das conferências, encontramos:
Eu mantenho seis empregados honestos
(Que me ensinaram tudo que sei);
Seus nomes são: O Quê, Por Quê e Quando
Como, Onde e Quem.
Enviei-os para leste e oeste,
Enviei-os por terra e por mar;
Mas depois de todo esse trabalho para mim,
Mandei-os descansar.4 (Bion, 1992, p. 73)
Quando Bion iniciou a sua última conferência no Brasil, ele também começou com esse poema. Os "seis empregados honestos" do primeiro verso podem ter inspirado o título de uma publicação que agrupava suas obras O aprender com a experiência, Elementos de psicanálise, Transformações e Atenção e interpretação. O livro chamava-se Seven servants, introduzindo mais um "empregado" que ele convidava a descansar. E Bion, quem sabe, teria recitado esse poema vezes sem conta, porque a editora decidiu eliminá-lo do texto da transcrição daquela conferência para evitar sua repetição.
No entanto, naquele dia, Bion fez questão de não recitar o poema com o qual pretendia iniciar a décima conferência. Ele o levou por escrito, em uma pequenina folha de papel, e pediu que a tradutora o dissesse em português. Depois, quando ela lhe pediu permissão para ler as palavras em inglês, ele não permitiu. Logo em seguida, ele começou a falar sobre o mistério da interpretação de sons aleatórios, ou de mensagens numa língua desconhecida, para destacar uma ideia também excluída da publicação. Ouvir corretamente o que está sendo dito, ou mesmo entender as palavras que são pronunciadas, não implica que se esteja compreendendo, realmente, o que está sendo falado.
Ali, no auditório, mais do que a exposição de uma teoria, acontecia uma experimentação que permitiria sua realização. Esse experimento, por não ter sido compreendido, foi suprimido na publicação.
Na minha opinião, os mesmos versos não eram os mesmos versos cada vez que Bion se utilizava deles ao se expressar. Essa era uma das qualidades da sua fala que custei a apreender, e foi por isso que raramente consegui "traduzir" o que se passava. Ao mesmo tempo, eu não sabia nem como comunicar essa descoberta, nem de que maneira transpor para o português aquilo que, difusamente, eu suspeitava estar sendo dito.
Cegar-se artificialmente?
Onde estão as neves de antanho?
O silêncio destes espaços infinitos me aterroriza!
A resposta é a doença da curiosidade.
Essas palavras salpicavam as falas e os textos de Bion, mas, além do seu significado e do contexto que o cercava, elas também lhe serviam como sinais. Serviam como uma espécie de pontuação, marcas para as exclamações, vírgulas, intervalos, interrogações. Temos que contar quantos pontos e quantas vírgulas existem num texto, para depois cortar alguns e assim evitar as repetições? Devemos apagar as colcheias acumuladas numa pauta ou desfazer a troca das claves de sol e de fá porque sempre parecem as mesmas? No entanto, ao falar sobre isso, sinto-me como Charles Kinbote comentando o poema "Fogo pálido" de John Shade (Nabokov, 1995).
Para Bion era "suficientemente ruim tentar traduzir para o inglês aquilo que quero dizer; portanto, dou graças ao fato de não ter que tentar traduzi-lo em nenhuma outra linguagem", e o que ele dizia "ou parecia incompreensível ou tão óbvio que não mereceria nem ser dito", mas nos dois casos daria sempre "uma impressão enganosa" (1989, p. 203).5 Sua tradução seria ainda mais enganosa, mas penso que isso poderá não ser tão desastroso se alguma coisa daquilo que foi dito por Bion, nas palavras da sua linguagem "especial", tiver sido testemunhada por outras pessoas, ou tiver sido transmitida de alguma outra forma, ainda obscura.
Referências
Bion, W. R. (1976). Conferências em Brasília: segunda conferência. Alter: Jornal de Estudos Psicodinâmicos, 6(2),9-14. [ Links ]
Bion, W. R. (1981). Cesura. Revista Brasileira de Psicanálise, 15(2),123-136. [ Links ]
Bion, W. R. (1989). Uma memória do futuro 1: o sonho (P. C. Sandler, Trad.). Martins Fontes. [ Links ]
Bion, W. R. (1992). Conversando com Bion (P. C. Sandler, Trad.). Imago. [ Links ]
Kipling, R. (s.d.). I keep six honest serving-men. The Kipling Society. https://bit.ly/2YJHxA5 [ Links ]
Nabokov, V. (1995). Pale fire. Everyman's Library. [ Links ]
Recebido em 27/9/2021
Aceito em 11/10/2021
1 Trabalho apresentado no simpósio comemorativo dos 100 anos de nascimento de W. R. Bion, promovido pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), em 1997, e publicado no caderno do simpósio.
2 "At first, I thought I must have an adastral (?) personality who had far more sense in books than I had given it credit for!" (9/10/1977). A palavra adastral não consta dos dicionários que possuo, mas fui lembrada de uma frase latina - "per aspera ad astra" - que, segundo descobri, era o lema da Real Força Aérea Britânica (RAF): "por ásperos caminhos até alcançar as estrelas". No entanto, não sei como melhor traduzir "adastral personality".
3 Conferir o capítulo 229 do livro 1, O sonho, da trilogia Uma memória do futuro.
4 No original: "I keep six honest serving-men/ (They taught me all I knew);/ Their names are What and Why and When/ And How and Where and Who./ I send them over land and sea,/ I send them east and west;/ But after they have worked for me,/ I give them all a rest" (Kipling, s.d.).
5 Ver no livro Conversando com Bion, na tradução de Paulo C. Sandler, o texto da quinta conferência em São Paulo.