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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021
RESENHAS
Análise, teimosia do sintoma e migração
Helena Cunha Di Ciero
Psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Especialista em psicoterapia psicanalítica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP). São Paulo / hcdiciero@gmail.com
Autor: Daniel Delouya
Editora: Blucher, 2021, 344 p.
Resenhado por: Helena Cunha Di Ciero
A clínica psicanalítica nos orienta e nos recomenda que continuemos a conceder à letra o direito do trabalho da memória para que atinja o corpo invisível que o outro de origem teceu com as mãos e agulha das palavras.
DANIEL DELOUYA
Beira do mar
A escolha desse trecho do livro Análise, teimosia do sintoma e migração como epígrafe encaixa-se perfeitamente para a apresentação da série à qual o livro pertence: Escrita Psicanalítica, fruto da pesquisa de doutorado da psicanalista Marina Massi, Trinta anos de história da Revista Brasileira de Psicanálise: um recorte paulista, cujo objetivo é o resgate das memórias e das diferentes vozes institucionais. Trata-se de uma reunião e documentação histórica de artigos publicados na revista por psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), que a editora Blucher deixa como herança para as gerações vindouras. Essa coleção reúne autores representativos da diversidade do pensamento psicanalítico da SBPSP.
A escrita desta resenha não é uma tarefa fácil, pois a experiência de leitura é a da imensidão. O desafio é pôr em palavras o clima onírico do livro, somado a uma teoria consistente e cheia de potência, talento do autor, que de fato tece o invisível com a agulha das palavras.
O livro é uma coletânea de artigos teóricos e clínicos produzidos entre 2004 e 2017, distribuídos em 344 páginas, nas quais Daniel Delouya dialoga com Freud, Fédida, Ferenczi, Bion, entre outros, caminhando com propriedade teórica, revelando a delicadeza fina e sutil de suas percepções e um rico mundo subjetivo. Em sua escrita, encontramos um analista que se debruça sobre a experiência clínica, num constante movimento de procura de significado, de apreensão de imagens, de mergulho em metáforas e de busca da palavra viva.
Julia Kristeva, em recente entrevista sobre o livro Eu me viajo (2016), diz que cria esse neologismo para se referir não só à experiência de uma viagem para dentro de si mesma, mas também à abertura e à estranheza do estrangeiro como uma maneira de manter uma cultura viva no encontro com o outro. Do mesmo modo que Kristeva, Delouya, enquanto autor e analista, se viaja. E o leitor navega, como acompanhante de seu pensamento nesse percurso.
No decorrer das páginas nos percebemos em movimentos de migração que acontecem dentro e fora da sessão, dentro e fora da mente do analista, dentro e fora das diferentes teorias, assim como acompanhamos a densidade do pensamento clínico do autor embebido num quantum poético e reflexivo. A beleza do livro reside nessa alternância entre um continente teórico e um mar poético, num ir e vir cujo movimento se assemelha ao das ondas do mar. O esforço autoral fica evidente na busca da palavra como ponte para a construção de representações, ponte entre terra e água.
Mar adentro
A capa branca do livro com um retângulo azulado se assemelha a uma janela com vista para o mar. E não por acaso a cor escolhida é a azul. O mergulho que fazemos no decorrer da leitura é intenso, repleto de palavras (pérolas) preciosas, pescadas ao longo dos capítulos.
O mar, garantem-nos os poetas e cientistas, é o lugar da origem da vida, como o é o ventre de nossas mães. Porém, diferente de nossas mães, o mar desconhece suas crias, seus futuros e eternos visitantes, embora lhes reserve a geografia para arriscar a travessia da vida. (p. 315)
Mar que divide os continentes por onde o autor construiu seus caminhos, sua identidade, suas memórias. Mar que corta seu destino, seus lutos e seus vestígios. Mar de teoria transbordante, que desemboca em areias poéticas. Instrumentos que aparecem como ferramentas analíticas de trabalho, no escrutínio da contratransferência.
Durante os capítulos a sensação que temos é a do estrangeiro que visita um novo espaço. Há um estranhamento, uma sensação de descoberta, de estar perdido, como a de quem conhece uma nova língua e por ela se encanta, ao mesmo tempo que a tenta decifrar. Nós nos sentimos convidados a fazer parte do espaço subjetivo do autor, seu consultório de analista, suas lembranças, seus livros de cabeceira, seus lutos e desilusões. "O duplo movimento de ser estrangeiro, que produz, em termos gerais, o espectro de vivências do confronto do imigrante com a vida em terra nova, assemelha-se em muitos aspectos com o percurso do processo analítico" (p. 331).
Em certos momentos, somos lançados diretamente numa cena da lembrança do autor - movimento descrito por Renato Mezan (1993) como in-quecer, isto é, cair para dentro da lembrança, banhar-se nela, admiti-la e assumi-la -, o que nos permite observar o tecido bordado no pensamento do analista, acompanhando sua atenção flutuante.
Durante esse mergulho, é possível ouvir a voz do imigrante Daniel, seu sotaque, suas cicatrizes de linguagem. É o caso do belíssimo artigo "Imigração, tempo e esperança", no qual encontramos lembranças de sua chegada ao solo brasileiro.
O livro se abre numa cena da infância de Daniel, no artigo "O menino meu amor", e termina com o artigo sobre a imigração. Nesse último, encontramos o menino que migrou no analista de hoje, o Daniel maduro, um analista consistente; o menino se apropriando da língua portuguesa - e que hoje é esse autor que se apossa da linguagem psicanalítica de cor, como dizem os gregos - pela corda do coração.
"Beira do mar/ Lugar comum/ Começo do caminhar/ Pra beira de outro lugar// Beira do mar/ Todo mar é um", canta Gilberto Gil (1974), o que nos remete aos caminhos compartilhados pela experiência humana que aparecem ao longo dos capítulos: ternura, desamparo, angústia, medo de separação, excitação, morte, nascimento e dor. A despeito das diferentes línguas do mundo, esses caminhos são universais, e nessa voz reside a força da psicanálise, que atravessa os continentes. É que a força do trabalho analítico é a da compreensão. "Beira do mar/ Todo mar é um."
Cada texto é um testemunho de que é possível unir técnica, conteúdo e intensidade sem perder a harmonia. O leitor percorre as páginas acompanhando um movimento autoral, em que estão presentes uma busca pela criação, um sentido para o ofício e para a existência.
Algo autobiográfico e genuíno desse analista migrante transborda em todos os capítulos. E a forma como ele se utiliza de sua personalidade no trabalho analítico aparece nessa travessia até seus pacientes. Certa vez, num seminário clínico, Daniel confessou que sofria da palavra, que sua escrita nunca se deu por encomenda, e sim por necessidade. "Escrevo porque a palavra sangra dentro de mim" (Delouya, comunicação pessoal, 16 de dezembro de 2020). Essa percepção fica evidente para o leitor, uma vez que há um encontro legítimo com uma voz autoral, cuja escrita tem o aspecto dançante de imagens que surgem lentamente numa conversa tão consistente teoricamente quanto desafiadora.
Aproximar-se da escrita de Daniel se assemelha ao movimento do sapateado. Uma teoria firme e consistente, e ao mesmo tempo harmônica e bastante embasada na técnica. Há um pouco de Fred Astaire e um pouco do cineasta David Lynch, na medida em que passagens oníricas vão se apresentando a quem lê - imagens que aparecem como gaivotas brancas sobrevoando um mar azul.
Em alguns momentos, acompanhamos esse voo e ficamos suspensos no clima da leitura, de intensas passagens, memórias e devaneios. Como acontece num filme, cujos pedaços vamos juntando apenas no decorrer das cenas. Como acontece durante uma sessão de análise, em que o tempo é conduzido pela imensidão do inconsciente, não pela cronologia dos fatos.
O livro é um belo exemplo do espetáculo que é a psicanálise: seu potencial migratório (na medida em que de fato produz mudança), a beleza da inundação da palavra e seu poder transformador.
Referências
Gil, G. (1974). Lugar comum [Música]. In Gilberto Gil (ao vivo). Gege Produções Artísticas. [ Links ]
Kristeva, J. (2016). Je me voyage: mémoires: entretiens avec Samuel Dock. Fayard. [ Links ]
Mezan, R. (1993). A sombra de Don Juan e outros ensaios. Brasiliense. [ Links ]