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Temas em Psicologia

 ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.3 no.2 Ribeirão Preto ago. 1995

 

A QUESTÃO DA INTEGRAÇÃO DO DEFICIENTE

 

Integração dos portadores de deficiência: uma questão psicossocial

 

 

Rosana Glat1

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524-10º andar, bloco C 20550-013-Rio de Janeiro, RJ

 

 

A integração social e educacional dos portadores de deficiências é atualmente a palavra de ordem em Educação Especial, norteando não só as políticas públicas (Canzianni, 1994; MEC/SEE, 1993; 1994) e as propostas de atendimento de diferentes tipos de instituições (Pereira, 1994), como, principalmente, o posicionamento teórico dos profissionais da área (Edler, 1994). De fato, é raro o congresso, seminário, curso, ou reunião de Educação Especial em que esse tema não seja debatido. Inclusive, a própria revista da Secretaria de Educação Especial do MEC intitulá-selntegração! No entanto, apesar de toda esta mobilização, em nosso país (a não ser em casos de experiências isoladas e pouco divulgadas), esta proposta tarda a concretizar-se.

A dificuldade em se transformar o discurso sobre a integração em uma prática generalizada e permanente tem sido atribuída a diversos aspectos como o despreparo dos profissionais, a descontinuidade dos programas e planos educacionais, a falência do ensino público, a falta de recursos e vontade política de nossos dirigentes, etc. Porém, pouca ênfase é dada ao aspecto psicossocial da questão. E nesta direção que pretendemos conduzir nossa análise.

O primeiro ponto que precisa ser enfatizado é que a questão da integração dos portadores de deficiências ou excepcionais, como são popularmente conhecidos, é similar em vários aspectos à problemática enfrentada por outros grupos de pessoas estigmatizadas, como os aidéticos, ex-presidiários, homossexuais, minorias raciais, etc. Todos estes indivíduos, por uma razão ou outra, são afastados física ou moralmente do convívio cotidiano da sociedade, deixando de usufruir, conseqüentemente, das oportunidades e experiências abertas às demais pessoas consideradas "normais" (Goffman, 1982; Glat, 1991).

A marginalização dos deficientes, ou seja, a sua não-integração, remetenos, portanto, à discussão do conceito de anormalidade ou excepcionalidade. O que é ser excepcional? Como já discutido em diversas ocasiões (Glat, 1988; 1989; 1991) ser excepcional é ser raro ou diferente. O estranho, o diferente, o inesperado sempre chama atenção e, freqüentemente, causa nas pessoas reações como curiosidade, espanto, surpresa, repulsão e, até mesmo, medo.

Estas reações ocorrem porque tudo que é diferente, que foge à norma que é anormal - ameaça a nossa frágil estabilidade social. Toda interação social é, por natureza, perigosa, porque nunca sabemos ao certo como a outra pessoa vai reagir ao nosso contato, e vice-versa. Por isto, tentamos ter o máximo possível de previsão sobre o comportamento (ou aparência do outro) para que saibamos como agir em relação a ele. As pessoas consideradas anormais, ou desviantes, nos perturbam porque não sabemos exatamente como lidar com elas.

No caso dos deficientes, um outro fator psicológico contribui para a aversão que a maioria das pessoas (ostensivamente, ou não) sente em relação a eles. Devido a esta fragilidade natural do ser humano, gostamos de pensar sobre nós mesmos como pessoas completas, constantes e permanentes. A visão do deficiente perturba-nos porque eles nos remete à nossa falta, instabilidade e efemeridade (Glat, 1988; 1991). Nas palavras de Fedida (1984):

O deficiente é sempre o sobrevivente, o que escapou de um cataclisma, de umacatástrofe que já se produziu e que nos ameaça interiormente, que nos pode acontecer... O deficiente constitui uma figura da negação violenta que desencadeia todas as nossas negações (p.145).

Sob este prisma, podemos dizer que o deficiente representa um espelho no qual vemos refletida a nossa própria fragilidade, a nossa própria deficiência. E esta visão nos assusta e enraivece (quer tenhamos consciência destes sentimentos ou não). Então, para não vermos mais nossa imagem caricaturada, temos vontade de quebrar ou afastar o espelho. Por isso, é tão difícil a aceitação do deficiente como igual: porque aceitá-lo significa aceitar nossa imperfeição e alteridade.

Conseqüentemente, para aliviar a tensão e o sentimento de desconforto que o deficiente provoca e diminuir a probabilidade de conflito, a tendência da sociedade como um todo, e de cada um de nós individualmente, é rejeitar estes indivíduos, colocando-os à margem do processo social.

Esta marginalização dos deficientes, que em sociedades menos complexas era espontânea (porém não menos cruel), em nossa sociedade contemporânea tornou-se um processo extremamente sofisticado, envolvendo todo um grupo de pessoas responsáveis por identificar, julgar e classificar estes indivíduos, São os especialistas, que Ullman e Krasner (1969), muito apropriadamente, denominaram de "rotuladores oficiais da sociedade" (p. 21). Estes profissionais têm como função não apenas avaliar ou diagnosticar os anormais, mas também garantir, sob o manto de tratamento, reabilitação ou educação especial, que "eles fiquem em seu lugar - à margem da comunidade - e não ameacem a estabilidade do sistema, não subvertam a ordem, o status quo, a normalidade..." (Glat, 1988, p. 12).

É importante ressaltar que o rótulo de anormal ou excepcional tem um dupla função (Glat, 1991): ao mesmo tempo que serve como "ingresso numerado indicando em que lugar o indivíduo deverá sentar no Teatro da Vida, também determina que papel ele deverá representar nesse Teatro!" (p. 9). Além disto, não só a pessoa estigmatizada passa a agir em função dos padrões de comportamento esperados para o seu papel (os únicos que lhe foram ensinados), como todos os outros atores contracenam com ela de acordo com o estereótipo específico de sua categoria de estigma, reforçando ainda mais esta situação (Glat, 1989; Goffman, 1982; Orno te, 1989).

Como lembra Schneider (1985), "os outros não se relacionam com o indivíduo desviante em si, mas sim com o seu rótulo, criando uma relação de distância e despersonalização" (p. 73). Assim, o papel de desviante ou anormal, que no caso das pessoas deficientes é vitalício, estrutura suas relações sociais, e determina suas oportunidades e experiência de modo geral, criando para o indivíduo uma vida "excepcional" (Glat, 1898, 1991; Goffman, 1982; Telford e Sawrey, 1984, e outros).

Por isto, ao contrário do que geralmente se proclama, a questão da integração dos portadores de deficiências não é apenas um problema de política educacional, nem se resume a colocar estas crianças em classes regulares. Como já discutimos, integração refere-se ao relacionamento entre pessoas, e isso é um pouco mais complexo do que garantir a matrícula na escola pública.

É verdade que muitos países desenvolvidos têm demonstrado que é possível, através de planejamento cuidadoso, apoio governamental e campanhas de opinião pública, integrar, em grande parte, pessoas portadores de deficiências em situações de trabalho, moradia e educação. Porém, mesmo nos países em que a integração de alunos ditos excepcionais no sistema regular de ensino é rotina, a integração social destes indivíduos raramente acontece e, quando muito, fica restrita ao ambiente da sala de aula. Poucas destas crianças ou adolescentes desenvolvem relações de amizade com seus colegas "normais", e muito menos participam com eles das atividades de lazer da comunidade adequadas para sua faixa etária (MacMillan, 1977).

A experiência relatada por pessoas portadoras de deficiências, de vários países do mundo, confirma que, independentemente do nível social, tipo de atividade profissional ou ambiente escolar, suas relações sociais, de maneira geral, restringem-se a outras pessoas portadoras do mesmo tipo de deficiência, seus familiares e os profissionais que os atendem (Glat, 1989;1992(2)).

Não estamos, com isto, querendo minimizar a importância de se desenvolverem programas para integrar os portadores de deficiências, na medida de suas possibilidades, no sistema regular de ensino ou no mercado de trabalho. A segregação educacional e profissional destes indivíduos é, sem dúvida, um dos fatores principais de perpetuação do seu papel de "excepcional", independentemente do tipo ou grau de deficiência.

Entretanto, integração social é, antes de mais nada, um processo subjetivo e afetivo, e esta relacionado à representação social - os estereótipos - que as pessoas de modo geral têm a respeito dos deficientes. Esta representação social inclui a atuação dos profissionais especialistas que, como já comentamos, perpetuam a segregação e dependência de "sua" clientela, decidindo sobre seu destino e servindo de intermediários em sua relação com o mundo (Glat, 1989; Omote, 1980(3)).

Os especialistas de modo geral e, conseqüentemente, os familiares por eles orientados, relacionam-se com os deficientes de maneira estereotipada, ensinando e reforçando atitudes de dependência e infantilização. O auto-conceito e visão de mundo destes indivíduos são ignorados, não sendo levados em consideração na elaboração de programas de atendimento ou nas propostas de integração. Não é de se espantar que o progresso nessa área seja tão lento!

O grande entrave para a integração dos portadores de deficiências reside, na verdade, no fato de nem a sociedade, nem eles mesmos estarem preparados para este processo ou, necessariamente, desejarem-no. Uma integração efetiva implica uma mudança de atitude tanto da parte dos "normais", quanto dos deficientes que deverão se desligar de seu grupo de referência - onde se identificam e pelo qual são aceitos - para disputar um lugar na sociedade mais ampla. Em uma pesquisa realizada com mulheres portadoras de deficiência mental (Glat, 1989) foi possível observar que apesar de a vida social destas pessoas ser limitada às fronteiras do seu grupo, parecia relativamente satisfatória: "Assim, embora em seus testemunhos muitas tenham comentado 'não ter nenhum amigo fora' (da instituição), ninguém manifestou diretamente o desejo de os ter, nem se queixou da solidão" (p. 211).

Estes dados têm sido confirmados em debates e conversas informais com pessoas portadoras de outros tipos de deficiências. Novamente, não estamos querendo minimizar os efeitos deletérios da segregação social em que a maioria destas pessoas vive, nem muito menos propor que elas estejam mais felizes e realizadas "guardadinhas" nas escolas especiais e oficinas protegidas. Entretanto, esta questão é bastante complexa e controvertida, e não pode ser resolvida unilateralmente, "de cima para baixo", pelos especialistas.

Esperar que a sociedade receba de braços abertos os deficientes é uma utopia, por todas as razões discutidas anteriormente. A maioria nunca aceita espontaneamente a minoria. A minoria sempre é que tem que lutar para ser aceita e decidir, individualmente e enquanto grupo, o quanto ou até que ponto quer se integrar. Em outras palavras, a integração dos grupos minoritários é para eles, de uma certa forma, uma equação custo-benefício: como usufruir das oportunidades sociais, ao mesmo tempo mantendo suas características, sejam elas raciais, culturais ou comportamentais.

O ponto que queremos ressaltar é que não se pode integrar o outro. Cada um que se integre - se puder e se quiser. É claro que nós, especialistas, temos uma função essencial em facilitar e promover este processo. Mas, para isto, é necessário que transformemos o nosso papel tradicional de "donos" dos excepcionais ou mediadores de sua relação com o mundo, para nos tornarmos, para estes indivíduos, pontos de referência e suporte ou, quando muito, modelos de formas adaptativas de relacionamento e comportamento.

Desnecessário dizer que é fundamental também o trabalho estreito de orientação e apoio às famílias, visando reverter o processo castrador de socialização que estas pessoas sofrem, assim como promover a sua integração plena no círculo familiar. Só assim será possível auxiliá-los a adquirir, desde cedo, independência e autonomia - pré-requisitos para integração na sociedade ampla.

Esta integração na sociedade representa, para os portadores de deficiência, um processo de participação social e política, seja individualmente, seja através dos movimentos emergentes de autodefesa (PeopleFirst(4), Centro de Valorização da Vida, Associação da Pessoa Surda, Associação dos Deficientes Físicos, Rompendo Barreiras, etc).

Porém, mais do que qualquer outra coisa, integração representa um processo de valorização pessoal. Pois, enquanto o deficiente não for tratado, pelo menos por aqueles que lidam com ele (especialistas e familiares), como umapessoa íntegra, igual às outras, apesar de suas particularidades, com toda a complexidade emocional e existencial de qualquer ser humano e, sobretudo, como uma pessoa que é capaz (a não ser, talvez, nos casos mais prejudicados) de fazer op

 

Referências Bibliográficas

Canzianni, M. de L. (1994) A CORDE coordena as ações do Governo voltadas para as pessoas portadoras de deficiências. Revista Integração, 5(12), 2-4.         [ Links ]

Edler, R.E. (1994) Panorama internacional da integração e enfoque nacional. Revista Integração, 5 (11), 9-13.         [ Links ]

Fédida, P. (1984) A negação da deficiência. Em, M.I.D. Neto (Org.) A Negação da Deficiência: a Instituição da Diversidade. Rio de Janeiro: Achiamé/Socius.         [ Links ]

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Goffman, E. (1982) Estigma - Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores.         [ Links ]

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Omote, S. (1989) Estereótipos a respeito de pessoas deficientes Mensagem da APAE, XVI (53), 18-24.         [ Links ]

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Pereira, O.S. (1994) Educação integrada./te Wsto Integração, 5 (11), 6-8.         [ Links ]

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Telford, C.W. e Sawrey, J.M. (1984)0 Indivíduo Excepcional Rio de Janeiro: Zahar Editores.         [ Links ]

Ullman, L.P. e Krasner, L. (1969) A Psychological Approach to Abnormal Behavior. Englewood Cliffs, NY: Prentice-Hall.         [ Links ]

 

 

(1) Mestrado em educação
(2) Glat, R. (1992) Report to the General Assembly of the International League of Societies for Mental Handicap. Independence 92, Vancouver, Canada
(3) Omote, S. (1980) A deficiência como fenômeno socialmente construído. Conferência proferida na Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências Sociais e da Documentação, UNESP, Marília, SP..
(4) "People First" ("Pessoas Primeiro") é o nome de um grupo de autodefesa de pessoas portadoras de deficiência mental nos EUA e Canadá. Como o próprio nome indica, eles "desejam ser conhecidos primeiro como pessoas antes de serem identificados pela deficiência" (People First of Oregon, 1983, p.1).