Temas em Psicologia
ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.3 no.3 Ribeirão Preto dez. 1995
Avaliação psicológica com o desenho da figura humana: técnica ou intuição?(1)
Cláudio S. Hutz(2); Denise R. Bandeira
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Departamento de Psicologia
O Desenho da Figura Humana (DFH) tem sido utilizado como medida do desenvolvimento da inteligência desde 1926 através dos critérios delineados por Goodenough (1951) e posteriormente revisados e repadronizados por Harris (1963). Como método de avaliação da Personalidade, o DFH ganhou considerável popularidade a partir da década de 1950 com base na obra de Machover (1949), tendo se transformado em uma das técnicas mais empregadas por psicólogos americanos já na década de 1960 (Sundberg, 1961). Durante a década de 1960, Koppitz (1968) forneceu uma alternativa bem mais simples e prática à escala de Harris-Goodenough para avaliar inteligência com o DFH. O trabalho de Koppitz produziu também um sistema quantitativo objetivo para o diagnóstico de problemas de aprendizagem e distúrbios emocionais. O uso do DFH foi ampliado e, atualmente, é um dos testes mais utilizados em pesquisa e na prática profissional do psicólogo (Louttit e Brown, 1947; Lubin, Walls e Paine, 1971; Lubin Larsen e Matarazzo, 1984; Lubin, Larsen, Matarazzo e Seever, 1985; Hutz e Bandeira, 1993).
Devido à sua abrangência, simplicidade, aparente objetividade e baixo custo, o DFH foi rapidamente incorporado ao arsenal de técnicas utilizadas por psicólogos brasileiros. Porém, com poucas exceções (por exemplo, Van Kolck, 1966,1984; Hutz, 1988, 1989a, 1989b e 1989c), virtualmente inexistem pesquisas sistemáticas de validação do uso deste teste com crianças brasileiras. Psicólogos escolares e clínicos em nosso país têm procedido como se normas estabelecidas a partir de amostras americanas testadas em 1950 e 1960 pudessem ser consideradas automaticamente válidas para crianças brasileiras. Esta situação começou a se modificar apenas recentemente com o desenvolvimento de estudos de normatização e padronização de DFH realizados pela nossa equipe e pela equipe de Solange Weschler na PUCCAMP, que estão em vias de publicação no Brasil.
Nas últimas décadas, os estudos com o DFH para diagnóstico de problemas emocionais têm empregado diferentes formas de avaliação dos desenhos. Em geral, podem-se distinguir três estratégias de análise: a) aspectos globais (o desenho avaliado como um todo); b) aspectos estruturais (características gerais, como tamanho da figura, localização na página, etc.) e c) itens específicos (presença ou ausência de elementos determinados, como cabeça, braço, pernas, dedos, etc).
Embora análises através de aspectos estruturais e de itens específicos sejam mais populares no psicodiagnóstico, vários estudos demonstram que aspectos globais, especialmente o desenho de figuras grotescas, têm gerado bons resultados em termos de predição de distúrbios psicopatológicos, possivelmente melhores que os obtidos através de análises de itens específicos (por exemplo, Lewinsohn, 1965; Maloney e Glasser, 1982; Yama, 1990). Esta, porém, não é uma posição unânime. Swensen (1968) argumenta que avaliações globais não detectam casos específicos de patologias, estando mais relacionadas a variáveis que refletem severa falta de ajustamento psíquico.
Avaliações globais do DFH têm apresentado elevados índices de fidedignidade, a julgar pelas correlações obtidas entre juízes e teste-reteste. Estes achados são surpreendentes devido à subjetividade inerente a este processo avaliativo. Wagner e Schubert (1965) desenvolveram uma escala para análise global de DFHs de adolescentes e adultos jovens, apresentando correlações entre r=0,74 e r=0,95 entre juízes e de r=0,89 entre teste e reteste. Nichols e Strumpfer (1962) encontraram resultados semelhantes e Lewinsohn (1965) encontrou correlações significativas de qualidade global com várias medidas de personalidade e de comportamento.
Maloney e Glasser (1982) realizaram nove formas de avaliação de DFHs comparando grupos de pessoas normais e com internação psiquiátrica (psicóticos e não-psicóticos). As avaliações incluíram os seguintes aspectos: Omissões, Transparência, Distorção, Inclinação do Desenho, Simplificação da Cabeça, Simplificação do Corpo, Qualidade Global, Diferenciação Sexual e Elaboração Sexual. A fidedignidade entre juízes mostrou-se relativamente elevada para quase todas as análises (r=0,67 a r=0,78) com exceção de Inclinação do Desenho (r=0,48) e Elaboração Sexual (r=0,42). Participaram como juízes 13 estudantes de pós-graduação em Psicologia cujo único treinamento para utilizar os sistemas de avaliação dos DFHs consistiu na leitura de um manual. Os resultados, em termos do número total de diferenças significativas entre os sujeitos, mostraram que Simplificação da Cabeça e do Corpo aparecem em primeiro lugar seguidos de Qualidade Global, Diferenciação Sexual e Distorção na diferenciação de psicóticos e não-psicóticos.
Mais recentemente, Yama (1990) analisou desenhos de crianças e adolescentes refugiados do Vietnã avaliando a Qualidade Artística Global, Bizarrice Global, Nível de Ajustamento Estimado e Indicadores Emocionais (Koppitz, 1968). Foram sete os juízes: um deles o próprio autor, dois psicólogos formados, sem experiência em testes projetivos, e quatro estudantes de psicologia. A correlação entre os juízes variou de r=0,54 a r=0,79, sendo que a mais alta foi na Qualidade Artística Global. As três escalas globais correlacionaram-se significativamente (de r=0,85 a r=0,94) entre si. A correlação destas escalas com os Indicadores Emocionais foi significativa (r=-0,32 a r=-0,40). Os resultados de Yama demonstraram que medidas globais são mais eficazes que medidas por itens específicos.
Em nosso laboratório, temos realizado estudos utilizando diferentes formas de análise de DFHs procurando verificar a validade e utilidade dos vários sistemas. Inicialmente, coletamos DFHs de aproximadamente 2.000 crianças de 5 a 15 anos de idade. Este banco de dados permitiu o estabelecimento de normas para os itens evolutivos e indicadores emocionais de Koppitz (Hutz, 1991) e o desenvolvimento de alguns estudos relacionados ao sexo da figura desenhada (por exemplo, Antoniazzi e Hutz, 1993). Foram também realizadas várias investigações para a validação dos itens evolutivos e dos indicadores emocionais para predição do rendimento escolar (Bandeira e Hutz, 1994), para diagnóstico de problemas emocionais (Bandeira, Hutz e Nogueira, 1994), entre outros.
No presente trabalho vamos descrever um conjunto de estudos que vêm sendo realizados no último ano envolvendo avaliações globais do DFH, visando estabelecer sua fidedignidade e comparar sua eficácia à dos sistemas tradicionais.
O primeiro estudo foi realizado com uma amostra de 27 crianças da primeira série do primeiro grau. Foi solicitado a juízes que realizassem análises globais (Qualidade Artística e Normalidade), sem critérios pré-definidos, dos DFHs destas crianças. Os juízes foram instruídos a avaliar os desenhos com base na impressão que eles causavam, utilizando escalas do tipo Likert de sete pontos. Foi solicitado aos juízes que assinalassem nas escalas sua impressão pessoal com relação à qualidade artística e à normalidade do desenho. A única informação adicional dada foi a de que os desenhos tinham sido feitos por crianças. Serviram como juízes duas pessoas com experiência em avaliação de DFHs e duas alunas do primeiro semestre do curso de Psicologia, sem nenhuma experiência ou treino com DFH.
A fidedignidade entre juízes variou de r=0,58 a r=0,81 para a escala de Normalidade e de r=0,77 a r=0,90 para a escala de Qualidade Artística. Foram realizadas análises de correlação entre as médias das notas dos juízes e os itens evolutivos e indicadores emocionais do DFH (sistema Koppitz). A escala de Normalidade correlacionou-se significativamente com os itens evolutivos (r=0,73; p<0,001) e com os indicadores emocionais (r=0,53; p<0,01). A Qualidade Artística correlacionou-se significativamente com os itens evolutivos (r=0,68; p<0,001).
Estes resultados surpreendentes nos levaram a realizar outro estudo, examinando os DFHs de 157 crianças de 9 a 12 anos de idade (Nogueira e Bandeira, 1994). Foram realizadas as mesmas análises globais e foram também analisados os indicadores de ansiedade de Handler (1967). A correlação entre os juízes, ambos com experiências na avaliação de desenhos, foi de r=0,75 tanto para Qualidade Artística, quanto para a escala de Normalidade (p<0,001). Foram obtidas correlações significativas (p<0,001) entre a escala de Qualidade Artística e os indicadores emocionais de Koppitz (r=0,35) e os indicadores de ansiedade de Handler (r=-0,51). A escala de Normalidade também se correlacionou significativamente (p<0,001) com os indicadores emocionais (r=-0,47) e com os indicadores de ansiedade (r=-0,49).
As crianças desta amostra foram avaliadas por suas professoras em termos de aprendizagem e comportamento. As correlações entre a avaliação das professoras e a escala de Qualidade Artística (r=0,36) e a escala de Normalidade (r=0,37) foram significativas.
É interessante observar que não foram encontradas correlações significativas entre as avaliações das professoras e os indicadores de ansiedade de Handler ou com a avaliação de Ansiedade-Traço e Ansiedade-Estado do IDATE-C. Também não encontramos correlação significativa entre o IDATE-C e os indicadores de ansiedade do DFH. Estes resultados sugerem que extrema cautela deve ser utilizada na avaliação de ansiedade em crianças, quando usados estes instrumentos, até que estudos independentes confirmem sua validade.
Finalmente, análises de variância demonstram que as escalas de Normalidade e de Qualidade Artística discriminam entre grupos desta amostra constituídos com base no desempenho escolar. Os indicadores emocionais e de ansiedade não produziram esta discriminação.
Estes achados aparentemente questionam a validade de utilizar sistemas tradicionais de análises de desenhos baseados na presença ou ausência de itens. O fato de que juízes sem treinamento específico possam fazer julgamentos de DFHs utilizando critérios subjetivos de forma fidedigna, por si só seria um fenômeno merecedor de investigação. Como estes julgamentos têm validade preditiva similar ou, em alguns casos, superior às avaliações objetivas feitas por psicólogos treinados, usando sistemas objetivos, este fenômeno passa a ter implicações teóricas e práticas que requerem explicação.
Inicialmente, procuramos detectar que itens evolutivos ou indicadores emocionais do DFH poderiam explicar a variância das escalas de Normalidade e de Qualidade Artística. Análises de regressão identificaram alguns itens (roupa, pernas e pés em duas dimensões e sombreado do corpo) que respondiam por 80% da variância ajustada da escala de normalidade (r=0,91). Outros itens (roupa, braços em duas dimensões e pés) também explicaram 80% da variância ajustada da escala de qualidade artística (r=0,90). Isoladamente, um grande número de indicadores evolutivos e emocionais apresentaram correlações elevadas com as escalas globais. Porém, como muitos destes indicadores não são definidos independentemente e apresentam elevadas correlações entre si, é possível que a análise de regressão, por sua própria natureza, tenha deixado de incorporar na equação um ou vários itens que são efetivamente processados pelos sujeitos para realizar um julgamento de normalidade ou qualidade artística. Os resultados desta análise não são satisfatórios do ponto de vista teórico e não auxiliam efetivamente no entendimento do fenômeno. Não geral sequer a convicção de que itens específicos são levados em consideração pelos juízes.
Uma explicação possível consiste em postular que quando um indivíduo é solicitado a fazer um julgamento sobre a normalidade ou a qualidade artística de um desenho, o que ele efetivamente faz é uma comparação entre seu esquema corporal e o esquema corporal representado pelo desenho. Quanto menor a discrepância, maior a normalidade e qualidade artística percebida.
Se este for efetivamente o caso, quando indivíduos com um esquema corporal que não está bem desenvolvido ou com problemas nesta área forem utilizados como juízes, o fenômeno deve desaparecer. Isto é, a fidefignidade entre juízes deve ser baixa e os escores das escalas globais deverão apresentar correlações baixas com os itens evolutivos, indicadores emocionais, outros testes e avaliações de desempenho. Porém, esta não é uma hipótese facilmente testável pois envolve problemas metodológicos substanciais na operacionalização de avaliações de esquema corporal. No momento estamos realizando uma séria de estudos-piloto tentando desenvolver uma metodologia adequada para esta investigação. Resultados preliminares indicam que a hipótese não é descabida e poderá encontrar suporte empírico se as dificuldades metodológicas forem superadas.
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