Introdução
Qualquer coisa na escrita me sugere o prazer da caça: no vazio da página se ocultam infinitos sobressaltos e espantos. (Mia Couto, 2013, p. 197)
Muitos foram os sobressaltos e espantos vividos por Clarice (nome fictício), uma mulher que escrevia poesias, quando procurou o espaço terapêutico da escrita. De uma hora para outra, sentiu que sua capacidade de escrever caía por terra. Leitora voraz de ficção, claro, especialmente de poemas, e sempre pronta a rabiscar os seus, agora se via diante de um convite que não podia deixar de aceitar, vindo do professor doutor que supervisionava o trabalho prático de Clarice, voltado a grupos de mulheres em situação de vulnerabilidade social. A tarefa que se impunha era a de escrever um artigo científico.
O convite para essa produção acadêmica, de imediato, criou um conflito que quase paralisou Clarice, quase a fez desistir: por um lado, estava muito feliz por ter sido convocada, pois seria uma oportunidade de legitimar o belo e significativo trabalho que vinha realizando com as mulheres, oferecendo-lhes saídas para se sustentarem coletivamente. Por outro, estava assustada, desconfiada se estaria à altura do projeto - um artigo científico lhe parecia muito além de suas capacidades de escritora. E muito diferente de compor um poema, que era algo que não lhe despertava ansiedades; ao contrário, sentia que a aliviava das dores do viver.
Dessa desconfiança, vieram as dúvidas: “o que é exatamente um artigo que circula na esfera acadêmica? Será que tenho repertório de conhecimentos suficiente para compô-lo? Por onde começar?”. E foram essas dúvidas que a levaram a procurar ajuda, um espaço para compartilhar suas aflições.
É bom que se diga que os sobressaltos e espantos de Clarice diante da tarefa de escrever são da mesma natureza daqueles vividos por tantos de nós quando nos vemos às voltas com projetos que envolvem a criação de um dizer próprio, uma expressão de si diante de outros, nas mais variadas esferas de comunicação. E isso nada tem a ver com o domínio da língua na qual nos expressamos e nem mesmo com o fato de termos ou não um repertório de experiências positivas de realização de outros projetos discursivos, em outros gêneros de discurso. Não é diferente do que escritores como Mia Couto experienciam diante da página, ou da tela, em branco.
Isso mostra que não se trata de dificuldade individual, e sim de um fenômeno que marca os processos criativos, qualquer que seja a materialidade escolhida – barro, tintas, imagens em movimento... –, e que pode afetar mesmo os mais conhecedores do ofício. No caso aqui em pauta, sendo a escrita o ofício, não são poucos os autores consagrados que colocaram em palavras os conflitos, as inseguranças, o temor de não conseguirem levar adiante um novo projeto de texto, para outro público-leitor. Ainda que tragam na memória situações em que o que tinham a dizer fluía mais, sem reservas, isso não garante a mesma condição diante de novos desafios.
Escrever muitas vezes também nos remete a memórias doloridas, de fracassos nas tentativas de comunicação, a momentos em que não encontramos parceiros dispostos ao diálogo – que implica escutar e elaborar apreciações estéticas, respostas, contraposições, concordâncias ou discordâncias – ou dispostos a receber nossos escritos com hospitalidade – ou seja, abertos à alteridade que se materializa no idioma pessoal (Bollas, 1998).
No livro Sendo um personagem, Bollas (1998, p. 9) afirma que nos movimentamos entre cultura, sociedade, linguagem e momento histórico em que vivemos, em busca de um idioma próprio, singular – em analogia, tratar-se-ia “de uma semente que pode, sob condições favoráveis, evoluir e se articular (...)”. Entendido pelo autor como um correspondente psíquico de nossa impressão digital, o idioma diz respeito a uma estética particular, única, que nos determina, tendo sua origem constitucional nos primórdios da existência, quando experimentamos um ajustamento profundo com o objeto primário que nos dedica funções de cuidado básicas para seguirmos na vida (alimentar, banhar, abrigar, acolher...). No dizer de Bollas (1992), são momentos
[...] sentidos como familiares, sagrados, reverentes, mas [que] escapam profundamente da coerência cognitiva. São registrados mediante uma experiência mais no ser do que na mente, porque expressam aquela parte em nós na qual a experiência da comunicação com o outro foi a essência da vida, antes da existência das palavras (p. 50).
Estamos, pois, transitando em um campo que exige delicadeza, escuta atenta e sensível de quem recebe em seus espaços de trabalho demandas como a de Clarice. São de fato muitas as inquietações de ordem afetiva que pedem condições favoráveis para que seja possível atravessá-las quando nos dedicamos a escrever, imprimindo no texto nosso próprio idioma, e não um mero revozeamento de outros. Inquietações que pedem sustentação num espaço terapêutico, que podemos chamar de potencial e no qual, como propomos adiante, tem lugar um terceiro gerado no encontro de subjetividades.
Seguimos então com nossa interlocução com autores que se dedicaram a pensar nos processos criativos, destacando a importância de o terapeuta exercer funções de cuidado nesse contexto, o que implica escuta atenta das inquietações e ansiedades trazidas por aqueles que buscam não desistir de escrever, que se propõe a vencer, ou ser mais rápidos, do que essa parte de nós que não escreve “... que está sempre nas alturas do pensamento, sempre ameaçando desmaiar, dissolver-se nos limbos do relato vindouro, que jamais descerá ao nível da escritura, que rejeita tarefas...” (Duras, 1987, pp. 27-8).
Espaço potencial: espaço sagrado em que se experimenta o viver criativo
Termo criado por Winnicott (1975, p. 163) para se referir a uma terceira área de experiência, o espaço potencial “é fator altamente variável (de indivíduo para indivíduo), ao passo que as outras duas localizações — a realidade pessoal ou psíquica e o mundo real — são relativamente constantes (...)”. Trata-se de um lugar-tempo entre o que é subjetivamente concebido e o objetivamente percebido que nos leva além da formulação habitual, segundo a qual, quando chegamos ao estágio de ser uma unidade, constitui-se uma espécie de membrana que limita rigidamente exterior e interior. Essa terceira área de experimentação nos permite descansar, de modo a suspendermos a necessidade de, a todo momento, discernir o que pertence à interioridade, campo subjetivo, e o que é da exterioridade, campo objetivo. Ou seja, as experiências vividas nesse espaço potencial possibilitam que nos situemos no mundo “de modo que o objetivo e o subjetivo possam coexistir” (Winnicott, 1975, p. 163).
E é nele que o brincar acontece, com objetos que circulam no campo cultural e que nos foram apresentados pelo ambiente suficientemente bom, justamente para nos sustentar entre presenças e ausências, sonho e vigília. São objetos que iluminam nosso mundo, que não são alucinações, já que existem de fato, mas cuja essência não está no real, e sim nessa terceira área esboçada por Winnicott.
No dizer de Bollas (1998, p. 8), trata-se do lugar em que encontramos “[...] a coisa para dar significado, no exato momento em que o ser é transformado pelo objeto. Os objetos de espaço intermediário são formações de compromisso entre o estado de mente do sujeito e o caráter da coisa”. Neste artigo, trabalhamos com o caráter da escrita, e de que formas podemos favorecer um estado de mente propício ao criar a partir do idioma pessoal.
O conceito de terceira área nos remete ao par mãe-bebê e a toda narrativa winnicottiana acerca do processo de amadurecimento1, que tem início no momento de dependência absoluta da mãe, em que o bebê não distingue dentro e fora, eu e não-eu (o bebê é a mãe; e a mãe é o bebê), e caminha para a dependência relativa, quando começa a se tornar em condições de reconhecer e aceitar aspectos da realidade que compartilha com os outros. Em algum momento entre eles, constitui-se então esse espaço intermediário, transicional, que marca a diferença de sentidos de existência e que “tanto une como separa mãe e bebê”:
Localizei essa importante área da experiência no espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio ambiente, aquilo que, de início, tanto une quanto separa o bebê e a mãe, quando o amor desta, demonstrado ou tornando-se manifesto como fidedignidade humana, na verdade fornece ao bebê sentimento de confiança no fator ambiental (Winnicott, 1975, p. 163).
Como bem destaca Winnicott, o espaço potencial só pode vigorar quando as experiências vividas conduzem à confiança – entre bebê e mãe, criança e família, indivíduo e sociedade, ou ainda entre paciente e terapeuta – ponto central que destacamos neste artigo. A brincadeira infantil que nele tem lugar, “se expande [na vida adulta] no viver criativo e em toda a vida cultural do homem” (Winnicott, 1975, p. 163), de modo que aquilo que é permitido ao bebê é conservado na experimentação intensa que diz respeito aos objetos culturais, às artes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico criador.
Trata-se da experiência de unicidade com o objeto, numa indiferenciação a ponto de toda a transformação de estados (Bollas, 1992) – no bebê, primordialmente corporais, como da fome à saciedade, da luz à meia luz, do vazio do silêncio à entonação da voz - ser vivida como obra própria, capacidade de criar a partir do que se necessita para viver, sentir prazer, em um corpo vitalizado.
No adulto, entra também, com mais força, a capacidade de criar símbolos, que nos remete à criatividade psíquica enunciada por Milner (1991) - para contribuir com novos símbolos e meios de expressão no campo cultural, diz ela, é preciso se manter a meio caminho entre o sonhar acordado e alguma intenção, assim participando com vitalidade e originalidade da criação do mundo exterior. Nas artes, diz respeito a fazer um símbolo para o sentimento e na ciência, para o ato de conhecer.
Tudo o que digo sobre as crianças brincando realmente aplica-se também a adultos, apenas é mais difícil descrever o que acontece quando o material do paciente aparece predominantemente em termos de comunicação verbal. A meu ver, a expectativa de encontrarmos o brincar na análise de adultos deve ser tão grande quanto no trabalho com crianças. Ela se manifesta, por exemplo, na escolha de palavras, nas inflexões de voz, como também, com certeza, no senso de humor (Winnicott, 1975, p. 61).
Manifesta-se ainda nos rabiscos, pontos, vírgulas, reticências, no espaço branco entre blocos pretos – o necessário silêncio que deve figurar entre palavras – até o texto se completar, como veremos no episódio clínico aqui em pauta. Nele, fica clara a necessidade de “trazer o paciente da condição de não conseguir brincar para outra, em que ele consegue brincar” (Winnicott, 1975, p. 59). A esse respeito, em artigo anterior, destacamos que, para conseguir brincar, o paciente “precisa desenvolver a capacidade de ser criativo, de modo a liberar o trabalho da imaginação – criar o mundo e torná-lo significativo e real, de modo vivaz, polissêmico” (Perrotta &Cintra, 2014, p. 954).
Oferta de materialidades no Espaço Potencial
Afinada com o pensamento winnicottiano, Marion Milner também trata de como as bordas eu-outro podem se misturar num processo criativo, levando à transformação subjetiva. Assim como Winnicott, aborda a função de cuidado do ambiente de apresentar objetos-materialidades que possibilitem essa transformação, e que aqui neste artigo diz respeito à linguagem escrita:
O ambiente deve prover condições nas quais seja possível um retorno recorrente do sentimento de ser um. Para isso, deve necessariamente ofertar espaço e tempo enquadrados, além de meios plásticos, de modo que em certas ocasiões, não vai ser necessário que se distinga, para finalidade de autopreservação, entre o interior e o exterior, self e não-self (Milner, 1991, p. 106).
Nos primórdios da existência, quando ainda não nos era possível discernir eu-outro, realidade interna e externa – ainda envoltos na onipotência, criar e descobrir se misturavam. E essa disposição retorna quando brincamos com meios plásticos, maleáveis e responsivos ao nosso gesto expressivo pessoal – a escrita pode ser um deles. São esses momentos de vital ilusão que nos fazem sentir vivos, pois não precisamos decidir o que é o si mesmo e o que é a alteridade – momentos de ilusão, mas ilusões que certamente são a raiz de todo senso de existência e entusiasmo vital (Milner, 1991 citado por Perrotta & Cintra, 2017, p. 133) .
Essas experiências nos possibilitam crescentes integrações em nossas vidas e, pela temporária fusão do sonho com a realidade externa, permitem que o sonho em si se torne dotado de qualidades reais. Assim, a experiência se torna enriquecida quando aproximamos o objeto transfigurado a si mesmo (seu self):
Sem uma transfiguração pessoal do mundo externo, ele não alcança nenhum significado. Sem ilusão, sem apercepção criativa, o mundo não alcança um senso de existência. Não temos como ver algo se não lhe atribuímos um sentido. E, ao dar um sentido, necessariamente, propomos uma transformação. A substância do que experimentamos é o que colocamos naquilo que vemos. Sem uma contribuição pessoal, nada podemos ver. E assim vamos desenvolvendo nossa capacidade de filosofar, de criar sentidos, de encarar a vida e lidar com o mundo externo. Isso significa viver de modo integrado, criativamente, com possibilidades de realizar potenciais de forma plena (Milner, 1991 citado por Perrotta, 2014, p. 139).
Em encontros dessa natureza, limites e potencialidades da materialidade – no caso, a escrita - convivem em estado de tensão, por vezes, desgastante. O equilíbrio é mesmo tênue, precisamos escapar do desgaste, gerado quando regras e protocolos se destacam do sentido: escrever bem, mas para quem, e com quais intenções?
Muitas vezes, os protocolos ganham força e ameaçam interceptar o gesto espontâneo, ameaçando o projeto de escrita autoral – talvez uma forma de o autor, ainda inseguro de suas capacidades, esconder-se em palavras esvaziadas de sentido, numa organização defensiva que comunica temores a serem nomeados no espaço terapêutico. É preciso, pois, presença humana para sustentar inseguranças e frustrações para que dizeres investidos de pessoalidade, que apresentem o idioma pessoal, sejam compartilhados no espaço público, de modo que o que se tem a comunicar reverbere na realidade compartilhada, gerando a criação de novos sentidos e pensamentos. No caso de Clarice, o que ela tinha a comunicar a outros pesquisadores de sua área significava uma contribuição fundamental, que poderia abrir novas possibilidades de atuação, pautada na ética e no respeito à dignidade e no potencial criativo do grupo de mulheres, que, com o trabalho, iam se sentindo cada vez mais pertencentes a uma comunidade capaz de se fazer ouvir, reagindo saudavelmente às humilhações vividas no campo social.
A constituição do terceiro analítico em um espaço de confiança
Referindo-se ao sujeito intersubjetivo de Winnicott, também Ogden (1996, p.45) discute a ideia, destacando que o espaço entre mãe e bebê envolve tensões dialéticas de unidade e separação, “de internalidade e externalidade, por meio das quais o sujeito é simultaneamente constituído e descentrado de si mesmo”. São elas: dialética de estar-em-um estar separado, que se refere à preocupação materna primária; dialética de reconhecimento e, ao mesmo tempo, negação do bebê no papel especular da mãe; dialética da criação e, ao mesmo tempo, descoberta do objeto na relação com o objeto transicional, e por fim, dialética da destruição criativa da mãe no uso do objeto. Cada uma delas “representa uma faceta diferente da interdependência entre subjetividade e intersubjetividade” (Ogden, 1996, p. 45).
O autor delineia também outra ideia que faz referência tanto ao conceito de espaço potencial como de identificação projetiva, pensado por Melanie Klein, além de trazer influências teóricas da obra de Bion (Ribeiro, 2020).
Trata-se do terceiro analítico, conceito postulado em 1994 por Thomas Ogden e que diz respeito a um fenômeno que surge a partir do encontro de duas pessoas e que podemos representar de uma forma simples: um mais um é igual a três. Para o autor, no encontro entre duas personalidades, há a formação de uma área que pertence à dupla, e não mais ao mundo interno de um e de outro. O que surge nesse encontro é, portanto, único - um fenômeno que acontece a partir da interação entre duas pessoas, mas que está em uma terceira área da experiência que é criada.
Como uma analogia imagética para pensarmos o terceiro analítico, vamos imaginar dois saquinhos de chá imersos na mesma água – trata-se de uma metáfora fantástica para a compreensão desse fenômeno intersubjetivo. A água é criada pelo encontro, a água é o terceiro elemento criado e que, concomitantemente, produz efeitos nos dois elementos iniciais. O terceiro analítico é criado e recriado ativa e continuamente por cada um dos parceiros, sendo que cada um tece então o seu próprio terceiro analítico que entra em relação com o terceiro analítico do outro. O elemento fluído água seriam as emoções que circulam produzidas por esse terceiro elemento; ou seja, algo que é produzido pelo encontro, o terceiro elemento água, mas que passa, também, a produzir novos efeitos, em um processo contínuo.
Outra imagem que podemos ter em mente para compreender o conceito é a do Rio Negro que se encontra ou colide como o Rio Solimões no Estado da Amazônia: águas escuras e águas barrentas caminham por quilômetros com suas cores diversas, criando, conforme a correnteza segue, uma água comum, de cor singular, que não é mais Negro nem Solimões, uma terceira água se forma com formas únicas e irrepetíveis.
No contexto terapêutico, podemos dizer que se trata de o terapeuta se permitir tanto destruir como ser destruído pela alteridade da subjetividade do paciente, de modo que possa “escutar um som que emerge dessa colisão de subjetividades que é familiar, embora seja diferente de qualquer coisa escutada antes” (Ogden, 1996, p. 3).
Público ou gaveta? – destino que damos a materialidades que criamos
Mas o que mais estaria implicado nesse espaço potencial de destruição mútua, necessária para se dar vazão aos processos criativos? Claro está que se há destruição de objetos, há também as ansiedades provenientes de fazê-lo.
Vamos começar por uma das ansiedades descritas no texto “Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos”. Nele, Winnicott (1963) fala do medo que todos temos de nos expor, da fantasia de sermos “devorados e engolidos”, ou descobertos, o que remete à maneira como entende o processo de amadurecimento no que se refere à comunicação com o objeto – o outro. Destaca então: “[...] naturalmente ocorre uma mudança no propósito e nos meios de comunicação à medida que o objeto muda de ser subjetivo a ser percebido objetivamente (...)” (p. 166).
Quando o que prevalece é a apercepção subjetiva do objeto, obviamente, a comunicação com ele não necessita ser explícita, basta existir. Ao contrário, quando o objeto vai se tornando objetivamente percebido, então surge a necessidade de se utilizar modos de comunicação explícita – mas surge também a necessidade de não comunicação, forma de o indivíduo preservar seu núcleo pessoal ou verdadeiro self. Seria, no dizer do autor, um “uso sadio da não comunicação no estabelecimento do sentimento de realidade”. Há, pois, um núcleo da personalidade que corresponde ao eu verdadeiro e que nunca se comunica com o mundo dos objetos percebidos: “Embora as pessoas normais se comuniquem e apreciem se comunicar, o outro fato é igualmente verdadeiro, que cada indivíduo é isolado, permanentemente sem se comunicar, permanentemente desconhecido, na realidade nunca encontrado” (Winnicott, 1963, p. 170, grifos do autor).
Mas há outras ansiedades muito bem enunciadas por Milner, presentes quando decidimos tornar nossas ideias públicas, compartilhando nossas criações. Diz a autora que os estados de ilusão de unicidade com a materialidade, necessários para acionarmos em nós a condição de criar, requerem a capacidade de tolerar a perda temporária do self, a desistência temporária da discriminação, que fica tentando ver objetivamente as coisas, sem as cores emocionais. Êxtase, contemplação, estados de elevação de consciência são próprios do criar e “não podem ser tratados exclusivamente no campo das alucinações, pois assim deixamos de perceber o quanto permitem liberdade à criatividade originária e possibilitam a sustentação de sentimentos que inibem o criar” (Milner, 1991 apud Perrotta & Cintra, 2017, p. 152).
A autora destaca ainda que a capacidade criativa deriva de experiências corporais muito primitivas. As crianças, então, se oferecem por meio de seus produtos e têm grande interesse por tudo que envolve o corpo, como comer, urinar, cuspir, vivendo um deslumbramento quando se dão conta de que podem produzir coisas com ele e ofertá-las. Mas, além da satisfação, também se fazem presentes as inibições, pois há um grande desapontamento quando esses “presentes” não são recebidos com a mesma intensidade com a qual foram produzidos. Sentimentos amorosos de alegria investidos na hora da oferta, processos subjetivos não são completamente veiculados na materialidade, e o choque desse descompasso pode ser tão profundo que a pessoa passa a acreditar que tudo que cria não é vivo. Criar significa produzir algo sem valor, não atrativo, não significativo. Essa decepção leva a um estado subjetivo de ruptura que a faz colocar em questão a própria criatividade, e esse sentimento pode voltar à tona diante de algum projeto que envolva a entrega de algo muito próprio a possíveis interlocutores, nem sempre hospitaleiros aos gestos pessoais.
Ainda tendo a criança em mente, a autora afirma que ela vai se dando conta de que sua “linda sujeira” não é um belo poema quando alcança o estágio de reconhecer a mãe como pessoa, e não mais como produto de sua criação – uma pessoa de quem recebe amor e para quem oferece amor. Mas, se os produtos corporais não são mais satisfatórios, de que maneira comunicar o amor? É preciso desvelar outro meio para a expressão de sentimentos: as provisões ofertadas pelo campo cultural. Para delas usufruir, é preciso simbolizar essa experiência de natureza orgástica, que é a indiscriminação entre orifícios do corpo e seus produtos, criando uma “linguagem do amor”. Daí a necessidade de sentir o corpo vivo e, ao mesmo tempo, identificar os “materiais não-vivos” por ele produzido. Trata-se, justamente, do trabalho do artista: “conferir vida aos pedaços da matéria ‘morta’ do mundo externo, o meio escolhido” (Milner, 1991, p. 219)
Como então chamar para a comunicação, dissolver fantasias de ser devorado? Como contrapor a decepção diante das vozes de outros que se posicionam como avaliadores de nossos produtos, e tantas vezes os recebem de forma excessivamente crítica e despotencializadora? É possível tornar vivo dizeres que circulam em uma esfera de comunicação tão tradicional como a científica? Ou nos resta seguir a tradição, economizando em marcas pessoais de expressão?
Pensamos que se trata de criar um espaço de confiança, em que o terceiro tem lugar e em que o revelar-se ao outro preserve silêncios, não ditos apenas insinuados, brancos entre palavras de que falávamos antes, a serem completados pelo interlocutor - um verdadeiro jogo de luzes, sombras, meios-tons, fronteiras borradas, como numa aquarela. Nele, a destruição mútua tem lugar, porque se trata de destruir para criar, a partir da “colisão de subjetividades”.
Apresentamos então um episódio clínico, vivido no Espaço Terapêutico, e potencial, da Escrita, em que um terceiro se formou a partir de encontros repletos de rabiscos, idas, vindas, em que foi possível escutar o som advindo da colisão de subjetividades disponíveis a escrever e em que a dupla conseguiu vencer, ou ser mais rápida do que essa parte de nós que teme se comunicar e não ser compreendida em seu idioma pessoal, que teme expor dores e pensamentos “[...] que está sempre nas alturas do pensamento, sempre ameaçando desmaiar, dissolver-se nos limbos do relato vindouro, que jamais descerá ao nível da escritura, que rejeita tarefas...” (Duras, 1987, pp. 27-8).
Clarice, muito antes de tudo
moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia
vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia
(Paulo Leminski, 2002, p. 49)
Clarice é poeta. Arrisca-se também nas artes plásticas, mas, quando me procurou pela primeira vez, com sua pasta de poesias, algumas inclusive já premiadas, logo vi, Clarice é, antes de tudo, poeta. “Muito antes de tudo”, na verdade, título que deu a uma série de poesias que me tocou muitíssimo, talvez pelo silêncio que fala tanto ou mais do que as próprias palavras, de toques de mãos, portas entreabertas, de flores e alívios.
Além de atender adultos em “crise” com a produção acadêmica, também me dedico a ajudá-los em outros projetos discursivos, como este de Clarice: trabalhar um pouco mais suas poesias, organizá-las por temáticas ou por qualquer outra categoria, uma ou outra pincelada. Mas o que importava mesmo eram nossos encontros, a revelação do quanto suas palavras me encantavam, de que forma reverberavam, a que memórias me remetiam, os sentidos inéditos que íamos criando juntas. Fui apenas, e antes de tudo, uma leitora de sua obra, e assim ela emoldurou nossa parceria em certa ocasião:
Comunhão entre dois mundos.
Espaço de encontro, onde um sopra e o outro respira.
Nem só alma, nem só carne.
O amor é feito de mescla.
Respiração boca a boca que chama de volta pra vida
(citado por Perrotta, 2014, p. 170).
Eu me envolvia de tal forma com seus escritos que me via vivendo a experiência muito bem descrita por Thomas Ogden (1996, p. 1), que remete ao terceiro analítico de que falamos anteriormente:
Ler não é uma simples questão de examinar, ponderar ou até pôr à prova as ideias e experiências apresentadas pelo escritor. Ler implica uma forma de encontro muito mais íntima. Você, o leitor, precisa permitir que eu [escritor] o ocupe - seus pensamentos, sua mente - já que não tenho outra voz para falar a não ser a sua.
Ao ler, precisamos nos dar o direito de pensar os pensamentos do escritor, que precisa se permitir tornar-se os pensamentos do leitor:
[...] assim, nenhum de nós será capaz de reivindicar o pensamento como sua criação exclusiva (...) Um terceiro sujeito é criado na experiência de ler. Sujeito este não redutível ao escritor e nem ao leitor. A criação de um terceiro sujeito (que existe em tensão com o escritor e o leitor como sujeitos separados) é a essência da experiência de ler (...), e é também o núcleo da experiência psicanalítica (Ogden, 1996, p. 1).
Foi certamente a necessidade de voltar pra vida que levou Clarice a me procurar novamente, cinco ou seis anos depois, agora com outro pedido: havia sido solicitada a escrever um artigo sobre um belo trabalho que vinha desenvolvendo já há alguns anos no contexto de sua área de atuação.
Ocorre que Clarice não fazia a menor ideia, segundo me relatou, de como compor um artigo, pois, até então, não havia se experimentado nesse tipo de texto. Para ajudá-la na tarefa, seu supervisor lhe indicou um colega já bem experiente na produção acadêmica. E a partir daí, teve início a aflição de Clarice.
Esse colega começou por questionar qual seria a relevância do trabalho que pretendia publicar. “Relevância?”, estranhou, “o que isso quer dizer, exatamente?”. O acento apreciativo que sentiu nesse questionamento, vindo de uma autoridade em uma esfera de comunicação de pouco domínio por parte de Clarice, levou-a a formular a seguinte resposta: “não deve ter nenhuma, é só uma história que tenho pra contar, devem ter muitas outras muito mais interessantes ou relevantes!”. Em seguida, o colega começou a sugerir o conteúdo temático de cada parte, de um modo padronizado, sem considerar o que Clarice realmente desejava compartilhar com o público leitor: “mas não vejo sentido em fazer isso”, indignou-se Clarice, “não é algo que me mobiliza no trabalho que realizo”.
Diante dessas orientações, ou dessa voz tão sabedora, Clarice sentiu-se incapaz de realizar o projeto acadêmico. “Descobri que sou burra.”, declarou em nosso primeiro reencontro. Conversamos sobre esse sentimento e fomos percebendo que, na verdade, o fato de não ter produzido, até o momento, um texto de natureza conceitual, colocava Clarice em um lugar hierarquicamente inferior ao colega, por sinal, mais jovem, visto como mais hábil e competente para escrever um artigo. De certa forma, ela estava apartada da comunidade de autores de textos acadêmicos.
Emoldurar esse sentimento de humilhação, de certo modo, fortaleceu Clarice, levando-a, inclusive a sentir na pele o que viviam as mulheres com quem trabalhava. Ela então decidiu enviar um primeiro rascunho ao colega “eleito” para ajudá-la. Diante da resposta, logo se comunicou comigo, contando que havia “travado de novo” e nem sabia mais por onde retomar...
De fato, a resposta foi um tanto desvitalizante. Resumia-se a uma série de pressupostos sobre o que seria uma produção acadêmica, diferenciando-a do registro poético, campo expressivo caro à Clarice. Segundo o colega, um leitor de poesia quer apenas fruir o texto, enquanto o leitor de textos científicos quer aprender e não ser surpreendido, não lê por ler, lê de modo pragmático e utilitário. Por isso, o texto precisa ser claro, organizado e convencional.
Com isso, o isolamento se acirrou – todos tinham competência para a produção acadêmica, e ela, “apenas” para a poesia... O colega também lhe passou uma nova tarefa: escrever o resumo do artigo, e já com orientações de quais padrões deveria seguir.
Temi que Clarice se fragilizasse diante da assertividade do colega e acabasse por desistir. Afinal, como escreveu certa vez, tal qual porcelana fina, as delicadezas da alma também quebram... Mas não foi o que ocorreu. Logo respondi à Clarice, dispondo-me a uma nova sessão, antes do dia que havíamos combinado. Ela chegou um tanto abatida, me deu a impressão de estar tensa, meio brava ou raivosa. Foi logo dizendo: “não é possível que isso seja tão difícil de fazer!”. Concordei, “não é mesmo, é mais fácil, num certo sentido, do que escrever poesia!”. E a presenteei com uma página repleta de várias que havia escrito na ocasião de nosso primeiro trabalho. Ela sorriu, a tensão inicial foi se dissolvendo, relemos juntas, apreciando o quanto estavam belas, precisas, em especial no que se refere à concisão e abertura para o leitor fazer suas viagens...
Mas a tarefa do resumo se impunha com urgência, e era fundamental realizá-la. Clarice fez algo bem interessante. Procurou resumos de trabalhos escritos por outros colegas, modelos nos quais se inspirar. Também fui compreendendo a “braveza” de Clarice como positiva, um estado emocional que indicava o quanto estava se sentindo desafiada e instigada a sair daquele lugar frágil, de incompetência e inferioridade.
Partimos de seus rabiscos. Ela ditava e eu ia registrando no computador. Parávamos a cada frase, buscando palavras que precisassem o que o leitor encontraria ao ler o artigo. Fomos assim trabalhando as regularidades de um artigo acadêmico sem deixar de contemplar o idioma de Clarice, o arsenal de palavras, expressões, construções frasais que compõem seu repertório. Partíamos do conhecimento prévio que trazia sobre esse tipo de produção, potencializando capacidades escritoras existentes, embora não acionadas nos últimos tempos, simplesmente porque vinha se dedicando a escritos de outra natureza. Sua própria experiência como leitora de produções acadêmicas lhe garantia certa competência inicial para a produção, que precisaria então ser sofisticada, contando com uma parceria suficientemente boa.
Também refletimos juntas sobre a visão do colega a respeito do texto acadêmico. Será mesmo que o leitor desse tipo de texto não quer ser surpreendido? Busca apenas um escrito convencional? Será que a natureza do trabalho realizado por Clarice estaria contemplada em um dizer mais pragmático, seria mesmo apenas um instrumento para o aprendizado? Não caberia a expressividade, marcas de autoria, no caso de Clarice, banhadas pelo dizer poético?
Obviamente, há sim inúmeras formas de registrar ou, melhor dizendo, legitimar práticas, reflexões na academia. Há sim certa flexibilidade entre os polos: seguir à risca a convenção, sem nunca surpreender o leitor, ou descaracterizá-la totalmente, frustrando o leitor em sua busca por conhecimento2.
Propus a Clarice que experimentássemos transitar entres esses dois polos, considerando o perfil das produções do grupo, e arriscando sim “sujar” o texto com marcas expressivas, de modo a não se constituir por um dizer apenas submetido à voz hierarquicamente dominante.
E o resumo foi se concretizando; para isso, foi fundamental que eu sustentasse certa impaciência, certa resistência de Clarice para entrar no jogo, brincar com as convenções, arriscar-se nas potencialidades e limites da materialidade escrita conceitual, da mesma forma que me contou ter brincado, recentemente, com as regras do haicai.
Interessante como a capacidade criativa de Clarice estava muito estabelecida em outros registros. Quais seriam as memórias que trazia em relação à esfera acadêmica de comunicação? Certamente, mais de fracassos do que de conquistas, talvez por ser essa materialidade apresentada como pouco maleável, pouco afeita, portanto, para receber o gesto pessoal expressivo. Já no haicai, o criar fluía, e as regras não se mostravam impeditivas – aqui, o interjogo comunicar-se e, ao mesmo tempo, permanecer escondido nas metáforas estava garantido para Clarice. Ao contrário, a materialidade escrita acadêmica parecia ameaçá-la com uma superexposição, em que tudo deveria ser minuciosamente explicado, sujeito a críticas, quem sabe “ferozes” – Clarice talvez temesse ser então devorada, e quebrar, qual porcelana fina ...
Entre idas e vindas, Clarice foi deixando de “brigar” tanto com a materialidade, e no decorrer dos atendimentos, contando com minha presença, por vezes apenas como testemunha da briga, foi começando a mostrar uma disposição para aprender, sem se submeter. Ao mesmo tempo, ia apresentando o objeto, a materialidade em questão, com suas regularidades e tradições, abrindo um espaço para que ela se percebesse em condições de trazer algo novo para esse campo, uma nova composição de palavras, um novo ponto de vista.
Há certa tensão aqui, a necessidade de “negociar” entre um dizer mais apegado à tradição – lugar que, no caso de Clarice, o colega orientador do artigo insistia em mantê-la – e a abertura para o gesto pessoal – banhado pelo registro poético, no caso de Clarice.
Não estava fácil. Passaram-se alguns dias, Clarice me chamou novamente, dizendo se sentir cada vez mais engessada: Vou me sentindo tão burra que nem sei se compreendi, nem sei se faço um bom trabalho mais. Me desorganizou! De fato, após nova troca de mensagens com o colega a respeito do resumo, este insistia: “há uma ordem certa”, “não se pode colocar palavras que pertencem a um item em outro”. E, mais ainda, desta vez ele propunha reformulações de cada um destes itens, objetivo/relevância/metodologia/resultados e a conclusão deveria ter uma frase de praxe, substituindo praticamente todas as palavras de Clarice, que, obviamente, só poderia mesmo se sentir “engessada”...
Lendo juntas o novo e-mail do colega, que fez questão de apontar as mudanças que “sugeria” em caixa alta, e impondo expressões como PROCEDIMENTOS INVESTIGATIVOS, PRODUÇÃO INTERPRETATIVA, e ainda LOGROU BENEFICIAR, estranhos ao repertório de Clarice, conseguimos enfim encontrar palavras mais próximas a seu idioma, sem descaracterizar o tipo de produção. O que mais a feria era de fato a insistência do colega em afirmar que Clarice deveria escrever um artigo de modo pragmático, pensando no leitor de textos científicos, que, ao contrário do leitor de poesia, não busca prazer estético, e sim soluções que devem ser fundamentadas cientificamente. Com isso, afetava Clarice, justamente, na possibilidade de, diante de um discurso ainda pouco experimentado, “criá-lo para encontrá-lo” - matriz fundamental da experiência criativa, banhando o objeto com sua subjetividade, no caso, muito marcada pelo registro poético.
Faltava aqui certa hospitalidade – Clarice era uma nova visitante do universo acadêmico, uma iniciante, recém-chegada; caberia, de meu ponto de vista, ser recebida com amabilidade e generosidade, sendo apresentada à materialidade ou objeto cultural escrita acadêmica em pequenas doses, de modo que se percebesse com possibilidade de trazer algo de novo a esse universo, suas contribuições pessoais, de modo a enriquecê-lo com suas experiências e reflexões. Isso não significava, como me parece que o colega concebia, que Clarice descaracterizaria o objeto ou deixaria de seguir certas tradições, não deixaria de conceituar, de dissertar, mas poderia fazê-lo de modo mais vivaz e pessoal se fosse reconhecida em sua capacidade criativa.
Acompanhei o processo de Clarice até o momento em que, mais fortalecida, confiante, com funções de cuidado internalizadas, ela pôde tomar decisões e continuar a completar seu artigo-obra: Não é um verdadeiro texto “pra chamar de meu”, mas ficou fiel ao trabalho que desenvolvi. Agora, de volta as poesias! E para que não se esquecesse, como resposta, lhe enviei Itamar Assunção (1993)3:
Se a obra
é a soma das penas,
pago,
Mas quero
o meu troco
em poemas
Considerações finais
Nenhum escritor tem a seu dispor uma língua já feita. Todos nós temos de encontrar uma língua própria que nos revele como seres únicos e irrepetíveis. (Mia Couto, 2009, p. 23).
A escrita dá à luz pensamentos, necessitando também de um trânsito pelas dores psíquicas que fazem parte de qualquer criação humana. O texto psíquico que habita em nós é infinito - como o inconsciente, trata-se de uma constante imanência. Assim como as crianças brincam, os adultos jogam e brincam com palavras e teorias, sonham seus textos que são ofertados ao mundo, aguardando a hospitalidade do outro, um leitor no futuro que dê vida novamente ao texto. No espaço potencial de um processo analítico, aqui tendo a escrita como objeto mediador, construímos, a quatro mãos, narrações transformadoras, interpretações narrativas, construções, com seu infinito leque de personagens e composições singulares.
Mia Couto (2005, p. 45) também aproxima o texto científico de uma obra de arte:
Sou escritor e cientista. Vejo as duas atividades, a escrita e a ciência, como sendo vizinhas e complementares. A ciência vive da inquietação, do desejo de conhecer para além dos limites. A escrita é uma falsa quietude, a capacidade de sentir sem limites. Ambas resultam da recusa das fronteiras, ambas são um passo sonhado para lá do horizonte.
Por mais que se tenha domínio técnico, ou do tema a ser abordado em um projeto discursivo, todos nós, se envolvidos de fato com o escrever como expressão de si no mundo, como busca de terreno (in)comum para o diálogo gerador de inquietações que abra novas possibilidades de pensar, todos somos tomados de ansiedades próprias do criar como aquelas que afetaram Clarice. Para sustentá-las, precisamos de parcerias dialógicas, de escuta sensível, de presença humana que nos impulsione a criar sentidos, novas formas de pensar e comunicar sonhos.
Isso nos iguala, independentemente de nossa experiência com a materialidade, do quanto temos desenvoltura em seu uso, ou de nosso percurso profissional, de vida. Assim, ainda que todos tenhamos necessidade de nos comunicar, de dar-nos a ver ao outro, aparecer, ser visto; e ainda que seja inconcebível pensamento sem discurso (Arendt, 1993), a escolha deliberada do que mostrar e do que ocultar não acontece sem conflito e alguma, ou muita, tensão.
A arte de escrever se mistura à de ser. A precariedade, portanto, está sempre presente. Tudo é muito incerto, instável, e nisso reside a potencialidade para criar – sem essa qualidade, somos jogados a uma objetividade estéril, repleta de explicações, teorias, conceitos e analgésicos.
O escrito, no fundo, sempre surpreende. Tanto por nele encontrarmos materializada uma articulação que não sabíamos tão bem constituída como por nos percebermos mais distantes daquilo que supúnhamos já tão composto no pensamento, tão suficientemente digerido e equacionado - a escrita revela essa cisão.
Escrever é, precisamente, um percurso repleto de sobressaltos e espantos.