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versão impressa ISSN 1519-9479
Cogito v.8 Salvador 2007
PSICANÁLISE E FILOSOFIA
Freud e Morelli: encontro não casual *
Denise Maria de Oliveira Lima **
Universidade Federal da Bahia
RESUMO:
Este artigo tem por finalidade estabelecer um diálogo, muito próximo, entre a escolha metodológica de Freud e o método, denominado indiciário, de Giovanni Morelli, crítico de arte italiano, contemporâneo de Freud. Na primeira parte, apresento alguns procedimentos metodológicos usados por Freud para inventar os seus conceitos e seus comentários sobre o processo de sua elaboração.
Na segunda parte, introduzo o método criado por Morelli, através do historiador italiano contemporâneo Carlo Ginzburg. Tento demonstrar, com este diálogo, que o encontro entre Freud e Morelli não foi casual.
Palavras-chave: Método, Particular, Indiciário, Inconsciente.
Em 1 de abril de 1915, disse Freud a sua amiga Lou Andreas-Salome, ao anunciar a publicação de As pulsões e seus destinos: "esforço-me no estudo do particular e espero que o geral se desprenda dele por si mesmo".1
Paulo Sérgio Rouanet, em sua Teoria Crítica e Psicanálise (1983), cita Horkheimer, a propósito de um estudo que aproxima a psicanálise da teoria crítica dos frankfurtianos: Rouanet mostra que a Psicanálise e a Teoria Crítica têm em comum enfoques epistemológicos, filosóficos e metodológicos. Vou me deter apenas nestes últimos.
O método da teoria crítica não pode ser o método indutivo da teoria tradicional, que ambiciona chegar à lei através da agregação de observações particulares, mas um método indutivo sui generis que procura o universal dentro do particular e não acima ou além dele[...] e mergulha nele cada vez mais profundamente, a fim de descobrir a lei universal que se manifesta nesse particular.2
Tal método não poderia ser melhor descrito para explicar as invenções freudianas.
Demonstrarei, mais tarde, que esta definição também se aplica ao método morelliano.
Freud inventou conceitos que fundaram a psicanálise, a qual abriu uma possibilidade de se entender o corpo e a alma do ser humano de modo não pensado pelos que o antecederam. O que são esses conceitos?
Trata-se, a rigor, de uma convenção, nos diz Freud, ou de uma ficção teórica, como são os conceitos fundamentais de qualquer ciência. Pois não descrevem a realidade explicam-na ( ou constituem-na):
[...] não são tirados da realidade a partir da observação, mas criados com a finalidade de constituir uma nova inteligibilidade. Dizer que não são retirados da realidade não significa dizer que nada tenham a ver com ela, mas que não correspondem a algo imediatamente visível e identificável, um dado.3
Continuo citando Garcia-Roza, a respeito do processo de elaboração do conceito, a exemplo da pulsão:
Um conceito deste tipo não nasce pronto, com seus contornos plenamente definidos, suas articulações com os demais conceitos plenamente estabelecidas, perfeitamente transparente e livre de ambiguidade. Sua opacidade inicial é na verdade a marca de sua novidade, de sua extravagância, quando comparado aos conceitos existentes.4
Na primeira parte de Os Instintos e seus Destinos, em tradução manuscrita e provisória de Paulo César de Souza, ainda não publicada, Freud inicia o texto tecendo considerações sobre o método da ciência, dizendo que se esta deve ser edificada sobre conceitos fundamentais claros e bem definidos, na realidade nenhuma ciência começa com tais definições.
"O verdadeiro início da atividade científica está na descrição dos fenômenos, que depois são agrupados, ordenados e relacionados entre si".5 Sobre estas descrições devem ser aplicadas certas idéias abstratas, extraídas de diversos setores que não vêm apenas da experiência ou da observação do novo conjunto dos fenômenos descritos.
Essas idéias comportam, no início, um certo grau de indeterminação: "entramos em acordo quanto a seu significado remetendo continuamente ao material de que parecem extraídas, mas que na realidade lhe é subordinado".6 Continua Freud, e nada melhor do que ele, com suas palavras, para explicar esse processo:
a rigor elas possuem o caráter de convenções, embora a questão seja que de fato não são escolhidas arbitrariamente, mas determinadas por meio de significativas relações com o material empírico.7
Após uma mais profunda investigação e exploração dos fenômenos é que
[...]podemos apreender seus conceitos fundamentais de maneira mais nítida e modificá-los progressivamente, tornando-os utilizáveis em larga medida e ao mesmo tempo livres de contradição. Então pode ser o momento de encerrá-los em definições.8
Continua Freud com esta decisiva observação: "mas o progresso do conhecimento não tolera tampouco definições rígidas"9, como nos evidenciam os conceitos da Física, em constante movimento de superação e de alteração.
A criação de um conceito, portanto, implica avanços, recuos, desvios, novas articulações, sem que se tenha claro o caminho a percorrer.
COMO TRABALHAVA FREUD
"Uma percepção como esta ocorre apenas uma vez na vida",10 assim escreveu Sigmund Freud no prefácio para a 3a edição inglesa da Interpretação dos Sonhos.
Ernest Jones, biógrafo de Freud, sugere que este quis dizer que a descoberta de que os sonhos tinham um sentido como realização disfarçada de desejos inconscientes num momento em que estava aguerridamente empenhado no estudo da histeria, foi feita acidentalmente.
O procedimento pioneiro de Freud foi analisar o seu próprio inconsciente, o qual tinha como pressuposto, evidentemente. Suas cartas e escritos levam a crer que esta decisão de se auto-analisar pode ser atribuída à sua vontade imperiosa de chegar a alguma verdade sobre o psiquismo humano.
O segundo procedimento usado por Freud, concomitante à sua auto-análise, como todos sabem, foi o da observação , ou melhor, da escuta "livre"11 do relato de seus pacientes. Foi descobrindo, aos poucos, que as associações, deixadas "livres" ou seja, o que ocorresse no pensamento dos pacientes tinham uma ordem, um sentido, que os levavam a descobertas de conteúdos reprimidos.
A investigação e a compreensão dos mecanismos dos seus próprios sonhos evoluía gradualmente, até chegar à elaboração do funcionamento inconsciente revelado a partir do sentido do sonho. Nesta tarefa ele avançava, incansavelmente, em meio a dúvidas que ele mesmo se interpunha, as quais refutava ou não dependendo de uma nova prova, e assim por diante, atravessando com esforço o que ele também cedo descobriu: as resistências internas.12 " Não consigo uma solução apenas com os esforços do consciente"13 , reconhecia ele.
O método de trabalho de Freud não era somente uma pura atividade intelectual, de ruminação racional de conceitos, mas, através de seus escritos, fica claro que ele avançava movido por forças inconscientes. Ou seja, demonstra, pelo seu método, a própria existência do inconsciente que ele quer postular; ressalto as consequências que se pode extrair disto, entre elas, a mais importante, que a razão não pode estar dissociada do afeto, em resumo, que o sujeito não está em relação de exterioridade com o objeto.
Ele oscilava entre momentos de profusão e clareza de idéias, que vinham à sua mente, e entre momentos de paralisação e embotamento das concepções que ia elaborando. Escreveu sobre isso:
As novas idéias que me pareceram durante o meu estado de euforia desapareceram; não mais me agradam , e aguardo que elas renasçam de outra maneira. Surgem pensamentos que pressionam a minha mente e que prometem conduzir a alguma coisa definida... e logo esvanecem-se.14 (3 de dezembro de 1897).
Continua Freud, esclarecendo o seu método de trabalho:
Pude ajudar-me renunciando a todo esforço mental consciente a fim de afundar-me completamente nos meus próprios enigmas. Desde então, tenho estado trabalhando de maneira mais proveitosa do que nunca, mas a verdade é que mal sei o que estou fazendo na realidade.15 (11 de março de 1900)
Ele experimenta em si mesmo as determinações dos processos inconscientes que escapam ao esforço consciente ainda que reconheça a influência de fatores conscientes, tais como a premência do volume de trabalho em sua prática clínica e a sua ansiedade em relação à sua situação econômica. "Produzo mais quando tenho um volume de trabalho maior" ( 2 de fevereiro de 1897). Antes disso, em 16 de abril de 1896, tinha dito que era preciso um "razoável volume de mal-estar necessário para o trabalho intensivo".
Neste ponto gostaria de fazer uma rápida digressão sobre alguns pressupostos que estão como pano de fundo para as concepções de Freud:
PRESSUPOSTO 1 : A SAÍDA POSSÍVEL DA NEGAÇÃO DO LIVRE-ARBÍTRIO
Freud acreditava na universalidade da lei natural e consequentemente desacreditava na ocorrência de atos espontâneos ou desmotivados, o que justifica seu empreendimento em descobrir uma ordem que deveria existir.
Deve ter sido influenciado por seu professor Meynert, que disse em Sobre a Sujeição do Pensamento e do Comportamento Humanos a Leis,
[...] toda filosofia toda aceitação humana da sabedoria até onde a história alcança tornou claras apenas duas conclusões: ... tudo no mundo é apenas aparência e a aparência não é idêntica à essência das coisas... mesmo a liberdade que sentimos em nós mesmos é apenas aparente.16
Herbart, a quem remontam muitas das idéias de Meynert e Freud, em 1824, protestava literalmente contra a falsa doutrina do livre-arbítrio.
O livre-arbítrio é apenas uma ilusão. Pois então, e os processos da mente, obedecem a que leis? Na busca destas leis foi Freud investigando, até chegar às leis do funcionamento inconsciente da mente humana. A determinação inconsciente não é a única que se impõe ao sujeito: há determinações históricas, culturais, econômicas, biológicas.
A determinação do inconsciente, quer dizer o seguinte: como costumamos dizer, longe de sermos senhores do nosso pensamento, somos habitados por outro que pensa em e por nós. Nossas "escolhas" também são determinadas inconscientemente. E se não somos "livres", é a partir desta constatação da não-liberdade que fundamos a sua possibilidade, ou seja, ao aceitar o desafio dessa liberdade restritiva podemos determinar algo de nosso destino, com responsabilidade e certa liberdade esta, conquistada. Nesse ponto Freud supera a negação do livre-arbítrio, quando afirma que a constatação do determinismo funda a possibilidade de se escapar, pelo menos um pouco, de sua ação.
PRESSUPOSTO 2 : O "MUNDO NATURAL" É UM SUPOSTO PELA SIGNIFICAÇÃO QUE LHE DÁ A LINGUAGEM.
O conceito de Trieb vai contra o pressuposto da existência de um mundo natural, composto de corpos materiais, ordenado segundo leis que lhe são imanentes, independente da linguagem. Vai contra também o pressuposto, decorrente daquele, de que o discurso é o lugar neutro a partir do qual a ordem do mundo é enunciada.
Ao contrário, atendo-nos à nossa questão: pode-se tomar o instinto como relativo ao corpo natural, marcado pela falta, pela necessidade, cuja supressão é efetivamente encontrada em um objeto natural. A adequação entre as necessidades deste corpo e objetos que as suprimem impõe um processo de adaptação que age conforme caminhos pré-formados. Este é o registro do instinto, que se refere ao comportamento hereditariamente fixado, que possui um objeto específico através do qual se obtém uma satisfação.
Mas, com a emergência da palavra, signo arbitrário, não-natural, sem relação direta com os objetos do mundo natural, que no entanto passa a dar significação, tanto ao corpo natural, com suas faltas , quanto aos objetos do mundo, deu-se o surgimento de uma nova ordem, a ordem simbólica.
A suposta ordem natural foi rompida e uma nova ordem foi imposta aos corpos, às necessidades e aos objetos do mundo. A harmonia preestabelecida foi quebrada, os caminhos pré-formados foram perdidos, e a adaptação tornou-se inviável .17
Se a ordem natural foi perdida, não há mais nada natural, nem corpo, nem objeto, nem falta. Daí a impossibilidade da satisfação plena: apenas a satisfação parcial é possível. Tomar-se a linguagem como ponto de partida é supor a existência não mais de um instinto, proveniente de um corpo biológico, mas de um corpo pulsional, ou seja, corpo cujos referenciais não são mais os da biologia, mas sim os da linguagem.
PRESSUPOSTO 3: O OBJETO É CONSTRUÍDO
A questão do objeto, na psicanálise, é mais complexa do que se pensa, "até porque guarda ressonâncias filosóficas que lhe conferem uma carga semântica de extrema complexidade".18
Garcia-Roza nos ensina que objeto, em alemão, se diz de duas maneiras: gegenstand, que designa o mundo, o que está aí, e objekt, que designa uma representação complexa, síntese de sensações relacionadas às coisas do mundo, ou seja, objeto como algo construído, resultado de uma síntese de representações.
O objeto é concebido por Freud não como coisa do mundo que se oferece à percepção, mas como exatamente uma síntese de representações que ele denomina de representação-objeto. Que assim ocorre: a percepção não capta objetos que são nomeados pela palavra, mas, apreende imagens elementares ( visuais, tácteis, acústicas) que formam associações de objetos, ou seja, um disperso, a partir do qual o objeto será constituído como uma unidade e um significado. Isto ocorre pela articulação desse conjunto de imagens sensoriais com a palavra, melhor dizendo, com a representação-palavra. Esta confere às imagens sensoriais dispersas uma unidade e um significado, e é, a partir dessa articulação, que se pode falar em objeto.
Podemos perguntar se a representação de objeto se constitui à imagem e semelhança de um objeto externo, das coisas do mundo, que ela apenas reproduz. Não é o que Freud pensa. Se, para ele, o objeto é uma síntese resultante da articulação entre associações das imagens sensoriais e a palavra (representação-palavra), podemos concluir que o objeto é efeito da incidência da palavra. Pois, se é a própria representação que se toma como objeto pois a percepção não fornece formas (gestalten) mas elementos dispersos cuja unidade só vai ser constituída com sua ligação com a representação palavra não se pode pensar que a representação seja uma cópia cujo modelo é o objeto externo.
Esta concepção freudiana de objeto tem consequências, não somente para a noção de objeto de desejo e objeto da pulsão, como também para o objeto do conhecimento em geral.
PRESSUPOSTO 4: OPOSIÇÃO À RAZÃO POSITIVISTA
Quatro características depreendidas do pensamento psicanalítico levam no a situar-se em oposição ao pensamento positivista.
Primeira, os fatos são examinados em sua dinâmica, como produtos históricos e como realidades transformáveis; segunda, o sujeito do conhecimento não está em relação de exterioridade com relação ao objeto, não é pura receptividade, ao contrário, constitui-se em elemento ativo no processo cognitivo; terceira, o critério de verificabilidade não se dá à luz dos fatos que vão validar ou não proposições, mas a verificação ocorre no interior da própria praxis: os fatos, tal como se apresentam à observação clínica, são vistos como epifenômenos, decifráveis por uma hermenêutica; quarta, o critério da previsibilidade é descartado: a psicanálise afirma que a história e o psiquismo humanos são determinados por forças alheias ao controle humano, o que impede qualquer previsão sobre o seu destino.
Outrossim, o processo de conhecimento não é concebido como uma atividade isolada da mente, mas também determinada por impulsos, desejos, repressões, que se estruturam segundo a lógica de uma história pessoal, que contém e nela está contida uma história externa, que vai determinar o que pode ou não ser conhecido, de que forma e quando.
Por fim, a "verdade não é uma relação com a natureza, mas com a história, que inclui o que é e o que não é ainda", como diz Sergio Paulo Rouanet".19
O MÉTODO FREUDIANO... EM SUMA
Freud partia do singular para o geral , por uma via indutiva, ao mesmo tempo sem perder de vista suposições gerais, que aplicava ao particular. De posse de suas hipóteses, ia trabalhando no sentido de confirmá-las ou não, através da observação. Foram mais de 40 anos de trabalho exaustivo, em que nunca cessou de investigar, a partir do singular, do particular concreto, que considerava como índice do universal. O particular, longe de ser dado como irrelevante, é a via através da qual a teoria, mergulhando por dentro do seu objeto, consegue aceder ao todo.
Na psicanálise, diz Rouanet " a relação com o todo não é estabelecida para dissolver, através de um princípio universal, a integridade do particular, mas para descobrir o universal no particular, e através dele".20 O seu método é tomar o particular, mesmo o mais insignificante, para que este revele o que o transcende. Continua Rouanet: " quanto mais humilde esse particular, maior a probabilidade de que em sua humildade mesma tal particular abra o caminho para a descoberta da verdade"21
Rouanet tem uma frase ótima sobre as generalizações fáceis: "tentativa totalitária de dissolver o particular num falso universal"22 .
2ª PARTE: GIOVANNI MORELLI
Aqui entra um detalhe interessantíssimo, ressaltado por um historiador, Carlo Ginzburg. Creio que Ginsburg está para a história assim como Bourdieu está para a sociologia e Lacan para a psicanálise. Vou citar o que Ginzburg23 (1989) escreve, no capítulo "SINAIS Raízes de um paradigma indiciário", o qual inicia mostrando que por volta do final do século XIX, um modelo epistemológico surgiu, silenciosamente, no meio das ciências humanas, de fato operante, ainda que não teorizado.
Entre 1874 e 1876, apareceu na Zeitchrift fur bildende Kunst uma série de artigos sobre a pintura italiana. Eles vinham assinados por um desconhecido estudante russo, Ivan Lermolieff, e fora um igualmente desconhecido Johannes Schwarze que os traduzira para o alemão. Os artigos propunham um novo método para a atribuição de quadros antigos, que suscitou entre os historiadores da arte reações contrastantes e vivas discussões. Somente alguns anos depois, o autor tirou a dupla máscara na qual se escondera. De fato, tratava-se do italiano Giovanni Morelli( sobrenome do qual Schwarze é uma cópia e Lermolieff o anagrama, ou quase. E do método morelliano, os historiadores da arte falam ainda hoje.
Vejamos rapidamente em que consistia esse método. Os museus, dizia Morelli, estão cheios de quadros atribuídos de maneira incorreta. Mas devolver cada quadro ao seu verdadeiro autor é difícil: muitíssimas vezes encontramo-nos frente a obras não assinadas, talvez repintadas ou num mau estado de conservação. Nessas condições, é indispensável poder distinguir os originais das cópias. Para tanto, porém, dizia Morelli, é preciso não se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos quadros: os olhos erguidos para o céu dos personagens de Perugino, o sorriso dos Leonardo, e assim por diante. Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. Dessa maneira, Morelli descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma da orelha própria de Botticelli, a de Cosmè Tura e assim por diante: traços presentes nos originais, mas não nas cópias. Com esse método propôs dezenas e dezenas de novas atribuições em alguns dos principais museus da Europa. Frequentemente tratava-se de atribuições sensacionais: numa Vênus deitada conservada na galeria de Dresden, que passava por uma cópia de uma pintura perdida de Ticiano feita por Sassoferrato, Morelli identificou uma das pouquíssimas obras seguramente autógrafas de Giorgione.24
Tais dados marginais, pormenores desapercebidos, etc., para Morelli eram reveladores porque fugiam do controle do artista: " traços puramente singulares, que lhe escapam sem que ele se dê conta".
A alusão a uma atividade inconsciente impressiona Ginzburg. Diz ele25 :
Morelli propunha-se buscar no interior de um sistema de signos culturalmente condicionados, como o pictórico, os signos que tinham a involuntariedade dos sintomas ( e da maior parte dos indícios, também involuntários) .
Nesses signos involuntários, dizia Morelli,
[...]nas miudezas materiais que a maioria dos homens, tanto falando como escrevendo...introduzem no discurso sem intenção, ou seja, sem se aperceber, aí se reconhece o sinal mais certo da individualidade do artista.
Tal método denominado de indiciário ou morelliano, como o denominam os historiadores da arte, pode ser comparado àquele que usava Sherlock Holmes, pelo seu criador Conan Doyle: o crítico de arte atua como o detetive que descobre o crime ( um quadro) fundamentado em indícios imperceptíveis para o senso comum.
Quem já leu Conan Doyle jamais se esqueceu das pegadas na lama, nas cinzas de cigarro, dos lóbulos das orelhas, etc.
O QUE TUDO ISSO TEM A VER COM FREUD?
No ensaio O Moisés de de Miguelangelo26, Freud escreve, no capítulo II:
Muito antes de toda atividade psicanalítica soube que um crítico de arte russo, Iván Lermolieff, cujos primeiros trabalhos publicados em alemão datam dos anos 1874 a 1876, havia provocado uma revolução nas galerias de pintura da Europa, revisando a atribuição de muitos quadros a diversos pintores, ensinando a distinguir com segurança as cópias dos originais e estabelecendo, com as obras assim libertadas de sua anterior classificação, novas individualidades artísticas. A esses resultados chegou prescindindo da impressão de conjunto e acentuando a importância dos detalhes secundários, de minúcias, tais como a conformação das unhas e dos dedos, do lóbulo da orelha, da auréola das figuras dos santos e outros elementos que o copista descuida de imitar e que todo artista executa de uma forma que lhe é característica. Interessou-me logo e muito averiguar que por detrás do pseudônimo russo se havia ocultado um médico italiano chamado Morelli, morto em 1891, quando ocupava um posto no Senado de sua pátria. Na minha opinião, seu procedimento mostra estreitas afinidades com a psicanálise. Também a psicanálise deduz de traços pouco notados, ou desapercebidos, do resíduo o "refuse" da observação coisas secretas ou encobertas.
Assim Freud declara, explicitamente, a grande influência que sobre ele exerceu Morelli , numa fase anterior à descoberta da psicanálise, o que garante a este um lugar especial documentado e não conjectural , como acontece com outros "precursores" de Freud na história da formação da psicanálise.
Aqui entra uma observação de Ginzburg : o ensaio sobre o Moises inicialmente aparecera anônimo. Freud somente reconheceu sua paternidade quando o incluiu em suas obras completas. E supõe que a tendência de Morelli de se ocultar sob um pseudônimo acabasse, de certo modo, por contagiar Freud: algumas hipóteses foram feitas nesse sentido, de que sob o véu do anonimato, Freud declarou, explícita e reticentemente, a considerável influência que Morelli exerceu sobre ele.
Mas, o que significou, para o jovem Freud, o conhecimento do método de Morelli?
Antes de entrar nesta questão, talvez seja curioso determinar os momentos em que ocorreram os encontros de Freud com Morelli.
Primeiro encontro, hipótese que chamo de Dresden: em 1896, quando Freud usou pela primeira vez o termo "psicanálise" em carta a sua amada Martha , fala de sua descoberta da pintura, feita durante uma visita à galeria de Dresden. Se, no passado, a pintura não o interessara, agora escrevia: "tirei de mim a barbárie e comecei a admirá-la". Depois desta descoberta ele passou a se interessar por textos de um desconhecido historiador de arte como Morelli, cujos ensaios, por sinal, referiam-se às obras dos mestres italianos nas galerias de Dresden, Munique e Berlim.
O segundo encontro pode ser determinado com maior precisão: em setembro de 1898, bisbilhotando numa livraria de Milão, onde encontrou um exemplar do livro de Morelli, Da Pintura italiana. Estudos históricos críticos. As galerias Borghese e Doria Pamphili em Roma, Milão, 1897 , Freud anotou a data de sua aquisição. Este exemplar se encontra em sua biblioteca conservada em Londres.
Nesta estada milanesa, o livro de Morelli tinha para Freud mais um outro motivo de interesse. Há algum tempo, ele vinha se ocupando dos lapsos; pouco tempo antes, na Dalmácia, ocorreu o episódio, depois analisado em Psicopatologia da vida cotidiana, em que tentara inutilmente lembrar o nome do autor dos afrescos de Orvieto. Ora, tanto Signorelli como Botticelli e Boltraffio eram mencionados no livro de Morelli.
Voltando à questão do que pôde representar para Freud os escritos de Morelli: Ele mesmo diz, Freud: é um método interpretativo centrado sobre os resíduos, os dados marginais, os refugos, que podem ser reveladores. Através dos pormenores considerados sem importância é que se pode chegar às descobertas do psiquismo humano, pois, subtraídos do controle da consciência, dão lugar aos traços mais verdadeiros do sujeito.
Reduzir esta influência apenas ao ensaio sobre o Moises, como diz Ginzburg, ou aos ensaios sobre temas ligados à história da arte, significa restringir indevidamente o alcance das palavras de Freud, quando diz que o método de Morelli está estreitamente aparentado à psicanálise.
As pistas é interessante ressaltar que levam à realidade mais profunda podem ser chamadas de sintomas ( Freud) , indícios ( Sherlock Holmes) e signos pictóricos ( Morelli).
As raízes deste método são antiquíssimas: o caçador dos primórdios da humanidade , ao perseguir sua caça, seguia pistas como pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, penas, plumas emaranhadas, odores estagnados, etc. Fazia registros, análises, comparações, classificações operações mentais complexas.
Gerações de caçadores foram acumulando e transmitindo esse conhecimento . Pinturas rupestres, artefatos e posteriormente narrativas de fábulas provam isso. "O que caracteriza esse saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente neglicenciáveis, aceder a uma realidade complexa não experimentável diretamente", diz Ginszburg.27
ALGUMAS OBSERVAÇÕES FINAIS
O método indiciário proposto por Morelli pelas razões expostas por Ginsburg parece ter influenciado Freud em seu esforço metodológico, ou, quando menos, ter servido como referência epistemológica para uma sua identificação a priori com este método.
É interessante notar que, ambos os métodos, que partem do particular para o geral, tratam de, no indiciário, investigar obras de arte, em especial as artes plásticas, e, no freudiano, de investigar o psiquismo humano, levando-nos a pensar no parentesco e na proximidade entre a arte e a psicanálise, ambas de imensa complexidade, passíveis de infinitas interpretações, ou seja, ambas no horizonte de abertura e possibilidade.
Vou terminar dizendo que Freud também tinha a literatura em alta conta. Diz ele:
Os poetas e autores literários são valiosíssimos aliados, cujo testemunho deve se estimar em alto grau, pois conhecem muitas coisas existentes entre o céu e a terra que nossa filosofia nem sequer pode suspeitar. No conhecimento da alma humana estão muito adiante de nós, homens comuns, pois bebem em fontes que não são acessíveis à ciência.28
Espero ter contribuído para a discussão da prática clínica, para a qual não podem ser perdidos de vista o indiciário de Morelli e o particular de Freud, que são reveladores de uma "verdade" maior, que constituem uma rede de associações e significantes que levam a algo que não seja uma equivocada simplificação.
BIBLIOGRAFIA
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SOUZA, P. C. As Palavras de Freud. São Paulo: Ática, 1999. [ Links ]
* Este artigo faz parte de um trabalho apresentado para conclusão da disciplina Epistemologia, no Mestrado de Filosofia/UFBA, no ano de 2002.
** Psicanalista, Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas/UFBA, Doutoranda em Ciências Sociais/UFBA.
1 Pfeiffer, E. Sigmund Freud & Lou Andreas-Salome.Correspondencia. Mexico:Siglo Veinttuno, 1966, p.31.
2 Rouanet, S.P. Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p.104.
3 Garcia-Roza, L.A. Introdução à Metapsicologia Freudiana. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p.80.
4 Idem, p.81
5 Freud, S. Os Instintos e seus Destinos, trad. Paulo César Souza, manuscrito, p. 1
6 Idem, p.1.
7 Idem, p.1.
8 Idem,.p.1.
9 Idem, p.1.
10 Jones, E. A Vida e a Obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, p.352.
11 Refere-se à escuta flutuante, em que se escuta sem privilegiar nenhum significado particular.
12 Foram essas resistências que levaram Freud a abandonar a prática da hipnose.
13 Jones, E. A Vida...op.cit., p.90.
14 Idem, p.345.
15 Idem, p. 346.
16 Idem, p. 367.
17 Garcia-Roza, Introdução...op.cit., p. 16.
18 Garcia-Roza, O Inconsciente...op.cit., p. 92
19 Rouanet, S.P. Teoria Crítica e Psicanálise,op. cit.,p.. 103.
20 Idem, p. 107.
21 Idem, p. 107.
22 Idem, p. 78.
23 Ginsburg, C. Mitos, Emblemas, Sinais. São Paulo, Cia das Letras, 1989.
24 Id., p.143.
25 As citações de Ginzburg estão contidas no capítulo citado, p.143-180.
26 Freud, Sigmund.Obras Completas, Madrid, Biblioteca Nueva, 3a ed., 1973, p. 1876 (tradução livre)
27 Ginsburg, C. op.cit., p. 152
28 FREUD, S. El delirio y los suenos em la Gradiva de w. Jensen, in Obras completas de Sigmund Freud. Tomo II, Madrid: Biblioteca Nueva, 1973, p. 1286. Tradução livre.