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Estudos e Pesquisas em Psicologia
versão On-line ISSN 1808-4281
Estud. pesqui. psicol. v.7 n.2 Rio de Janeiro dez. 2007
ARTIGOS
A pedagogia das canções na arquitetura da cidade da música: versos, notícias e crônicas como declarações musicais da urbanidade brasileira
The pedagogy of songs in the architecture of the musical city: verses, news and chronicles as music speechs of the brazilian urbanity
Walcler de Lima Mendes Junior
Doutorando do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
RESUMO
As questões apresentadas aqui dizem do estágio atual em que se encontra a minha pesquisa de tese de doutorado. Após certo levantamento das canções da primeira metade do século XX, algumas perguntas emergiram, sugerindo um tema que contemplasse, de forma paralela, tanto o discurso da música popular quanto a fixação do sentido de urbanidade no imaginário social. Basicamente, a pedagogia das canções diz respeito a como as letras das músicas propõem uma pedagogia do urbano, dando conselhos e pistas, difundindo condutas e códigos de como viver e sobreviver à cidade moderna, que emerge em concreto e fumaça dos intestinos da outra sociedade, agrária e tradicional. Para além dos manuais de comportamento do século XIX, a música popular problematiza os códigos vigentes: ora os reafirma, ora questiona seus limites. O que nomeio de pedagogia das canções deve compreender o código e a transgressão, o uso e o desuso, a norma e a anomia. Nesse artigo, apresento um primeiro esboço desse percurso, que deseja experimentar um certo diálogo entre canção e cidade.
Palavras-chave: Música popular, Urbanidade, Imaginário social.
ABSTRACT
The questions presented in this article relate to the current stage of my research for doctor thesis. After certain reserch of the songs of the first half of century XX, some questions have emerged, suggesting a subject that contemplated on parallel way the speech of popular music but also the setting of the direction of urbanity in the social imaginary. Basically, the pedagogy of the songs relate to how the lyrics of music propose an urban pedagogy, by giving advice and clues, spreading out behaviors and codes of how to live and to survive to the modern city that emerges in concrete and smoke of the intestines of the former agrarian and traditional society. Going beyond manuals of behavior of the 19th century, popular music discusses the codes in-use: reaffirming them and some moments questioning its limits. What I nominate pedagogy of the songs must contain the code and the trespass, the use and the disuse, the norm and the anomie. In this article, I present a first sketch of this passage that desires to experiment a certain dialogue between song and city.
Keywords: Popular music, Urbanity, Social imaginary.
As questões apresentadas aqui dizem do estágio atual em que se encontra a minha pesquisa de tese de doutorado. Após certo levantamento das canções da primeira metade do século XX, algumas perguntas emergiram, sugerindo um tema que contemplasse de forma paralela, tanto o discurso da música popular quanto a fixação do sentido de urbanidade no imaginário social. Basicamente, a pedagogia das canções diz respeito a como as letras das músicas propõem uma pedagogia do urbano, dando conselhos e pistas, difundindo condutas e códigos de como viver e sobreviver à cidade moderna, que emerge em concreto e fumaça dos intestinos da outra sociedade, agrária e tradicional. Para além dos manuais de comportamento do século XIX, a música popular problematiza os códigos vigentes: ora os reafirma, ora questiona seus limites. O que nomeio de pedagogia das canções deve compreender o código e a transgressão, o uso e o desuso, a norma e a anomia. Neste artigo, apresento um primeiro esboço desse percurso, que deseja experimentar um certo diálogo entre canção e cidade.
Há uma estreita relação entre a música e a cidade, considerando que a música se pretende fazer ouvir como uma crônica do cotidiano que comenta os fatos e costumes da ocasião. Comentando os fatos e os afetos, costumes e códigos, desejos e dores, o cancioneiro popular propõe um discurso de cidade em diálogo com elementos simbólicos e materiais. Como bem aconselha Calvino (2005), esse discurso não deve ser tomado pela cidade propriamente dita. Deve-se considerar, isso sim, que o discurso tece uma arquitetura própria, uma arquitetura das canções, construída a partir da representação de territórios físicos e imaginários, territórios materiais e emocionais, que sugerem encontro e desencontro, ordem e desordem, moral e transgressão, afeto e dor, erótica e evitamento.
De noite eu rondo a cidade a te procurar sem te encontrar...
(...) bebendo com outras mulheres, rolando dadinho, jogando bilhar.
E nesse dia então vai dar na primeira edição
Cena de sangue em um bar da Avenida São João1
Raro é o fato que passa desapercebido pelo cancioneiro, o qual canta as transformações urbanas: morros que desabam, avenidas que se abrem, bairros que se verticalizam. Frente às transformações que a modernidade configura, o cancioneiro aborda, à exaustão, o cotidiano dos vínculos de amizade e amor, das relações de família, de vizinhança, de trabalho e lazer. As novas possibilidades de circulação na cidade, o bonde e o automóvel configuram tema recorrente da música que canta as transformações que as tecnologias recém implantadas produzem no cotidiano. As marcas do aburguesamento urbano da sociedade: o telefone privado, o passeio e o consumo nas lojas finas da Rua do Ouvidor, nas butiques, cafés e restaurantes do Centro, além de proporcionarem novas formas e ocasiões de encontros em espaços públicos, são temas para o compositor popular. Às vezes, as imagens do progresso e da modernidade, nas letras da canção popular, ganham contornos transgressores e irônicos, os quais intencionalmente expõem a desordem e os conflitos sociais que o discurso oficial quer varrer para debaixo do tapete.
O chefe da folia pelo telefone manda avisar
Que com alegria não se questione para se brincar
O chefe da polícia pelo telefone manda avisar
Que na Carioca tem uma roleta para se jogar.2
Oi, que bonde pau, não sai do lugar
Leva mais de uma hora pra chegar na cidade.
Piedade é o pior
Se você vai pra cidade no Piedade
Eu vou a pé que é melhor.3
A disputa entre a elite e a massa trabalhadora pelo uso e ocupação do espaço público reflete-se na festa, com as regulamentações e normas para se brincar o carnaval na rua. Vez por outra essa disputa pela rua estoura em conflitos sangrentos, haja vista a Revolta da Vacina, estopim do “bota-abaixo” de Passos e do processo de segregação da ocupação do solo urbano, orientando os ricos para a beira-mar e os pobres para as franjas do Centro, para as favelas e para o subúrbio que o trem da Leopoldina alcança.
O cancioneiro popular urbano, em particular o samba e as marchinhas de carnaval, opera de forma sensível, ora crítica, ora aderindo, mas, nunca indiferente ao discurso que propõe a tese da cidade partida e da sociedade dividida. Opõe o morro ao asfalto, o centro à periferia, o rico ao pobre, o preto ao branco, o erudito ao popular, a tradição ao moderno, a ordem à desordem, o trabalho à orgia, a honra ao adultério. Ainda vai amiúde falar das guerras mundiais, da História do Brasil, do futebol e da política, quando contempla assuntos específicos como a “Política da Boa-vizinhança” estadunidense, as campanhas presidenciais, o sufrágio universal, o populismo, a compra de votos e os currais eleitorais.
Refletindo sobre a miríade de elementos contemplados pelo cancioneiro popular, considerando ainda o processo de urbanização e modernização que a sociedade brasileira atravessa no decorrer do século XX, proponho a hipótese de que, durante esse processo, a canção teria tido uma segunda função, para além do mero entretenimento. Essa outra função consistiria em informar, formar e ensinar a população segundo os novos códigos de conduta e convivência na cidade. A música, de forma proposital ou não, foi utilizada como ferramenta de enquadramento da sociedade, para que de forma coesa aderisse ao discurso, às regras e códigos inerentes aos processos de modernização e urbanização que objetivamente ocorrem no Brasil no decorrer do século XX. O samba, como diz o ditado, “que não se aprende na escola”, estaria ensinando o brasileiro a viver na cidade, produzindo uma espécie de formação social que convence a partir do emocional, do intuitivo e da sugestão embutida nas mensagens das letras das canções. A música popular funcionaria, no decorrer das décadas de 20, 30, 40 e 50, como elemento central da formação e percepção sócio-emocional das classes sociais em seu processo de adesão ao código citadino.
Quem trabalha é que tem razão
Eu digo e não tenho medo de errar
O bonde de São Januário
Leva mais um operário
Sou eu que vou trabalhar.4
Levou meu pandeiro, levou meu dinheiro
Até carregou o meu tan-tan
Deixou um bilhete e foi pro Catete sambar
E só volta amanhã de manhã
Levou o meu terno de linho novinho
Sambando é capaz de rasgar
Estou só pensando amanhã de manhã.
Com que roupa é que eu vou trabalhar?5
Esse ensaio, embrião do que pretendo desenvolver como tese de doutoramento, funciona como fala introdutória da pergunta que orienta a pesquisa: qual seria a relação entre as letras do cancioneiro popular e o processo de urbanização no Brasil, considerando-se que o discurso da cidade como ícone da modernidade é revisitado à exaustão pelo repertório popular? Essa pergunta leva a uma questão subseqüente, que diz respeito a como as letras do cancioneiro popular, sensíveis ao processo de urbanização, propuseram uma pedagogia do urbano. Em outras palavras, propõe-se considerar como o discurso embutido nas letras das canções tem papel central no processo de hegemonização, mas também de transgressão, de códigos e valores imprescindíveis à modernidade e à urbanidade da sociedade. A difusão dos códigos e valores civilizatórios pelas letras das canções, ora afirmando-os, ora negando-os, é o que trataremos por pedagogia da canção. A canção reafirma o código quando, por exemplo, faz apologia do trabalho, da moral, do respeito às leis e do agir segundo o enquadramento proposto por uma dada ordem urbana. Os assuntos podem variar de conselhos a como se portar em público ou lidar com vizinhos às motivações cívicas de cumprir com o serviço militar ou apoiar o processo democrático, comparecendo às urnas de votação bem vestido.
Já são dez horas no relógio da Matriz
E o almoço, até agora ainda não fiz.
Logo hoje que é dia de eleição
Está custando cozinhar o meu feijão
Ainda tenho que passar na costureira.
Pra apanhar o meu vestido.
Vou votar em Madureira.6
Nega, meu bem.
Me passe o meu terno branco
E me compre um par de tamancos
Eu hoje vou votar
E avise o pessoal do morro
Que o homem é o Ademar.7
Por outro lado, a negação do código também está presente no discurso do cancioneiro popular.
Vivo na malandragem
Não quero saber do batedor
Pode escrever o que vou dizer
Ando melhor do que um trabalhador
Não há riqueza que me faça enfrentar o batedor
Pois quem é rico nunca foi trabalhador.8
Esse discurso subverte e renega os valores a que a sociedade brasileira, consensualmente, é levada a aderir: o trabalho proposto pelo Estado, um certo padrão estético proposto pela burguesia, um determinado comportamento público esperado pelos agentes da lei e da ordem. A idéia de pacto consensual esbarra no discurso irônico do compositor popular, que lança mão da ironia como forma de driblar a censura do Estado. A idéia de pacto esbarra no discurso do compositor popular porque o mesmo poder repercussivo que a música tem de servir aos interesses da ordem e do progresso da nação, tem também de propor vias alternativas de convivência social, que não correspondem ao modelo formal. O samba a seguir toma as dores da gente pobre: inocenta a festa popular, denuncia a vulnerabilidade do grupo frente à repressão da ordem e revela as relações informais com a elite “cordial”, das quais o pobre, não contemplado pelo exercício dos direitos civis, torna-se refém. A cordialidade é expressa por Sérgio Buarque como sendo o lugar onde os códigos e regimentos da lei se apresentam sub-hierarquizados pelo emocional do afeto ou do ódio.
Bento fez anos e então me convidou
Para uma cabritada e onde tem cabrito eu tô, ora se tô.
E foi quando comes e bebes começou
No melhor da brincadeira a polícia e o dono do bicho chegou
Botaram a gente sem culpa no carro da rádio patrulha e levaram
Levaram o coitado do cabrito e toda a bebida que tinha quebraram
O seu delegado não estava querendo ninguém liberar
O patrão da Sebastiana é que foi no distrito e mandou me soltar.9
Assim, a difusão/repercussão da música popular tem por conseqüência confeccionar uma pedagogia que, intencionalmente ou não, ora educa a massa de ouvintes no que tange ao proceder na cidade, ora contribui na formação de uma opinião pública, crítica ao discurso do poder – arengas conjugais, relações de vizinhança, exercício da política, reclamações dos serviços de transporte e serviços públicos em geral, códigos de etiqueta, violência pública e doméstica, são tratados ora com tons dramáticos, ora com a dicção do humor crítico que beira o sarcasmo, a exemplo das crônicas, charges e caricaturas dos periódicos. Ao se valer desse matiz, a música problematiza os códigos e valores, discute os limites que separam norma e anomia, transgredindo, não a ponto de propor a desobediência civil pura e simplesmente, mas para debochar da rigidez do discurso civilizatório. Segundo a leitura de uma certa sociologia contemporânea ao recorte de tempo proposto, pode-se intuir que a música ensinaria o código e a transgressão, isto é, como obedecer e desobedecer para se chegar ao mesmo fim ou meta-êxito10.
A música funcionaria assim como um catavento receptor dos discursos, das vozes de diversos sujeitos, que lêem o cotidiano. O discurso é re-elaborado, no sentido de ser enquadrado para o suporte da música, que devolve o resultado para a sociedade, oferecendo exemplos, modelos, de obediência e transgressão, de adesão e de crítica à conduta citadina. Sobre esse processo de re-elaboração dos discursos, certos aspetos inerentes à forma, conteúdo e circunstâncias da composição e produção da música popular precisam ser contemplados. O primeiro diz respeito à adequação da narrativa segundo a formatação métrica das canções, respeitando o tempo, a prosódia, o limite dos versos musicados. É o enquadramento do discurso ao suporte. Isso pressupõe limites e possibilidades que tornaram a música uma ferramenta de vasto uso, como voz que fala do cotidiano, considerando-se o caráter ágrafo da sociedade brasileira. O segundo aponta para um fator observado na maioria dos suportes de arte em tempos de cultura de massa (sem problematizar o termo), que diz respeito à necessidade da música atingir o maior número de ouvintes possível, precisando sensibilizar uma heterogeneidade social bastante ampla. Isso também vai provocar uma certa orientação na escolha dos temas e no uso da linguagem do discurso musicado.
No que tange às circunstâncias de uma análise meta-discursiva da música, cabe uma pergunta: para a sociedade, a favela de pau e zinco, fora da música, seria vista da mesma forma que a favela de versos e poesia, dentro da música? De fato, a favela cantada no cancioneiro popular guarda um sentido de Arcádia, avant-citè, comunidade de pessoas, que contradiz a modernidade impessoal da multidão na cidade.
Barracão de zinco sem telhado
Sem pintura, lá no morro
Barracão é bangalô
Lá não existe felicidade de arranha-céu
Pois quem mora lá no morro
Já está pertinho do céu
Tem alvorada tem passarada alvorecer
Sinfonia de pardais anunciando o amanhecer
E o morro inteiro no fim do dia
Reza uma prece Ave-Maria11
Há um discurso criado para a favela como lugar que desperta saudades na fala de quem a troca pela cidade. A favela é representada como palco dos sentimentos nobres, genuínos, em oposição à cidade, por sua vez retratada como lugar do orgulho, da falsidade, do sarcasmo e do vício.
O morro começa ali onde o sambista sorri ao choro dos violões
O morro só principia onde acaba a hipocrisia que domina nos salões
O morro é diferente todo mundo é inteligente embora sem instrução
Há perfume pela mata castelos feitos de lata onde não mora a ambição
Ali no morro começa uma vida que não cessa de nos dar lições de amor
O morro começa ali onde o sambista sorri perto do Nosso Senhor.12
Lá no morro todo caixote é cadeira todo colchão é de esteira
Vela acesa, iluminação (...).
Rico é visita no meio da gente, pedra arrumada é fogão bem eficiente.
Ir lá no morro é saber da verdade não há fingimentos como há na cidade
Tudo no morro é tão diferente todo vizinho é amigo da gente
Há um batuque, nossa maravilha, toda cabrocha pertence à família.
Tudo no morro é melhor que na cidade tanto na dor quanto na felicidade
Quando a cidade adormece sonhando o morro penetra na noite cantando.13
Músicas idealizando o morro como “Arcádia” parecem não ter fim. Em “Se o morro não descer” (Oliveira e H. Martins, 1936), Araci de Almeida cantava: “se a turma do morro fizer greve, a cidade vai ficar triste no carnaval”. Em “Eu vivia no morro” (A. Valente, 1936), Assis Valente afirma que “vive chorando na cidade”. Em “Quando eu desço lá do morro” (Garcez e Souza, 1940), Patrício Teixeira canta que não vai “trocar um palacete pelo meu barracão”. Em “Morro de Sto. Antônio” (B. Lacerda e H. Martins, 1950), o Trio de ouro implora: “o progresso é necessário, mas, por favor, não bote abaixo o morro de Sto. Antônio”. Ary Barroso diz “eu nasci no morro... depois conheci o luxo e a vaidade da cidade... amores que não duravam um dia...“ (Eu nasci no morro, A. Barroso, 1945). Sem exagero, é possível cobrir páginas e páginas com exemplos como esses. O que se deve considerar nessa profusão de vozes convergentes sobre a idealização do morro é que seus sujeitos não eram necessariamente habitantes dos morros, mas moradores da cidade. Isso pode ser lido como uma pista que nos leva a crer em um pacto, pelo menos no nível do discurso simbólico, sobre essa caracterização do morro como lugar de virtude. Claro que contra-exemplos também existiram, mas a visão romântica da favela e do morro era hegemônica, tal qual a visão ufanista do samba que exalta o Brasil. Aliás, um ótimo exemplo é o samba “Aquarela do morro” (A. Canegal e V. Silva, 1952), exaltando as virtudes e belezas do morro em perfeito contraponto da “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso.
Noite majestosa.
Mulata dengosa no terreiro a gingar.
Sambistas apaixonados cantando.
Tocando pandeiro pra ela sambar.
Ó que melodia diferente sua poesia é tão bela.
O morro que fez o samba entrar no coração da gente.
Também tem a sua aquarela.14
Talvez o que mais se diferencie entre os discursos sobre a favela de ontem e de hoje diga respeito à convergência de vozes que antes emergiam, tanto da favela quanto da cidade, para falar dessa idealização do lugar que despertaria sentimentos puros e genuínos em seus habitantes. Hoje, é rara a voz de fora da favela que venha, em sua defesa, lembrá-la como Arcádia. E, mesmo às vozes de dentro, torna-se cada vez mais difícil posicionar-se de forma indiferente à violência, para cantar a lua que atravessa o zinco e salpica de estrelas o chão do barraco. Aliás, a mesma problemática se aplica à cidade, se considerarmos a inadequação ou, pelo menos, o caráter anacrônico de canções como, “Cidade Maravilhosa” e “Valsa de uma cidade”, ambas falando de um Rio de Janeiro que pouco reverbera na cidade atual.
Essa oposição cronológica de discursos sobre a cidade remete à problematização do recorte temporal. O recorte sugerido para a pesquisa constitui um período de tempo que vai da Belle-Èpoque até os anos sessenta. Este período é demarcado pelo nascimento e arrefecimento de dois processos que correram em paralelo: a produção musical fixando valores do urbano e a cidade como doador simbólico do sentido de modernidade e de civilidade da sociedade brasileira. Vejamos como isso pode ser percebido. Em termos bem objetivos, que dizem respeito à elevação da base tecnológica da sociedade, a Belle-Époque data o momento das primeiras gravações musicais, ainda que acessíveis apenas para uma certa elite, e da gênese da indústria fonográfica. Segundo Cunha (2001, p.155), a Belle-Époque caracteriza-se também como o período em que se rompe com o mito de origem alencariano, do índio nobre e do sertanejo vigoroso, preso ao passado colonial e escravista do século XIX. Esse mito já não se presta como síntese da identidade nacional, frente às transformações da sociedade que adentra o século XX. A cultura popular urbana vai sendo “cozinhada” a partir das primeiras décadas do novo século, para se apresentar como síntese da identidade nacional a partir dos anos 20.
A passagem do século XIX ao XX assiste à transição de uma identidade cultural colonial para uma identidade cultural urbana, na qual dicotomias emergem, opondo o velho ao novo, o colonial ao moderno, o selvagem ao civilizado, o escravista ao trabalhista, o campo à cidade, a paisagem vazia natural à paisagem construída urbana, o índio ao sambista, o puro ao híbrido. É o momento que se segue à Abolição. Antes de ser consumado, o desejo de abolição mantinha coesa a elite republicana e abolicionista na crença de que, a partir do reconhecimento de todos como cidadãos livres, a tão sonhada unidade do povo naturalmente se expressaria. Porém, o que se segue ao episódio abolicionista são mais diferenças, marcadas por múltiplas singularidades culturais e heterogeneidades sociais, que, até então, operavam longe das ruas e do olhar civilizatório, encobertas sob o manto escravista. Frente a esse fenômeno, a elite divide-se e testemunha a cizânia de seus discursos e opiniões sobre como lidar com a liberdade dos “novos cidadãos”. Cunha (2001, p. 157) observa que a Belle-Époque é o momento em que negros e pobres testavam as novas regras sociais, enquanto os “outros”, da elite, tentavam impor limites à experiência de liberdade dos “novos cidadãos”. Essa transição representou para a elite “o momento em que não se sabia muito bem os limites entre o aceitável e o desejável” (CUNHA, 2001, p. 155).
A transição que a sociedade experimenta tenciona diretamente as negociações interclasses de uso e ocupação da cidade. O discurso hegemônico funciona opondo pares dicotômicos: civilização ou barbárie, modernidade ou atraso, ritmos eruditos ou danças primitivas, carnaval veneziano da elite ou carnaval de rua da plebe. Na análise de Cunha (2001), as Sociedades Carnavalescas do século XIX caracterizaram-se por sua grande função pedagógica, através da fixação de paradigmas estéticos da elite e condutas “civilizatórias” que, na prática, ocorriam durante os desfiles, seja através das mensagens veiculadas nos “carros de idéias” seja pelo luxo das apresentações públicas que marcavam o ponto alto do Carnaval. O pobre adentra o século XX reproduzindo práticas carnavalescas, que emulam o discurso da elite através da apropriação de signos de distinção (CUNHA, 2001, p. 162). Esse processo é identificado pela autora como o resultado direto do esforço pedagógico que o carnaval das Grandes Sociedades efetuou nos espaços públicos da cidade durante os festejos no século anterior. O resultado disso é que, entre o entrudo do século XIX e os cordões e ranchos que ditam a folia no novo século, a idealização de um carnaval ordeiro passa a orientar as práticas carnavalescas. Em 1907, o Ameno Resedá do Catete torna-se o primeiro rancho, com reconhecimento de toda a imprensa, a inaugurar o novo carnaval civilizado.
Propomos que, uma vez configurada a emergência e expansão da indústria fonográfica, a função pedagógica foi sendo pari passu transferida para o discurso embutido nas letras das canções populares, veiculadas à exaustão pelo rádio – cujo alcance se alastra rapidamente pelo país a partir dos anos 30. Como já foi exposto, é preciso considerar certos conflitos que se dão dentro do próprio discurso da música popular, a qual contempla a ordem e a transgressão, sem perder, porém, a dimensão do cotidiano e dos acontecimentos que marcam a sociedade. O cancioneiro popular, aos poucos, torna-se um poderoso instrumento para cobrir a multiplicidade de olhares e vozes, leituras e dicções, que tematizam a vida numa sociedade que se moderniza e se urbaniza em ritmo frenético.
Como último argumento que justifica a ponta inicial do recorte proposto, Tinhorão (2000) observa que foi com Eduardo das Neves, ainda na última década do século XIX, que a música popular começou a falar do cotidiano urbano. O dia-a-dia da cidade, seus personagens típicos, vendedores, mulheres bonitas, malandros e agentes da lei, assim como os episódios contingentes, encontros inesperados na rua, no bonde, nos Cafés e nos bares da cidade, casos de violência, grandes acontecimentos cívicos, enfim, toda uma gama de episódios que antes eram indiferentes ao cancioneiro e aos seus compositores passam a se configurar como temas possíveis para a canção popular.
A mania de querer fazer a modinha dizer alguma coisa, que no romance Lima Barreto não esclarece qual seja, era referência ao fato de Eduardo das Neves ter criado, a partir da última década do século XIX, a novidade da composição de cançonetas, modinhas e lundus sobre acontecimentos históricos ou de interesse do momento, como os crimes famosos, escândalos da cidade, etc (TINHORÃO, 2000, p. 16).
Na outra ponta da pesquisa, o recorte se exaure nos anos sessenta. A cidade da música sai de cena e o mote do país sufocado pela ditadura passa a ser o carro-chefe do discurso musicado. A crônica urbana cuja ironia e malandragem servia de contraponto ao ufanismo varguista da “Aquarela do Brasil” é substituída pela fala emergencial da canção de protesto e posteriormente por uma fala diretamente “anti-aquarélica”, que contradiz o ufanismo, agora peça publicitária a serviço do governo militar. Alguns exemplos da emergência do tema anti-ufanista são: “Querelas do Brasil” que lamenta o fato do Brazil com “Z” não conhecer o Brasil com “S”, “O mestre-sala dos mares”, que utiliza a Revolta dos Marinheiros para falar da tortura e da ditadura através de linguagem metafórica: “rubras cascatas jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas”, por fim, “Bye, bye, Brasil”, que explicitamente nos informa que “aquela aquarela mudou”. Mesmo quando a cidade aparentemente vem à baila, como no verso “o Rio de Janeiro continua lindo” da canção “Aquele Abraço”, não é da experiência da cidade que Gilberto Gil fala, mas do exílio. O mesmo serve para o “Samba de Orly” de Vinícius e Chico Buarque.
Também, como fator concreto, deve-se considerar no período pós-sessenta outra elevação da base tecnológica, com a chegada da televisão, que substitui o rádio no papel de principal veículo a serviço da integração nacional e da produção de símbolos que homogeneizassem a Nação. A televisão, a exemplo do rádio, também vai afetar a produção musical, que passa a contemplar aspectos da imagem como vídeos musicais, shows filmados e, principalmente, programas de auditório, que anunciam os novos sucessos. Por fim, deve-se supor que o próprio espanto que a urbanidade teria provocado nos “jecas” e retirantes, entre os anos 20 e 60, obviamente não se repetira a partir dos anos 70, considerando-se que as imagens da cidade pela via da televisão passaram a circular de forma ubíqua pelas entranhas do Brasil profundo, o filme “Bye, bye, Brasil”, produzido em 1978, fala da gênese do processo.
Enfim, são fatores como a ditadura, a censura, a televisão, que empurram a cidade para segundo plano e provocam a emergência da questão nacional, seja pela via do discurso ufanista da integração nacional, através da ordem e do desenvolvimento, seja pela voz da esquerda, que esperneia como pode, sob o lacre da censura:
Vai meu irmão pega esse avião
Você tem razão de correr assim
desse frio mas veja
o meu Rio de Janeiro
antes que um aventureiro lance mão
Pede perdão pela omissão
Um tanto forçada
Mas não diga nada
Que me viu chorando
E pros da pesada diz que vou levando
Vê como é que anda aquela vida à toa
E se puder me manda uma notícia boa15
Uma vez justificados os limites temporais, podemos caminhar para a última questão do artigo, que se prende de forma mais atenciosa à problemática da anomia e da transgressão no discurso da música popular. Para propormos a arquitetura da cidade da música pela análise do discurso embutido no cancioneiro popular urbano, é preciso considerar também o limite do discurso na canção. Considerar esse limite é de certa forma desconstruir a fala do arquiteto, reconhecendo seus silêncios, os quais coincidem com seus espaços vazios. O silêncio em sua concretude é menos que a desconstrução. É o projeto que ficou no papel.
É fato notório e exaustivamente discutido, dentro e fora da Academia, o percurso que a música popular, em particular o samba, trilhou da marginalização ao lugar de ícone da cultura brasileira. De fato, a música popular adentrou os espaços da elite até o ponto de tornar anacrônico o debate entre cultura de elite e cultura popular. Obviamente, nesse percurso, novos discursos e sujeitos se agregaram à idéia original do samba. Caberia indagar sob quais benefícios e ônus a música popular no Brasil tornou-se também discurso da elite a serviço da ideologia nacionalista e do consenso social. Porque o samba, que vivencia relação atávica com o lugar – morros, subúrbios e bairros populares adjacentes ao Centro – tornou-se o ritmo nacional, cantando tanto a cidade quanto a nação? Colocado no pedestal de síntese da cultura brasileira, o samba se auto-assume como tal, por seus próprios sujeitos, ricos ou pobres, letrados ou não. Isso nos sugere a pergunta de por que o samba não rompe com a homogeneização proposta pelo nacionalismo do Estado, assumindo-se como voz que denuncia a segregação e a injustiça social que o conceito de nacional, em última instância, busca apaziguar? Sobre o projeto nacionalista do Estado, Lessa chama a atenção para o lugar central que o Rio de Janeiro e os sujeitos do samba ocupam.
O Estado exalta o Rio popular como laboratório musical e cênico. Trabalha a idéia do Rio com gente bonita, morena, cordial e alegre. [...] Tudo isso será um projeto oficial. Esse significado será assumido pelo imaginário nacional, e objeto de um programa intencional de construção e difusão da imagem. Foi intensa a valorização da cultura popular do Rio, as músicas e a festa do carnaval foram dimensões oficializadas. [...] O crescimento urbano deu à favela carioca uma progressiva visibilidade. A valorização do povo carioca levou a favela a ser romantizada. O atributo de cordialidade exorcizou qualquer mito de estamento ou classe perigosa. O Rio seria o paraíso tropical de um país que praticava a democracia racial. A escola de samba coloca o povo da favela no centro do espetáculo; sua criatividade e alegria seriam exaltadas: Chão de estrelas, Barracão de Zinco etc. documentam a visão idílica da favela – está mais perto do céu – apropriada romanticamente pela cidade moderna. O samba seria o hino da cordialidade carioca. Ninguém estava autorizado a desconhecê-lo. Como diz Dorival Caymmi: ‘quem não gosta de samba, bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou doente do pé’ (LESSA, 2000, p.271 - 273).
Retornando à questão conclusiva do artigo, investiga-se então se existe algo em relação ao qual a música popular se calou, como retribuição à boa vontade do poder e da elite em elevá-la ao nível de ícone nacional. Esse lugar determinaria o limite do discurso da música popular, demarcando a fronteira onde o som evanesce e silenciam bardos, pandeiros e violões. Essa questão poderia remeter diretamente à ditadura do Estado Novo, e à forma como o samba (sujeitos e discursos) aderiu à ideologia do poder, dando eco ao discurso de exaltação do Brasil do progresso e da natureza exuberante, de belezas e riquezas sem igual. Mas existem temas mais sutis, nos quais a fala não estaria a princípio constrangida pela máquina da censura de Estado, nem cooptada pela estrutura governamental de olho nas eventuais benesses, que a relação íntima com o poder traria. Vamos a eles.
Uma primeira questão, bastante sutil, diz respeito às mulheres, como personagens das letras das canções, fugirem constantemente de seus maridos e companheiros, de suas casas e relações. A música pouco explica, só constata o abandono do lar, a traição. Às vezes, faz referência à violência doméstica, mas, como algo incorporado pela cultura e suavizado no discurso de maneira que a “pancadaria cotidiana” não configurasse motivo para uma ação de abandono do lar. Do que essa mulher eminentemente urbana tanto fugiu, a música se cala. Esse silêncio pode sugerir uma primeira pista do limite temático da canção sob uma análise meta-discursiva.
Você sabe o que é ter um amor meu senhor
Ter loucuras por uma mulher
E depois encontrar esse amor meu senhor
Nos braços de um tipo qualquer
Você sabe o que é ter um amor meu senhor e por ele quase morrer
E depois encontrá-lo em um braço que nem um pedaço do teu pode ser.16
Outra questão que implica limite discursivo, remetendo à voz apaziguadora da música popular, diz respeito ao fato da favela das canções despertar tamanha saudade, sentimentos nobres e genuínos de afeto nos que a abandonaram. Se a favela era tão adorável por que é abandonada por quem pode assim fazê-lo? Por que a favela é colocada como contraponto idealizado da cidade que é representada como lugar das falsas relações e da soberba? O mesmo serve para o discurso embutido na música nordestina de quem migra para a cidade, comparando o lugar no Norte, cujo luar não tem igual, com a cidade artificial e viciosa da gente mesquinha.
Peguei um Ita no Norte e fui pro Rio morar
Adeus meu pai minha mãe adeus Belém do Pará
Vendi uns troços que eu tinha o resto dei pra guardar
Talvez eu volte pro ano
Talvez eu fique por lá
Ai, ai, adeus, adeus Belém do Pará.17
Lá no Norte sou sabido, mas aqui sou acanhado.
Quando vejo uma mulata, fico logo acanhado.
Se aqui se pede um beijo, lá se diz me dá um cheiro.
Lá se casa por amor e aqui pelo dinheiro.
Não traga mulher pro Rio você vai ficar maluco
Pois é o mesmo que levar melado pra Pernambuco.18
Quando fala do negro, o discurso da música popular assume duas estratégias. Ou reproduz a fala da democracia racial, apaziguando as diferenças e eventuais injustiças que essas diferenças objetivamente provocam, ou adota uma postura irônica, faz piadas de preconceito velado (algumas nem tão veladas assim), que sub-hierarquizam o negro na sociedade. Considerando-se que boa parte dos compositores da música popular era formada de negros e mestiços, caberia perguntar que benefício contemplou-se nessa postura de auto-sabotagem racial. As boas relações com o estado e com a elite valeriam tanto assim?
Não há mais preconceito de cor
È lei o presidente assinou
È lei o preconceito acabou
Depois do 13 de maio o 3 de julho chegou
Para completar a abolição
Deus que proteja o chefe da nação
Que livrou uma raça de tamanha humilhação19
No que tange o diálogo com a política strictum sensu o discurso da música popular desperta várias questões. A primeira diz respeito à particularidade do tema da Guerra. Os sambas da década de 40 fazem apologia do conflito e instigam o povo a se alistar e lutar pela pátria e pelos ideais que o pensamento ufanista corrobora.
Desde 1942 o Brasil declarara guerra ao Eixo, e os pracinhas iriam para a Itália. Foi intensa a relação entre a “nativização” dos enredos e composições e a ideologia nativista que valorizou continuamente samba e escola. Em 1946, há uma explosão de patriotismo com o desfile do carnaval da vitória contra o Eixo. O governo Dutra superimpôs, nos anos subseqüentes, temas nacionais para restringir que o “comunismo internacional” lançasse mão do desfile como meio de influenciar a população (LESSA, 2000. p. 272).
Outra percepção que apela para uma análise mais aproximada se refere ao fato de a música adotar uma certa postura conservadora mesmo quando pretende criticar o poder ou apoiar alguma ação contrária ao Estado ou à elite. Muitos elementos estavam em jogo. Muitas possibilidades de caminho apresentavam-se à sociedade que, a partir dos anos 20, contempla uma experiência de liberdade social e política até então inédita na história republicana do Brasil. Devem ser considerados o Partido Comunista de 1922, as greves, o sindicalismo, o discurso dos modernistas e a experiência da liberdade entrando em choque com a ebulição política dos anos 30 até o Golpe de Estado de 37. Por fim, deve-se então questionar como a sociedade brasileira lidou (e ainda lida) com a questão da ordem, o que remete à indagação de por que o brasileiro não conseguiu, até hoje, pensar na sua cidadania de forma concreta. Por que não contesta a ordem que legitima as injustiças sociais e os fenômenos de exclusão e segregação de considerável parcela da sociedade, a qual sobrevive à margem das conquistas que o progresso e a modernidade operaram? A resposta a esta pergunta poderia explicar muito da postura até certo ponto conciliadora do discurso da música popular. Conciliadora no sentido em que contesta o estado das coisas até um certo ponto. A ordem estaria tão incorporada ao discurso, que este não ousaria extrapolar o limite a partir do qual se chega a propor a desordem.
Alegria na casa de pobre é um pandeiro.
No terreiro, numa batucada.
Não me incomoda ser pobre ou passar fome
O que eu quero é muito samba.20
Mato Grosso quis gritá, mas em cima eu falei
Os home tá com a razão, nóis arranja outro lugar.
Só se conformemo, quando o Joca falou
“Deus dá o frio conforme o cobertô”
E hoje nóis pega as paia
Na grama do jardim
E pra isquecê, nóis cantemo assim
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim donde nóis passemo dias feliz de nossas vida
Saudosa maloca, maloca querida
Dim dim donde nóis passemo dias feliz de nossas vida.21
Nas letras das canções, a passividade do malandro no enfrentamento com a polícia é notória. O malandro do cancioneiro popular raramente enfrenta a polícia. Certamente essa não seria a conduta cotidiana dos malandros em carne e osso, basta recordar pelo menos um personagem famoso: Madame Satã. Esse conformismo nos leva à questão final de nossas interrogações. Considerando-se a canção popular, em particular o samba, configurada como a voz popular, a voz do pobre, caberia perguntar o quanto foi de fato usada como instrumento de discurso em defesa do pobre. O quanto, de fato, foi sensível ao discurso de classe, de raça e de sexo. O quanto se prestou à denuncia de injustiças, maus tratos e violências que envolvem relações de classe, raça e sexo na sociedade brasileira.
A princípio, acredito que essas questões configurem-se como os lugares do vazio da arquitetura das canções na cidade da música. Tais questões remetem ao après-cité da música, ao silêncio das notas e versos, lugar que a música não alcança. Para nos aproximarmos dessas questões, vale a pena pensar em dois momentos da cidade. O primeiro diz respeito ao que havia antes do diálogo entre cotidiano e música. Antes da música se tornar uma ferramenta de representação ativa e presente do cotidiano da cidade. Tinhorão nos deu a dica de quando esse diálogo teria começado, o que nos leva a investigar o que exatamente ocupava o lugar da música antes, se é que havia algo fazendo esse papel, como ferramenta simbólica de representação da cidade. O segundo momento diz respeito a uma mudança no paradigma dicotômico entre a cultura popular e a cultura de elite. A partir da virada dos séculos XIX-XX e durante as próximas duas décadas, o diálogo música e cidade foi sendo “cozinhado”, para ferver em fins dos anos 20, com o rádio e com o desenvolvimento da indústria fonográfica. É preciso, também, ater-se ao que era a sociedade brasileira das primeiras décadas do século XX.
Como foi dito no início deste texto, o que se pretende alcançar no desenvolvimento da pesquisa diz respeito a experimentar certo diálogo entre música e cidade, oferecendo ao leitor interessado nos assuntos da urbanidade um novo matiz, que venha a somar discurso ao entendimento dos processos de urbanização e modernização em curso no Brasil no decorrer do século XX.
Referências Bibliográficas
CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. Rio de Janeiro, O Globo, 2005. [ Links ]
CUNHA, M. C. P. Ecos da Folia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. [ Links ]
LESSA, Carlos. O Rio de todos os Brasis. Rio de Janeiro: Record, 2000. [ Links ]
TINHORÂO, J. R. A música popular no romance brasileiro. São Paulo: Editora 34, 2000. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail:walclerjunior@hotmail.com
Recebido em: 02/03/2007
Aceito para publicação em: 27/06/2007
Notas
1 Ronda (Paulo Vanzolini, 1951).
2 Pelo telefone (Donga e Mauro de Almeida, 1915).
3 Que bonde pau (H. Lobo, M. de Oliveira, 1950).
4 O bonde de São Januário (Wilson Batista e Ataulfo Alves, 1940).
5 Levou minha roupa (Haroldo Lobo e Milton Oliveira, 1951).
6 Vou votar em Madureira. (Benedito Lacerda e Herivelto Martins, s.d.).
7 Eu hoje vou votar (Gentil Homem e Papito, s.d.).
8 Nasci no samba (Benedito Lacerda e bidê, 1932).
9 Cabritada mal-sucedida (Geraldo Pereira, 1945).
10 Merton, teórico funcionalista da sociedade americana, observa que o desvio, ao contrário de Durkheim, não deve ser pensado como uma patologia pura e simples, como um refugo, subproduto da sociedade. Mas, isto sim, como uma produção de via alternativa, extra-oficial para se alcançar o mesmo fim, ou meta-êxito. Numa sociedade em que metas e meios se apresentam desequilibradas, isto é, onde, para um contingente considerável da população, a expectativa de alcance das metas encontra-se muito acima dos meios regulamentados disponíveis, a via alternativa é o suporte ao qual esse contingente adere no intuito de atingir a meta-êxito. A anomia, em Merton, é conceituada como uma estratégia em busca de aderência social e não como patologia.
11 Ave-Maria do morro (Herivelto Martins, 1942).
12 O morro começa ali (Custódio Mesquita e Heber de Boscoli, 1941).
13 Vida no morro (Hanibal Cruz, 1942).
14 Aquarela do morro (Arnô Canegal e Valdemar Silva, 1952).
15 Samba de Orly (Chico Buarque e Vinicius de Moraes, 1973).
16 Nervos de aço (Lupcínio Rodrigues, 1947).
17 Peguei um Ita no Norte (Dorival Caymmi, 1941).
18 É pra rir ou não é (Luiz Gonzaga e Carlos Barroso, 1946).
19 Três de julho (Benedito Lacerda e Herivelto Martins, 1951).
20 Alegria na casa de pobre (Abel Neto e Ataulfo Alves, 1941).
21 Saudosa Maloca (Adoniran Barbosa, 1951).