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Estudos e Pesquisas em Psicologia

 ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.spe Rio de Janeiro  2023   20--2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.80119 

DOSSIÊ PSICANÁLISE E POLÍTICA: A INSISTÊNCIA DO REAL

Zumbis e Distopia: Os Restos da Colonialidade e as Lutas de Libertação

Zombies and Dystopia: The Remains of Coloniality and Fights for Freedom

Zombis y Distopía: Los Restos de la Colonialidad y las Luchas de Liberación

Diego Amaral Penha* 

Professor do curso de pós-graduação de psicanálise, clínica e cultura do Hospital Santa Catarina de Blumenau. Psicanalista. Doutor em psicologia clínica (USP). Mestre em psicologia social (PUC-SP). Membro do Laboratório Psicanálise Política e Sociedade (PSOPOL- USP) e da Rede Interamericana de Pesquisa em Psicanálise e Política (REDPOL).


http://orcid.org/0000-0003-4964-8791

Miriam Debieux Rosa** 

Psicanalista, Professora Titular do Instituto de Psicologia da USP. Coordena o Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL) e o Grupo Veredas: psicanálise e imigração. Pró-Reitora Adjunta para Inclusão e Pertencimento da Universidade de São Paulo (2022/26). Presidente da Rede Interamericana de Pesquisa em Psicanálise e Política (REDDIPOL).


http://orcid.org/0000-0002-9518-0424

*Hospital Santa Catarina de Blumenau, Blumenau, SC, Brasil

**Universidade de São Paulo - USP, São Paulo, SP, Brasil


RESUMO

Debatemos os rastros presentes na distopia de nossos laços sociais contemporâneos enquanto restos da colonialidade que sobrevivem em nossa cultura. Metodologicamente, recorremos a personagens do imaginário coletivo que interrogam o lugar do outro na cena social e na política. Compreendemos que os zumbis enquanto imagem mnêmica social trazem visibilidade às políticas de degradação do outro - sua dominação, seu extermínio, bem como da desmobilização política. A contextualização histórica e geográfica da origem e da construção desses personagens reforça a constatação da lógica colonizadora e escravagista ali presente, fundamentada nos modos de captura dos desejos, dos corpos e da vida dos sujeitos, culminando no efeito de obliteração das perspectivas de futuro. A figura do zumbi enquanto a lembrança encobridora do negro escravizado haitiano denuncia a desqualificação das lutas de libertação como nada mais que atos violentos de uma horda acéfala, bem como oferece a oportunidade de reinstituir a dignidade dos movimentos que visam à transformação social. Dentro de determinada perspectiva crítica, os zumbis passam a representar a imagem mnêmica social dos libertários que não cessam de lutar. Tornam-se a simbolização do impossível de governar; reagem ao destino certo da condição de mortos, recuperando a potência de construção de um comum na alteridade.

Palavras-chave: psicanálise; pós-colonialismo; zumbis; colonialismo; escravizado.

ABSTRACT

We discuss the traces present in the dystopia of our contemporary social ties as remnants of coloniality that survive in our culture. Methodologically, we resort to characters from the collective imaginary that question the place of the other in social and political scene. We understand that zombies as a social mnemic image bring visibility to the policies of degradation of the other-their domination, their extermination, as well as political demobilization. The historical and geographic contextualization of the origin and construction of these characters reinforces the presence of the colonizing and slavery logic there, based on the ways of capturing the subjects’ desires, bodies and lives, culminating in the effect of obliterating the prospects for the future. The figure of the zombie as a screen-memory of the enslaved black-Haitian denounces the disqualification of liberation struggles as nothing more than violent acts by an acephalous horde, as well as offers the opportunity to bring back the dignity of movements that claims for social transformation. Within a certain critical perspective, the zombies come to represent the social mnemic image of libertarians who never stop fighting. They become the symbolization of the impossible to govern; they react to dead condition as a fate, recovering the power to build a common in otherness.

Keywords: psychoanalysis; postcolonialism; zombies; colonialism; enslaved.

RESUMEN

Discutimos los rastros presentes en la distopía de nuestros lazos sociales contemporáneos como restos de colonialidad que perviven en nuestra cultura. Metodológicamente, recurrimos a personajes del imaginario colectivo, que cuestionan el lugar del otro en la escena social y en la política. Entendemos que los zombis como imagen mnémica social visibilizan las políticas de degradación del otro - su dominación, su exterminio, así como la desmovilización política. La contextualización histórica y geográfica del origen y de construcción de estos personajes refuerza la constatación de la lógica colonizadora y esclavista allí presente, basada en los modos de captura de los deseos, cuerpos y vida de los sujetos, culminando en el efecto de obliteración de perspectivas futuras. La figura del zombi como recuerdo encubridor del negro haitiano esclavizado denuncia la descalificación de las luchas de liberación como nada más que actos violentos de una horda acéfala, además de ofrecer la oportunidad de restituir la dignidad de los movimientos que aspiran a la transformación social. Dentro de cierta perspectiva crítica, los zombis vienen a representar la imagen mnémica social de los libertarios que no cesan de luchar. Se convierten en la simbolización del imposible de gobernar; reaccionan ante el destino cierto de la condición de los muertos, recuperando la potencia de construir un común en la alteridad.

Palabras clave: psicoanálisis; poscolonialismo; zombis; colonialismo; esclavizados.

Tomar um monstro da cultura popular como chave de leitura de nossos laços sociais contemporâneos pode até não ser algo inédito, porém continua inusual. A ideia é a de que a insistência de determinadas imagens sobreviventes que não cessam de se repetir nos produtos da cultura podem apontar para aquilo que permanece obliterado no laço entre sujeito e sociedade. Como propomos no presente artigo, se retraçarmos a contextualização histórico-geográfica dos zumbis através dos rastros deixados por suas imagens em suas aparições cinematográficas, por exemplo, conseguimos constatar como tais figuras de horror operam enquanto imagens mnêmicas sociais que sobrevivem como fantasmas. Assombrações que, de maneira distorcida e fragmentária, exercem uma espécie de rememoração que consegue driblar as políticas que deliberadamente atuam em prol do esquecimento.

A principal casa dos zumbis em nossa cultura é o cinema, já que por décadas foi apenas por meio de filmes nas telas e televisões que era possível defrontar-se com tais monstros. O cinema estabelece uma das mais complexas e instigantes relações entre ideologia e memória - ele é o que chamamos de a mais eficiente máquina ideológica de narrar memórias. Pensamos as especificidades da forma cinematográfica de representação do passado através da noção de “lembrança encobridora”, como chave de leitura psicanalítica para articular as imagens cinematográficas como memória, história e narrativa (Penha & Rosa, 2017; Penha, 2018). Além de ser em certo nível um registro ao mesmo tempo objetivo e fantasmático 1 do passado - no sentido de presentificar corpos que lá estiveram e hoje não estão mais -, no cinema uma cena encobre outra, as imagens se encadeiam através de lacunas que podem operar como rastros de uma verdade histórica. Para destrinchar os mecanismos de produção de experiência nessa máquina, precisamos decantar das próprias cenas cinematográficas os detalhes, os rastros, os índices de outra história.

Demonstraremos, por meio da retomada de determinados filmes mainstream, como a imagem do zumbi, em suas principais transfigurações históricas, tende a manter rastros da imagem do negro escravizado. Seja do sujeito massacrado, seja daquele ameaçador, esta imagem que apresentaremos compõe o que na psicanálise costumamos a chamar de “retorno do recalcado”. Traçaremos os caminhos percorridos pelas imagens através da identificação de modelos e motivos persistentes nas formas de representação e expressão presentes em vários filmes com essa temática, cotejando com o momento histórico social e as práticas escravagistas.

Ao falarmos de “imagens”, recorremos à concepção na qual há uma indissociabilidade entre imagem e corpo. Trata-se de uma tomada na qual o gesto, enquanto técnica corporal, é um ancestral da imagem. Seja enquanto traço de inscrição ou expressão na sua forma mais direta, a imagem enquanto fenômeno carece do corpo enquanto anteparo (meio) para sua sobrevivência. Nesse sentido, há certo parentesco entre a relação corpo-imagem e corpo-palavra, tanto no que diz respeito à sua origem (o gesto) quanto em sua referida sobrevivência (memória). Freud (2011b) afirmou que as palavras e as imagens que permeiam o psiquismo são resíduos mnêmicos, isto é, são restos incorporados pela memória de palavras e imagens experimentadas anteriormente. Se não há corpo sem imagem, assim como não há imagem sem corpo, Belting (2014) afirma que o corpo compõe imagens tanto quanto é por elas composto; ele é o “meio anfitrião” receptor das imagens que circulam no mundo. As imagens são fantasmas que encarnam nos corpos que lhes oferecem anteparo, sejam eles os humanos e suas memórias, as pedras e seus monumentos, os papéis e seus documentos, ou as telas e tintas ou luzes.

Através da psicanálise, Freud nos oferece inúmeras demonstrações desse tipo de sobrevivência das imagens, por exemplo, ao nos apontar como determinados detalhes podem ser captados nas obras de arte, bem como na clínica, trazendo à tona uma nova série de reconfigurações e interpretações da imagem originária. Foi Freud quem nos chamou a atenção para o caminhar da Gradiva (2015), para a fusão de Sant’Ana e Maria e sua relação com o sorriso da Mona Lisa (2017b), para o movimento das mãos, pés e barba da estátua de Moisés (2017b) e para o rosto convulsivo e os cabelos serpenteados da Medusa (2011a).

Para além do reconhecimento dos páthos (Freud, 2017a) recalcados nas imagens, Freud indicava que uma cena esconde outra, assim como põe em cena elementos psíquicos que engatam fantasias. Daí recorrermos à noção de lembrança encobridora como uma lembrança ficcionalizada, que, por meio de uma montagem complexa, também cobre uma experiência traumática anterior (Rivera, 2006). O páthos é a maneira como a comoção enquanto convulsão transforma-se em gesto enquanto expressão, ele “revela uma intensidade pulsional que é, na verdade, algo da ordem qualificante-quantitativa do ‘tônus’ e da tímica da subjetividade” (Chalhub, 1997, p. 8).

Quanto à relação com a história, que aqui destacaremos, Warburg (2015a) afirma que as imagens sobrevivem, isto é, que sua “vida póstuma” pode ser detectada pelo historiador, quando este elabora um estudo comparativo entre as obras, textos e ideias. As imagens constituem - e esse ponto nos interessa destacar - uma forma de memória social e coletiva que, uma vez enraizadas em experiências e comoções de grande intensidade, “penetram na subjetividade e permanecem armazenadas, podendo afluir posteriormente” (Waizbort 2015, p. 11). Segundo Warburg (2015b), as imagens expressam fórmulas que dão vazão e repetem páthos que estão cravados na memória, seja ela individual ou social. O trabalho do historiador da arte é identificar e decifrar os modelos e motivos através dos quais se expressam as formas em movimento, a linguagem gestual, isto é, as imagens.

Trata-se de constituir um inventário de manifestações das formas de expressão que se assemelham, não necessariamente pelo todo das imagens, mas exatamente pelos detalhes, por meio dos fragmentos de imagem armazenados em forma de memória nas pedras, nos documentos, nos monumentos, nas línguas, nos ritos, nas tradições, nos corpos e na arte. De nossa parte, enquanto psicanalistas, nos perguntamos sobre qual seria a experiência traumática ou a grande comoção social que se apresenta em determinadas fórmulas páthos nos filmes de zumbi. Qual é a imagem sobrevivente, desvelada pelas repetições e lapsos desses filmes?

O Zumbi, o Negro, a Corrente e o Extermínio

Em 2002, estreou nos cinemas o filme britânico de zumbis 2 chamado Extermínio (28 Days Later) (Boyle & Garland, 2002). Ele foi sucesso de crítica e bilheteria trazendo novas referências iconográficas para o gênero. Suas principais inovações estavam relacionadas a dois pontos: o primeiro, o fato de focar a narrativa no desamparo e desolamento produzido pelo desenvolvimento tecnológico, pela globalização e pelo neoliberalismo; o segundo, a consolidação de uma nova forma de abordar os zumbis no cinema, deixando para trás o aspecto cambaleante e moribundo de cadáveres ambulantes para apresentar a figura ágil, virulenta e agressiva dos “infectados”. Esse segundo ponto se articula à nossa hipótese de que, como lembrança encobridora do colonizador, o negro escravizado e massacrado retorna como ameaçador.

Extermínio (Boyle & Garland, 2002) apresenta o futuro de uma civilização que falhou e está sendo despedaçada pelos efeitos de seus avanços tecnológicos, que, de maneira paradoxal, libera aqueles que seriam os aspectos mais selvagens e primitivos do humano: a barbárie na violência e na agressividade. Os zumbis, nesse caso, são resultado de um acidente em um laboratório que espalha certo vírus rábico mutante, que por meio do contágio gera uma epidemia. No filme, os infectados pelo vírus da raiva acabam se transformando em indivíduos movidos pelo ódio, que apenas querem destruir e despedaçar o que veem pela frente. Se o título original do filme faz uma referência ao número de dias em que se ambienta a narrativa, isto é, 28 dias depois do acidente no laboratório, o título em português oferece uma margem de interpretação mais ampla e interessante. Ao que estaria se referindo a ideia de “extermínio” do título brasileiro? Quem estaria exterminando o que ou quem?

Uma resposta mais apressada insistiria que o título poderia designar o extermínio da raça humana, por meio das mãos e dos dentes de seus predadores infectados; ou ainda arriscaria afirmar que o “extermínio” aqui é o ato de sobrevivência dos próprios humanos não infectados, que necessitam lidar com os infectados como se fossem uma praga a ser exterminada. Entretanto, um olhar atento às minucias do roteiro e das imagens assistidas nos indicam que há mais para se falar sobre essa questão.

Não há durante o filme qualquer indício de que os infectados estejam conscientemente caçando os saudáveis; pelo contrário, a narrativa tende a nos direcionar para a compreensão de que o vírus produz a raiva pura através do abandono de qualquer civilidade. Os zumbis em Extermínio (Boyle & Garland, 2002) são movidos por seus impulsos agressivos sem sinal de que exista qualquer força interna contrária operando neles, ou seja, não há culpa, medo, nem mesmo dúvida. Os humanos não infectados, por outro lado, encontram-se em uma situação na qual se percebem como presa, já que estão sendo caçados por uma fúria violenta. O ato de “matar os infectados” é apresentado como um impulso de sobrevivência no seu nível mais basal, ou seja, em Extermínio (Boyle & Garland, 2002), os humanos parecem estar apenas reagindo à situação.

Mas há no filme uma cena que através de um lapso nos coloca em um caminho seguro para entendermos a que se refere o título escolhido na divulgação do filme no Brasil. A escolha pela palavra “extermínio”, apesar de parecer provavelmente uma escolha arbitrária ou simplesmente adequada em termos de marketing, não deixa de evocar uma pluralidade de sentidos que lançam a iconografia do gênero zumbi às suas origens haitianas, remetendo ao vínculo que essa imagem tem com o corpo do escravizado negro. Um fantasma histórico ligado à questão racial aparece no filme de maneira sutil, podendo passar despercebido por qualquer espectador desatento, já que o desenvolvimento narrativo em momento algum aborda as questões raciais como mote.

A cena nos apresenta um major militar que narra suas tentativas frustradas de adestrar os infectados com o objetivo de que eles pudessem servir para o trabalho braçal forçado, “fazendo pães”, “cultivando plantações” ou “cuidando de animais”. O major que discursa, no fundo acredita que está sendo misericordioso, pois tenta encontrar uma função social para tais monstros em nosso mundo. Ele conta seus planos enquanto apresenta a base que montou nessa casa colonial, que provavelmente era a sede de uma fazenda antes da epidemia. Quando chega aos fundos da residência o major nos apresenta uma de suas cobaias: um de seus colegas de corporação que fora infectado e que agora vive acorrentado no fundo do abrigo militar - seu nome é Mailer e ele é negro.

Mailer está acorrentado pela garganta como um cão, ou como um escravizado. Está enfurecido pela raiva, porta-se como um animal selvagem enquanto se debate, tentando morder os sobreviventes. A iconografia aqui não engana, e de fato não interessa muito o quanto as escolhas representacionais são acidentais ou não, pois o que vemos é um branco colonial sob controle de suas funções racionais planejando como conseguirá adestrar o negro acorrentado em seu quintal, para que este possa ser docilizado, para executar os trabalhos braçais nas plantações. Vemos aqui uma espécie de repetição do clássico King Kong (1933), no qual o grande e monstruoso gorila selvagem foi retirado da selva, dominado e levado para a cidade, onde é exibido como fera acorrentada (Faustino, 2015).

Zumbis Brancos?

O filme Zumbi Branco, A Legião dos Mortos (White Zombie), (Halperin et al., 1932), apresenta um dos mais curiosos e paradoxais lapsos da história do cinema, possibilitando uma análise crítica sobre a entrada e presença dos monstros zumbis em nossa cultura, já que se trata do primeiro filme do tipo. Através da direção dos irmãos Victor e Edward Halperin, bem como da visão dos estúdios da Universal Pictures, os espectadores que à época tinham acesso a salas de cinema pelo mundo tiveram a chance de encontrar, pela primeira vez, essa figura originária das ilhas caribenhas.

O roteiro é baseado no livro de 1929, A Ilha da Magia: Fatos e Ficção, que constrói sua narrativa através dos relatos sobre o Haiti realizados pelo jornalista William Seabrook durante sua estadia no país em 1928. No livro, Seabrook narra seu suposto encontro com zumbis que trabalhavam em um canavial, isto é, afirma ser testemunha de que pessoas negras mortas haviam sido “revividas” e encontravam-se novamente escravizadas para trabalho forçado 3. O timing de lançamento do livro A Ilha da Magia: Fatos e Ficção e do filme Zumbi Branco (Halperin et al., 1932) foi essencial para o sucesso dessas produções e sua respectiva recepção calorosa. Seabrook publica seu livro no auge do domínio americano no Haiti, e embora em A Ilha da Magia o autor seja extremamente tendencioso a favor dos nativos, o livro era recheado de informações preconceituosas sobre o “obscuro país”. O livro foi tão influente que as editoras norte-americanas brigavam para financiar relatos cada vez mais sensacionalistas sobre o Caribe. O zumbi não passou despercebido pela população americana e em 1932 invadiu Hollywood.

Zumbi Branco (Halperin et al., 1932) narra a história do casal de norte-americanos Neil e Madeleine quando decidem mudar para o Haiti, fugindo da “grande depressão”, em busca de estabilidade econômica e da oportunidade de enriquecer. Os planos do casal logo são arruinados quando Legendre, um usineiro e aristocrata europeu, apaixona-se por Madeleine e decide zumbificá-la para tê-la como sua “escravizada sexual”, após ser rejeitado pela mesma. Isso é possível, já que Legendre também é um feiticeiro vodu. Logo descobrimos que, em sua usina, ele utiliza cadáveres de haitianos “revividos” como força de trabalho escravizada. Coloca-os para trabalhar na usina de açúcar, pilotando carroças, girando o moinho, roubando novos cadáveres no cemitério e como capangas, perseguindo e matando pessoas.

Legendre afirma que todos os seus zumbis são haitianos mortos (com exceção da zumbificada Madeleine), pois intencionalmente zumbificou um haitiano representante de cada classe social: um curandeiro, um barão, um político, um bandido e um carrasco, sem contar todos os escravizados trabalhando em sua plantação e usina de açúcar. Entretanto, nenhum dos atores utilizados para representar os zumbis de Legendre era negro. Sem recorrer ao uso do blackface, o filme cinicamente trata os atores brancos como se fossem negros. O grande lapso da película está no fato de que todos os zumbis e quase todos os personagens haitianos do filme foram interpretados por atores brancos, deixando de lado a demografia étnica do país, no qual 95% da população era negra. Clarence Muse foi o único ator negro de Zumbi Branco (Halperin et al., 1932), interpretando o cocheiro que recepciona o casal norte-americano recém-chegado ao Haiti.

A presença de Clarence Muse na película era e ainda é bastante agridoce. Os anos 1930 eram um período no qual a representatividade negra nas telonas era quase nula, o que fazia da contratação e presença de Muse um ato importantíssimo (Cooper, 2015). Entretanto, na época atores negros só eram contratados para representar papéis estereotipados e ridicularizantes. A questão fica agravada quando constatamos que o único nome não creditado em Zumbi Branco (Halperin et al., 1932) é o de Clarence Muse. O ator tinha falas e relativo destaque no enredo, mas por acidente ou intencionalmente seu nome foi apagado.

Assim, em Zumbi Branco (Halperin et al., 1932) encontramos um filme que traz à tona o negro escravizado como pano de fundo para a narrativa zumbi, e temos também o fato de que o primeiro filme sobre zumbis da história do cinema nos representou um Haiti no qual a maioria da população é branca, devido à falta de representatividade negra em Hollywood. O zumbi era branco, como o próprio título sugeria acidentalmente - já que o “white zombie” do título se referia à Madeleine. Os primeiros zumbis do cinema foram brancos, apesar de manterem aspectos de uma iconografia, como se fossem escravizados negros do colonialismo. Também o único ator negro do filme, não foi contabilizado; ele teve seu nome esquecido ou apagado dos créditos. Passemos ao próximo exemplo, para depois retornarmos a essas questões.

O Negro que Não Era um Zumbi

O ano de 1968 produziu uma interessante reviravolta nos filmes de zumbi após a produção daquele que viraria a pedra fundamental do gênero no cinema, A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, Romero, 1968). A película, dirigida por George A. Romero (1968), apresenta pela primeira vez o cenário distópico no qual os mortos simplesmente levantam e começam a caminhar movidos pelo impulso de comer. Diferentemente de Zumbi Branco (Halperin et al., 1932), em A Noite dos Mortos-Vivos (Romero, 1968) não há um feiticeiro vodu para reanimar os cadáveres e utilizá-los como força de trabalho. Também não há um vírus causador de uma epidemia. Há apenas uma arbitrariedade árida e hostil: não há explicação, os mortos apenas acordaram e estão vagando por aí.

Nesse sentido, A Noite dos Mortos-Vivos (Romero, 1968) oferece duas novas contribuições ao gênero, as quais se referem à possibilidade de compreender os zumbis como infestação e como ameaça ao American way of life. No filme de Romero (1968), os zumbis são uma praga de caminhantes moribundos que começa a se alastrar pelo coração dos EUA. Não sabemos por que, mas esses mortos-vivos se alimentam da carne dos vivos que matam pelo caminho. Os zumbis de Romero (1968) não estão conscientes e não sabemos se eles se alimentam apenas de carne humana, mas descobrimos que devoram os corpos de seus mortos como se estivessem sujeitados a uma fome insuportável. São uma espécie de nuvem de gafanhotos, uma praga regida pelo impulso a comer.

Se os zumbis de Zumbi Branco (Halperin et al., 1932) supostamente deveriam representar os negros haitianos escravizados, em A Noite dos Mortos-Vivos (Romero, 1968) provavelmente estariam simbolizando aqueles que foram destituídos do direito de viver sobre aquela terra. Eles são os que deixaram de “ser”, aqueles que perderam sua identidade ao serem contabilizados como mortos. O fato de que retornam é compreendido pelos vivos como uma invasão. Por esse motivo, são exatamente os rednecks 4 que assumem a responsabilidade de exterminá-los; afinal, historicamente são eles quem sempre estiverem prontos para eliminar as alteridades. E, de fato, o argumento de A Noite dos Mortos-Vivos (Romero, 1968) parece jogar com esse estereotipo, revelando a supremacia branca como a única alternativa para salvação do país. O caipirão sulista americano é o perfeito caçador de zumbis - muitos haviam acabado de retornar do Vietnã e outros apenas apreciam o ato de caçar.

O interessante aqui é que o filme não é dúbio: os zumbis são mesmo uma grande ameaça e os brancos norte-americanos, armados até os dentes, parecem de fato ser a melhor alternativa para lidar com os moribundos assassinos esfomeados. Mas A Noite dos Mortos-Vivos (Romero, 1968) não seria o marco da história do cinema que é sem a presença do personagem Ben, interpretado pelo ator negro Duane Jones. Durante o filme, a centralidade narrativa desloca-se da personagem Barbara para a figura de Ben. Em uma direta homenagem a Hitchcock e seu filme Psicose (Psycho, 1960), a heroína da história é morta no meio da narrativa. Se era com a jovem e indefesa garota branca que o espectador estava engajado em uma identificação especular, a morte dela direciona nossas atenções para o até então coadjuvante Ben, que assume a narrativa de sobrevivente enfrentando a horda de canibais que busca invadir seu abrigo.

Esse deslocamento de identificações que vai da branca indefesa para o negro sobrevivente ganha camadas político-discursivas quando interpretado através da conjuntura social e política dos Estados Unidos durante a produção e exibição do filme no final da década de 1960. O movimento dos direitos civis afro-americanos fervilhava como busca da garantia de direitos legais e igualitários para a população negra estadunidense. Durante os anos entre 1950 e 1968, o movimento realizou ações diretas e protestos organizados, que tiveram importantes efeitos legislativos na sequência. Fazendo uso de diversas estratégias abrangentes, nas quais se consagrou o piquete, os vários grupos e movimentos sociais organizados acabaram conseguindo novos reconhecimentos da população negra pela lei federal, minando a segregação racial legalizada e diminuindo relativamente a discriminação racial nos Estados Unidos.

No filme, para sobreviver ao ataque de uma horda de mortos-vivos, Ben faz barricadas e bloqueios para segurar uma multidão que tenta invadir seu refúgio. Em uma escolha deliberada, Romero (1968) não utiliza zumbis negros nessas cenas finais, fazendo com que nosso herói negro se utilize de piquetes para sobreviver a uma massa de brancos ensandecidos que querem assassiná-lo para devorá-lo. A cereja do bolo de A Noite dos Mortos-Vivos (Romero, 1968) está na cena final da narrativa, na qual, após ter sobrevivido à noite dos mortos-vivos, Ben é morto como se fosse um zumbi pelos rednecks que circulavam pela região, assassinado com um tiro na cabeça à distância. Enquanto espectadores, assistimos a cena através da perspectiva de Ben, assim como pelo ponto-de-vista dos suprematistas brancos. Ao invés de produzir dúvida, essa dupla perspectiva confirma: Ben não foi confundido com um zumbi - na realidade, são os próprios mortos-vivos que estavam sendo tratados pelos rednecks da mesma forma como eles sempre trataram os supostos “invasores negros”, que ainda buscam exterminar até os dias de hoje.

A Noite dos Mortos-Vivos (Romero, 1968) retoma de maneira crítica a perspectiva branca ocidentalizada na qual o negro é um monstro, uma selvagem ameaça que precisa ser domada ou exterminada. O ato do assassinato revela que Ben, assim como os negros para a razão branca dominante, é apenas um corpo. E o efeito é o da “desumanização” do negro, distopicamente mostrado no assassinato de Ben - que, após alvejado, localiza-se na posição de cadáver que os pistoleiros já haviam determinado e antecipado para ele. O herói do filme é assim queimado junto com todos os outros corpos em uma vala coletiva, na qual sobrevivem tanto as imagens da guerra do Vietnã quanto as imagens documentadas dos campos de concentração nazistas. Há, dessa maneira, uma espécie de deslocamento da preconceituosa imagem do grande negro viril - o terror das loiras brancas, como o King Kong - para esse negro obsoleto e exterminável, apenas mais um corpo na pilha.

O Negro Escravizado e o Zumbi Haitiano

A história das origens do mito zumbi encontra suas raízes na conturbada história dos países caribenhos, desde a colonização até a dominação militar americana no fim do século XIX, principalmente no Haiti. O vodu 5 caribenho é reconhecido como a tradição religiosa na qual nasceu a iconografia do zumbi moderno, tal como o conhecemos. Isso não significa afirmar que a concepção de “mortos-vivos” ou “desmortos” não estivesse presente em outras tradições, lendas e narrativas contemporâneas ou mais antigas do que se fez presente no Caribe.

Como referido acima, o jornalista e escritor norte-americano William Seabrook foi responsável pela popularização dos mortos-vivos no ocidente com o livro A Ilha da Magia: Fatos e Ficção (n.d.). No livro, que data de 1929 nos EUA, Seabrook se debruça na pesquisa e no relato dos rituais vodus, que ele mesmo havia testemunhado durante sua estadia no Haiti em 1928. Coube ao autor explicar pela primeira vez as sutilezas envolvidas na compreensão da controversa religião.

O Haiti, assim como a maioria das colônias europeias, recebeu muitos jesuítas decididos a converter ao catolicismo quantos nativos fosse possível. A crença no paraíso e na purificação da alma através do batismo e da comunhão foram misturadas com o animismo e o politeísmo africanos. Cosentino (1995) argumenta que, para além das crenças católicas e africanas, haveria no vodu traços da cultura de populações nativas do caribe, como da população Taíno. Nesse caleidoscópio cultural as crenças religiosas dos escravizados aos poucos foram se transformando em um “complexo híbrido de animismo africano e catolicismo romano, que ficaria conhecido no Ocidente como ‘vodu’” (Russell, 2010, p. 26).

Conta-nos Seabrook (s/d) que, para os devotos, a possessão por deuses fazia parte do dia a dia haitiano e da maioria dos rituais vodus. Para uma pessoa ser possuída, sua alma essencial precisaria ser retirada do corpo. Russell fala que o maior perigo para o haitiano era quando um feiticeiro inescrupuloso fazia esse tipo de separação:

De acordo com as lendas zumbi, tal necromancia geralmente acontecia depois que o feiticeiro provocava a “morte” da vítima, por meio de uma combinação de magia e poções. [...] O feiticeiro então podia trazer esse corpo de volta à “vida” e torná-lo um escravo obediente e acéfalo, que poderia ser colocado para trabalhar em alguma região distante da ilha onde não seria facilmente reconhecido. (Russell, 2010, p. 26)

Notavelmente, o fenômeno zumbi é íntimo da história do Haiti. Não é por acaso que uma população extremamente abusada quanto ao próprio corpo produza esse tipo de monstro. Era aterrorizante para os descendentes dos escravizados africanos, que haviam sido capturados e acorrentados por mestres cruéis, a possibilidade de não “descansar em paz”. O medo de ser transformado em zumbi era real, pois, para uma nação que havia acabado de se declarar independente, tornar-se escravizado mais uma vez era pior que a morte, era a “não-morte”. Seabrook descreve que os haitianos não possuíam dúvidas quanto à existência de zumbis. Inclusive, ele visita uma lavoura onde quatro supostos zumbis trabalhavam. Segue o relato do autor:

A mulher era uma negra alta, de rosto inexpressível, e olhou-me sem benevolência. Minha impressão dos três zumbis, que continuavam a trabalhar, foi a de que eles tinham realmente alguma coisa de estranho. Seus gestos eram de autômatos. [...] O mais horrível era o olhar. Os olhos estavam mortos, como se fossem cegos, desprovidos de expressão. Não eram olhos de um cego, mas de um morto. Todo o semblante era inexpressivo, incapaz de expressar-se. (Seabrook, n.d., p. 84)

O livro de Seabrook tem como subtítulo “fatos e ficção” e não se pode saber quando começa a ficção e quando terminam os fatos, principalmente para aqueles pautados pela teoria psicanalítica. O próprio Seabrook, ao contar sobre suas experiências com zumbis, afirma acreditar na existência deles no momento em que os vê; porém, minutos depois, desconsidera a possibilidade e justifica que os ditos “zumbis” eram pessoas vivas sob o efeito de drogas. Apesar de ainda se pesquisar sobre a existência ou não de zumbis 6, queremos exemplificar aqui o quão vivo o mito era no Haiti pois o medo era real.

Para argumentar sobre a veracidade do medo nessas circunstâncias, Seabrook recorre ao Código Penal haitiano que, na época, imputava crime aos casos de pessoas que haviam sido drogadas sem consentimento, da mesma maneira como reconhecia crime no ato de se enfeitiçar por meio do ritual de zumbificação, ou seja, havia uma preocupação jurídica de incluir algo pertencente à crença popular. Isso significa que no Haiti o medo de ser transformado em zumbi era um medo real e movimentou as autoridades na tentativa de que ele fosse aplacado.

Desse relato podemos salientar a relação do mito zumbi com os medos e aflições pelos quais passavam os escravizados haitianos. Mortos que foram ressuscitados para trabalhar em prol apenas do enriquecimento de seu mestre. Separados de sua alma e sobrepujados por magia, uma força maior que eles. Tendo em vista a realidade escravista no Haiti, não se tratava apenas de uma lenda, mas de uma realidade transfigurada em alegoria.

Zumbis: Uma Lembrança Encobridora do Colonizador sobre o Negro Escravizado

A iconografia cinematográfica dos monstros conhecidos como “zumbis” tem sido descrita e investigada há bastante tempo. É terreno comum que as imagens e as narrativas em torno de filmes de zumbis os apresentem como uma espécie de metáfora cultural, na qual acabam por representar e significar questões políticas e sociais de diversos tipos: escravidão, exploração do trabalho, consumismo, pós-modernismo, apatia, drogadição, necropolítica, neoliberalismo, aids, possessão, dentre outras. Essa pluralidade de roupagens de sentido que essa iconografia tende a acomodar talvez esteja relacionada ao fato de o zumbi ter uma “rica história transnacional e uma eloquente ressonância figurativa que alimentou sua atual onipresença como signo cultural” (Monnet, 2015, p. 143).

Mais além, pudemos demonstrar que a imagem dos zumbis, em determinadas transfigurações históricas, promove experiências de horror que expressam o retorno do recalcado dos atos de escravidão e seus efeitos que migram de um a outro na cena da escravidão e na cena do zumbi. Afinal a imagem sobrevivente, desvelada pelas repetições e lapsos desses filmes, revela a produção da degradação do sujeito, expressa pelo zumbi se deslocando do negro escravizado ao senhor do escravizado, relação permeada pelo ódio que devasta o laço social por mais que se tenha a pretensão de mascarar racionalmente o ato escravagista.

Segundo Mbembe, “o negro desencadeia dinâmicas passionais e provoca uma exuberância irracional que invariavelmente abala o próprio sistema racional” (Mbembe, 2018, p. 13). Quanto à transposição do medo ao ódio, Fanon (2008) descreve que há uma relação fóbica dentro do racismo, na qual o negro é objeto de medo do branco. Esse objeto fóbico é construído através de um medo do biologizado, fetichizado e epidermizado:

O preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o preto é feio; olhe, um preto! Faz frio, o preto treme, o preto treme porque sente frio, o menino treme porque tem medo do preto, o preto treme de frio, um frio que morde os ossos, o menino bonito treme porque pensa que o preto treme de raiva, o menino branco se joga nos braços da mãe: mamãe, o preto vai me comer! (Fanon, 2008, p. 106-107)

O zumbi é corpo, pois é apenas essa carcaça sem alma e sem consciência; o negro é corpo, já que se encontra enclausurado em seu corpo de “preto” - esse selvagem, animalesco e sem razão. Através do medo fóbico, o corpo do negro torna-se um obstáculo à total realização do “ser branco”, isto é, a supremacia branca depende da expulsão do “corpo estranho” (Faustino, 2015, p. 67-68). Mbembe delineia as relações instransponíveis entre a ficção de “raça” e a de “negro”, no sentido em que aquela não passa de “uma construção fantasmática ou uma projeção ideológica, cuja função é desviar a atenção de conflitos considerados, sob outro ponto de vista, como mais genuínos” (Mbembe, 2018, p. 28-29). Isso não significa que os efeitos dessa construção fantasmática “raça” não tenham sido brutais e devastadores em nossa história, mas nos auxilia a localizá-la como elemento fundamental do dualismo civilizado-selvagem, que cominou nas mais variadas versões do mito da raça superior.

Aprisionados no calabouço das aparências, passaram a pertencer a outros, hostilmente predispostos contra eles, deixando assim de ter nome ou língua própria. Apesar de a sua vida e o seu trabalho serem a partir de então a vida e o trabalho dos outros, com quem estavam condenados a viver, porém proibidos de manter relações como co-humanos, nem por isso deixaram de ser sujeitos ativos. (Mbembe, 2018, p. 13)

Mbembe aponta como os danos que durante o primeiro capitalismo afetavam sistematicamente os negros passaram a atingir todas as humanidades subalternas. Continuam presentes nas “lógicas escravagistas de captura e predação”, bem como através das “lógicas coloniais de ocupação e exploração” de corpos e territórios, através das práticas de zoneamento, das guerras de ocupação, anti-insurreição ou contra o terror (Mbembe, 2018, p. 17-18).

Desse modo, trata-se de uma modalidade de relação social que opera em outros contingentes de explorados e atualiza o tema da escravidão. A temática contemporânea dos zumbis articula então as questões produzidas pelo desenvolvimento tecnológico, pela globalização e pelo neoliberalismo com a história colonialista e escravagista, produzindo supostamente mais civilização, mas encobrindo o exército perigoso e infectado de zumbis vagando pelas metrópoles.

A Monstrualização do Negro Escravizado em Zumbi

Nossa contextualização histórico-geográfica dos zumbis apontou como houve um processo de monstrualização do negro haitiano escravizado em imagem fictícia do zumbi como o conhecemos na mídia (cinema e literatura). De fato, em nosso tempo, esses personagens foram alçados à categoria de “monstro”, no sentido em que se distanciaram de sua temática originária no vodu e aos poucos sedimentaram uma aparência padrão identificável através de traços típicos generalizáveis. A monstrualização é um processo a longo prazo, envolvendo uma transformação. Os zumbis são a imagem sobrevivente do escravizado haitiano, que ao mesmo tempo que rememora um fragmento mnêmico do que já foi, também se distancia divergentemente de sua origem. Nesse caso, estamos falando da absorção de elementos de uma história pela cultura de massa, que aparentemente tem por horizonte um endereçamento mais estético do que político nessa distorção.

A monstrualização enquanto estratégia política de deslocamento do outro para uma espécie de “desalteridade” não é um processo exclusivo da imagem dos escravizados haitianos. Por exemplo, na antiguidade, Plínio, o Velho escreveu um compêndio chamado História Natural (Pliny, n.d.), em que, num misto de protogeografia, protoantropologia e protoliteratura fantástica, catalogou diversas raças de indivíduos monstruosos que habitavam os arredores mais distantes de Roma, até onde o saber romano se estendia e encontrava suas fronteiras. Assim, a categoria “monstro” tornou-se um elemento constitutivo da própria ideia de fronteira. Os monstros eram utilizados na cartografia antiga como uma representação dos limites do mundo conhecido, ou seja, a tão comum presença de um dragão ou um monstro marinho nas bordas dos mapas encarnam em forma de imagem o medo do desconhecido.

Tais raças monstruosas sobreviveram no imaginário europeu durante os séculos, podendo ser reencontradas na literatura religiosa da Idade Média. Uma vez que os monstros de Plínio deixaram de ser considerados raças habitantes de territórios misteriosos, passaram a habitar o imaginário religioso, principalmente no que concerniam às faces do mal. As mesmas representações em desenho que antes habitavam o compêndio de Plínio agora eram utilizadas para aterrorizar religiosamente a população.

Assim sendo, esse tipo de monstrualização do outro operou no âmbito político como instrumento de difusão do medo. Com uma mão, a religião institucionalizada sustentava a construção do outro enquanto uma ameaça, fomentando a xenofobia, o ódio, a colonização, a misoginia, entre outras modalidades de intolerância. Já com a outra, oferecia com oportunismo a salvação e o poder estratégico de proteção do controle repressivo.

Foi assim com a monstrualização dos turcos, judeus, mulheres, islâmicos e negros, como nos conta Delumeau (2009). Trata-se da gestão política pela ótica da guerra, que supõe tomar o outro como inimigo através de narrativas desqualificantes e redutoras. No nosso contexto, podemos identificar a permanência de tal estratégia política de monstrualização na construção das imagens do terrorista, do drogado, da prostituta, do negro violento, do adolescente infrator, do imigrante usurpador, do pobre ignorante etc. A esses “monstros” não há nenhuma possibilidade de inclusão, pois o que está em jogo nessas imagens é uma estratégia basal psicológica e política de polarizar oposições. “Nossa” superioridade é validada através de uma identificação com determinados ideais (beleza ou virtude, por exemplo), enquanto destacamos aos “outros” as categorias opostas, tornando-os monstros vis e horrorosos.

Isso significa que talvez um dos mais importantes caminhos de se compreender a maneira como, por exemplo, os gregos antigos constituíram algum nível conceitual de “si” enquanto “povo” seja buscando direcionar o olhar para os monstros que criaram para designar “outros povos” e “outros lugares”. Isso vale para a constituição dos romanos, por meio das raças monstruosas catalogadas por Plínio (Pliny, n.d.), assim como vale para nós e nossos monstros.

Como foi possível abordar no artigo aqui apresentado, a imagem dos zumbis enquanto apenas um de nossos monstros é depositária de inúmeros ecos mnêmicos de imagens sobreviventes relacionadas à articulação elidida entre o capitalismo e o modo de produção escravagista.

O negro escravizado que insiste em reaparecer nas mais divergentes narrativas fictícias sobre zumbis indica algo do real de nossa política e sociedade que não cessa de se inscrever simbólica e imaginariamente. Assim sendo, os monstros e suas assombrosas aparições na cultura tendem a operar enquanto uma tentativa de restituição de um fragmento histórico perdido, distorcido ou apagado. O monstro enquanto algo cuja principal característica aterrorizante consiste em ser um representante-representado do retorno dos recalcados, daquilo incômodo (Freud, 2021) que deveria ter permanecido soterrado em segredo, dissimulado, mas que veio à tona desenterrado, aterrorizante.

Notas

1 Apesar de existir a ideia de “fantasma” na vertente lacaniana de psicanálise, como uma opção a ideia de “fantasia”, por “fantasmático” buscamos nos referir mais à ideia de fantasmas mesmo, enquanto assombrações, imagens do passado que sobrevivem errante numa existência anacrônica.

2 Apesar de estarmos cientes das divergências de nomeação no campo dos estudos desse tema entre “zumbis”, “mortos-vivos”, “desmortos”, “infectados” e outros, escolhemos utilizar tais palavras de maneira difusa e menos categórica. A escolha por essa forma está relacionada à hipótese principal do texto, de que sobrevive em todos esses nomes e figuras a imagem do escravizado negro haitiano. Para uma abordagem mais detalhada sobre as nomenclaturas em torno dos zumbis, recomendamos a leitura de nosso texto Mortos enfim: algumas disparidades e confluências entre vampiros e zumbis na cultura popular (Penha et al., 2021).

3 Voltaremos ao livro de Seabrook adiante.

4 Redneck é o termo norte-americano para dar nome ao estereótipo de homem branco interiorano, de baixa renda e tradicionalista. O pescoço vermelho vem do orgulho de serem trabalhadores rurais que ficam expostos ao sol durante o trabalho na lavoura. É usualmente utilizado nos dias atuais para rotular de maneira pejorativa os brancos sulistas conservadores. O termo também é usado amplamente para depreciar a classe trabalhadora e os brancos rurícolas, ao mesmo tempo que alguns sulistas brancos recuperaram a palavra, autodenominando-se por meio dela e usando-a com orgulho. Costuma ser traduzido para o português pelo termo “caipira”. Recentemente, a população que se orgulha da identificação com o termo redneck ganhou os noticiários do mundo durante várias manifestações a favor da supremacia branca e do neonazismo nos EUA.

5 Há muita discordância entre autores sobre a maneira correta de escrever o nome dessa religião. Desmangles (1992), em seu prólogo, opta por utilizar o termo vodou por ser foneticamente correto. Opto pelo termo “vodu”, pois ele já existe na língua portuguesa.

6 Ver pesquisas de Davis (1985) e Brukhonenko (1940). O primeiro, sobre seu estudo antropológico no Haiti; o segundo, sobre suas experiências com cachorros mortos.

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Recebido: 10 de Maio de 2023; Revisado: 09 de Agosto de 2023; Aceito: 27 de Agosto de 2023

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