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Gerais : Revista Interinstitucional de Psicologia

 ISSN 1983-8220

Gerais, Rev. Interinst. Psicol. vol.13 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2020

https://doi.org/10.36298/gerais2020130111 

ARTIGOS

 

Satisfação Conjugal e Liberdade: Percepções de Sujeitos Casados acerca da Ausência de Filhos

 

Marital Satisfaction and Freedom: Perceptions of Married Subjects about the Absence of Children

 

 

Denise BernardiI; Cristina Ribeiro DantasII; Terezinha Féres-CarneiroIII

IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Contato: denise_psicologia@yahoo.com.br
IIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Contato: c.r.dantas@hotmail.com
IIIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Contato: teferca@puc-rio.br

 

 


RESUMO

Este estudo tem por objetivo investigar as percepções de sujeitos casados acerca da ausência de filhos na atualidade. Participaram da pesquisa dez sujeitos, cinco homens e cinco mulheres do segmento socioeconômico médio, com idades entre 33 e 37 anos, sem filhos. Os resultados foram analisados de acordo com o método de análise de conteúdo. Da análise do material, emergiram seis categorias de análise. Tendo em vista os objetivos do presente trabalho, serão apresentadas e discutidas as categorias: satisfação conjugal de casais sem filhos e sociedade e o projeto de ter filhos. Os resultados apontaram que casais sem filhos têm um nível mais elevado de satisfação no relacionamento conjugal. Apesar de a sociedade atual aceitar com mais naturalidade a opção dos casais de não ter filho, ainda há uma cobrança muito grande acerca desse projeto, visto que a escolha pela não parentalidade interrompe a continuidade geracional.

Palavras-chave: Satisfação conjugal. Casal. Sociedade. Ausência de filhos.


ABSTRACT

This study aims to investigate the perceptions of married individuals about the absence of children today. Ten subjects, five men and five women from the middle-class segment, aged 33 to 37, who do not have children, participated in the study. The results were analyzed according to the content analysis method. From the analysis of the material, six categories of analysis emerged. Considering the objective of this paper, the following categories will be presented and discussed: marital satisfaction of couples without children and society and the project of having children. The results have shown that couples without children have a higher level of satisfaction with their marital relationship. Although today's society accepts a couple's choice of not having children more naturally, there is still a lot of pressure regarding this project, since the choice for non-parenting interrupts generational continuity.

Keywords: Marital satisfaction. Couple. Society. Absence of children.


 

 

Introdução

O estabelecimento do vínculo conjugal contempla a administração da individualidade dos parceiros e as expectativas e motivações que eles estabelecem no relacionamento. Por meio da união conjugal, os sujeitos buscam criar um espaço para realização das necessidades de afeto, lealdade e intimidade. A escolha amorosa costuma ser motivada pela busca de satisfação de desejos. Essa eleição é baseada em aspectos inconscientes (Anton, 2012). Em seu início, a relação conjugal carrega a crença ilusória de que os membros do casal serão completamente satisfeitos em suas necessidades, contudo, a satisfação em um relacionamento depende de diversas variáveis, tais como: as experiências na família de origem, as características de personalidade, a fase do ciclo vital em que o casal se encontra, entre outras (Mosmann, Zordan & Wagner, 2011). Assim como o casamento se transforma ao longo do ciclo de vida familiar, o nível de satisfação também tende a variar com o decorrer dos anos e do convívio relacional entre os parceiros (Norgren, Souza, Kaslow, Hammerschmidt & Sharlin, 2004).

É importante ressaltar que os conceitos de satisfação, qualidade e ajustamento conjugal aparecem relacionados na literatura, sendo muitas vezes utilizados como sinônimos, sugerindo a inexistência de um conceito único aceito e reconhecido pelos pesquisadores da área (Mosmann et al., 2011; Rosado & Wagner, 2015). A dificuldade na delimitação desses conceitos é proveniente da subjetividade envolvida na avaliação do que cada sujeito considera como satisfatório em um casamento. A satisfação no relacionamento conjugal não pode ser definida apenas pela percepção e análise dos cônjuges acerca do casamento. Ela é resultado de um processo mais amplo, dinâmico e interativo. Para este estudo, privilegiou-se o uso do conceito de satisfação conjugal, compreendendo que esta depende de diferentes variáveis ligadas à subjetividade de cada membro do casal.

Percebe-se que alcançar a satisfação conjugal é um objetivo cada vez mais almejado pelos casais atualmente (Driver, Tabares, Shapiro & Gottman, 2016; Scorsolini-Comin & Santos, 2010). Nesse contexto, a satisfação conjugal encontra-se relacionada, sobretudo, à realização das necessidades individuais. O individualismo, marca da sociedade contemporânea, tem modificado o modo de os indivíduos se relacionarem. A intensidade e a velocidade das mudanças na sociedade abriram a possibilidade para relacionamentos mais efêmeros, baseados na grande oferta de momentos prazerosos e na necessidade de satisfação imediata (Borges, Magalhães & Féres-Carneiro, 2014; Borges & Magalhães, 2013). As transformações pelas quais a sociedade passou ao longo dos anos promoveram mudanças no que tange aos vínculos afetivos, uma vez que os ideais contemporâneos de relação conjugal enfatizam mais a autonomia e a satisfação de cada cônjuge do que os laços de dependência entre eles.

Além da satisfação das necessidades pessoais, a renda financeira dos membros do casal é considerada relevante para a satisfação no relacionamento conjugal. De acordo com Atwood (2012), quando os membros do casal se encontram satisfeitos com seus ganhos financeiros, eles tendem a sentir-se mais felizes na relação conjugal. Nesse sentido, o modo negativo como a parentalidade é referida na atualidade é, em grande parte, associado aos custos financeiros que um filho gera (Hansen, 2012; Stanca, 2012). Assim, é importante lembrar que a chegada de uma criança envolve um elevado custo, podendo ser um significativo fator que diminui a satisfação no relacionamento conjugal.

De fato, os cônjuges que até então investiam financeiramente no lazer do casal, depois da chegada de um bebê, passam a depositar suas economias na criança, o que pode gerar insatisfação. Além da diminuição da satisfação com a própria situação financeira e com o relacionamento conjugal, a parentalidade tem sido associada ao aumento de conflitos conjugais e de casos de depressão (Hansen, 2012; Kluwer & Johnson, 2007; Stanca, 2012).

Na linha dessas considerações, a inclusão dos filhos na relação a dois parece contribuir negativamente para o bem-estar do casal. Atualmente, diferentes estudos acerca da transição da conjugalidade para a parentalidade abordam as dificuldades no que diz respeito ao estabelecimento dos papéis parentais e conjugais depois da chegada de uma criança (Barbiero & Baumkarten, 2015; Don & Mickelson, 2014; Trillingsgaard, Baucom & Heyman, 2014). Com efeito, não é incomum encontrarem-se casais com baixos níveis de satisfação na relação conjugal, relacionando esse fato ao nascimento dos filhos (Mosmann et al., 2011).

Em uma meta-análise realizada por Mitnick, Heyman e Smith (2009), que acompanharam casais da gestação ao nascimento do primeiro filho, os autores concluíram que há significativos declínios na satisfação com o relacionamento, tanto para homens quanto para mulheres, especialmente, até o 11º mês de nascimento do bebê. Observa-se, assim, que o nascimento de um filho diminui a satisfação e o bem-estar do casal, sobretudo, quando os filhos são menores. No entanto, poucas pesquisas têm investigado as variações na satisfação de pais com filhos crianças ou adultos. Cabe ainda apontar que estudos analisando as gratificações da parentalidade são escassos e a maior parte das pesquisas científicas tem focado em examinar as demandas negativas inerentes à parentalidade (Nomaguchi, 2012).

É importante lembrar que, até pouco tempo atrás, ter filhos não era algo opcional na vida de um casal; não se questionava, inclusive, se um filho poderia influenciar de modo positivo ou negativo o relacionamento conjugal. Na década de 1950, ter filhos era definido como um comportamento típico de todo adulto casado. As normas sociais coercitivas preconizavam que todo casal deveria ter filhos. Podia-se até optar por não os ter, mas arcando-se com o ônus de ser socialmente criticado e questionado (Chatel, 1995).

O nascimento de um filho transforma a identidade do casal conjugal, redefinindo-a com o intuito de abarcar também as funções inerentes à parentalidade. Desse modo, a chegada de um bebê é marcada por acentuadas mudanças no relacionamento conjugal e esse momento de transição pode impactar negativamente o relacionamento conjugal (Pollmann-Schult, 2014). De acordo com Hintz e Baginski (2012), o nascimento de uma criança traz novas funções para o homem e a mulher, inaugurando novos papéis na família, tornando-se necessário um período de adaptação.

Com a chegada de um filho, o casal, que até então era apenas marido e mulher, torna-se pai e mãe (Barbiero & Baumkarten, 2015; Menezes & Lopes, 2007). Nessa fase, o bebê depende dos cuidados parentais, e grande parte do tempo do casal é destinado à criança. Durante um período, as necessidades do bebê são priorizadas, levando o casal a abrir mão das suas próprias necessidades, o que costuma acarretar em uma diminuição na satisfação conjugal (Driver et al., 2016). Além disso, o contato social é deixado de lado, contribuindo negativamente para a satisfação no relacionamento. Nesse sentido, o nascimento de um filho pode ser vivenciado como um peso para o casal, uma vez que os cônjuges precisam abdicar do tempo que destinavam à relação a dois. Em contrapartida, parece que casais sem filhos têm mais tempo para vivenciar a relação a dois, aumentando assim a satisfação na relação conjugal.

Diante dessas questões e do avanço da Medicina, que permitiram a dissociação entre sexualidade e procriação (Chatel, 1995), a conjugalidade passou a ser pautada, em especial, por escolhas pessoais. Com isso, aumentou o número de pessoas que optam por não abdicar da relação a dois em prol da parentalidade, o que as leva a decidir não ter filhos (Lima, 2013; Rios & Gomes, 2009a). O surgimento da pílula anticoncepcional, a revolução sexual e o movimento feminista muito contribuíram para a abertura da possibilidade de escolha acerca da parentalidade. Todavia, o projeto parental sempre esteve articulado a discursos sociais e ideológicos, não dependendo apenas da capacidade reprodutiva de homens e mulheres (Nascimento & Terzis, 2010).

Apesar de atualmente os casais terem mais liberdade para decidir se querem ou não ter filho, já que sexualidade e procriação não mais se complementam (Chatel, 1995), eles continuam sendo questionados acerca desse projeto (Lima, 2013; Rios & Gomes, 2009a). Em decorrência de a maternidade ser culturalmente valorizada em nossa sociedade, a decisão de não ter filhos pode gerar um sentimento de surpresa na maioria das pessoas (Leitão & Ribeiro, 2007). Nesse contexto, as pessoas que decidem adiar o projeto de ter filhos ou optam por não os ter costumam vivenciar pressões sociais, na medida em que ser diferente do que é socialmente esperado não costuma ser bem-aceito. Assim, a escolha pelo adiamento ou pela não parentalidade é, muitas vezes, interpretada como anormal ou egoísta (Caetano, Martins & Motta, 2016; Rios & Gomes, 2009b).

Na sociedade contemporânea, a parentalidade parece ser considerada fundamental para que uma pessoa tenha uma vida significativa e satisfatória. As evidências do estudo desenvolvido por Hansen (2012) com casais sem filhos, no entanto, sugerem que pessoas sem filhos tendem a ser mais satisfeitas e felizes. No âmbito dessas considerações, o presente estudo, que é parte de uma investigação mais ampla sobre o adiamento do projeto parental na atualidade, tem como objetivo investigar as percepções de sujeitos casados acerca da ausência de filhos na atualidade.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo cinco homens e cinco mulheres, do segmento socioeconômico médio, membros de casais distintos, com idades entre 33 e 37 anos, casados legalmente ou não, há mais de três anos, sem filhos e residentes na cidade do Rio de Janeiro ou região metropolitana. A escolha dos participantes se deu a partir da amostragem por saturação, que é uma ferramenta frequentemente utilizada em pesquisas qualitativas em diferentes áreas no campo da Saúde. O fechamento da amostra ocorre quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, certa redundância ou repetição (Fontanella, Ricas & Turato, 2008). Na medida em que o estudo pretendia avaliar a percepção de membros de casais heterossexuais sobre a ausência de filhos, a presença de homens e mulheres no grupo de participantes foi considerada importante. Para a apresentação dos resultados, os participantes foram nomeados de Homem 1 a Homem 5, e Mulher 1 a Mulher 5. O Quadro 1 apresenta a descrição do perfil de cada um deles.

Instrumentos

Como instrumento de investigação, foram realizadas entrevistas gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas integralmente. O roteiro semiestruturado das entrevistas teve 10 perguntas como base e foi formulado a partir da revisão da literatura acerca do tema, contemplando questões abertas sobre os seguintes eixos temáticos: percepções sobre a família de origem, conceito de família, concepções sobre maternidade/paternidade, perspectivas de projeto parental, desejo de filho e lugar do filho no projeto de vida do casal.

Procedimentos

Os participantes deste estudo foram indicados pela rede de relacionamento dos membros do grupo de pesquisa, constituindo uma amostra de conveniência. Como critério para participação no estudo, o sujeito deveria ter idade entre 32 e 38 anos, pertencer ao segmento socioeconômico médio, ser casado legalmente ou viver em união estável há mais de três anos e não ter filhos.

Para a definição da faixa etária dos participantes, tomou-se como base dados do IBGE (2013), que indicam que na atualidade homens e mulheres se casam em média com 31 e 29 anos respectivamente. O contato inicial para o agendamento das entrevistas foi feito por telefone, sendo estas efetuadas, individualmente, em local determinado pelos participantes e tiveram duração média de uma hora.

Cuidados éticos

O projeto que deu origem à pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição onde foi desenvolvido. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido, permitindo a utilização dos dados em ensino, pesquisa e publicação.

Análise dos dados

Os dados coletados foram submetidos ao método de análise de conteúdo, na sua vertente categorial, com a finalidade de investigar, a partir do material discursivo, as significações atribuídas pelos entrevistados aos fenômenos (Bardin, 2011). Por meio da técnica categorial, foram destacadas categorias temáticas, organizadas a partir da semelhança entre os elementos contidos no material coletado. Para tal, procedeu-se a uma "leitura flutuante", agrupando-se dados significativos, identificando-os e relacionando-os, até se destacarem as categorias de análise.

Do discurso dos participantes, emergiram seis categorias de análise. Tendo em vista que o objetivo deste artigo é investigar as percepções de sujeitos casados acerca da ausência de filhos na atualidade, nele serão apresentadas e discutidas as categorias: satisfação conjugal de casais sem filhos e sociedade e o projeto de ter filhos. As demais categorias foram apresentadas e discutidas em outros trabalhos.

 

Análise e discussão dos resultados

Satisfação conjugal de casais sem filhos

Ao serem indagados sobre uma perspectiva futura a respeito do projeto de ter filhos, a maioria dos entrevistados pontuou o desejo de tê-los. Entretanto, justificaram o adiamento desse projeto em decorrência do investimento em outros planos relacionados primordialmente ao lazer do casal: "Hoje temos um tempo bom para nós, para curtir o nosso relacionamento, acho que com filho isso provavelmente mudaria. Eu acho que o nosso tempo junto diminuiria por conta de uma criança" (Homem 4).

Constatou-se que a maioria dos participantes percebe que a chegada de um filho tornaria mais escasso o tempo dedicado ao casal. Esse resultado corrobora a meta-análise realizada por Twenge, Campbell e Foster (2003), que, investigando a satisfação conjugal em casais com e sem filhos, concluíram que casais com filhos relatam menor satisfação conjugal quando comparados com casais sem filhos, em decorrência da diminuição no tempo para a relação conjugal e o aumento das responsabilidades. Houve também uma correlação negativa entre a satisfação conjugal e o número de filhos, sendo menor quando o número de filhos aumenta. O efeito da parentalidade na satisfação conjugal também foi observado como mais negativo entre grupos de maior nível socioeconômico e nos que tiveram filhos quando eram muito jovens. No presente estudo, as responsabilidades acerca dos papéis parentais foram mencionadas pelos participantes como um fator que influencia o adiamento ou mesmo a decisão de não ter filhos.

Eu vejo assim... [ter filho] uma coisa muito trabalhosa, eu acho que é uma responsabilidade muito grande, um trabalho muito grande. Eu sou uma pessoa que gosta muito de dormir, por exemplo, se eu posso acordar meio-dia, eu acordo meio-dia. E aí eu penso assim... se eu tiver um filho, eu nunca mais vou poder dormir na minha vida! (Mulher 1)

Na atualidade, a família passa por um momento de questionamentos referentes à tarefa de educar uma criança (Zanetti & Gomes, 2014). Esse aspecto salienta a insegurança acerca da responsabilidade parental. As atribuições advindas da parentalidade parecem conduzir muitos casais a repensar, ou mesmo a renunciar ao projeto de ter filhos. Esse dado confirma o que foi observado na investigação realizada por Leitão e Ribeiro (2007), que teve como objetivo analisar os fatores que influenciam a decisão de casais de terem ou não filhos. De acordo com as autoras, as responsabilidades inerentes à parentalidade influenciam, sobremaneira, a opção por não ter filhos.

As responsabilidades suscitadas a partir da parentalidade parecem direcionar os casais a investir em outros projetos, considerados por eles mais satisfatórios, antes do projeto parental. Além das preocupações que as funções parentais carregam, foram pontuadas a perda da intimidade entre os membros do casal e a diminuição da satisfação no relacionamento com a chegada de uma criança.

Eu acho que um filho hoje mudaria muita coisa... hoje eu acho que a gente tem uma qualidade, um para com o outro, uma qualidade maior de relacionamento. Tem um tempo mais disponível um para o outro. A gente já tem uma vida agitada, ela [esposa] está estudando e trabalhando, eu também, e aí o momento que sobra livre a gente está curtindo um o outro. (Homem 1)

Tais resultados se assemelham àqueles encontrados por Marques e Torres (2009) em estudo desenvolvido com famílias portuguesas que tinham filhos, realizado com o objetivo de compreender as transformações da parentalidade e dos cuidados com as crianças. A diminuição do tempo para investimento em projetos de lazer do casal foi considerada como um "roubo" à relação a dois, uma vez que, após o nascimento do filho, ele passa a ser o centro das atenções, colocando o cônjuge em segundo plano.

A chegada da criança tende a gerar mudanças na rotina, pois altera o ritmo de vida do casal, podendo diminuir sua autonomia e liberdade. O nascimento dos filhos, e a alteração de hábitos que geralmente ocorre, tende a levar ao sacrifício de um ou de ambos os cônjuges (Marques & Torres, 2009). Além do afastamento entre os membros do casal, proveniente do exercício das funções parentais, ter filhos também foi pontuado como um possível estresse no relacionamento conjugal.

Eu acho que um filho mudaria muito a nossa questão de rotina porque eu não tenho hora pra sair do trabalho. Eu chego aqui e às vezes saio às s 20:00 horas e com um filho eu não vou poder fazer isso. A criança tem horário na creche, você tem que ir buscar, você tem que dar atenção pro seu filho, então isso mudaria muito. Talvez representasse um pouco de estresse. Isso me preocupa muito, ter um filho hoje, como é que eu iria fazer?! (Mulher 3)

Apesar de o nascimento de um filho ser considerado um evento natural no ciclo de vida dos indivíduos, ele pode ser fonte de muito estresse, em decorrência das exigências de cuidado que um bebê requer e das necessidades de reorganização individual, conjugal e familiar que a parentalidade impõe (Cowan & Cowan, 2016; Moura-Ramos & Canavarro, 2007). É comum o aumento dos conflitos conjugais após o nascimento do primeiro filho, contudo, tais conflitos são considerados como uma "crise" normal, inerente à transição para a parentalidade (Miller & Sollie, 1980).

Conforme já mencionado, o estresse decorrente da sobrecarga de trabalho e o aumento das responsabilidades que o exercício parental demanda podem ocasionar o declínio da satisfação conjugal (Barbiero & Baumkarten, 2015; Don & Mickelson, 2014; Trillingsgaard et al., 2014). Na meta-análise realizada por Mitnick et al. (2009) com casais com e sem filhos, os autores também observaram declínio na satisfação com o relacionamento na transição para a parentalidade. No entanto, os autores constataram que o declínio na satisfação conjugal, ao longo do tempo, não difere entre casais com ou sem filhos. Entretanto, estimou-se, no estudo em questão, que as mudanças exigidas aos que se tornam pais tendem a acelerar o declínio da satisfação com o relacionamento, apesar de ocorrerem declínios em ambos os grupos. Esses dados, por sua vez, indicam que a diminuição da satisfação conjugal entre os que se tornaram pais pode não estar relacionada unicamente à transição para a parentalidade, visto que aqueles que não se tornam pais experimentam uma diminuição semelhante na satisfação com o relacionamento.

Sociedade e o projeto de ter filhos

A estreita relação entre parentalidade e conjugalidade vem sendo desconstruída, cedendo espaço para que o projeto de ter filhos seja uma escolha dos membros do casal. Atualmente, os parceiros podem decidir com maior liberdade se querem ou não ter filhos ou quando tê-los. Contudo, ainda há muitos questionamentos da sociedade e dos membros da família para aqueles que adiam esse projeto ou optam por não ter filhos.

A nossa família sempre cobra, sempre há essa cobrança, os amigos perguntam, né? É assim mesmo. Quando está noivo, perguntam quando você vai casar, quando está casado, perguntam quando você vai ter filho, quando tem o primeiro perguntam, quando vai ter o segundo... (Mulher 2)

Observa-se que, apesar da aparente liberdade que o casal tem acerca do projeto parental, isso não os livra de constantes questionamentos sociais acerca desse projeto. Parece haver, desse modo, uma expectativa de ordem social que configura como família apenas o casal que tem filhos (Sohne & Wendling, 2011). Apesar dos desagradáveis questionamentos com que os participantes relataram se deparar, foi mencionado que, com o tempo, aprenderam a lidar com as perguntas alheias acerca do projeto parental. Entretanto, há um incômodo maior acerca dos questionamentos, em especial, para o casal que está tentando ter filhos.

Isso já está me incomodando. Eu estou começando a ficar um pouco enjoada com essas brincadeiras, embora sejam poucas. Meu marido também não gosta. Porque na verdade eu parei a pílula... acho que foi em setembro, vamos botar aí por alto cinco meses tentando, então as perguntas, elas influenciam. Aí a cada mês que eu não consigo engravidar isso mexe comigo... embora eu esteja tentando há cinco meses. (Mulher 4)

O recorrente questionamento parece exercer mais pressão quando o casal está tentando engravidar. A fala anterior ilustra o peso dos questionamentos sociais no que se refere ao projeto parental. Constatou-se que os questionamentos têm outro sentido para o casal que está tentando ter filhos, mas parecem não ter a mesma representação quando o casal não está nesse processo. Dessa forma, percebe-se que, quando estão tentando efetivar o projeto parental, os casais se sentem mais pressionados e incomodados com a intromissão alheia, talvez porque as pressões sociais vão ao encontro de suas próprias pressões.

Além dos questionamentos gerarem incômodos, observou-se que os participantes se sentem recriminados, em especial por suas famílias, quando ainda não têm filhos. As mulheres do estudo de Fidelis e Mosmann (2013) mencionaram sentimento semelhante. Segundo as autoras, todas as participantes do estudo declararam sentir-se socialmente discriminadas, em especial, quando afirmavam não desejar ter filhos.

O mesmo dado foi observado no estudo desenvolvido por Caetano et al. (2016), realizado com cinco casais que também pontuaram se sentir marginalizados em decorrência da escolha de não ter filhos. De acordo com as autoras, uma das formas de enfrentamento vivenciada pelos casais estudados sobre os questionamentos relativos ao projeto parental foi a negação de que esta seja uma decisão definitiva.

O preconceito acerca da escolha por não ter filhos parece se manifestar de três formas. A primeira refere-se à negação, quando se evita falar sobre o assunto. A segunda ocorre quando as pessoas tentam convencer o casal de que aquela escolha não é a mais sensata. E, finalmente, quando há uma condenação, mesmo que velada ou indireta, acerca da opção tomada pelo casal (Caetano et al., 2016). Entende-se que o fato de os casais necessitarem omitir sua decisão revela que a sociedade ainda é bastante preconceituosa em relação à configuração familiar de casais sem filhos. Em especial, as mulheres tendem a ser mais discriminadas quando decidem não ter filhos.

A maior incidência de estigmatizações e preconceitos sobre as mulheres pode estar relacionada à maior cobrança acerca da maternidade. A percepção de que há um instinto de amor materno (Badinter, 1980) por parte da mulher parece dificultar a aceitação de que a experiência acerca da maternidade possa ser recusada por elas (Rios & Gomes, 2009b). Estudos históricos raramente fazem referência à infertilidade masculina, o que sugere que os problemas reprodutivos do casal são atribuídos à mulher, que, tradicionalmente, quando não tinha filhos, era referida como "tronco oco" (Trindade & Enumo, 2002).

Desse modo, quando a decisão de não ter filhos é assumida pela mulher, parece ser ainda mais difícil assimilar a ideia sem que isso traga a emissão de juízos negativos. Há no discurso social um entendimento que não concebe a possibilidade de alguém "bom", em especial uma mulher, recusar a experiência da maternidade (Caetano et al., 2016). Por outro lado, foi demarcado pelos participantes deste estudo que, apesar dos questionamentos sociais acerca do projeto de ter filhos, a sociedade atual concebe com mais naturalidade a possibilidade de um casal decidir não ter filhos.

Atualmente, com frequência, eu vejo reportagens em que as pessoas falam que esse não é o projeto de vida delas, elas não querem ter filhos e ponto. Estou bem comigo mesmo, estou bem com o meu cônjuge. Independente do gênero, as pessoas estão optando por viver sem filhos. Essa já é uma realidade na nossa sociedade, o importante é o casal estar bem com a sua decisão. (Homem 3)

Conforme já discutido, durante um longo período, ter filhos era socialmente esperado entre os sujeitos que se casavam. As normas sociais estabeleciam que todo casal deveria ter filhos. Quando optavam por não os ter, os membros do casal eram socialmente criticados e acreditava-se que eles eram inférteis (Chatel, 1995). Na sociedade atual, o casal que não inclui em seus planos o projeto parental, apesar de ainda ser questionado, tem mais liberdade acerca de sua decisão.

Observa-se, ainda, que a sociedade influencia de modo significativo a decisão de ter ou não ter filhos. A maioria dos entrevistados mencionou que amigos próximos que têm filhos pontuam com frequência as dificuldades inerentes à parentalidade, sendo que esse aspecto acaba contribuindo para que percebam a chegada de uma criança como um peso:

"Eu acho que ter um filho é um grande desafio, sempre ouvi isso dos amigos que têm filho, porque exige muito do casal. Acho que se eu tivesse um filho hoje eu teria aquele pensamento de trabalhar mais para dar mais para ele" (Homem 5).

Percebe-se que o modo romantizado com que a maternidade/paternidade foi, e ainda é consagrada, já não a sustenta mais como um projeto almejado pelos casais atuais. Ao contrário, ter filhos é visto como fonte de extrema sobrecarga. No estudo desenvolvido por Andrade, Martins, Ângelo, Santos e Martini (2014), os autores observaram resultados similares. Entre as maiores preocupações dos membros dos casais que têm filhos, destaca-se a sobrecarga de trabalho, a diminuição das horas de sono e lazer, e do tempo livre para si e para a realização de atividades sociais, além do aumento das tarefas domésticas e do estresse individual com as responsabilidades.

O mesmo dado foi observado na investigação realizada por Barbosa e Rocha-Coutinho (2007), com quatro mulheres, com o objetivo de entender como elas encaravam a maternidade e a opção de adiá-la ou de não ter filhos. Ter filhos foi referido de forma negativa em decorrência da responsabilidade que a chegada de uma criança acarreta. As mulheres que não tinham filhos referiram não sentir inveja do estilo de vida que pessoas com filhos têm em decorrência das renúncias necessárias que uma criança impõe.

 

Considerações finais

A relação direta, que durante décadas vinculou sexualidade e procriação, se modificou, possibilitando que o projeto parental se tornasse uma opção. Atualmente, os casais valorizam o relacionamento conjugal de modo primordial, optando, muitas vezes, por manter o projeto parental em segundo plano, ou até mesmo decidir, com mais liberdade, se querem ou não ter filhos.

Entretanto, apesar de hoje ser mais aceita a escolha dos casais de não ter filhos, ainda assim uma cobrança muito grande pesa sobre eles, visto que a opção pela não parentalidade interrompe a continuidade geracional. Nessa perspectiva, observa-se que o preconceito é um fator ainda muito presente no dia a dia de casais que adiam o projeto parental ou optam por não ter filhos. Os resultados do presente estudo poderão contribuir para a reflexão acerca de tais preconceitos.

A chegada de um filho é marcada por acentuadas mudanças no relacionamento a dois, sendo indispensável um período de adaptação, uma vez que durante um tempo os cuidados com o bebê são priorizados, aspecto que pode acarretar em um declínio na satisfação conjugal. Observou-se, desse modo, que o afastamento que pode ocorrer entre os cônjuges, em decorrência das funções parentais, é percebido como um possível estresse no relacionamento conjugal.

Cabe ressaltar que o presente estudo apresenta algumas limitações. A primeira delas refere-se à constituição heterogênea do grupo de participantes, tendo em vista que alguns deles eram membros de casais sem filhos por opção, e outros de casais que estavam tentando engravidar. Outra limitação diz respeito ao fato de o estudo ter sido realizado com apenas um segmento socioeconômico, pois, em outras camadas da população, a parentalidade pode ser vivenciada de maneira distinta no que tange às expectativas depositadas nos filhos e aos investimentos concernentes à criação deles.

Destaca-se que a maior parte da produção científica sobre o projeto de ter filhos é internacional (Biffi & Granato, 2017). Desse modo, reitera-se que os resultados deste estudo, além de apresentarem subsídios para a prática clínica com casais e famílias, contribuem para a visibilidade do tema em questão no contexto nacional.

Por fim, concluiu-se que o projeto parental, como principal objetivo do casal contemporâneo das camadas médias, teve um declínio, uma vez que casais sem filhos descrevem ter um nível mais elevado de satisfação no relacionamento conjugal, já que se sentem livres das demandas e responsabilidades inerentes à parentalidade.

 

Referências

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Recebido em: 16/11/2017
Aprovado em: 23/3/2018

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