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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

 ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. v.6 n.2 Florianópolis dez. 2006

 

ARTIGOS

 

O trabalho noturno e suas repercussões na saúde e na vida cotidiana de trabalhadores metalúrgicos do vale do Paraíba no estado de São Paulo

 

The night shift work and its repercussions on the health and on the daily life of metal workers in the Paraíba valley in the state of São Paulo

 

 

Adriana Leônidas de Oliveira I; Cristiana Mercadante Esper BerthoudII; Ângelo Rovaris BegliominiIII; Raquel Gagliotti CoppolaIV; Terezinha Chaves RangelV

IDoutora em Psicologia Clínica-Universidade de Taubaté (adrianaleonidas@uol.com.br)
IIDoutora em Clínica-Universidade de Taubaté (crisberthoud@uoLcom.br)
IIIPsicólogo - Universidade de Taubaté (begliomini@hotmail.com)
IVPsicóloga - Universidade de Taubaté (raquelcoppola@yahoo.com.br)
VPsicóloga - Universidade de Taubaté (tcrangel@uol.com.br)

 

 


RESUMO

O trabalho noturno é tema de relevância na atualidade, devido à sua ampla aplicaçâo, por razões técnicas, sociais e econômicas. Estudos têm demonstrado, entretanto, que essa organização temporal do trabalho pode ocasionar distúrbios na saúde e perturbações na vida familiar e social do indivíduo. Assim, esta pesquisa teve como objetivo proceder a uma análise qualitativa das repercussões do trabalho noturno na saúde e na vida cotidiana de trabalhadores metalúrgicos do Vale do Paraíba. Foi utilizado o delineamento de estudo de caso, com aplicação de entrevistas semi-estruturadas a sete participantes. Realizou-se análise qualitativa de conteúdo. Os resultados revelam a presença de distúrbios na saúde e na qualidade do sono do trabalhador, além de algumas perturbações na vida familiar e social, e no lazer. Constata-se a necessidade de planejamento de assistência e orientação preventiva à saúde física e mental do trabalhador, além de programas de assistência e orientação psicológica à família.

Palavras-chave: trabalho noturno; saúde do trabalhador; pesquisa qualitativa.


ABSTRACT

Night shift work is a relevant theme nowadays, due to its widespread application, and also for technical, social, and economic reasons. Studies have shown, however, that this temporal organization of work can cause health disturbances and disruptions in the family and sociallife of the individual. Thus, this research sought to conduct a qualitative analysis of the repercussions of working the night shift on the health and on the daily life of metal workers in the Paraiba Valley in the State of Sao Paulo. The case study methodology incorporating semi-structured interviews with seven participants has been utilized and a qualitative analysis of the content was performed. The results reveal disturbances in the health and in the sleep quality of the worker, in addition to some disturbances in their family and social life, as well as in their leisure time. This confirms the need for supportive planning and preventative guidance concerning workers' physical and mental health as well as for family programs of psychological support and guidance.

Keywords: night shift work; worker's health; qualitative research.


 

 

1. Introdução

O trabalho é a atividade humana por excelência. É a resposta do homem aos desafios da natureza, na luta pela sobrevivência. Provê os recursos necessários para o sustento do trabalhador e de sua família, desenvolve habilidades e enriquece a afetividade, como resultado do relacionamento humano. No entanto, assim como traz benefícios, também pode causar sofrimento físico e mental, podendo também áfetar a família do trabalhador, dependendo das condições e da forma como é orgamzado. Nessa situação, pode-se incluir o regime de trabalho em turnos. Segundo Régis Filho e Lopes (1997), o trabalho em turnos é responsável por cerca de 20% do nível de emprego em nosso país, e aproximadamente metade dessa porcentagem refere-se ao trabalho realizado no horário noturno.

Desde os tempos mais remotos, o trabalho em turnos noturnas já existe; no entanto, sua intensificação começa no início do século XIX, devido à instalação da iluminação elétrica (Waidele, 1996). Segundo Rutenfanz (1989), é ampla sua aplicação na atualidade, por razões técnicas, econômicas e sociais. Dentre as razões técnicas aponta-se o fato de que certos produtos só podem ser elaborados com alta qualidade se o processo produtivo não for interrompido a cada oito ou dezesseis horas. As razões econômicas apontam para o alto custo de certas instalações industriais e para o fato de que o avanço tecnológico as torna obsoletas em pouco tempo. Daí a necessidade de sua utilização de forma ininterrupta, para se obter uma produção racional. As razões sociais surgem da necessidade do atendimento à população. O trabalho diurno e noturno é utilizado em setares, instituições e organizações como hospitais, aeroportos, ferrovias, centrais de abastecimento, postos de segurança, entre outros.

Existem estudos internacionais e nacionais que fazem referência a distúrbios na saúde e a perturbações na vida familiar e social de trabalhadores empregados nessa forma de organização temporal do trabalho em os turnos, na qual se inclui o labor noturno fixo ou em rodízio (Carvalho, 1991; Costa, 1997; Ferreira, 1987; Régis Filho; Lopes, 1997; Rutenfranz et al. 1989; Waidele, 1996).

Tendo em vista a crescente incidência dessa modalidade de organização do trabalho em nossa realidade e os possíveis riscos a que expõe o trabalhador, é importante que se conheçam as condições do trabalho em turnos e suas influências no cotidiano do operário metalúrgico. Esse conhecimento é imprescindível para que se possam aperfeiçoar as diversas formas que esse tipo de jornada assume e para se planejar uma assistência preventiva contra os possíveis distúrbios na saúde fisica e mental desses trabalhadores.

De modo similar ao do cenário nacional, o trabalho em turnos também é utilizado amplamente em nossa região. Por esse motivo, o objetivo desta pesquisa foi realizar uma análise qualitativa dos efeitos do trabalho noturno na saúde e na vida cotidiana de trabalhadores metalúrgicos do Vale do Paraíba. Como objetivo específico, buscou-se analisar os efeitos do trabalho noturno em relação aos seguintes aspectos: saúde, sono, dinâmica familiar, lazer, relacionamento social e vantagens e desvantagens desse tipo de turno de trabalho.

O trabalho noturno, seja permanente ou alternante, é uma das formas que assume o trabalho em turnos. Segundo Rutenfranz (1989, p. 13) "... o trabalho em turnos é uma das formas de organização da jornada diária de trabalho, em que são realizadas atividades em diferentes horários ou em horário constante, porém incomum ...".

Nesse tipo de organização do trabalho, a mesma atividade é executada em diferentes períodos do dia e da noite por vários empregados em igual jornada. Os turnos podem ser organizados em sistemas dos mais variados, a depender das necessidades. Há os sistemas alternados (também chamado de rodízio) e os permanentes. No alternado, as mesmas equipes de trabalho se alternam em turnos da manhã, da tarde ou da noite. Nos sistemas permanentes, as pessoas trabalham em determinado horário (diurno, vespertino ou noturno) por muitos anos ou por toda a vida de trabalho.

O trabalho em turnos é, dessa forma, uma organização da jornada de trabalho diferente da jornada normal da maioria da população. Entende-se por jornada normal, ou horário administrativo, aquela que está compreendida entre 7 e 18h.

Costa (1997) aponta que o sistema de turnos pode diferir também em relação a outros importantes fatores, tais como: regularidade ou irregularidade e extensão dos ciclos de rodízio (curtos ou longos: 2, 3 dias, semanas ou quinzenas); duração dos turnos (6 a 12 horas); número de turmas; horário de início e fim de turno; direção do rodízio do turno; número de turnos consecutivos. Ferreira (1987, p. 28) define o trabalho em turnos como"... uma forma de organização temporal do trabalho na qual diferentes equipes de trabalhadores se rodiziam para garantir a atividade da empresa num horário superior ao horário administrativo de trabalho e que utiliza mais de um turno de trabalhadores."

O turno noturno, foco deste estudo, é definido por Waidele (1996) como qualquer emprego regular que se realiza fora do horário habitual de trabalho, definido arbitrariamente entre 7 e 18h.

Segundo Rutenfranz e colaboradores (1989), desde os tempos mais remotos, quando a sociedade começou a se organizar em cidades e estados, o trabalho em turnos já existia (guarda noturno, polícia, bombeiros, médicos, parteiras). Essa forma de organizar o trabalho não é, portanto, uma invenção da era industrial.

Explica Waidele (1996) que, de uma perspectiva histórica, sempre trabalharam em horários não habituais os trabalhadores da saúde e os soldados. Durante o Império Romano incluíramse nesse tipo de trabalho outros empregos, como o de padeiros e os distribuidores de alimentos, que realizavam suas atividades durante a noite, para evitar o congestionamento de veículos.

De acordo com Waidele (1996), a massificação do trabalho noturno começa no ano 1800, devido à instalação da iluminação elétrica. Pouco a pouco, incluem-se nesse sistema os trabalhadores das indústrias, dos transportes, da polícia, entre outros.

Na atualidade, a utilização dos turnos como forma de organização do trabalho se dá principalmente pelos motivos já citados: as causas tecnológicas, as imposições económicas e a necessidade de atendimento à população.

 

Método

Para compreender os efeitos do trabalho noturno na vida cotidiana de trabalhadores metalúrgicos do Vale do Paraíba, utilizou-se o delineamento de estudo de caso, que se caracteriza por ser um " ... estudo profundo e exaustivo de um ou de poucos objetos, de maneira a permitir o seu conhecimento amplo e detalhado." (Gil, 2002, p. 73). Esse delineamento, por sua flexibilidade, permitiu a compreensão do fenômeno em foco, assim como o surgimento de novos questionamentos a respeito do assunto.

Caracterizou-se como um estudo de natureza qualitativa, que pode ser compreendido, conforme apontam Denzin e Lincoln (2000, p.l), como um tipo de pesquisa que envolve uma abordagem interpretativa e naturalista de seu objeto de estudo. Nas palavras dos autores, "Isso significa que pesquisadores qualitativos estudam coisas em seu cenário natural, buscando compreender e interpretar o fenômeno em termos de quais os significados que as pessoas atribuem a ele."

Os mesmos autores enfatizam que a pesquisa qualitativa é um processo interativo delineado por diversos fatores, como história pessoal, biografia, gênero, classe social, raça e etnia, tanto do pesquisador, quanto dos pesquisados, e que busca uma compreensão profunda do fenômeno em questão, uma vez que a realidade objetiva nunca pode ser capturada.

Na abordagem de análise da pesquisa qualitativa, podemos prescindir de números e da necessidade de generalizações e, em vez disso, usar palavras e suas representações, buscar a consistência, a aplicabilidade e a possibilidade de transferência dos resultados obtidos. A co-construção do conhecimento tem como base pontos imprescindíveis: a coerência, o rigor, a transparência e a reflexibilidade do pesquisador. A possibilidade de transferência dos resultados refere-se à aplicação do conhecimento em outras condições, para estender suas conclusões a outros contextos, tendo em vista a credibilidade e a consistência interna de seus dados.

 

Sujeitos

Foi constituída uma amostra por acessibilidade com 7 trabalhadores metalúrgicos, residentes nas cidades de Taubaté e São José dos Campos, com idades entre 26 a 41 anos (idade média de 35 anos), todos casados, sendo que 6 participantes possuíam filhos e apenas 1 não possuía. Todos trabalhavam à noite, de forma permanente ou em rodízio, possuindo um tempo médio de atuação no turno noturno de 4 anos. Auferiam uma renda média de 8,2 salários mínimos, e tinham escolaridade correspondente ao ensino fundamental ou médio. Na tabela a seguir, pode-se visualizar a distribuição das características do grupo amostral.

 

 

Instrumento e procedimento de coleta de dados

Como instrumento para cole ta de dados foi utilizada a entrevista semi-estruturada. com um roteiro de questões formulado previamente. As questões ofereciam ao participante a oportunidade de se expressar com liberdade. Ao longo da entrevista, novas questões foram formuladas, para se explorar a experiência de cada participante. Essa modalidade de entrevista mostrou-se adequada, em face do objetivo proposto: compreender uma experiência e descobrir os significados a ela atribuídos. Conforme apontam Fontana e Frey (2000), a entrevista não-estruturada ou semi-estruturada fornece maior amplitude de dados, devido à sua natureza qualitativa. Segundo os autores, a essência desse tipo de entrevista é "... o estabelecimento de uma relação humana com o respondente cujo desejo é compreender ao invés de explicar"; (p.366).

As entrevistas foram conduzidas na residência dos participantes e foram gravadas mediante autorização. Posteriormente, as fitas foram transcritas e destruídas. Seguindo os preceitos éticos da pesquisa científica, todos os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido.

 

Procedimento para análise dos dados

Para estudo e interpretação dos dados, foram adotadas algumas ferramentas da análise de conteúdo, as quais permitiram uma análise de natureza qualitativa. De acordo com Triviftos (1987), a análise de conteúdo é um método usado na pesquisa quantitativa e na qualitativa. Citando Bardin, o autor define esse método como um conjunto de técnicas de análise das comunicações que visa a obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitam inferir conhecimentos relativos às condições de produção e recepção das mensagens.

Na análise, enfatizou-se a mensagem, utilizando-se as técnicas de classificação dos conceitos, codificação e categorização. A análise foi realizada seguindo-se as três etapas propostas por Bardin (apud Triviños, 1987), a saber:

- Pré-análise: organização do material coletado nas entrevistas e dos dados de observação obtidos durante a entrevista, e releitura da fundamentação teórica;

- Descrição analítica: codificação, classificação e categorização das informações;

- Interpretação referencial: estabelecimento de relações e aprofundamento das conexões entre as idéias, por meio de reflexão embasada nos dados empíricos e apoiada no referencial teórico.

As categorias e subcategorias construídas serão apresentadas na próxima seção e discutidas frente ao material bibliográfico utilizado.

 

Resultados e discussão

Categoria 1 - Saúde do trabalhador. Essa primeira categoria analisa o estado de bem-estar físico e mental, englobando aspectos como a qualidade do sono, a percepção do próprio trabalhador a respeito de sua saúde e as enfermidades já apresentadas, atribuídas pelo participante como efeitos do trabalho noturno.

1.1 - Quanto à qualidade do sono, todos os trabalhadores pesquisados apresentam queixas, pois "trocam o dia pela noite". O tempo de sono é apontado, muitas vezes, como insuficiente, especialmente nos finais de semana, pois há os que não dormem durante o dia, para aproveitar o sábado junto à família.

Segundo Fishbein (1977), embora a quantidade de sono necessária varie de pessoa para pessoa, um adulto deve dormir pelo menos de 7 a 8 horas por dia, tempo em média suficiente para que ele desperte descansado. Constata-se que a maioria dos entrevistados dorme, em média, 6 horas por dia, havendo, portanto, uma diminuição das horas normais de sono. Além do aspecto apontado, o fato de o sono ser diurno apresenta os inconvenientes das interrupções, devido aos barulhos normais da casa, como o produzido pelos filhos pequenos, por exemplo, além dos barulhos da rua e do trânsito.

A vida familiar do trabalhador noturno fica dificultada devido à sua necessidade de dormir justamente no período em que as crianças fazem mais barulho. Concordamos com Waidele (1996), quando aponta que a sociedade está organizada, predominantemente, para o trabalho diurno, e que não existe a consciência da necessidade de proteger o descanso do trabalhador noturno. As interferências externas acabam, portanto, comprometendo também a qualidade do sono.

Todos os entrevistados avaliam o sono diurno como de qualidade inferior à do sono noturno, atribuindo-lhe adjetivos como "pouco repousante" , "picado" e "insuficiente".

Conforme explica Carvalho (1990), o sono é uma função vital e regeneradora do nosso organismo, pois é responsável pela manutenção do estado de vigília, organizando os ritmos biológicos e, dessa forma, restabelecendo o corpo do desgaste fisico.

Pelas falas dos trabalhadores entrevistados, percebemos a má qualidade do sono diurno e o risco à saúde. O sono diurno oferece menor possibilidade de recuperação do desgaste; portanto, há um acúmulo de cansaço que pode se tornar um estado de fadiga constante, constituindo-se, assim, em risco de surgimento de enfermidades.

Ao descreverem a má qualidade do sono diurno, todos os trabalhadores entrevistados queixam-se de problemas como: dor de cabeça, cansaço, exaustão, sonolência, fadiga, desgaste, desânimo, nervosismo ou irritação. Considerando todas as queixas apresentadas, percebemos a dificuldade de adaptação ao trabalho noturno em relação à inversão do horário, mesmo entre aqueles que já trabalham nesse tipo de turno há certo tempo. Em concordância com outros estudiosos da área (Carvalho, 1990; Rutenfranz, 1989; Waidele, 1996), constatamos que o trabalho noturno limita a adaptação do indivíduo, o que determina maior possibilidade de instalação de enfermidades, constituindo-se, pois, em um fatar de risco.

Ao investigar as estratégias utilizadas pelos trabalhadores para evitar a sonolência no trabalho, dois dos entrevistados relatam fazer uso de medicamentos, como o pó de guaraná.

1.2 - Quanto à percepção e avaliação feita pelo trabalhador da própria saúde, cinco dos entrevistados atribuem alguns problemas de saúde às condições do trabalhado noturno, tais como: dores de cabeça, distúrbios do sono, resfriados e dores de ouvido.

Ao confrontar esse dado com o material bibliográfico estudado, constatamos que as dores de cabeça e os distúrbios do sono são problemas de saúde associados freqüentemente a esse tipo de jornada de trabalho. Outras pesquisas (Costa, 1997; Régis Filho; Lopes, 1997; Ferreira, 1987) também apontam outros tipos de riscos à saúde, decorrentes do trabalho no turno, os quais não foram identificados nos participantes do estudo em questão: distúrbios do apetite e gastrointestinais, doenças cardiovasculares, alcoolismo e transtornos mentais.

Categoria 2 - Relacionamento familiar. Essa categoria refere-se aos padrões de interação entre os membros da família, os quais englobam papéis familiares e hierarquia, conflitos e estratégias de resolução, regras, comumcação e afetividade.

2.1 - Quanto aos papéis familiares, analisaram-se as tarefas ou obrigações desempenhadas pelos membros da família e o modo como o trabalho noturno pode influenciar tais papéis. Constatou-se que, na maioria dos casos estudados, o homem é o único ou principal responsável pelo sustento econômico da família; entretanto, a tarefa de administrar o orçamento familiar cabe à mulher, inclusive o pagamento de contas e as idas ao banco. Afirmam que, dessa forma, podem descansar mais durante o dia, diminuindo o desgaste já maior, devido à diminuição do sono.

Também a tarefa de cuidar dos filhos e educá-los é atribuída à mulher, na maioria dos casos. Os trabalhadores relatam que, embora desejassem dividir essa tarefa, seu tempo é reduzido para dar atenção à família, pelo fato de preCisar dormir durante o dia.

O papel de proteger a família também é atribuído à mulher com maior ênfase. A proteção à família envolve dois aspectos: o cuidado com os filhos, tarefa atribuída à mulher, como já mencionado, e o amparo num sentido mais geral, mesmo quando os filhos já são adultos. Nesse último sentido, essa é uma tarefa tradicionalmente atribuída aO homem. Nos casos analisados, esse papel também é conferido à mulher, devido ao horário de trabalho do cônjuge. Durante o dia, a mulher acaba tendo de proteger o descanso do marido, além de todas as demais obrigações com os filhos e a casa. À noite, quando o marido trabalha, ela é responsável pela família, ou, se for preciso, numa situação atípica, tem de pedir a colaboração de terceiros, à família extensa ou aos vizinhos.

Constata-se, portanto, uma sobrecarga para a mulher, fortemente influenciada pelo fato de o marido trabalhar em turno noturno.

2.2 - Sobre a hierarquia familiar. analisou-se quem toma as decisões na família.

Do mesmo modo como foi constatado em relação aos papéis familiares, nas decisões a mulher também fica com uma obrigação maior. A responsabilidade de resolver o que deve ou não deve ser feito fica atribuída à mulher. O homem acaba atribuindo para si apenas o que culturalmente se espera dele: trabalhar para prover o sustento da família.

Como vemos, na organização familiar dos trabalhadores noturnos, a inversão do horário do provedor faz com que a mulher assuma a função de orientadora e organizadora das atividades no contexto da família. A maior participação da mulher no contexto familiar e a ausência do marido na maior parte do tempo (trabalhando ou dormindo) cria um tipo de interação entre os membros que obriga a mulher a tomar mais decisões e a ter mais autoridade. Essa autoridade é exercida na educação dos filhos, no controle do orçamento, nos cuidados com a casa e nas situações de proteção à família. Em geral, cabem ao homem as decisões em casos mais graves ou incomuns.

2.3 - A subcategoria conflitos e estratégias de resolução analisa as brigas, desavenças, discussões ou divergências mais comuns na família decorrentes do trabalho noturno e os recursos utilizados para se buscar solução.

Os conflitos apontados foram: irritação por causa do barulho, cobranças e estresse que acentuam os problemas. Nesses casos, os conflitos aparecem de forma explícita. Para Calil (1987), as bases dos conflitos estão assentadas nas diferenças individuais quanto às percepções, crenças e necessidades do indivíduo no contexto relacional. Constatamos, em concordância com Calil (1987), que os conflitos na família em que há o trabalho noturno surgem da dificuldade de se conciliarem as diferentes necessidades. De um lado, o trabalhador reage agressivamente, devido ao próprio estresse e à dificuldade de dormir por causa do barulho; de outro, a família, com suas atividades normais durante o dia, cobra mais atenção, e também é afetada pela irritação do trabalhador.

As estratégias identificadas para a resolução foram, em alguns casos, a fuga ou a evitação do conflito e, em outros casos, as tentativas pacíficas de conciliação por meio do diálogo. Percebemos que, de uma forma geral, os trabalhadores têm dificuldade para lidar com os conflitos familiares que surgem em decorrência das circunstâncias em que vivem. Constatamos, portanto, a necessidade de prover a família desses trabalhadores de recursos que facilitem as negociações e as relações.

12.4 - Na subcategoria regras e comunicação na família, analisamos o que pode e o que não pode ser feito pelo grupo familiar para facilitar a adaptação ao trabalho noturno, assim como a forma como ocorrem os diálogos entre os membros.

As regras familiares apontadas foram evitar o barulho e desligar o telefone quando a esposa não está em casa, para o trabalhador poder dormir. Também há um "acordo" nas famílias analisadas: de o trabalhador dormir menos nos finais de semana, para poder ter mais contato com a família.

Quanto à comunicação familiar, constata-se uma redução na maioria dos casos, devido ao pouco tempo que o trabalhador possui para contato com a esposa e os filhos. Isso também é motivo de queixas familiares e aumenta a propensão a conflitos.

Uma vez que, conforme nos apontam os estudiosos da família (Calil, 1987; Cerveny, 2004; Cerveny, 2002), a comunicação familiar é um fenõmeno complexo, devido à multiplicidade de mensagens verbais e também não-verbais, entendemos que a comunicação entre os familiares do trabalhador noturno fica prejudicada, não somente pela diminuição do diálogo entre eles, mas também pelas características da comunicação não-verbal. Essa comunicação é, em muitos casos, carregada de irritação, estresse, cansaço e desânimo.

Explica Cerveny (2004) que um dos distúrbios da comunicação é a ausência, nas mensagens, de uma carga emocional adequada. Assim, entendemos que, além do prejuízo à comunicação, em decorrência do estado emocional e físico do trabalhador, também o relacionamento familiar poderá ser prejudicado em sua totalidade.

2.5 - Na subcategoria afetividade, analisamos os sentimentos e emoções do trabalhador e da família relacionados com o trabalho noturno.

São considerados prejudiciais à afetividade da família os seguintes aspectos, associados ao trabalho noturno: a diminuição das trocas afetivas, as cobranças dos familiares devido ao pouco contato e a dificuldade de estabelecer um padrão mais positivo de afetividade devido ao estresse.

Conforme explica Cerveny (1994), a afetividade acontece no relacionamento, e este não é um fatar interno do indivíduo, como um fator de personalidade, mas sim um produto da interação. Como na família do trabalhador noturno há dificuldade de contato, devido ao horário de trabalho, há, conseqüentemente, dificuldades na interação e na afetividade.

Os trabalhadores entrevistados apontaram os sentimentos pessoalmente experienciados que consideram prejudiciais à afetividade da família: a intolerância, o distanciamento, a irritação e a impaciência com os filhos. Em alguns casos, os trabalhadores apontam que a cooperação e o apoio da esposa e dos filhos ajudam a amenizar as dificuldades.

Categoria 3 - Lazer e relacionamento social. Essa categoria se refere aos períodos de descanso do trabalhador e à convivência com outras pessoas fora do ambiente familiar e de trabalho.

Quanto ao lazer, desperta atenção o fato de que, para alguns dos casos analisados, as atividades consideradas rotineiras para as famílias em geral são, para o trabalhador noturno, uma forma de lazer. Como exemplo: ir ao supermercado fazer compras, brincar com os filhos e estar com a família. Percebe-se, de uma forma geral, que a diminuição do tempo que possui com a família, devido ao horário de trabalho, faz com que o trabalhador considere o simples fato de estar com a esposa e os filhos uma forma de lazer.

Os principais fatores que dificultam o lazer do trabalhador noturno fora do ambiente familiar são: o tempo reduzido durante a semana, a necessidade de descansar e as atividades de lazer incompatíveis com o seu horário disponível.

Assim, constatamos que o lazer, para quem trabalha à noite, é prejudicado principalmente pela incompatibilidade de horários. Normalmente, as atividades de lazer fora do ambiente familiar são organizadas no final da tarde, à noite ou nos fins de semana, para atender à grande maioria, que trabalha durante o dia. Para o trabalhador noturno, resta o lazer do fim de semana. No entanto, muitas vezes, tem de fazer horas extras, ou está tão cansado que prefere ficar em casa para descansar e também para aproveitar junto à família o pouco tempo que tem disponível. Como já mencionamos, há casos em que o trabalhador opta por não dormir no sábado à tarde, para estar com a família.

O relacionamento social, geralmente, é apontado pelos trabalhadores noturnos como muito restrito ou até nulo. Assim como o lazer, os relacionamentos sociais extrafamiliares são reduzidos, devido ao pouco tempo disponível e pela preferência de se dar atenção à família nuclear. Como conseqüência, esses trabalhadores relatam o distanciamento dos amigos e a diminuição de contato com a própria fauúlia extensa.

A realidade identificada permite-nos concordar com Rutenfranz (1989), quando ele afirma que há um sentimento de isolamento e desvantagem social entre os trabalhadores noturnos, sobretudo quando têm de trabalhar no final de semana.

Categoria 4 - A percepção do trabalhador noturno sobre seu trabalho. Com essa categoria, analisamos a avaliação que o trabalhador faz sobre sua realidade de trabalho (quanto ao seu relacionamento com os colegas e a chefia) e sobre as vantagens e as desvantagens do trabalho noturno.

Ao realizar uma análise comparativa entre trabalho noturno e trabalho diurno, os participantes afirmam como aspectos positivos ou vantagens do trabalho no turno o fato de que, no período diurno, há mais chefes, mais cobranças e competição entre os chefes, o que causa prejuízo para o "peão".

De um modo geral, avaliam o ambiente de trabalho noturno como mais positivo do que o diurno, em termos de relacionamento. A redução do número de chefes no horário noturno é um dos fatores considerados favoráveis ao bom relacionamento entre os colegas. A presença de muitos chefes é considerada como causadora de muita pressão sobre os trabalhadores. Além disso, o contexto de trabalho diurno propicia que os trabalhadores se organizem de forma mais individualizada, voltando-se exclusivamente para seus respectivos encargos, Isso ocasiona divergências, como rivalidade e pressão, o que dificulta a conciliação entre o trabalho e o relacionamento de amizade.

Também apontam como vantagens, além das melhores relações de amizade e do menor número de chefes, a questão financeira, As pessoas que trabalham à noite, por lei, têm um adicional no salário, Esse é um atrativo, pois, assim, o trabalhador pode proporcionar para si e para a família melhores condições materiais de vida.

Outras vantagens apontadas são: menos calor, possibilidade de usar o horário diurno para resolver problemas, quando necessário (banco, médico), e o fato de não precisar acordar cedo.

Quanto ao último aspecto, chama a atenção o fato de que existem fatores pessoais que influenciam na maior ou menor capacidade de adaptação ao trabalho noturno, como idade, sexo e personalidade (Waidele, 1996), Há também evidências de que as pessoas com tendência a deitar tarde e a levantar tarde mostram melhor adaptação ao trabalho noturno.

Quanto às desvantagens do trabalho noturno (as quais prevalecem sobre as vantagens, na percepção dos trabalhadores estudados), a maioria delas já foi objeto de análise e discussão, nas categorias anteriores, Dentre as principais desvantagens está a questão da qualidade do sono, conforme já apontado, O sono que não satisfaz é um sono "mal dormido", que leva ao estresse e até à perda da auto-estima, Também já foram apontados os seguintes aspectos negativos: restrição às atividades de lazer e ao relacionamento social; pouco contato com a família; e, o fato de a família ficar desprotegida, à noite.

Outras desvantagens também apontadas:

a) Menor luminosidade para executar as atividades noturnas. Quanto a este aspecto, Waidele (1996) afirma que é maior o nível de acidentes durante o trabalho noturno. Esses resultados são atribuídos à menor luminosidade e à diminuição do alerta durante esse período. Dentre os casos estudados, não há menção a acidentes sofridos pelos entrevistados devido ao trabalho noturno, mas há a preocupação quanto à menor visibilidade à noite e à necessidade de muita atenção para executar bem sua tarefa específica.

b) Dificuldade para prosseguir nos estudos. Se o trabalhador noturno desejar prosseguir nos estudos em cursos regulares, terá muita dificuldade, devido à questão do horário. Concordamos com Costa (1997), quando ele aponta que os conflitos experimentados pelos trabalhadores em turnos entre o tempo disponível e a complexa organização das atividades sociais são muitos, especialmente em relação às obrigações individuais (horário de trabalho, de transportes coletivos, das escolas etc.) e em relação às atividades sociais e de lazer.

 

Conclusão

Esta pesquisa, que analisou qualitativamente casos de metalúrgicos que trabalham em turnos noturnos em indústrias do Vale do Paraíba, confirmou muitos dos dados levantados em pesquisas anteriores realizadas no Brasil e em outros países, contribuindo, assim, para o maior conhecimento da nossa realidade regional. De uma forma geral, evidenciou que essa forma de organização temporal do trabalho causa interferências no relacionamento familiar do trabalhador, restringe suas atividades sociais e de lazer e afeta negativamente seu bem-estar fisico e mental.

Os participantes, embora afirmem gozar de boa saúde geral, apresentam queixas relativas a distúrbios de sono e dores de cabeça, e encontram-se, sem dúvida, em risco de desenvolver outros distúrbios comumente associados ao trabàlho noturno.

A questão principal que afeta o bem-estar é o sono diurno. O trabalhador não consegue dormir de dia o tempo suficiente para despertar descansado, pois, além da inversão de ritmos biolõgicos, que dificulta o sono durante o dia, há também interferências externas, como barulhos diversos, calor e crianças na família. Esses fatores contribuem para que o sono diurno seja pouco repousante e insuficiente, em relação à qualidade do sono noturno.

A má qualidade do sono é relacionada pelos trabalhadores a outros sintomas, como: dores de cabeça, irritabilidade, cansaço, desânimo, desgaste, nervosismo, exaustão e sonolência durante o horário de trabalho.

Esses sintomas, se prolongados, poderão deixar o organismo mais vulnerável ao aparecimento de doenças, o que faz com que o trabalho no turno seja avaliado como um fator de risco à saúde.

Em relação à dinâmica familiar, constatamos que o trabalhador é o principal responsável pelo sustento econômico da família, As demais tarefas familiares, como as relativas à organização da casa, à educação e cuidados com os filhos, à proteção da família e ao controle do orçamento, acabam sendo atribuídas à esposa.

Embora se sintam responsáveis pelas decisões da família, a ausência de casa daquele que trabalha à noite e a maior participação da mulher no dia-a-dia familiar levam-na a tomar mais decisões e a ter mais autoridade do que o marido.

Fica evidenciada a sobrecarga de trabalho das esposas. Além dos aspectos já mencionados, a elas também cabe proteger o sono e o descanso do marido durante o dia e, à noite, responsabiliza- se sozinha pela família, enquanto ele trabalha. Esse é um horário em que, em nossa sociedade, devido à violência generalizada, há maiores riscos para as pessoas. Ressalte-se que, em situações graves ou de emergência, há mais dificuldade para se tomar providências.

Porém não é somente a mulher que sofre desgastes especiais devido ao trabalho do marido, pois as crianças também sofrem restrições em suas atividades normais, para que o pai possa dormir.

São mencionados conflitos na família devido ao barulho e à irritação do trabalhador frente ao sono insuficiente. Também aparecem, com ênfase, queixas relativas à dificuldades de contato com a família, o que prejudica a comunicação e a afetividade. O trabalhador queixa-se da dificuldade em manter um contato afetivo mais próximo e positivo devido ao estresse, e sente-se cobrado pela esposa por isso.

No entanto, a par de sentimentos de intolerância e impaciência com os filhos e de distanciamento da família, constata-se o reconhecimento da importância do apoio e da colaboração da esposa, o que ameniza as dificuldades.

O lazer e a vida social também ficam prejudicados, deVido à dificuldade de participação motivada pela falta de sincronia entre os horários do trabalhador e os da sociedade. Foi possível perceber, no trabalhador, um sentimento. de distanciamento e de isolamento, especialmente quando precisa trabalhar no fim de semana.

Em geral, apesar de algumas vantagens serem apontadas, como um melhor relacionamento interpessoal no trabalho noturno, menor pressão por parte da chefia e adicional salarial, as desvantagens têm um peso maior, quando os participantes estudados comparam o trabalho diurno com o trabalho noturno. Em suma, verificamos que o trabalho noturno afeta o bem-estar do trabalhador e de sua família. Enfatizamos a importância e a necessidade de que as organizações que adotam esse tipo de jornada implementem serviços de assistência psicológica ao trabalhador e à sua família.

Outras providências também se revelam importantes, tais como a adoção de políticas de prevenção contra os possíveis distúrbios à saúde do trabalhador, o aperfeiçoamento da organização dos turnos (horas de trabalho, folgas etc.), para minimizar os efeitos desse tipo de jornada, e a inclusão, no processo de seleção de pessoal, de critérios para a admissão de pessoas que compõem um perfil que se adapte melhor às condições de trabalho noturno.

Acreditamos que o tema "trabalho no turno" seja de extrema relevância para a nossa sociedade, pois se trata de um tipo de jornada imposto na atualidade e que acarreta uma série de repercussões na saúde e na vida cotidiana dos trabalhadores. Assim, há a necessidade contínua de estudos, para um melhor conhecimento desse fenômeno, o que possibilitará a adequação de nossos métodos e técnicas de trabalho e, acima de tudo, a busca de melhor qualidade de vida do trabalhador, atuando no sentido de contribuir para a prevenção da sua saúde fisica e mental e da sua família.

 

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