Trivium - Estudos Interdisciplinares
ISSN 2176-4891
Trivium vol.13 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2021
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2021v2p.62
ARTIGOS TEMÁTICOS
Ferenczi e a catástrofe: ruptura dos limites
Ferenczi and the catastrophe: the breaking of the boundaries
Ferenczi et la catastrophe: briser les frontiers
Regina HerzogI; Leonardo CâmaraII
IPsicanalista. Professora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica - Instituto de Psicologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: rherzog@globo.com
IIPsicanalista. Professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (DPSI/UFSCar). E-mail: lcpcamara@gmail.com
RESUMO
O presente artigo visa refletir sobre a pandemia da COVID-19 a partir do conceito de catástrofe, conforme formulado pelo psicanalista húngaro Sándor Ferenczi. Para isso, é realizada, inicialmente, uma investigação epistemológica do conceito com o intuito de delimitar os sentidos específicos que adquire na obra do autor. Em seguida, a relação entre pandemia e catástrofe é feita com base no ato vital de respirar, o qual passou a ser um problema ético e político.
Palavras-chave: PANDEMIA; CATÁSTROFE; FERENCZI.
ABSTRACT
This article aims to reflect on the COVID-19 pandemic based on the concept of catastrophe, as formulated by the Hungarian psychoanalyst Sándor Ferenczi. For this, initially, an epistemological investigation of the concept is carried out in order to delimit the specific meanings it acquires in the author's work. Then, the relation between pandemic and catastrophe is made from the vital act of breathing, which became an ethical and political problem.
Keywords: PANDEMICS; CATASTROPHE; FERENCZI.
RÉSUMÉ
Cet article vise à réfléchir sur la pandémie de COVID-19 à partir du concept de catastrophe, tel que formulé par le psychanalyste hongrois Sándor Ferenczi. Pour cela, dans un premier temps, une enquête épistémologique du concept est menée afin de délimiter les significations spécifiques qu'il acquiert dans l'œuvre de l'auteur. Ensuite, la relation entre pandémie et catastrophe repose sur l'acte vital de respirer, qui est devenu un problème éthique et politique.
Mots-clés: PANDÉMIE; CATASTROPHE; FERENCZI.
"o erro é a contingência permanente em torno da qual se desenrola a história da vida e o futuro dos homens."
(Michel Foucault)
"um pouco de possível, senão eu sufoco..."
(Gilles Deleuze)
Foucault nos ensina que investigar a história e o desenvolvimento de um conceito é inseparável da vida e do presente (Foucault, 1984). De acordo com essa perspectiva, o que nos convoca a retomar o passado, o que nos leva a revisitar ideias, são as questões vitais, urgentes, impostas pelo agora. A pandemia de sars-cov-2 (ou Covid-19) foi a questão vital que, presente, demasiado presente, nos convocou a tratar da concepção ferencziana de catástrofe. Certamente, pode-se questionar as razões que nos levaram a trazer para este livro a noção de catástrofe, e ainda por cima a partir de Ferenczi, para refletir sobre a pandemia. Cabe, a respeito dessa indagação e logo de saída, afirmar que compartilhamos, com muitos outros que expuseram e continuam expondo suas visões acerca da pandemia, que a mesma é uma catástrofe.
Entretanto, ainda que seja pertinente associar à pandemia o atributo de catástrofe, é necessário esmiuçarmos o que esse atributo pode significar e, sobretudo, que elementos pode trazer para entendermos e transformarmos a citada questão vital que se nos impõe. Se para tanto elegemos Ferenczi, isso se justifica por ele ter sido um autor, de dentro da psicanálise, que tomou a catástrofe como uma das categorias principais de seu pensamento (Torok, 2000).
Para conseguirmos vislumbrar as potencialidades que essa noção adquire em sua obra e, assim, atualizá-las para o momento presente - o que, acreditamos, pode trazer um pouco de alento para esse tempo que parece nos sufocar -, é importante, no entanto, investigarmos os antecedentes epistemológicos que ofereceram as condições para que Ferenczi desenvolvesse sua ideia particular de catástrofe. Um estudo epistemológico acerca da noção não pode ser negligenciado, visto introduzir algumas ideias essenciais, como as de tempo, de transformação e de criação. Após essa etapa preliminar, vamos apresentar a noção de catástrofe conforme formulada por Ferenczi, para então tecermos algumas reflexões acerca da pandemia.
Catástrofe na história natural e na biologia
A ideia de catástrofe marca sua entrada no campo da história natural no século XVIII. Até então, tanto o planeta quanto os seres que o habitam não possuíam história (Jacob, 1970). Todos os animais, todas as montanhas, todos os rios e os mares preservavam sua forma desde a Criação ou, pelo menos, desde o Dilúvio. Os seres vivos estavam distribuídos em uma ordem perfeita, em uma hierarquia fixa, e não havia razão para pensar que eram entidades precárias e transitórias, produtos de incontáveis transformações pretéritas, sujeitos a imprevisíveis variações futuras.
A descoberta de fósseis de conchas, plantas e animais marinhos em regiões afastadas do mar, e até mesmo no alto de montanhas, iniciou uma desestabilização de largas consequências na concepção que se tinha. Os fósseis revelavam que a Terra não tinha sido a mesma desde sempre. Pelo contrário, ela sofrera inúmeras transformações, e essas transformações estavam indissoluvelmente ligadas à ocorrência de catástrofes de grandes magnitudes. Observa-se, assim, que a ideia de catástrofe protagoniza a introdução da história, e sobretudo do tempo, nas concepções oitocentistas sobre o mundo vivo.
A princípio, simplesmente um oceano universal, de onde iniciou-se e consolidou-se a vida, a Terra sofreu sucessivas catástrofes que fizeram emergir um continente, e desse continente tantas outras catástrofes o levaram a se dividir e a gerar múltiplas e heterogêneas paisagens. Portanto, da monotonia de uma superfície integralmente formada pelo mar, sobrevêm extensas porções de terra que, por sua vez, são esculpidas e decalcadas em diferentes formatos (Jacob, 1970). As catástrofes seriam as grandes artífices dessas transformações, dando ao planeta um passado e um futuro, e ao mesmo tempo legando-os - o passado e o futuro - à incerteza e à instabilidade.
Sabemos quão cara é, para Ferenczi, a concepção segundo a qual eventos catastróficos teriam feito surgir, de um oceano primitivo e universal, o mundo terrestre. Ele precisa, por um lado, que aí teria havido uma catástrofe e, por outro, que essa catástrofe teria consistido em uma secagem dos oceanos (Ferenczi, 1924). A esse respeito, importa sublinhar que Ferenczi atribui ao clima, isto é, à temperatura, o fator decisivo dessa catástrofe. Ao propor a catástrofe da glaciação, responsável pela hominização e a partir da qual Freud descreveu os eventos que antecederam Totem e tabu, a temperatura, como se pode notar, desempenha um papel não negligenciável (Freud, 1915; Ferenczi, 1924).
Ainda que se possa rastrear, no século XVIII, a origem da ideia de catástrofe que influencia decisivamente Ferenczi, um abismo o separa das concepções daquela época. É verdade que se encontram em Benoît de Mallet e, principalmente, em Buffon relações entre as catástrofes sofridas pelo planeta e suas consequências nos seres vivos. Contudo, como bem observa François Jacob, verifica-se nesses e em outros historiadores naturais oitocentistas uma nítida separação entre a história da Terra e a história das espécies, como se ambas traçassem linhas paralelas que, somente em poucos pontos, entrariam em contato entre si. para depois se distanciarem (Jacob, 1970). Para Buffon, por exemplo, as catástrofes que remodelam os territórios seriam responsáveis quase tão somente pela redistribuição dos seres vivos no globo, mas nunca - ao menos nunca significativamente - pelas suas transformações.
Somente ao longo do século XIX é que as histórias da Terra e dos seres vivos, antes separadas, convergem para uma só história. A partir de então, há uma interação inextrincável e de mão dupla entre as transformações da Terra e dos seres vivos. Isso se deve, em parte não negligenciável, ao desenvolvimento da ideia de meio. Tomada de Newton, para quem o meio - o éter - seria o veículo que transmite a ação de um corpo sobre outro corpo, a história natural e, depois, a biologia irão progressivamente absorver e modelar essa noção até transformá-la em um conceito (Canguilhem, 1965). É verdade que Buffon e Lamarck empregam essa ideia. Lamarck trata das circunstâncias exteriores que interferem na progressão natural de um organismo rumo a sua maior complexificação, e, associando cada elemento da natureza com um meio diferente (a água, o ar), acaba por descrever os "meios" de forma relativa e no plural. O meio torna-se um conceito primário e abstrato, como o conhecemos atualmente, somente a partir de Auguste Comte (Canguilhem, 1965).
Ferenczi é tributário, pois, da ideia de catástrofe conforme estabelecida no século XVIII, mas somente até certo ponto. A ideia de meio, enquanto um sistema complexo de interações entre o vivente e o que o cerca, enquanto um nó que mistura as histórias do planeta e do vivente, é absolutamente essencial em seu pensamento, e tal sentido só pode ser localizado no século XIX. Sabemos que Ferenczi, junto a Freud, se encontra mais próximo de Lamarck, mas sua leitura de Lamarck é mediada, de maneira incontornável, por um conceito de meio do qual o naturalista francês não dispunha. Se, sob a perspectiva da ideia de catástrofe, há algum autor que possui uma proximidade significativa com a teoria esboçada por Ferenczi em Thalassa, este autor é Cuvier: para este, com base nos estudos dos fósseis e das formações geológicas, o planeta teria sofrido sucessivas catástrofes, verdadeiras revoluções em sua superfície, as quais teriam forçado as espécies a incontáveis transformações (Jacob, 1970; Foucault, 1984).
Na mesma medida em que, no século XIX, a concepção de meio toma força, a de catástrofe torna-se progressivamente questionável, e isso por obra de duas frentes (Jacob, 1970). De um lado, a geologia afirma não haver necessidade de considerar as transformações do planeta como se dando por eventos excepcionais, sendo mais acurado dizer que elas, as transformações, são produtos de processos contínuos e homogêneos. De outro, o darwinismo recusa a ideia de evolução por saltos derivada de catástrofes; em vez disso, a história evolutiva das espécies é um processo gradual, encabeçada pela reprodução, a qual abre espaço para pequenas mutações contingenciais que podem ser favorecidas ou não pelos fatores ambientais. Curiosamente, apenas em meados do século xx, a ideia de catástrofe volta a adquirir certa preeminência, particularmente no campo da topologia. O matemático René Thom, inspirado pelas concepções de embriologia de Conrad Hal Waddington, desenvolve a teoria das catástrofes para descrever a morfogênese, isto é, a criação de novas formas. Segundo Thom, uma estrutura qualquer sofreria uma instabilidade crescente até chegar a um ponto crítico no qual se reorganizaria em uma nova forma. Esse ponto crítico seria o ponto k, quer dizer, o ponto de catástrofe (Thom, 1972).
Seja como for, nota-se que Ferenczi seleciona, voluntariamente ou não, elementos esparsos de dois séculos de teorizações da história natural e da biologia para compor sua concepção de catástrofe, tal como exposta em Thalassa. Isso nos impossibilita de inseri-lo em dado ramo genealógico da história do pensamento ou de afirmar sua adesão ou recusa radical a determinado autor que o precedeu. Mesmo que ele afirme, de próprio punho, que se sente mais próximo de Lamarck do que de Darwin, a proximidade e o afastamento aí descritos não são cisões.
De Lamarck, por exemplo, as ideias de desejo, de adaptação e de novas necessidades impostas pelas circunstâncias exteriores são afirmadas e desenvolvidas por Ferenczi. Não se pode dizer o mesmo em relação à concepção de impulso imanente do ser vivo em direção a uma maior complexidade e à perfeição, conforme proposta pelo naturalista francês. Ferenczi recusa essa ideia e qualquer outra análoga, como a de elã vital de Bergson, e assevera que a única força em ação nos processos de transformação das espécies, quando submetidas a uma catástrofe, é a regressão talássica, isto é, uma espécie de força de atração que leva o ser vivo a realizar tentativas de restabelecer um estado anterior à catástrofe sofrida - em última instância, de retornar ao oceano universal primitivo (Ferenczi, 1924).
Catástrofe em Thalassa
A noção de catástrofe surge e adquire uma centralidade inquestionável no pensamento ferencziano em Thalassa. Esse ensaio não apenas inaugura uma nova (e natimorta) disciplina científica, a bioanálise, como também formaliza um método, o utraquismo, e fabrica uma narrativa histórica sobre como o coito adquiriu sua forma atual na espécie humana (Ferenczi, 1924; Câmara & Herzog, 2014).
Cada etapa, cada parte e movimento do corpo, cada alteração fisiológica, cada experiência emocional envolvidos no ato sexual são decompostos e remetidos a épocas ancestrais. Tomado em seu conjunto, o coito, em sua configuração atual, é a expressão de uma história de transformações, e essas transformações são resultantes de adaptações às grandes catástrofes que assolaram a Terra e, ao mesmo tempo, os seres que nela viviam (Câmara & Herzog, 2018).
Ferenczi postula cinco catástrofes, desde a que deu surgimento à vida até a responsável pela hominização. Fundamentando-se na chamada "lei biogenética fundamental", proposta pelo darwinista Ernst Haeckel, segundo a qual a ontogênese repete a filogênese, Ferenczi estabelece paralelos entre as catástrofes que assolaram os viventes em tempos ancestrais e a repetição delas na vida atual de seus descendentes. Em outras palavras, o indivíduo - aqui, indivíduo é um atributo que se opõe à espécie - sofre catástrofes em sua história ontogenética que são repetições abreviadas das catástrofes às quais seus descendentes foram submetidos em sua relação com o meio. O nascimento, processo no qual o feto é expulso de um meio aquático para habitar um meio terrestre (ou aéreo), seria uma catástrofe individual que repete a catástrofe da secagem dos oceanos (Ferenczi, 1924).
Conforme antecipado, essa catástrofe da seca e consequente emergência de largas extensões de terra afigura-se como o principal evento sobre o qual Ferenczi se debruça para construir sua teoria. Populações massivas de seres vivos que habitavam o meio aquático se viram, subitamente, lançadas e abandonadas no meio terrestre. A parcela das espécies que não sofreu extinção encontrou-se em um ambiente cujo modo de vida anterior não oferecia condições mínimas de sobrevivência. Ainda que seja plausível postular a ocorrência de um interregno, no qual as porções de terra guardariam certa umidade e, assim, poderiam oferecer um ambiente mais próximo do aquático, os viventes foram forçados, de maneira incontornável e inegociável, a se adaptarem ao meio terrestre (Ferenczi, 1924). A adaptação consiste, assim, na construção de um novo modo de vida - o que implica até mesmo alterações estruturais do corpo -, de forma que se continue a sobreviver em um meio completamente novo e, caso se persevere nas condições antigas de vida, inóspito.
Ferenczi introduz três pontos que tornam sua ideia de adaptação muito particular (Câmara, 2018). Em primeiro lugar, a adaptação consiste em um processo de destruição parcial da forma de vida a que se visa substituir. Reduzida a componentes mais simples, a parte que foi destruída possui maior plasticidade, no sentido de ser remodelada e gerar estruturas mais bem afeitas ao novo meio (Ferenczi, 1934). O sistema respiratório do ser marinho, na medida em que é inadequado para capturar o oxigênio no ar, é progressivamente dissolvido e dele se formam os pulmões etc.
Em segundo lugar, entre as transformações a que é submetido, o sobrevivente introjeta o ambiente que perdeu com a catástrofe: se ele foi exilado do ambiente aquático, recria, agora dentro de si, um meio aquático. O ser transforma-se no ambiente do ambiente perdido (Ferenczi, 1924). O exemplo mais sustentado por Ferenczi é o do útero e, enfim, de todas as estruturas que envolvem o feto humano: este vive, literalmente, em um meio aquático, assim como a mãe viveu, quando era um feto, e assim como nossos ancestrais viveram, quando no oceano primevo. O processo de introjeção do ambiente é classificado como uma "perigênese", a qual é alicerçada como uma categoria do mesmo porte da ontogênese e da filogênese.
O terceiro ponto que Ferenczi descreve a propósito da adaptação é o fato de que, ainda que o sobrevivente da catástrofe seja submetido a uma variedade de transformações, ele tende, em alguma parte sua, a retornar ao ambiente que perdeu com a catástrofe. A essa tendência dá-se o nome de "regressão talássica" (Ferenczi, 1924). Longe de a finalidade evolutiva ser o aperfeiçoamento ou progressão da espécie, a tendência a que todos os seres estão submetidos é, em última instância, a regressão. Se, de forma imediata, a adaptação visa estabelecer um modo de vida que seja adequado ao novo ambiente, o horizonte é sempre a regressão, isto é, o retorno a um mundo do qual se foi exilado. É necessário, contudo, esclarecer que a regressão diz respeito não ao retorno a uma situação anterior per se, mas a um momento que deu certo, a um momento de potência de vida, o qual, paradoxalmente, permite inaugurar e instaurar novas alternativas, novos modos de vida na situação posterior à catástrofe. Para Ferenczi, em suma, progressão e regressão são dois processos simultâneos.
Catástrofe e normas vitais
Observa-se que Ferenczi partilha, tanto com seus antecessores quanto com aqueles que o sucederam, ao menos alguns pontos de concordância quanto à ideia de catástrofe: ela é considerada uma força morfogenética, isto é, responsável pela criação de novas formas; ela consiste em uma descontinuidade entre as condições anteriores e posteriores; ela representa a história como uma sucessão violenta e brutal de eventos que provocam, como bem o exprime Cuvier, revoluções absolutamente incontornáveis.
No que diz respeito à dimensão morfogenética das catástrofes, Canguilhem desenvolveu dois conceitos relacionados ao campo da vida, pertinentes para esboçarmos uma leitura da ideia de catástrofe em Ferenczi: o de norma e o de normatividade. A norma envolve duas funções inextrincáveis (Canguilhem, 1966). A primeira consiste em atribuir valor aos acontecimentos. Mesmo no plano de vida mais simples, os valores são distribuídos em dois polos: aquilo que é bom e aquilo que é ruim para o organismo. A segunda função da norma é a regra, quer dizer, a diretriz de ação acoplada ao valor. O que é bom agrupa certas ações, como a de se aproximar do acontecimento, ao passo que o que é ruim envolve ações opostas, como a de se distanciar de um acontecimento. Se a norma é aquilo que a vida estabelece para valorar o mundo e organizar ações sobre ele, a normatividade exprime o processo no qual o vivente modifica as normas que fundamentam o seu modo de vida. Em outras palavras, a normatividade é a capacidade de reorganizar a maneira de viver, rejeitando certos valores e regras com o intuito de constituir novos signos e regimes de ação. Como se pode notar, Canguilhem postula uma espécie de ética vital.
Antes de prosseguirmos no uso dos conceitos de norma e normatividade, é necessário precisar que o médico filósofo, à esteira de Kurt Goldstein, possui uma concepção distinta de catástrofe quando comparado a Ferenczi. Em primeiro lugar, para Canguilhem e Goldstein, catástrofe é um atributo ligado à reação do organismo. Daí utilizarem a expressão "reação catastrófica". Em segundo lugar, a catástrofe - ou melhor, a reação catastrófica - diz respeito a um problema específico: a patologia ou o processo de adoecimento (Canguilhem, 1966). Para esses autores, a reação catastrófica se refere a uma experiência na qual o organismo, quando doente, não encontra condições de continuar vivendo no mesmo meio que o cercava antes da doença, uma vez que reduz o alcance de sua normatividade. A reação catastrófica é algo relacionado, portanto, primariamente ao indivíduo e secundariamente ao meio.
Se, por exemplo, uma pessoa está infectada pelo novo coronavírus e seu quadro se agrava a tal ponto que entra em estado de síndrome respiratória aguda grave, seu organismo entra em reação catastrófica, pois não consegue mais, por seus próprios meios, respirar. Para que isso seja possível, precisa ser internada e acoplada a um respirador artificial, isto é, inserida em um novo ambiente. Em contraste, para Ferenczi, a catástrofe diz respeito a um evento vindo do fora - a um colapso do meio -, o qual afeta indistintamente todos que se encontram envoltos por esse meio. Em outros termos, para o psicanalista, a catástrofe diz respeito, primariamente, ao meio e, secundariamente, ao indivíduo.
Retomando os conceitos de norma e normatividade, entendemos que, para Canguilhem, um modo de vida é um conjunto complexo e interativo de normas tecidas entre o ser e o meio que, estabilizadas, estão não obstante em perpétua ameaça de entrar em instabilidade, até se tornarem inválidas e se reorganizarem em novas normas, mais adequadas ao ambiente. Um modo de vida e as normas que o compõem estabelecem a margem de liberdade e de ação do vivente, o que significa dizer que, da mesma forma, traçam e delineiam os limites de viabilidade da vida em sua interação com o ambiente. Limites fora dos quais, acrescente-se, o vivente é lançado a um território de risco e eminentemente atentatório à sua existência.
Com Ferenczi, consideramos que a catástrofe é um evento que desafia modos de viver consolidados e, portanto, que provoca uma ruptura tanto da margem de liberdade e de ação quanto dos limites estabelecidos da existência (Câmara, Herzog, Pinheiro et al., 2017). Se a catástrofe invalida as normas consolidadas, rompendo os limites de segurança da vida e catapultando o ser para um além dos limites, esse além dos limites, entretanto, consiste potencialmente na reformulação de novas normas, na instauração de novos limites, enfim, na geração de um novo modo de viver, tão vulnerável e precário, é verdade, quanto o anterior. Não se esquecendo de que as adaptações e reações de cada vivente à catástrofe são heterogêneas, gerando múltiplas vicissitudes, ainda que se bifurquem em dois grandes destinos mutuamente excludentes: a extinção ou a transformação do modo de vida. Sendo o destino a transformação - e é esse o destino no qual Ferenczi aposta -, não se pode prever nem antecipar, a priori, que configuração tomará.
Catástrofe e pandemia
Em que pese a catástrofe da secagem dos oceanos ser o cenário no qual Ferenczi se debruça para estabelecer a história evolutiva da vida sexual dos seres terrestres e, em última instância, da espécie humana, destaca-se a importância por ele atribuída à respiração. A passagem da vida aquática para a terrestre impôs a dramática luta pela constituição de um novo modo de respirar. O nascimento de cada ser humano repete essa luta: o choro e o grito representam, por um lado, a ruptura do meio no qual se estava abrigado e, por outro, o ato imprescindível para inaugurar um novo modo de respirar no meio inédito para o qual se foi lançado (Ferenczi, 1924). Sabemos, com Freud, que esses comportamentos são as reações motoras mais concretas de uma experiência emocional que, uma vez vivida, passará a ser o protótipo do afeto da angústia. Sabemos também como o mesmo Freud traça uma relação íntima entre a angústia e a respiração (Freud, 1917; 1926).
Balint, discípulo e herdeiro de Ferenczi, ao expor sua visão de como deve ser a relação entre a criança em um estado pós-natal precoce e os objetos, frequentemente utilizava, como analogia, a nossa atividade irrefletida e garantida de respirar. Nós necessitamos do ar e, não obstante isso, se o temos à nossa disposição, não nos atentamos a ele e, muito menos, consideramos sua existência. Dele retiramos o que precisamos e nele lançamos o que não precisamos (Balint, 1967). Não há nenhum contorno, não há nenhuma delimitação, não há nenhum dado que desperte nossa consciência quanto ao ar que respiramos constantemente. Pelo menos, não enquanto o tivermos à nossa disposição.
Na medida em que esse mesmo ar - que está dentro e fora de nós, e o qual, não obstante sua necessidade vital, utilizamos sem nenhuma concernência - é o meio, o veículo através do qual o coronavírus passa de um corpo para outro, ele forçou sua materialidade e o ato de respirar tornou-se um problema. A pandemia reativou em todos, ainda que em diferentes latitudes e proporções, a luta para respirar e a angústia a ela associada. Se é lícito qualificar a pandemia de SARS-COV-2 como uma catástrofe, parece-nos que o ar e a respiração retornaram como elementos centrais, os quais, uma vez ameaçados e afetados pela emergência do vírus, fizeram irradiar uma rede de fraturas e colapsos em diferentes aspectos da realidade humana - denunciando, de forma mordaz, que todos esses aspectos são, afinal, entrelaçados, e impondo a todos transformações de largas consequências em seus modos de vida.
O indivíduo cujo quadro clínico se agrava para uma síndrome respiratória aguda grave perdeu a capacidade mais básica de respirar. Todo o seu organismo se mobiliza, sem sucesso, para lutar contra esse estado. O processo, em sua totalidade, é tão trágico, é de tal maneira eivado de horror, que somente o termo "agonia" é adequado para qualificá-lo. Sem possibilidade de respirar às suas próprias custas, o sujeito está radicalmente dependente do outro para continuar a lutar pelo ar de que necessita. O outro que pode ampará-lo, entretanto, não consiste no Nebenmensch, isto é, no próximo, mas em uma complexa rede formada por profissionais de saúde, medicamentos, máquinas de respiração artificial, ambiente hospitalar, diretrizes de tratamento, tecnologia de ponta, grandes aportes financeiros, decisões micro e macropolíticas.
Mesmo que todos esses elementos se articulem eficazmente, o desfecho da luta pelo ar não é necessariamente bem-sucedido, tendo, ao contrário, não raras vezes um prognóstico aterrador. Entretanto a escassez de alguns desses elementos e a falha em outros, ao produzir buracos e curtos-circuitos na rede, vêm catalisando um processo acelerado e virtualmente evitável de perda de vidas, sobretudo de camadas mais vulneráveis da sociedade; expandindo a sensação, cada vez mais próxima, de ameaça de morte e de ausência de esperança; dilatando, enfim, a incerteza quanto à duração, aos custos individuais e sociais, e às consequências de longo prazo dessa catástrofe.
Ao associar-se ao desamparo, o ato de respirar tornou-se, portanto, uma das raízes dos motivos morais que se tornaram mais urgentes na pandemia. O grito de impotência de George Floyd, "I can't breath", ao misturar o ar, a morte e as práticas de imobilização, solidificou-se em um monumento de questionamento ético sobre a violência policial. As medidas de distanciamento e isolamento social, somadas ao uso de máscaras, fez todos se tornarem responsáveis pelo ar que respiram e que expelem, estabelecendo, assim, um problema ético sobre o ar que compartilhamos uns com os outros: não o ar que poluímos com máquinas, mas o ar que utilizamos para as nossas necessidades mais vitais, o ar que entra em nós saído do outro, o ar que sai de nós e entra no outro, o ar, enfim, que está entre nós e o outro, o ar que está em nós e no outro.
Importante evocar também que, ao nos forçar sentir sua inseparabilidade da vida, o ato de respirar, na pandemia, fez retornar, com uma clareza extraordinária, intuições surgidas na aurora do pensamento humano, as quais insistimos em esquecer. O rabino Shlomo Buxbaum, ao refletir sobre o ano novo judaico (Rosh Hashanah), afirma que tocar o shofar é o único dos mais de seiscentos mandamentos que consiste em ser cumprido usando a respiração (Buxbaum, 2020). Os toques desse artefato, segundo o rabino, "marcam o nascimento da humanidade, quando Deus 'soprou' nas narinas do homem a sua alma, dando-lhe o 'fôlego da vida". A respiração seria, assim, um símbolo da alma. Não à toa, ambas as palavras guardam uma surpreendente semelhança na língua hebraica: alma é "neshama", respiração é "neshima". Jung acrescenta que o termo hebraico ruah e o árabe ruh "significam alento e espírito" (Jung, 1928 | 2015: 23), do mesmo modo que a palavra grega pneuma. Pneuma que, com os estoicos, alicerça uma categoria fundamental de sua Física, guardando três níveis de tensão e diferenciação: como hexis, coesão de todas as coisas; como physis, o princípio da vida de todos os viventes; e como psyché, a alma de todos os animais que percebem, se movimentam e se reproduzem (Sellars, 2006).
À guisa de conclusão
Para concluir, a catástrofe da pandemia de sars-cov-2 modificou nossa maneira de viver, nossas normas de vida, nossos limites quanto à vida, nossas concepções sobre o que nos faz viver. As descontinuidades e fraturas dela advindas são percebidas nas fábricas e escolas vazias, nos pratos e mesas vazios, nos consultórios e no tempo vazio. Quais serão as transformações, quais delas serão boas ou ruins, quais delas vão perdurar e quais não vão, que novas formas de vida, de sociabilidade e de ética vão se estabilizar, enfim, o quanto sairemos mudados, feridos ou fortalecidos, não podemos prever.
No momento em que estas linhas são escritas, no qual paisagens continuam desmoronando e se erguendo em formas insólitas diariamente, parece-nos, entretanto, que não devemos nos desviar do exercício diário de, estando no interior desta catástrofe, assumirmos como dever o processo de adaptação conforme proposto por Ferenczi em seu mais pleno sentido: não como uma mera submissão e perda de nós próprios diante das circunstâncias, não como
uma assunção de um "novo normal" ou algo correlato, e nem como uma esperança passiva associada a uma ruminação nostálgica - mas como o dever de criar outras formas de estar no mundo com base nos restos e nos fragmentos que a catástrofe produziu, e que clamam por uma transformação. Formas essas que se, por um lado, são inéditas, por outro, se reconectam a significados ancestrais sobre o valor do ar que respiramos, do ar que nos envolve e do ar que trocamos com todas as coisas.
Referências
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Recebido em: 01/09/2020
Aprovado em: 20/08/2021