Desidades
ISSN 2318-9282
Desidades no.19 Rio de Janeiro abr./jun. 2018
TEMAS EM DESTAQUE
As principais violações de direitos de crianças e adolescentes em Heliópolis1 - São Paulo/Brasil
Las principales violaciones de derechos de niños y adolescentes en Heliópolis - São Paulo/Brasil
Adriana Rodrigues DominguesI, Adriana Fernandes Lellis PereiraII, Ana Carolina de OliveiraIII, Cristina Gonçalves de AbrantesIV, Tiago Henrique CardosoV e Vanessa Alice de MouraVI
I Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.
II Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), Jacareí/SP, Brasil.
III Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina, Brasil.
IV Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.
V Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.
VI Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.
RESUMO
A vulnerabilidade social impede o pleno desenvolvimento das comunidades e de seus moradores, produzindo um cenário cercado de variadas formas de violação de diretos. A presente pesquisa teve o objetivo de evidenciar as principais violações de direitos que acometem a vida de crianças e adolescentes residentes no bairro de Heliópolis, cidade de São Paulo, Brasil. Foram realizadas entrevistas com representantes dos serviços locais, voltados à defesa e garantia do direito à saúde, liberdade, respeito e dignidade, conforme previstos no ECA. Identificaram-se violações relacionadas à falta de políticas públicas, evasão escolar, falhas na rede socioassistencial, dificuldade financeira familiar, gravidez precoce, saneamento básico inadequado, negligência, drogadição dos pais e adolescentes, abuso sexual, violência policial. Verificou-se que a complexidade do tema é atravessada por questões que dependem do Estado, da sociedade, da comunidade e da família e, por isso, afirma-se a necessidade de ampliação, integração e melhoria da rede de atendimento.
Palavras-chave: crianças; adolescentes; Direitos Humanos; vulnerabilidade social.
RESUMEN
La vulnerabilidad social impide el pleno desarrollo de las comunidades y de sus moradores produciendo un escenario cercado de variadas formas de violación de derechos. La presente investigación tuvo el objetivo de evidenciar las principales violaciones de derechos que afectan la vida de niños y adolescentes residentes en el barrio de Heliópolis, ciudad de São Paulo, Brasil. Se realizaron entrevistas con representantes de los servicios locales dirigidos a la defensa y garantía del derecho a la salud, libertad, respeto y dignidad, conforme están previstos en el ECA. Se identificaron violaciones relacionadas con la falta de políticas públicas, evasión escolar, fallos en la red socio-asistencial, dificultad financiera familiar, embarazo precoz, saneamiento básico inadecuado, negligencia, drogadicción de los padres y adolescentes, abuso sexual, violencia policíaca. Se verificó que la complejidad del tema se cruza con cuestiones que dependen del Estado, de la sociedad, de la comunidad y de la familia, por eso, se afirma la necesidad de ampliación, integración y mejoría de la red de atención.
Palabras-clave: niños; adolescentes; Derechos Humanos; vulnerabilidad social.
Introdução
Localizada no distrito de Sacomã, na Zona Sul da cidade de São Paulo (SP) - Brasil, a comunidade de Heliópolis, desde sua ocupação, em 1971, até os dias atuais, empreende uma luta pela transformação da situação inicial de favelização e pela conquista e garantia dos direitos sociais. Essa luta se iniciou quando os moradores foram retirados de suas ocupações nas áreas da Vila Prudente e Vergueiro (bairros circunvizinhos) e remanejados para um alojamento provisório no terreno do Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (IAPAS). A situação provisória só foi resolvida 20 anos depois, com a conquista da posse da terra e regularização das moradias. Atualmente, através de várias mobilizações da comunidade, a infraestrutura do bairro Heliópolis já passou e continua passando por grandes modificações, como o fornecimento de energia elétrica, água, transporte público, vias pavimentadas, saneamento básico e serviços socioassistenciais.
Instalada em uma área de 1 milhão de m² da capital paulista, a região possui moradias diversificadas, como barracos, palafitas, casas de alvenaria e prédios de habitação popular, formando uma das maiores favelas do Estado de São Paulo. Com uma parcela de 92% formada por moradores que migraram da região Nordeste do país, segundo dados do IBGE, Heliópolis possui um número significativo de famílias que vivem da economia informal e são lideradas por mulheres (Soares, 2010).
Neste artigo, analisamos as principais violações de direitos das crianças e adolescentes que vivem nessa região. O objetivo deste estudo foi compreender de que forma elas têm sido atingidas pelos processos de exclusão social e violação dos direitos sociais básicos. Enfatizamos, como objetivos específicos, as violações que se referem ao direito à saúde e à convivência comunitária e buscamos compreender as situações mais comuns em que são encaminhadas aos serviços da região, bem como os principais agentes violadores destes direitos.
Utilizamos como material de apoio o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei 8.069, em 13 de Julho de 1990, que regulamenta e detalha os direitos das crianças e dos adolescentes já previstos pela Constituição Federal de 1988. O ECA compreende a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e garante, por meio da concepção de proteção integral, suporte essencial para seu pleno desenvolvimento (Brasil, 1990). Essa proteção assegurada traduz-se em todas as oportunidades e facilidades oferecidas, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
A pesquisa centrou-se em dois grandes eixos: Direito à Vida e à Saúde e Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade, considerando-se que neles estão presentes os direitos básicos sine qua non as crianças e adolescentes dificilmente desfrutarão de um desenvolvimento humano e um convívio familiar e social adequados. No primeiro eixo, são descritos os direitos essenciais à manutenção da vida e compreendem todos os aspectos referentes à saúde da criança e do adolescente desde seu nascimento (Brasil, 1990). As principais violações desses direitos estão relacionadas às doenças, às necessidades especiais e aos óbitos causados por precariedades no atendimento pré e perinatal e no sistema de vacinação; aos portadores de necessidades especiais com atendimento de saúde deficiente; às doenças decorrentes de habitação e saneamento básico precários; à mortalidade e desnutrição infantil; ao alcoolismo e à drogadição; à mortalidade infanto-juvenil por causas externas; às doenças sexualmente transmissíveis e AIDS; à gravidez e paternidade precoces; e à mortalidade infanto-juvenil por causas externas (sobretudo homicídios) (Ribas Junior, 2011).
O segundo eixo do ECA prevê o direito à liberdade, respeito e dignidade à criança e ao adolescente por considerá-los pessoas em desenvolvimento e sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos pela Constituição Federal (Brasil, 1990). As principais formas de violação desses direitos são: aliciamento de crianças e adolescentes para atividades ilícitas ou impróprias; submissão em instituições do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) a práticas incompatíveis com as determinações do ECA; abuso e exploração sexual; tráfico de crianças e adolescentes; violência doméstica; crianças e adolescentes autores de ato infracional; e utilização de crianças e adolescentes na mendicância (Ribas Junior, 2011).
Para a compreensão desses aspectos, adotamos a Psicologia Sócio-Histórica como base epistemológica da pesquisa, uma vez que ela propõe uma concepção de sujeito como ser ativo, social e histórico e utiliza-se do método dialético para a compreensão da relação do homem com a sociedade, de forma que esta seja reconhecida como produção histórica dos homens, os quais, através do trabalho, produzem a sua vida material. Ao contrário de outras perspectivas, para a Psicologia Sócio-Histórica, o fenômeno psicológico não pertence à Natureza Humana, tampouco é preexistente ao sujeito, mas reflete a condição social, econômica e cultural em que vivem os homens. Dessa forma, o fenômeno psicológico é um fenômeno social, já que subjetividade e objetividade são instâncias intercambiáveis — são dois aspectos do mesmo movimento que se dirige ao processo no qual o sujeito atua e modifica a realidade, e esta, por sua vez, oferece as propriedades para a sua constituição psicológica (Bock, 2001). Essas postulações são favoráveis à análise da interação do homem com as instituições sociais e permitem uma ampla percepção de fenômenos como a exclusão, a vulnerabilidade social, os movimentos sociais e suas formas de resistências.
De acordo com Katzman (1999), as situações de vulnerabilidade social devem ser analisadas a partir da existência, por parte dos indivíduos ou das famílias, de dispositivos capazes de enfrentar determinadas situações de risco. Logo, a vulnerabilidade refere-se à capacidade de controle das forças que afetam o bem-estar de determinado indivíduo ou grupo. Os aspectos que produzem a condição de vulnerabilidade são, no entanto, socialmente construídos e, quando são interiorizados pelo indivíduo, geram muito sofrimento. Esse sofrimento, de acordo com Sawaia (2001), nasce frente às injustiças sociais e se estende além da preocupação com a sobrevivência. É o sofrimento ético-político que surge à medida que, com a negação da emoção e da afetividade, a pessoa é privada de sua condição humana.
A comunidade de Heliópolis, por meio de suas lutas sociais, busca minimizar esses impactos, desconstruindo preconceitos e estereótipos, promovendo discussões, realizando projetos e programas sociais. No entanto, mesmo com a consolidação de políticas públicas voltadas para diferentes áreas sociais, a comunidade ainda hoje convive com a ausência de políticas efetivas para a melhoria das condições de vida das crianças e adolescentes que ali vivem. Esta pesquisa não só dá visibilidade às situações de exclusão social que produzem violações de direitos, mas também aos desafios enfrentados pelos profissionais que atuam na garantia desses mesmos direitos.
Método
Esta pesquisa apresentou um caráter exploratório, pois, para aumentar a familiaridade dos pesquisadores com o funcionamento da rede de serviços socioassistenciais, foi preciso conversar com seus líderes comunitários e com os profissionais que trabalhavam no atendimento direto às crianças e adolescentes da região. Utilizou-se de entrevistas semiestruturadas com perguntas que abordavamas formas de violação de direitos das crianças e adolescentes, principalmente aquelas relacionadas ao direito à vida, saúde, alimentação, respeito, liberdade e dignidade. Abordou-se, também, a forma como as crianças e adolescentes eram encaminhadas ao serviço e como lidavam com cada situação. Participaram do estudo quatro colaboradores que atuam nos seguintes serviços: medidas socioeducativas (MSE); núcleo de projeto jurídica (NPJ); conselho tutelar (CT); e unidade básica de saúde (UBS).
A análise dos relatos permitiu o conhecimento a respeito dos problemas mais recorrentes sobre a violação de direitos nessa região, conforme se apresenta a seguir.
Marcas da vulnerabilidade social
As profundas situações de miséria na realidade brasileira nos fazem refletir sobre seus impactos nas políticas de atendimento às famílias que vivem em situação de vulnerabilidade (Gomes, 2005). Segundo dados do Panorama Geosocioeconômico (Matriz, 2014), 10,6% da população do Sudeste do Brasil ainda vive em situação de pobreza, com renda per capita entre 25% e 50% do salário mínimo, e 0,6% da população não possui acesso a esgotamento sanitário.
Nesse cenário, a moradia é a representação de um espaço de privação, instabilidade e padecimento dos laços afetivos íntimos. Essa questão foi levantada em duas das entrevistas como um grave problema em relação ao direito à saúde: “[...] a habitação, sempre muito precária. Então, é um cômodo ‘desse’ tamanho p’ra 10 pessoas. Moram em becos, em vielas, condições de higiene horrorosas, tanto do ambiente quanto físico”. As condições precárias da habitação podem agravar problemas de saúde: “[...] o menino está ficando doente direto porque a família mora com problema de esgoto, não tem alimentação, não tem uma renda...” (profissional entrevistado na UBS).
Políticas como o Bolsa Família surgem como tentativa de suprir as carências emergentes, mas não promovem uma resolução efetiva de tal condição. No entanto, o representante do MSE concorda que programas de transferência de renda auxiliam inúmeras pessoas em vulnerabilidade social, principalmente em casos de divórcios e novos membros agregados. O profissional do NPJ também confirmou o fato de que a maioria das crianças está na escola, principalmente pela contratualidade do programa.
Pode-se entender, dessa forma, que a educação tem o desafio de interromper a perpetuação do ciclo de pobreza entre as gerações. A redução do número de alunos evadidos do ciclo básico de ensino não significa necessariamente que esses se formem com alto nível de aprendizagem. As considerações do profissional faz refletir sobre as afirmativas de Marques et al (2007), para quem a sociedade brasileira vem terceirizando seus eventuais fracassos na educação, negando-se a assumir seu papel no que diz respeito ao ensino público de educação básica. Também corroboram os dados encontrados na pesquisa de Fonseca et al (2013), cujos resultados, pautados em recentes publicações, revelaram que as crianças e adolescentes são vulneráveis às situações ambientais e sociais, e estas se manifestam em diversas formas de violência cotidiana, tanto no contexto familiar quanto escolar, obrigando crianças e adolescentes a se inserir precocemente no mercado de trabalho e/ou no tráfico de drogas.
Direito à Vida e à Saúde
O ECA estabelece os direitos relativos ao cuidado integral a todas as crianças e adolescentes (Artigo 14º) (Brasil, 1990), porém, ao analisar os dados das entrevistas, verifica-se que muitas questões relacionadas à saúde pública são apontadas como problemas que apresentam grande incidência no bairro de Heliópolis. O envolvimento de crianças e adolescentes com o alcoolismo e a drogadição, bem como os casos de gravidez e paternidade precoces, foram mencionados em todas as entrevistas. Outras violações, também consideradas por alguns entrevistados como importantes, foram as doenças sexualmente transmissíveis (DST) e a falta de serviços de prevenção.
O uso de substâncias psicoativas apareceu como uma das principais violações de direito, na concepção do profissional da UBS:
[...] tem muito alcoolismo, muita drogadição. Nos jovens em geral. No contexto geral, eles estão tendo um contato muito cedo com o álcool e com as drogas. [...] Em quase todas as famílias tem caso de álcool e drogas, quase todas as famílias. Mãe e pai que bebem que ou fazem uso de drogas, que moram em situação precária, né?
Outra questão bastante mencionada nas entrevistas refere-se à gravidez precoce de adolescentes. Na maioria das entrevistas, essa questão foi avaliada pelos entrevistados como sendo a primeira ou segunda violação do direito à saúde mais recorrente na região. Para um dos profissionais entrevistados, essa questão é complexa e não envolve necessariamente uma violação de direitos: “Adolescente grávida chega bastante, muita jovem fazendo teste de gravidez, então elas ficam no pancadão e aí vem na segunda querendo saber se... seria uma violação de direito?”.
Pode-se ressaltar também a importância de compreender em que medida a própria jovem e sua família consideram sua condição como uma violação de direitos. De acordo com a entrevista realizada no NPJ, muitas das adolescentes que chegam grávidas procuram o serviço por outros fatores considerados por elas como mais urgentes. O direito de proteção à vida e à saúde é indispensável, pois garante o nascimento sadio e as condições dignas de desenvolvimento que devem ser oferecidas pelas políticas públicas, promovendo o desenvolvimento adequado da criança (Brasil, 1990).
Direito à liberdade, ao respeito e à dignidade
Os artigos 15º a 18º do ECA preveem que sejam assegurados à criança e ao adolescente os direitos à liberdade, ao respeito e à dignidade (Brasil, 1990). A partir dos relatos coletados, foi verificado que as principais violações referentes a esses artigos foram: negligência; abuso sexual; drogadição dos pais; violência e abuso de poder da polícia.
De acordo com o profissional do NPJ, os pais saem para trabalhar e deixam as crianças na rua e, consequentemente, estas têm o contato facilitado com a droga e com a violência. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a negligência familiar ocorre quando há uma falha em prover os cuidados básicos para o desenvolvimento adequado da criança e do adolescente. Devido à condição socioeconômica desfavorável das famílias de Heliópolis, em alguns casos, ocorre a ausência de cuidados físicos, emocionais e sociais, conforme o relato:
Já chegou para passar em consulta na AMA (Assistência Médica Ambulatorial), não aqui na unidade, uma menininha de 10 anos com um bebezinho de um ano. [...] a gente entrou em contato com essa mãe, chamamos ela aqui. Explicamos que ela poderia até perder a guarda dessas crianças, porque, eu falei: ‘se fosse um policial que encontrasse, não ia ter essa sensibilidade que a gente teve em te chamar’. Aí ela não veio porque ela disse que tem mais duas [crianças], e os outros dois são menores ainda, são gêmeos. Então é assim, a pessoa tem a vida bem complicada (profissional da UBS).
O profissional do NPJ ressaltou a gravidade da violência doméstica na região, pois as vítimas geralmente não aderem ao atendimento da equipe. O entrevistado do conselho tutelar, por sua vez, relatou um caso que demonstra essa situação:
Na verdade, eu tive, acho, dois casos com problema de reincidência, porque a mãe também sofria maus tratos, cárcere privado, tortura. Só que ela não ‘tava lá na hora, a gente pegou a residência, conseguimos, acho, que resgatar três crianças. Duas crianças ‘tava mantida num quarto, sem alimento, sem nada, presa. Um menino tava todo marcado, foi chicoteado, e nós fizemos essa ação. Tiramos os filhos desse lugar, tiramos a criança que ‘tava na escola, encaminhamos p’ra avó e informamos o juiz que essa criança não deveria voltar com a mãe.
No que diz respeito à drogadição dos pais, segundo a OMS, a ingestão de bebidas alcoólicas e a utilização de drogas potencializam os atos violentos contra crianças e adolescentes, principalmente no contexto familiar. Para o entrevistado do NPJ, os casais que fazem uso de drogas estão entre os principais violadores dos direitos da criança e do adolescente.
O direito à liberdade é amplo e compreende, além do direito de ir e vir, a liberdade de opinião e expressão, crença e culto religioso, brincar e divertir-se, participar da vida familiar, comunitária, política e de buscar refúgio, auxílio e orientação (Muller, 2011). O direito ao respeito é exposto no ECA como forma de garantir a “inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente” (Brasil, 1990) e, dessa forma, responsabilizam-se todos pelo zelo da plena liberdade de expressão e desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes.
Principais agentes violadores
Das 168.690 denúncias feitas à Secretaria de Direitos Humanos, em 2012, por meio do “Disque 100”, cerca de 77,1% (130.029) são relacionadas às violações de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. Segundo o ECA (Brasil, 1990), existem quatro tipos de violadores: os pais ou responsável (familiares e pessoas que convivem com a família do sujeito que sofreu a violação); Estado; sociedade; e a própria criança ou adolescente.
Nas entrevistas efetuadas, percebeu-se que ainda prevalece uma responsabilização da família pela situação da criança. Embora o ECA tenha realizado uma mudança no paradigma legislativo de família, ainda não está garantida totalmente a modificação da ideologia que perpassa a família pobre, dando a ela uma nova categorização: família negligente (Cruz; Guareschi, 2008). Essa ideia está presente na seguinte fala:
A raiz do problema, na verdade, eu acho que ‘tá na falta de estrutura familiar dessas pessoas, porque família é quem a gente ama, né? Mas muitas vezes, eles não têm esse amor. Cria o filho de qualquer jeito, também são mães e pais que também foram criados de qualquer jeito, então valoriza muito bem material. Mora num barraco caindo aos pedaços, mas tem um iPad, um iPhone (UBS).
A partir da intervenção do Estado, a família é responsabilizada por ser considerada “fonte privada de bem-estar social” e, não sendo capaz de cumprir com esse modelo idealizado, é colocada na condição de “desestruturada”, “desintegrada” ou “desorganizada” (Cruz; Guareschi, 2008).
Esses estereótipos também emergem das entrevistas realizadas: “Porém, a maioria dos problemas que o conselho tutelar pega é com mães. Acredito que seja porque a mãe acaba ficando mais tempo com a criança ou geralmente ela é separada do pai (Conselho Tutelar)”; “Aqui tem muita EMEI (Escola Municipal de Educação Infantil), muita ONG (Organização Não-Governamental), CCA (Centro para Criança e Adolescente), tem muito, mas não dá conta, porque a raiz do problema ‘tá lá no núcleo familiar, na minha opinião, entendeu? (UBS)”.
A reflexão proposta não busca eximir a família da responsabilidade pela violação dos direitos da criança e do adolescente, pois ela é o principal agente de socialização, desempenha um papel decisivo na educação e é no seu espaço que os valores também são transmitidos. O perigo da culpabilização da família é o fato de tal culpabilização poder omitir o desrespeito aos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, uma vez que uma família sem recursos, isto é, enquadrada numa categoria de risco social, não consegue suprir as necessidades de seus membros, visto que possui os próprios direitos violados (Melo, 2012). Pode-se afirmar que existe, por parte do Estado, um excesso de valorização moral em relação à família, favorecendo a construção histórica da ideia de família como local de realização e felicidade (Sequeira, 2007). É importante uma reflexão ética em que se coloque, no âmbito da discussão, a influência da sociedade e das políticas públicas no espaço familiar.
Neste sentido, deve-se também considerar o Estado como sendo um agente violador dos direitos sociais, já que cabe a ele assegurar os direitos à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade. Em relação aos menores de 18 anos, as reivindicações deram-se no sentido de impedir os abusos da intervenção do Estado, os quais eram notórios durante o período em que a proteção do menor era feita pelo trabalho da FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor) e FEBEM (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor). Sierra e Mesquita (2006) destacam, comorisco à promoção do bem-estar e dos direitos sociais, aqueles relacionados à forma de repressão policial, às atividades do tráfico de drogas e à violência urbana. De acordo com o profissional da MSE, o Estado, por meio da Polícia Militar, ainda é um grande violador, pois é frequente o abuso de poder dos policiais na comunidade.
O abuso do poder policial se torna mais evidente ao falarmos dos jovens negros que moram nas periferias. No Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2013, ressalta-se que “a preocupação com a criminalidade infanto-juvenil funciona, na realidade, mais como um instrumento de marginalização da população pobre do que uma ampliação e um reconhecimento dos direitos civis dos jovens” (Lima; Bueno, 2013, s/d).
Rede de proteção social
O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) foi concebido pelo ECA e formalizado em 2006. Consiste em uma rede de ações organizadas, articuladas e interligadas de profissionais e instituições que visam à garantia dos direitos da criança e do adolescente. Para construí-lo, foi necessário articular ações conjuntas envolvendo Estado, comunidade e família.
O funcionamento dessa rede de proteção na região de Heliópolis foi descrito pelo funcionário do Conselho Tutelar como burocrático, exigindo grande esforço da equipe para que a criança seja atendida por outros equipamentos o mais breve possível. A psicóloga da MSE classifica a rede como mal articulada, muito embora os profissionais tentem fazê-la funcionar “da melhor forma possível”. Ela se queixa de que os funcionários cultivam a concepção de que trabalhar em rede resume-se ao ato de realizar o encaminhamento para outra equipe, sendo que o mais eficaz, segundo ela, seria manter uma discussão coletiva sobre o caso. O canal de serviço mais utilizado pelo NPJ, pelo qual chegam crianças e adolescentes encaminhados, é o conselho tutelar, porém, geralmente não se sabe as medidas que já foram tomadas por este serviço.
As características apontadas pelos funcionários da MSE, NPJ e conselho tutelar refletem uma rede que não consegue romper as barreiras burocráticas para promover o diálogo entre seus serviços. Tal dinâmica suscita o isolamento do equipamento, o que contrapõe os objetivos de uma rede comunitária que conta, entre outros fatores, com a interação constante entre seus membros e a multidimensionalidade da intervenção (Montero, 2003). É importante assinalar que a demanda de crianças e adolescentes por profissionais da rede de proteção social é muito alta, fato que justifica a saturação de certos equipamentos que não conseguem dar continuidade ao atendimento da família.
A busca por políticas sociais de estruturas menos verticalizadas pode assegurar que crianças e adolescentes recebam atendimento integral, conforme previsto no ECA. O Sistema de Garantias de Direitos da Criança e Adolescente preza pelo trabalho progressivo e em rede, facilitando a articulação entre os conselhos de saúde, tutelares, assistência social, saúde e educação, criando e fortalecendo as relações democráticas, éticas e horizontais (CONANDA, 2006).
A UBS que atua na região, segundo o profissional entrevistado deste local, mantém relação com vários outros serviços públicos e realiza parceria com instituições da comunidade local, como igrejas, escolas e ONGs. Trata-se de um trabalho que ocorre de forma multilateral.
Outro exemplo similar é o fórum mensal, que reúne profissionais dos serviços de educação, saúde e assistência social de Heliópolis e região com a finalidade de discutir a situação das crianças e adolescentes que são atendidos nesses equipamentos. Os pesquisadores tiveram a oportunidade de participar de um encontro deste fórum, cujo tema discutido, na ocasião, foi “educação infantil”. Ainda que estejam em um contexto institucional, essas características correspondem a um tipo misto de rede que Montero (2003) classifica como “estruturada”, mas ao mesmo tempo “espontânea”, pois sua organização possui uma estrutura formal e flexível, contando com dispositivos oficiais, mas também com comunicações informais, fora do círculo do serviço público. Essa dinâmica favorece o processo de socialização e de informação e garante o aproveitamento de recursos materiais e humanos disponíveis dentro e fora da rede de proteção.
Apesar da boa articulação entre os equipamentos da rede descrita pelo profissionalda UBS, a falta de serviços para alguns encaminhamentos específicos na região do Heliópolis é destacada como um dos problemas enfrentados. A função da rede é articular pessoas e grupos e ajudar atores e agentes sociais a potencializar iniciativas que desenvolvam a criança, o adolescente e as famílias nas políticas de proteção. Além disso, a presença de organizações sociais como as igrejas (mencionadas na entrevista) e escolas aumenta a confiança e a sensação de proteção social. A proteção integral prevista no ECA propõe uma ação pública que garanta a eficácia desta através de relações, conexões e articulações entre os vários serviços socioassistenciais.
Considerações Finais
Por meio deste trabalho, foi possível analisar o relato de profissionais que atendem às crianças e adolescentes da região de Heliópolis em relação às principais violações de direitos percebidas no cotidiano dos serviços. A vulnerabilidade social é o pano de fundo de todas as diferentes formas de violação relatadas pelos entrevistados. Evidencia-se, assim, a urgência de ações e estratégias políticas que visem a suprir as necessidades materiais e simbólicas das crianças e adolescentes que ali vivem, por meio da ampliação, integração e melhoria da rede de atendimento. A articulação, organização e interligação entre os profissionais e instituições mostram-se de extrema importância para a atuação eficaz do sistema de garantia de direitos, assim com a ampliação da oferta de políticas públicas em áreas com maior número de casos de violação de direitos.
Diante da suposta necessidade de encontrar os principais agentes violadores, corre-se o risco de individualizar o problema e, por consequência, produzir o juízo de criminalização da família pobre e isenção de responsabilidade do Estado, ou vice-versa (Nascimento; Lacaz; Travassos, 2010).Essa situação envolve a participação de múltiplos agentes, dentre os quais, comumente, a população é concebida como objeto de discurso sobre o direito e não como sujeito de direitos no âmbito prático. É importante ressaltar que a Psicologia muitas vezes se presta, por meio de seu discurso científico, a afirmar essa lógica, ilustrada pela ideia de “família desestruturada” (Sequeira, 2007). Essa ideologia, por sua vez, contribui com a manutenção do status quo por não questionar a construção dos lugares socialmente instituídos e por esconder os conflitos sociais intrinsecamente relacionados ao cumprimento, ou não, dos direitos constitucionais.
Uma das funções da pesquisa é o questionamento da realidade, pois, tal como ela é dada, favorece-se a hegemonia contra a emancipação de determinados grupos sociais (Chaui; Santos, 2013). Dessa forma, este trabalho propõe o questionamento da função dos serviços socioassistenciais, como as medidas socioeducativas, e suas implicações na discussão sobre a redução da maioridade penal. Considerando que as crianças e o adolescentes são objetos desses serviços e dessa discussão, esta pesquisa suscita o questionamento acerca da relação entre a violação de direitos e a incidência de infrações cometidas pelos adolescentes. Diminuir a maioridade penal coloca o Estado, a família e a sociedade na admissão de sua incompetência em assegurar a esses indivídios os direitos básicos preconizados por nossa Constituição e pelo ECA e instrumentaliza, dessa forma, a marginalização e a criminalização da pobreza.
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Data de recebimento: 02/10/2017
Data de aceite: 15/01/2018
1 A elaboração deste artigo contou com a colaboração de Carolina Barbosa Gobetti, Fernanda Hermes da Fonseca, Flávia Puorto de Freitas, Gabriela Schroeder Ribeiro, Juliana Guilherme Leonel e Letícia Lima de Araújo Biscioni.
I Adriana Rodrigues Domingues: Graduada em Psicologia pela Unesp e doutora em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, é docente no curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil. Email: adriana.domingues@mackenzie.br
II Adriana Fernandes Lellis Pereira: Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente, atua no Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), em Jacareí, e realiza oficinas de redução de danos nas cenas de uso de drogas em São Paulo, Brasil. Email - adriana.lellis@outlook.com
III Ana Carolina de Oliveira: Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduada em Psicologia Hospitalar e da Saúde pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Brasil.. Email - anacaa.oliveira@gmail.com
IV Cristina Gonçalves de Abrantes: Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.. Atua como psicoterapeuta e neuroeducadora, com pesquisas voltadas à clínica contemporânea e psicologia social. Email - cristinadeabrantes@gmail.com
V Tiago Henrique Cardoso: Graduado em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil. Email - cardosotiagohenrique@gmail.com
VI Vanessa Alice de Moura: Graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil.. Email - vanessa.alice.moura@outlook.com