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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.23 Rio de Janeiro abr./jun. 2019

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Institucionalização da juventude pobre no Brasil: questões históricas, problemas atuais

 

Institucionalización de la juventud pobre en Brasil: cuestiones históricas, problemas actuales

 

 

Marianne de Camargo BarbosaI, Danichi Hausen MizoguchiII

I Fundação Municipal de Saúde Niterói, Rio de Janeiro, Brasil.

II Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal Fluminense, Brasil.

 

 


RESUMO

Em tempos de retrocesso, nos quais discursos pela institucionalização da juventude pobre e negra ganham cada vez mais força, faz sentido questionar seus atravessamentos. Tais discursos atualizam o caráter tutelar e punitivo construído historicamente sobre essa juventude e nos provocam inquietações quanto à medidas de abrigamento e internação psiquiátrica. Sendo assim, o presente artigo busca tecer análises sobre os discursos que levam à institucionalização do público mencionado. A passagem por dois serviços destinados ao cuidado de crianças e adolescentes evidenciou a semelhança entre as justificativas que recorrem ao abrigamento e à internação psiquiátrica dos jovens. As histórias encontradas em ambos os serviços servem de palco a questões sobre a institucionalização da juventude – em abrigos e hospitais psiquiátricos – hoje. Confrontando as histórias e a legislação atual sobre o cuidado com o público infanto-juvenil, propomos questionamentos que refletem as marcas deixadas por um longo tempo de criminalização da juventude brasileira e pobre ainda hoje.

Palavras-chave: juventude; abrigamento; internação psiquiátrica; políticas públicas.


ABSTRACT

In times of social and political regression, in which the argument for the institutionalization of poor and black youth gain increasing strength, it makes sense to question its constitution and interrelations. These arguments renew the tutelary and punitive character historically constructed around this youth, provoking restlessness before political discourses that lead to the institutionalization of the aforementioned public. The process of detainment in two institutions destined to the care of children and teenagers reveals the similarities between the justifications for the institutionalization in shelters and psychiatric facilities. The stories found in both institutions serve as a stage for questions regarding youth institutionalization in shelters and psychiatric hospitals today. In confronting these stories and the contemporary legislation on the care of children and youth, we propose reflections on the scars left by a long history of of criminalization of poor youth in Brazil, which persists until today.

Keywords: youth, shelter, psychiatric institutionalization, public policy.


RESUMEN

En tiempos de retroceso, en los que discursos por la institucionalización de la juventud pobre y negra tienen cada vez más fuerza, tiene sentido cuestionar sus atravesamientos. Dichos discursos actualizan el carácter tutelar y punitivo construido históricamente sobre esa juventud y nos provocan inquietudes en cuanto a las medidas de acogida e internación psiquiátrica. Siendo así, el presente artículo busca tejer análisis sobre los discursos que llevan a la institucionalización del grupo mencionado. La experiencia en dos servicios destinados al cuidado de niños y adolescentes evidenció la semejanza entre las justificaciones que recurren a la acogida y a la internación psiquiátrica de los jóvenes. Las historias encontradas en los dos servicios sirven de escenario para analizar la actual problemática de la institucionalización de la juventud –en abrigos y hospitales psiquiátricos. Confrontando las historias y la legislación actual sobre el cuidado del grupo infanto-juvenil, proponemos cuestionamientos que reflejan las huellas que ha dejado un largo tiempo de criminalización de la juventud brasileña y pobre.

Palabras-clave: juventud; acogida; internación psiquiátrica; políticas públicas.


 

 

Introdução

A questão que norteia a escrita do presente artigo engendrou-se a partir de dois estágios distintos, realizados no campo da infância e da adolescência: em um conselho tutelar e em um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSi), ambos localizados no Rio de Janeiro. Nesses espaços, foram possíveis encontros com diferentes histórias de meninos e meninas que foram marcadas pelo choque com o poder público – com algo que “os arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez sempre devido, permanecer” (Foucault, 2012, p. 203). Tais encontros produziram inquietações acerca do abrigamento e da internação psiquiátrica da juventude, fazendo com que a institucionalização desse público, nos tempos de hoje, fosse interrogada.

Nas experiências de estágio no conselho tutelar e no CAPSi, foi possível notar que, muitas vezes, as justificativas para o abrigamento ou para a internação psiquiátrica são atravessadas por uma mesma expressão: o risco social. Mas cabe indagar: que forças fazem operar uma forma de cuidado que precisa retirar meninos e meninas do território onde vivem e submetê-los às ordens de uma instituição fechada? Assim, essa se torna a questão política principal deste artigo: que construções históricas atravessam o uso presente da estratégia de abrigamento e de internação psiquiátrica dirigida à juventude pobre?

 

Sobre trilhos e barreiras: traçando caminhos de cuidado

Orientados por políticas no campo da infância e da adolescência, ambos os serviços que servem como campo experiencial para as questões deste artigo são lugares destinados ao cuidado de crianças e adolescentes. Esses espaços foram forjados a partir da conjuntura de redemocratização política no País, na segunda metade da década de 1980, e trouxeram um novo modelo de atenção à infância e à adolescência.

Composto por cinco conselheiros tutelares eleitos pela comunidade, equipe técnica e equipe administrativa, o conselho tutelar é o órgão responsável pela garantia de direitos de crianças e adolescentes. No cotidiano de trabalho, o equipamento recebe diversas demandas, dentre as quais, conflitos familiares, conflitos escolares e situações variadas de violência. A função do conselho tutelar é buscar, junto às famílias, conduções adequadas para essas ocorrências. Quando necessário, encaminham-se essas situações a uma rede composta por serviços de saúde, de assistência e pelo judiciário. Todavia, nem sempre é possível contar com essa rede. Nos caminhos cotidianos das políticas públicas, as barreiras vão se mostrando incessantemente: rede de proteção sucateada, precarização do serviço, lugares nos quais o conselho não consegue entrar… As fragilidades da rede vão, assim, definindo os caminhos percorridos pelo conselho tutelar para garantir a proteção das crianças e dos adolescentes com os quais trabalha.

Assim como o conselho tutelar, o CAPSi também é um serviço apoiado em uma rede intersetorial. Amparado nas direções da Reforma Psiquiátrica, o CAPSi se distancia politicamente da ideia de que o cuidado em saúde mental deva dar-se em instituições fechadas. No CAPSi, portanto, as estratégias de cuidado são traçadas também a partir de uma série de parcerias que se aliam para trabalhar integralmente sobre as questões das crianças e dos adolescentes atendidos no local.

Ambos os estabelecimentos encontram suas condições de possibilidade a partir de lutas políticas dos movimentos sociais no Brasil. Foi em um cenário de enfrentamento ao regime militar que surgiu, durante os anos 1970 e 1980, uma série de críticas dirigidas ao sistema privado de saúde vigente na época e aos modos de lidar com a loucura e com crianças e adolescentes. Nas discussões de trabalhadores, de equipamentos de saúde e de assistência, emergem o Movimento pela Reforma Psiquiátrica Brasileira, o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – fundamentais para pensar novas estratégias de cuidado à loucura, à infância e à adolescência.

Sob a doutrina da proteção integral e em forte oposição ao Código de Menores, promulgado em 1927, o ECA sustenta que crianças e adolescentes têm direitos fundamentais que devem ser garantidos não só pela família, mas pela população em geral e pelo poder público (Nascimento e Scheinvar, 2010). A doutrina de proteção integral, portanto, corresponde à principal diretriz do Estatuto que, em um de seus artigos, afirma que é

[…] dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (Brasil, 1990, art. 4).

Desse modo, definir aqueles com menos de 18 anos como sujeitos de direitos retira da legislação o termo menor, amplamente difundido desde o final da década de 1920, que era produtor e produto de práticas policialescas classistas e racistas. O ECA abre caminhos para que outras políticas sejam elaboradas para esse público. Inicialmente ausente das conferências de Saúde Mental realizadas desde 1987, tal temática foi incluída como pauta pela primeira vez em 2001, na III Conferência Nacional de Saúde Mental (Delgado, 2011). Após essa conferência, é aprovada a Lei 10.216, que, entre outros pontos, estabelece as modalidades de Centros de Atenção Psicossociais. É somente a partir desse momento que pode produzir-se a criação dos Centros de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil. Nas palavras de Couto e Delgado (2015), o CAPSi

[…] visa à superação do cenário anterior, no qual, a rigor, crianças e adolescentes com necessidades em saúde mental ficaram desassistidas ou submetidas a processos de institucionalização externos ao sistema psiquiátrico asilar, que, por décadas, foram invisíveis até mesmo ao vigoroso movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira (Couto e Delgado, 2015, p. 19).

Apesar de os movimentos da saúde mental e da infância e adolescência não caminharem juntos desde suas formulações, o ECA e o campo aberto pela Reforma Psiquiátrica foram fundamentais para a inclusão desse tema nas políticas de saúde mental. Sobre esse assunto, Couto e Delgado (2015) pontuam que

[…] essas condições advieram de acontecimentos diretamente ligados ao campo da saúde mental, os quais ampliaram substancialmente sua institucionalidade; e de outros, externos a ele, que inscreveram uma nova concepção de criança e adolescente no ordenamento jurídico, político e social brasileiro, com consequências para a qualificação das ações públicas dirigidas ao seu cuidado e proteção (Couto e Delgado, 2015, p. 20).

Com isso, é possível afirmar que o ECA traz uma nova perspectiva sobre a infância e a adolescência para o campo específico da Saúde Mental. Além disso, tal inclusão traz a ideia de que crianças e adolescentes também sofrem e, por isso, necessitam de cuidado. Sendo assim, tornam-se simultaneamente sujeitos psíquicos e de direitos (Couto e Delgado, 2015).

Seguindo, portanto, as mesmas diretrizes da Reforma Psiquiátrica e do CAPSi no que diz respeito à sua base territorial e ao protagonismo dos sujeitos, o CAPSi deve conhecer o contexto social e a demanda do lugar onde está inserido, bem como oferecer atendimento a crianças e jovens quando necessário. A partir dessas novas políticas, é possível constatar que novos modos de cuidado puderam emergir. Portanto, tanto o conselho tutelar quanto o CAPSi são espaços que convocam a pensar linhas de cuidado, estratégias de trabalho e modos de estar junto dessas populações por eles atendidas de uma maneira contraposta à da internação.

Ao lançar mão de uma prática que não encerra as vidas de crianças e jovens em categorias de inferioridade, vemos que suas histórias atravessam os muros das instituições e ganham outros contornos. Contudo, o que se percebe é que os jovens considerados em risco são aqueles que provocam algum incômodo – e esse incômodo talvez faça com que persistam forças que supostamente não seriam mais vigentes. Sobre isso, Silva (2013) alega que a

[…] resposta que nossa sociedade tem dado ao que escapa à norma, aos atos dos adolescentes que transgridem ou perturbam a norma social, tem condenado e conduzido parte de nossos jovens ao encarceramento precoce. Uma realidade que pede denúncia e reivindica oferta de dispositivos capazes de acolher o estrangeiro que habita esses pequenos corpos (Silva, 2013, p. 64).

Se há uma clara determinação legal das políticas públicas, tanto no que tange à Assistência Social, quanto no que tange à Saúde Mental, causa estranhamento que a direção territorial e conectiva muitas vezes não seja posta em prática – ambas operando recorrentemente aos moldes do abrigamento e da internação. É a partir de fragmentos da experiência de estágio em um conselho tutelar e em um CAPSi que a efetividade da direção histórica conquistada recentemente no campo das políticas públicas será interrogada, a fim de que a questão que norteia o presente artigo possa se mostrar em toda sua força imagética, tensa e inacabada. 

 

Imagens inacabadas: internação e abrigamento

Menores que faziam uso do imóvel abandonado na Rua General Silvestre, em Icaraí, Zona Sul de Niterói, continuam aterrorizando a vizinhança. Segundo moradores do bairro, nos últimos dias eles voltaram a atirar pedras do alto do Túnel Raul Veiga contra os carros que seguem em direção à Avenida Roberto Silveira. (...). Na semana passada, uma ação pública do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro determinou que um grupo de oito jovens, com idade entre 12 e 15 anos, seja avaliado para possível internação em clínicas de desintoxicação (O Fluminense, 30/03/20171.

Notícias como essa circularam pelas redes sociais e pelos jornais da cidade. No bairro mais nobre de Niterói, a ocupação da casa abandonada causava frenesi nos moradores da região. Meninos e meninas que antes se espalhavam pelas ruas da cidade, agora se reuniam no Casarão – nome escolhido por eles para aquele lugar. A ocupação, no entanto, não foi tolerada por muito tempo.

Corria à boca nada miúda que os menores estavam colocando em risco os cidadãos de bem que, na ávida busca pela paz e pela calmaria do local, não tardaram a agir para impedir aquela situação. Nas semanas que sucederam as notícias, os jovens foram levados pela Guarda Municipal à emergência do hospital psiquiátrico da região para uma suposta avaliação psicológica. Lá, alguns encaminhamentos foram tomados. Por diversos motivos, muitos ali passavam dias longe da casa dos familiares. A ida forçada ao hospital trouxe, àqueles cujas mães foram encontradas, a imposição de voltar para a casa. Para os que não tinham contato com familiares, o abrigo foi encarado como solução. Já os que anteriormente haviam cometido algum delito foram encaminhados a instituições socioeducativas para cumprir suas penas. Todas as medidas, então, foram tomadas com vistas a retirar das ruas – ou melhor, do casarão do bairro nobre – jovens incômodos. Contudo, dias depois, alguns desses jovens que conseguiam resistir àquilo que lhes era imposto já estavam novamente nas ruas, sem que suas falas sobre a situação pudessem ser ouvidas.

A cena narrada condensa e expõe lacunas que não puderam ser preenchidas ao longo dos anos, apesar das conquistas dos movimentos em prol da criança e do adolescente e dos movimentos contra o manicômio e suas formas. Essa cena se distancia de ideias que exigiam um novo olhar sobre as questões da infância e da adolescência, bem como sobre as questões da saúde mental. É possível, então, dizer que essa história já terminou quando meninas e meninos são dirigidos ao hospital psiquiátrico para fazer avaliação psicológica? Nessa cena, fica evidente que a promulgação de leis não garante a mudança de pensamento daquilo que se configurou historicamente. Os efeitos de um longo período em que jovens pobres e negros eram submetidos à ação policial seguem marcando suas vidas.

É ainda possível recorrer a Arantes (1999), que aponta que o engendramento do termo menor é a mais perversa criação das práticas sociais brasileiras. O termo, cunhado na década de 1920, tal qual a política menorista do Código de 1927, produziu efeitos tão devastadores que permanece deixando vestígios. O que observamos é que, da escravidão no período colonial até os dias de hoje, passando pela ditadura militar, a questão da infância e da adolescência pobres e, em sua maioria, negras esteve e está associada a uma ideia de irregularidade e de periculosidade. A significativa produção das categorias menor abandonado e menor delinquente – pautadas sobretudo na psiquiatria –, bem como a discussão sobre a loucura e as degenerescências, serviu como base para a institucionalização de crianças e jovens. Assim sendo, percebemos que, ao longo de anos, as ações destinadas a esse público e às suas famílias eram apoiadas em um modo de controlar, vigiar e tutelar sua existência (LOBO, 2015).

Apesar das conquistas advindas nos anos 1980, são muitos os desafios enfrentados ainda hoje para que o Estatuto e a Lei da Reforma sejam seguidos. Ainda é possível notar a constância de situações em que jovens pobres e quase sempre negros são tratados com ações punitivas e de internação. Por que, em vez de acolher e garantir direitos, reduzem-se existências a categorias excluídas de qualquer atendimento que não tenha como objetivo a institucionalização ou a exclusão?

 

Os nós da proteção

Um menino de 11 anos chegou ao conselho tutelar depois de uma série de denúncias que se seguiram contra ele. Algumas dessas denúncias vinham de pessoas que outrora estiveram sensibilizadas com sua situação de pobreza e, agora, reivindicavam o afastamento de sua mãe. Diziam que o menino cometia furtos pelo bairro, vendia os objetos roubados e dava o dinheiro à mãe, usuária de cocaína. A mãe negava que acobertava o menino e o uso de drogas. Conselheiros e estagiárias conversaram com o menino sobre sua situação, mas ele não parecia ter muitas críticas quanto às coisas que fazia. Caía exclusivamente sobre a mãe a responsabilidade por seus atos.

O pai, por outro lado, ausentou-se dos cuidados com os filhos e, quando cobrado a respeito, mais velho, dizia que a culpa era toda da mãe. Foi pressionado para que ficasse com o menino por um tempo e se negou; chegou a levá-lo à emergência do hospital psiquiátrico da cidade, dizendo que o filho estava ameaçado – o que não procedia naquele momento. O menino, então, passou uma noite na emergência psiquiátrica. Mais tarde, foi para um abrigo na cidade vizinha, porque não havia vaga nos abrigos da região onde morava. Ele fugiu em seguida porque estava com saudades da mãe que, pela distância do outro município, não conseguia visitá-lo.

A história, nesse momento, é atravessada por questões existentes desde o período colonial e os tempos do Código de Menores. Quando lembramos que, na época da colônia, restava às crianças pobres – mais tarde taxadas de perigosas e alvo de internações – apenas a caridade e a ação da polícia (RIZZINI e RIZZINI, 2004), vemos como isso se repete na história narrada nos dias de hoje. Além disso, as ideias punitivas instituídas a partir do Código de Menores se atualizam aqui nas condutas da vizinhança que exigem o afastamento da mãe e a reclusão em um local fechado. O conselho encontra-se, portanto, em um cenário que expõe nitidamente os embaraços de uma sociedade que ainda hoje não conseguiu se livrar das amarras produzidas com a invenção do menor – com todas as implicações que o termo apresenta. De um lado, exigências de punição e controle; de outro, uma mulher sozinha culpada pelas atitudes de seu filho e um menino a ser punido. Mas como o conselho tutelar responde àquilo que parece impor-se a ele no cotidiano de trabalho? E mais: ao responder a essas exigências, por que o conselho se insere na mesma lógica de punição advinda de legislações passadas e já contraditas pelas forças legais em voga atualmente?

 

Medo do tráfico e produção de riscos

Segundo relatos de familiares, o jovem estava usando muitas drogas e passou a ficar estranho depois de um tempo. Sua estranheza, mais tarde, foi caracterizada como um surto. Um irmão mais velho dizia que a culpa era da mãe – que ela o deixava muito solto. Nas vezes em que a estagiária esteve com ele, o menino pouco falava e reclamava dos efeitos dos remédios que estava tomando. Dizia que ia parar de tomá-los, pois estavam  deixando-o lento, afetando sua rotina e o convívio com os amigos. Seus amigos eram seus vizinhos que, assim como ele, tinham proximidade com o tráfico local. Essa proximidade causou agitação à equipe do CAPSi, que chegou a cogitar uma internação, uma vez que o menino circulava à noite e dizia trabalhar em uma boca de fumo. Doido, com avisos de interromper a medicação e com as andanças pela comunidade, estaria ele colocando-se em risco? Que riscos atravessavam a vida desse menino? Seria possível contorná-los sem recorrer à institucionalização?

Risco de enlouquecer? Risco de morte? Risco de cometer crimes? Nesse ponto, a história desse menino poderia assemelhar-se à situação de meninos do século XX, quando a loucura era atrelada a uma falha moral e à periculosidade. A esses meninos, restava a vigilância, o controle e a intervenção na família. Mas, hoje, após o ECA e a Reforma Psiquiátrica, não deveríamos ter rompido com esse pensamento? Em que medida nosso modo de lidar com jovens loucos, pobres e, muitas vezes, negros se distancia ou se assemelha a uma prática de tutela e controle que almejamos combater? Vemos que, nos tempos do Código de Menores, quando determinadas práticas discursivas foram postas sobre crianças e jovens pobres, o menor carente é forjado e remetido a uma família supostamente desestruturada.

O medo de uma futura delinquência fazia com que esses jovens fossem encaminhados a instituições que firmavam a ordem, sendo a proteção, nesse momento, vinculada à ideia de prevenção. Dessa maneira, a proteção às crianças e aos jovens pobres assume um padrão preventivo. Segundo essa perspectiva, “justiça e filantropia entendem que não basta punir ou retirar do convívio aqueles que perturbam a ordem. Para tanto, urge reformar a justiça e, principalmente, criar uma justiça especial para os ‘menores’” (Coimbra, Silva e Ribeiro, 2002 p. 147). É preciso intervir sobre a família e, inicialmente, a medicina higienista se propõe a modificar práticas ditas insalubres dessas famílias. Através da mãe, há introdução de técnicas sobre o cuidado com o corpo, com a casa e, sobretudo, com as crianças. Mais que isso, introduz-se nas famílias pobres um “sentimento de incapacidade de cuidar dos filhos, já que seus modos de vida eram considerados propícios ao surgimento de doenças, perversão e vadiagem” (Coimbra, Silva e Ribeiro, 2002 p. 147). Conforme esse imperativo, emerge a ideia de que, longe das famílias, as crianças poderiam ser bem-criadas. Com a chegada do ECA, há uma tentativa de quebra dessa lógica. Desse modo, como nossos discursos e estratégias têm (des)favorecido esse combate no presente?

 

***

As cenas narradas expressam os impasses nas políticas de um País que, historicamente, fez uso da institucionalização de crianças e jovens pobres como solução às suas mais diversas demandas sociais. Impasses porque, mesmo com a mudança na legislação sobre esse público, permanecem as dificuldades de se compreender os atravessamentos que compõem a vida desses jovens e se trabalhar essas questões para além do abrigamento e da internação. Assim, em vez de trabalhar no território – lugar onde se estabelecem as relações –, o abrigamento e a internação psiquiátrica por vezes continuam sendo um dos primeiros pensamentos quando estamos frente a uma chamada situação de risco.

Ao longo de seus artigos, o ECA define que o abrigamento de crianças e adolescentes é medida última, sendo tomada somente em casos em que outras possibilidades já foram esgotadas. Portanto,

[…] de acordo com esta orientação, quando o atendimento fora da família é inevitável, medidas devem ser tomadas para assegurar que ele seja o mais adequado possível às necessidades da criança ou do adolescente, levando em consideração sua opinião e seus desejos. (Bullock, Little, Ryan e Tunnard, 1999 apud Rizzini e Rizzini, 2004).

Contemporâneo ao ECA, o movimento da Reforma Psiquiátrica tem como uma de suas premissas “substituir uma psiquiatria centrada no hospital por uma psiquiatria sustentada em dispositivos diversificados, abertos e de natureza comunitária ou 'territorial'” (TENÓRIO, 2002, p. 26), esquivando-se de práticas que provocam o controle e a tutela dos usuários. Apesar de, na mesma época, o ECA trazer luz à importância da construção de políticas para o público infanto-juvenil a partir de uma noção de proteção integral, os dois movimentos pouco se cruzaram.

Na primeira cena apresentada neste artigo, uma situação que poderia ser mediada por serviços de proteção à infância e adolescência tem contornos que enfaticamente contrariam as diretrizes da Reforma Psiquiátrica e do ECA, ao enviar jovens – como se fossem objetos – à emergência de um hospital psiquiátrico. No período do Código de Menores, os meios de comunicação de massa eram veículos da difusão do medo causado por meninos de rua, o que justificava ações repressivas e internações. É possível dizer que essa história acabou?

Em seu Artigo 5º, o Estatuto afirma que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (BRASIL, 2002). Quando o cuidado em um serviço territorial de saúde é preterido em favor de uma ação jurídica que prevê a internação compulsória em clínicas de desintoxicação (conforme a notícia exposta na cena), não é possível dizer que uma violação foi cometida?

Mesmo antes do Código de Menores, os argumentos que sustentavam as intervenções sobre a infância e a adolescência tinham caráter racista. O temor pelos movimentos negros, desde o período da insurreição, justificava a invasão a morros e ataques a quilombos, de forma a exercer controle sobre os mesmos. Historicamente, portanto, as ações destinadas à população pobre e negra no Brasil assumiam uma postura de vigilância e punição, lançando mão de práticas higienistas que retiram das ruas aquilo que foge aos padrões brancos da ordem. Hoje, pensando nos jovens que são alvos de medidas de abrigamento e internação, é possível dizer que a história acabou?

A sociedade brasileira segue separando as crianças – dignas de respeito e cuidado – dos menores – a quem cabem ações de tutela e punição. Por sua vez, a responsabilidade pelas situações de miséria e abandono continua recaindo sobre jovens pobres e, em especial, sobre suas mães. Situações que são frutos de desigualdades sociais não superadas são tidas, então, como problemas individuais de alguns sujeitos. Além disso, é possível constatar como o racismo aparece nessas situações, uma vez que a maioria dos jovens que frequentam os serviços e tornam-se alvo das medidas de abrigamento e internação psiquiátrica são negros. Em um país marcado por quase 400 anos de escravidão, onde negros e seus movimentos eram criminalizados, as marcas desse período, especialmente sobre os jovens, são catastróficas e ainda presentes.

Vemos, assim, que a mudança na legislação no que diz respeito à loucura, à criança e ao adolescente não garante a modificação radical e necessária no cotidiano das políticas públicas. Apesar da inclusão desse tema nas pautas da saúde mental e no aumento do debate sobre os problemas desse público, situações de repressão e tentativas de institucionalização continuam acontecendo – mesmo que em contraposição às deliberações legais. Desse modo, retomando a pergunta feita algumas vezes ao longo deste artigo, é possível afirmar que a história ainda não acabou, tampouco a consolidação das políticas públicas. A história está presente no dia a dia dos serviços, no enfrentamento àquilo que quase naturalmente se impõe – o abrigamento e a internação.

 

Considerações que não finalizam: marcas que permanecem

Compreender os atravessamentos históricos da institucionalização da juventude foi o vetor orientador deste artigo. A experiência em um conselho tutelar e em um CAPSi possibilitou a construção de algumas análises que confrontam as atuais legislações sobre infância e adolescência e as práticas que ainda permanecem, apesar das mudanças advindas do período de redemocratização do país. Essas experiências, localizadas na cidade de Niterói e no Rio de Janeiro na segunda década do século XXI, permitem interrogar uma história que não se resume a tais marcações espaço temporais. Ao contrário, prestam-se a interrogar a duração já por demais longa de uma história brasileira.

De sujeito em perigo a sujeito perigoso, regimes de controle foram inventados de modo a tirar de cena aqueles que provocavam desvios ao que era estabelecido. A criação de categorias, pautadas especialmente na psiquiatria e em outros saberes como a psicologia, serviu para justificar a internação desses jovens – muitas vezes, associando loucura à periculosidade, sendo o higienismo, o racismo e a criminalização da pobreza os principais condutores do processo. Esse resgate histórico evidenciado ao longo do texto serve para ampliar as discussões sobre a temática central deste artigo: tecer análises e questões sobre as práticas discursivas que levam à institucionalização da juventude – em abrigos e hospitais psiquiátricos – nos dias de hoje.

A partir de duas experiências distintas no campo das políticas públicas para infância e adolescência, construímos análises que retratam a força de produções discursivas que perduram até hoje. Em nome de um aparente cuidado, validamos práticas de controle e tutela que acabam por perpetuar enunciados que tentamos enfrentar com as políticas públicas atuais. Sai de cena o juiz de menores, o viés punitivo das leis, a medicina higienista – referentes ao período do Código de Menores –, mas permanece o discurso de um suposto cuidado que institucionaliza. Velhos discursos ganham novas roupagens: em defesa da proteção do agora chamado sujeito de direitos, afastam-se os jovens do convívio familiar com medidas de abrigamento; para garantir que jovens não se coloquem em risco, os hospitais psiquiátricos entram em jogo. Como efeito de uma busca cega e limitada por garantia de proteção e cuidado, muitas famílias pobres são assim culpabilizadas.

Ainda, é importante ressaltar que, no confronto entre as histórias narradas e a História das políticas, fica evidente o caráter de classe e raça que contorna as intervenções. Esses recortes operam uma produção de violência que perpetua os enunciados acerca daqueles que seguem sendo apontados como perigosos: jovens pobres e negros. Vale retomar Silva (2013), quando esta aponta que a resposta que a sociedade vem dando a alguns jovens é o encarceramento – nos casos abordados no presente artigo, em abrigos e instituições psiquiátricas.

Ao considerar a multiplicidade da existência, esta escrita pretende afirmar que as histórias de muitos meninos e meninas são maiores do que as simples definições que compreendem a categoria em risco. Relembrando as histórias aqui narradas, afirmamos que estar com esses jovens exige uma reconstrução diária das práticas de cuidado e requer uma aposta na multiplicidade de vida que eles nos trazem. 

Sendo assim, essa escrita suscita outras questões, cabendo pensar como nossa atuação no cotidiano dos serviços tem se encontrado com as propostas do ECA e da Reforma Psiquiátrica. De que forma temos conseguido encontrar brechas de resistência frente aos enunciados que clamam pelo abrigamento e pela internação psiquiátrica? Como acolhemosas históriasquenos chegam?Corroboramoscom umapolítica de institucionalização da infância e da juventude? Tendo em vista a particularidade da proteção integral presente no ECA, como se tem articulado uma rede capaz de oferecer cuidados a esse público? Enfim, como essa rede tem acolhido os diferentes tipos de juventude que chegam até ela?

 

 

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Data de recebimento: 28/05/2018
Data de aceite: 19/10/2018

 

 

1 Disponível em: http://www.ofluminense.com.br/pt-br/pol%C3%ADcia/menores-prontos-para-o-ataque. Acesso em 03 mai. 208.

 

 

I Marianne de Camargo Barbosa: Psicóloga, graduada pela Universidade Federal Fluminense, Brasil; aluna  do em Programa de Estágio Multiprofissional em Saúde Mental  nível de Residência, de Niterói – Fundação Municipal de Saúde Niterói – Rio de Janeiro – Brasil. Email: mariannecamargo@id.uff.br

II Danichi Hausen Mizoguchi: Doutor em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense; professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia, da Universidade Federal Fluminense – Brasil. Email: danichihm@hotmail.com

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