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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.28 Belo Horizonte set. 2005

 

AUTORES SELECIONADOS

 

Cinema e psicanálise

 

 

Ana Lúcia Sampaio FernandesI

Círculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Mostra as semelhanças entre o cinema e o sonho: "O homem busca no escuro do cinema o isolamento do mundo para viver uma experiência imaginária com todas as emoções proibidas e perigosas; sai delas como se despertasse de um sonho".

Palavras-chave: Cinema, Sonho, Desejo, Fantasia.


ABSTRACT

It shows the similarities of movie pictures and dreams. "Man seeks in the dark of the isolation of the word, to live an imaginary experience with all forbidden and dangerous emotions; he comes out of it as if he is awaken from a dream".

Keywords:
Cinema, Dream, Desire, Fantasy.


 

 

Desde o início da civilização, o homem, mobilizado pelo desejo, busca a escolha de um recinto escuro e silencioso, onde o mundo é colocado em parênteses, para viver uma experiência imaginária, com todas as emoções, sem riscos e isento de culpas e medos, sabendo que, após ter vivido essas emoções proibidas e perigosas, pode sair delas como se acordasse de um pesadelo. O cinema nos leva ao desconhecido mundo dos sonhos, da fantasia. Quando começou, não se sabe. Estabelecer um marco é impossível. Cinema é sonho, é fantasia, não tem começo nem fim.

A promoção do sonho tem mesmo sido a razão de ser do cinema desde que apareceram as primeiras projeções; daí os aspectos que o liga à psicanálise estarem sempre presentes na teoria e na prática do cinema. Comecemos com uma retrospecção aos primórdios da humanidade, quando o homem buscava as cavernas escuras para desenhar figuras de animais com formas em relevos, superpostas, pintando os sulcos com cores variadas. Mobilizando uma lanterna de tênue luminosidade, percebia o contraste com as trevas, realçando algumas cores e ocultando outras; o animal desenhado aparecia e desaparecia, resultando a impressão de movimento. Esses pintores certamente já tinham os olhos e a alma de cineastas e iam às cavernas para fazer e assistir sessões de cinema.

Analistas, pensadores e estudiosos de cinema, a exemplo de Deleuze, Garcia dos Santos, Iragaray, apontam a extraordinária semelhança entre a Caverna de Platão e a situação reinante na sala de projeção cinematográfica. Ali na caverna, fundamentalmente uma sala de projeção, situada na zona fronteiriça entre a aparência da essência, entre o sensível e o inteligível, a imagem da idéia, a representação do modelo é o lugar onde o mundo sensível desaba e onde caímos literalmente, como animais dominados pelas pulsões. Platão, em relação à Caverna, desempenha a função de um "lanterninha" dos tempos modernos; de um lado é o portador da Luz , conhecimento e razão, representante da idéia do bem, da transcendência, iluminando o caminho dos que estão nas trevas, conduzindo-os a seus assentos ou guiando os prisioneiros libertos para fora da caverna; por outro lado, no papel de "lanterninha" também cabe a ele vigiar a sala escura surpreendendo com sua luz a alucinação que toma conta dos prisioneiros; é aquele que nas salas de projeção ameaça o encan-tamento do recinto escuro com sua presença desveladora. Devem ser segregados em guetos (o que subverte a verdade), em cavernas, em cinemas, como se fossem zonas de perdição, zonas de meretrício. O mito da caverna dá início ao repúdio a todas as construções gratuitas da imaginação, ao menosprezo do prazer dos sentidos, a negação de tudo isso que, passados dois milênios, seria a essência de uma arte, paradoxalmente inventada pelo próprio Platão.

O homem atual, esmagado pelo concretismo da máquina, do sistema e da técnica, busca o poder que a sala escura tem de revolver e invocar seus fantasmas interiores. Antes mesmo de o cinema se transformar numa próspera indústria da cultura, ele já era visto como um local suspeito, onde algum tipo de iniqüidade ameaçava vir à tona. As elites intelectuais o rejeitavam, "cópias degeneradas", diziam os filósofos, verdadeiro "império dos sentidos" onde a população inicialmente marginalizada acorria em massa, buscando evasão e refúgio.

Coincidentemente em 1900, Freud publica "A Interpretação dos Sonhos" e Méliès lança "Cendrillon" a primeira projeção em forma de narrativa fantástica; ambos buscam realizar essa impossível fusão da ciência com o irracional. Freud traz à luz as fantasias do desejo e o trabalho das pulsões e Méliès, ao mesmo tempo, as joga na sala escura. A psicanálise reduzida a um trabalho artesanal de seletas elites e o cinema designado a preencher a função de divã dos pobres, ambos produzem um escândalo. A psicanálise era a ciência da palavra e o cinema arte do silêncio, até então.

Pierre Jenn observou que a obra de Méliès, tranqüila na sua superfície, aparentemente desprovida de paixões, mesmo quando o objetivo é extrair do grotesco o efeito cômico, apresenta uma fixação pelas mutilações físicas, monstruosas metamorfoses corporais, corpos que se retorcem, mudam de sexo, duplicam-se e retornam à forma original. O tema da decapitação pura e simples é repetido insistentemente. É difícil deixar de ver nessas cenas de fixação burlesca, a emergência de uma angústia profunda e arcaica, constante na estrutura das fantasias de castração que Freud posteriormente usaria como alvo das suas investigações.

Pierre Jenn também nos chama a atenção para o interessante e divertido filme "Eclipse de Soleil en Pleine Lune, "onde o próprio Méliès faz o papel de observador, pelo telescópio, de um eclipse solar. O sol, ao passar pela lua, resolve atrevido lhe dar prazer e ela expressa em sua face as delícias do gozo sexual. O astrônomo excitado se inclina para melhor observar a cena e... cai janela abaixo!. Tudo numa aparente inocência: o sol e a lua, o coito, a escopofilia do astrônomo sugere a fantasia da cena primitiva. Esse cineasta movido pela censura da época procurava mascarar mais que mostrar algo, que se insinuava e que não podia ser mostrado (No cinema clássico cenas de sexo explícito, violência e morte não podiam ser vistos, ao contrário do cinema pós-moderno de hoje). O fascínio exercido pelo cinema de Méliès levando multidões para as salas escuras, está sobretudo nesse componente onírico de fundo psicanalítico. Esse recurso de censura associado ao mecanismo do desejo , suprimir o que ameaça mostrar , retarda o acesso sugerido, prolongando o suspense do jogo erótico; cineastas de requintada imaginação até hoje o utilizam na construção de filmes eróticos, de muito sucesso de bilheteria e que nada têm de pornográficos. O filme pornográfico perde por causa da sua brutalidade fisiológica; nele não há o desvelamento progressivo e incompleto tão necessário à dissimulação do desejo.

Em 1926, Freud entra em acirrada polêmica com Abraham e Sachs por terem aceitado colaborar com o filme "Segredos de uma Alma", que ele próprio havia recusado por vulgarizar a psicanálise, que lida com o abstrato só possível de ser alcançado pela linguagem verbal, achando que as imagens só nos podem dar falsas imitações das coisas brutas. Freud considera marginal a função do olhar, ficando a psicanálise restrita à escuta e à interpretação verbal. Freud admitiu, num texto de 1913, não suportar ser fitado por outrem. Os autores Renato Mezan, Schneider e Stein observam esse traço de fobia, identificado na análise dos próprios sonhos, onde o olhar angustiante tem uma valor central, mascarando fantasias inconscientes, de natureza agressiva e sexual. Seria uma defesa de Freud colocar o analista atrás do divã?

Freud por mais que se oponha à imagem, é de imagens que trata todo o tempo, se não vejamos: ao explicar o sonho, num cenário composto de imagens semelhantes às de atores num palco, onde se buscam as representações do desejo reprimido e mascarado, que ao serem descobertas tomam aspecto de cenas visuais, não estaria ele falando de cinema, do cinema interior do sonhador?

Curiosa é a semelhança entre o mecanismo do sonho e as características de uma sala de projeção, denominada "situação cinema" por Mauerhofer. Em 1947, o Instituto de Filmologia de Paris dedicou um estudo sobre o estado de subjetividade do espectador na sala de projeção: o mundo exterior está ausente, o espectador se encontra num estado semelhante ao torpor, entregue à regressão e ao abandono, com a atenção totalmente concentrada a olhar a tela, num completo envolvimento emocional (bem diferente de ler um livro, escutar uma música ou assistir a televisão). Qualquer ruído ou visão fora da tela remete o espectador à existência de uma realidade externa que o desperta para a presença do cotidiano, comprometendo o estado psicológico necessário para a perfeita adesão ao mundo do filme. O espectador na verdade não "assiste" ao filme, ele o vivencia de uma maneira, tão próxima do sonho e numa total intensidade, que não raro ele próprio se surpreende gritando, xingando, torcendo ou transpirando de emoção. O espectador desprende-se da poltrona, entra na tela e desfruta a vida emprestada pelo personagem, converte-se em protagonista do jogo simulado de eventos. O estado de relaxamento em que se encontrava foi favorecedor da atrapalhação mental, tornando difícil efetuar a "prova de realidade" que, segundo Freud, caracteriza o trabalho do sonho. A essa vivência convencionou-se chamar "impressão de realidade".

A busca prazerosa de ir ao cinema pode ter suas raízes no ambiente de isolamento, silêncio e penumbra aconchegante e sedutora, onde insistimos em permanecer em desejável passividade, simulando perfeitamente o ventre materno para onde desejamos retornar. Pode-se também justificar o desejo de ir ao cinema pela "impressão da realidade" associada à forma de se relacionar com essa realidade alucinatória, que pode ser definida como "voyeurista-narcisista", porque nela o sujeito "espia" a intimidade do outro pelo viés da tela, enquanto seu corpo inerte, imaginariamente, é projetado no enredo, vivenciando o filme como algo que de fato lhe acontece como se fosse o seu sujeito (efeito sujeito). Ele participa e se identifica com a situação; um excelente exemplo é o filme "A Rosa Púrpura do Cairo" de Wood Allen.

No sonho e na fantasia, o sonhador é o ator principal, mesmo quando ele está representado por outra pessoa, por meio de mecanismos de identificação e essa dissimulação o leva a escapar à proibição, ocupando sucessivamente o lugar de sujeito e do objeto num enunciado. No cinema, a câmera ocupa sempre o lugar do sonhador, e essa particular relação do sujeito com os objetos da percepção cria a impressão de que os acontecimentos se processam no momento presente.

Uma das motivações mais profundas que estão por trás da invenção técnica do cinema é induzir no espectador percepções socialmente disciplinadas, que se fazem passar por representações de um mundo interior.

É comum os analisandos se referirem aos seus sonhos como filmes. Renato Mezan chega mesmo a definir o sonho como "filme que se desenrola no interior das pálpebras". Christian Metz contesta a comparação entre o cinema e o sonho, baseando-se em três argumentos:

1. o espectador sabe que está no cinema e o sonhador não sabe que está sonhando. Isso nem sempre acontece pois se houver uma participação efetiva do espectador , situação fílmica, essa situação não o deixa ter essa percepção e nos estados intermediários entre vigília e sono o indivíduo sabe que está sonhando. O fato de ele saber em nada diminui o desejo de estar no cinema, pelo contrário;

2. no filme, o material percebido é real embora o espectador não o receba como meros estímulos luminosos; ele toma por representação mental o que não passa de percepção, e no sonho ele toma como percepção o que não passa de representação mental;

3. o filme é mais lógico que o sonho, pois ele se identifica com a elaboração secundária e não com o conteúdo latente, que é a matéria-prima do sonho. Um filme que representasse com exatidão os pensamentos oníricos só teria interesse para as comunidades médicas e científicas. As películas que melhor representam o sonho são aquelas nas quais o conteúdo onírico é tratado de forma semelhante ao evento real, havendo um embaralhamento entre o vivido e o imaginado.

André Bazin observou que a censura e a simbologia são funções constitutivas tanto do sonho quanto do cinema. Na cinematografia, o mecanismo da censura é representado pela legislação dos códigos de ética, pelos recursos de linguagem ou pelas regras econômicas do mercado, num sentido muito próximo da censura psíquica.

Graças à censura, em início e meados do século XX, diretores de cinema, na luta contra a estupidez do código puritano, usaram de requintes de imaginação substituindo com símbolos oníricos o complexo de Édipo, a castração, as cenas sexuais e tornaram suas obras aplaudidas até os dias de hoje.

É evidente que não existe uma absoluta coincidência entre a psicanálise e a cinematografia, cada uma tem um dispositivo teórico e prático de modalidade diversa, mas nem por isso se deixa de tirar proveito daqueles fenômenos com os quais seus objetos particulares se confundem.

Cinema é sonho, é fantasia e como tal não poderia deixar de ser um tema fascinante para a psicanálise. Não é sem razão que há muito desejávamos ter no Círculo Psicanalítico da Bahia um "Núcleo de Cinema" e que agora é uma realidade.

 

Bibliografia

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Endereço para correspondência
Rua Padre Manoel Barbosa, 271/301
Itaigara - Edifício Casa Verde
41815-050 - Salvador - BA
E-mail: alsf@atarde.com.br

Recebido em Junho/2005
Aceito em Agosto/2005

 

 

I Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico da Bahia.

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