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Estudos de Psicanálise
versão impressa ISSN 0100-3437
Estud. psicanal. no.51 Belo Horizonte enero/jun. 2019
ARTE E PSICANÁLISE
O tratamento da fantasia na escrita literária de Pamuk
The fantasy’s treatment in the literary writing of Pamuk
Fabiano Chagas RabêloI; Osvaldo Costa MartinsII; Karla Patrícia Holanda MartinsIII
I Universidade Federal do Piauí
II Centro Universitário Fametro
III Universidade Federal do Ceará
RESUMO
Discute-se o uso da fantasia na escrita literária pela investigação de alguns livros de Ohran Pamuk, prêmio Nobel de Literatura de 2006, a saber: A maleta de meu pai, Outras cores, O escritor ingênuo e o sentimental e Istambul, com destaque para o primeiro. Com Freud, Lacan e comentadores, compara-se a abordagem da fantasia no fazer literário e no tratamento analítico, a partir da discussão das indicações que Pamuk nos oferece sobre seu processo de criação. Ao final, discute-se alguns pontos de aproximação e distanciamento do destino dado à fantasia nas duas práticas, levando em consideração as funções das construções, da transferência, do bem dizer e do saber a partir dos lugares de analista, analisando, escritor e leitor.
Palavras-chave: Pamuk, Psicanálise, Literatura, Fantasia, Construção.
ABSTRACT
The use of fantasy in literary writing is discussed by the investigation of some books by Ohran Pamuk, recipient of the 2006 Nobel Prize in Literature, namely: My father's suitcase, Others colors, The naive and the sentimental Writer and Istanbul, with emphasis on the first. With Freud, Lacan, and commentators, one compares the approach of fantasy on literary doing and analytical treatment from the discussion of Pamuk's indications of his creative process. In the end, some points of approximation and distancing of the destiny given to the fantasy in the two above cited practices are mapped, taking into account the functions of the constructions, the transference, the well-saying and the knowledge from the places of analyst, analyzing, writer and reader.
Keywords: Pamuk, Psychoanalysis, Literature, Fantasy, Construction.
Introdução
No Seminário 1: os escritos técnicos de Freud, Lacan ([1953-1954] 1986) salienta a relação indissociável entre o tratamento analítico e a formação do analista por meio de duas assertivas articuladas. A primeira, passível de ser tomada por uma tautologia numa análise mais superficial, diz que uma psicanálise é o tratamento que se espera de um analista; a segunda, que suplementa a primeira, afirma que um analista é aquilo que uma análise produz quando chega a um bom termo. Já no Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan ([1964] 1988) diz que a psicanálise constitui uma modalidade de tratamento do real por meio do simbólico.
Enquanto nas primeiras afirmações a ênfase recai na crítica a um modelo de formação calcado em padrões externos institucionalizados e desloca a discussão para o âmbito da própria análise, na última, a intenção é esclarecer a especificidade dos seus efeitos. Ainda que essa derradeira definição permita diferenciar o tratamento dispensado por um psicanalista de várias outras modalidades de tratamento pela fala (como algumas formas de psicoterapia, discursos religiosos e práticas pedagógicas), ela não responde em que se distingue a psicanálise do trabalho agenciado pelo ofício do escritor literário.
Com essa pergunta, assumimos a premissa de que o uso da linguagem – seja na escrita literária, seja no laço analítico – tem por função transformar o real por meio do simbólico. Por outro lado, indagamos em que medida e de que forma o processo de criação artística na literatura se aproxima de uma análise. O objetivo deste artigo é resgatar e discutir o alcance de algumas indicações de Freud e Lacan sobre o modo como a psicanálise intervém, valendo-se, para isso, de uma comparação com o fazer literário. Ao cotejar a forma de operar do psicanalista com o ofício do escritor, deparamo-nos com zonas de intersecção e distensão, de onde esperamos decantar algumas balizas que tornem possível distinguir com mais clareza as transformações subjetivas que essas práticas promovem.
Com esse fito, interrogamos o processo criativo de um escritor específico, haja vista que cada um, com seu estilo, explora de maneira singular as diversas possibilidades de entrelaçar simbólico, real e imaginário. Muitos escritores se posicionaram publicamente sobre o ofício de escrever e o modo como operam na tessitura de suas obras. Algumas indicações elucidativas a esse respeito podem ser encontradas na obra do escritor turco Ohran Pamuk, destacadamente A maleta do meu pai (2007). Além disso, essa questão é abordada em outros livros do mesmo autor, como Outras cores (2010), Istambul (2011) e O leitor ingênuo e o escritor sentimental (2013). O que há em comum entre essas obras que constituem o material da análise deste artigo é o seu caráter ensaístico e introspectivo, assim como a tentativa de elucidar as influências e as escolhas que participaram da formação do escritor.
O conceito de fantasia é o nosso operador teórico central. Portanto, propomos investigar de forma comparativa o trabalho realizado no campo da fantasia – na psicanálise e na criação literária – destacando seus efeitos sob o sujeito e sua influência na relação do sujeito com a verdade e a alteridade. Pamuk (2007, 2010, 2011 e 2013) esclarece que seu processo de criação apoia-se no arranjo e na seleção de fragmentos da fantasia. Logo, interrogamos os modos de combinar falas, lembranças, devaneios, sonhos e ficção que tanto o escritor quanto o analista mediam. Para tanto, faz-se necessário, além da fantasia, a referência aos conceitos de transferência (FREUD, [1915] 2010; LACAN, [1964] 1998; [1958] 1998b) e de construção (FREUD, [1937] 2010). As categorias de real, simbólico e imaginário (LACAN, [1964] 1998) também comparecem como aportes teóricos, assim como o conceito de estranho ou Unheimliche (FREUD, [1919] 2010). Na análise dos dados, busca-se discriminar os efeitos que a psicanálise e a escrita literária de Pamuk agenciam, tomando como norteadores os lugares de analisando, analista, escritor e leitor.
Desenvolvimento
Identificamos em O delírio e o sonho na “Gradiva” de W. Jensen (FREUD, [1907] 2015) uma atitude de respeito e interesse científico pela arte e, de modo mais acentuado, pela literatura. Se, por um lado, ele se mostra cético sobre a possibilidade de a psicanálise esclarecer os mistérios da criação estética, por outro, sublinha que o trabalho do artista constitui uma importante fonte de pesquisa na elucidação dos processos psíquicos, na condição de recurso auxiliar a pesquisa clínica. No artigo O escritor e a fantasia, Freud ([1908] 2015) não se furta em reconhecer na matéria-prima do trabalho artístico os mesmos elementos com os quais se depara na análise de neuróticos. Por isso, sustenta que o poeta esclarece aspectos do funcionamento psíquico a que o analista só é capaz de chegar após um longo e demorado percurso de elaboração.
A partir dessas premissas, em Os dois princípios do funcionamento psíquico, Freud ([1911] 2010) questiona o modo como o artista concilia as tendências divergentes do processo primário e secundário, obtendo daí um prazer para si, que é também – ainda que de outro modo – compartilhado com uma comunidade de leitores, fazendo com que, a partir daí, seu trabalho seja valorizado socialmente como um fato estético. Para ele, o artista, por meio de sua capacidade de fantasiar, opera uma delicada conciliação de tendências psíquicas que normalmente estão em conflito e, para isso, não é necessário lançar mão do recalque. Tal conciliação apoia-se no mecanismo de sublimação, que promove uma inibição da finalidade da pulsão e, ao mesmo tempo, preserva uma quota de satisfação como ele esclarece em Os instintos e seus destinos (FREUD, [1915] 2010).
Se, na psicanálise, as tendências pulsionais conflitantes são conjuradas diretamente por meio do fenômeno da transferência, o que permite uma forma de perlaboração específica (a superação das resistências) na obra artística, as moções pulsionais e os derivados da fantasia ganham outro tratamento. Então, no destino dado às manifestações da fantasia talvez seja possível encontrar uma via de distinção entre essas duas modalidades de laço social.
Cabe, então, interrogar os escritores sobre os esclarecimentos que eles podem prestar sobre o material e os processos psíquicos envolvidos na criação literária. Escolhemos Pamuk, pois essa questão é discutida de forma sistemática em alguns de seus textos. Optamos por comentar de modo mais pormenorizado A maleta de meu pai (PAMUK, 2007). Trata-se de um pequeno livro que colige três ensaios que tratam do significado da literatura para o escritor e o seu método de criação.
O primeiro ensaio é a transcrição do discurso proferido no recebimento do prêmio Nobel, em 2006. Nele Pamuk resgata o fascínio que lhe causava a maleta em que seu pai guardava seus escritos. Diz que percebia uma aura de mistério ao redor dessa valise, a qual respondia com uma distância reverente e, posteriormente, após constatar que ele próprio havia se tornado escritor, com um sentimento de culpa.
Incitado pelo mistério que orbitava em torno dos textos contidos nessa maleta, Pamuk enceta uma tentativa de elaborar o significado que atribui à literatura na sua vida. Ele sabia que, ao escrever tais textos, seu pai cultivava uma pretensão literária, bem como estava ciente de que nunca havia ousado publicá-los. Daí que, já adulto, ao lê-los pela primeira vez, descreve a estranha e perturbadora surpresa de reconhecer nos escritos de seu pai “a voz de um escritor” (PAMUK, 2007, p. 25). Isto é, uma enunciação que transcendia à individualidade da pessoa que os escreveu.
A partir dessa experiência reveladora, Pamuk interroga o que seria essa voz misteriosa que ele também identifica nos seus próprios livros. Pergunta-se o que leva uma pessoa a se tornar escritor, quais as qualidades, os detalhes e as atitudes que viabilizam a concretização de um texto literário. Formula daí duas questões: O que permite a alguém ir além de uma vivência estética momentânea e fugaz, transformando-a em uma obra literária? Como essa obra se torna capaz de transmitir essa experiência original, ainda que parcialmente, para uma comunidade de leitores?
Como esboço de resposta, escreve:
[...] o segredo do escritor não é a inspiração – pois nunca fica claro de onde vem –, mas a sua teimosia, a sua paciência (PAMUK, 2007, p. 14).
Vale salientar que Pamuk não interroga o mistério da inspiração artística. Respeitando essa zona de opacidade presente no ofício do escritor, seguimos os rastros de sua explanação, dedicando-nos ao estudo dos recursos formais e psicológicos de que o escritor se vale quando escreve.
Nesse sentido, é bastante instigante o paralelo entre o trabalho do escritor e o do construtor, que Pamuk (2007) propõe para explicitar as reverberações do ato de escrever:
As pedras que usamos, nós os escritores, são as palavras, quando as colhemos com as mãos – tentando intuir as formas como cada uma se conecta às outras, contemplando-as às vezes de longe, às vezes quase chegando a acariciá-las com os dedos e a ponta da caneta, sopesando-as, virando-as de um lado e de outro, ano após ano, sempre com paciência e esperança –, criamos novos mundos (PAMUK, 2007, p. 14).
Aqui o autor designa um elemento central para pensarmos a conexão entre psicanálise e criação literária: são fazeres que se apoiam na materialidade da palavra, forçando os seus limites, engendrando uma transformação no real em busca de um bem dizer.
Além da referência à linguagem, assinalamos outro ponto de convergência: o termo “construção”. Na técnica psicanalítica, em Construções na análise (FREUD, [1937] 2010), essa palavra designa uma operação realizada pelo analista, que visa estabelecer elementos da cena da fantasia do analisando que não foram verbalizados, mas que podem ser inferidos ou acrescidos a partir do material obtido pela associação livre. Trata-se, portanto, de um trabalho fundamentado na discursividade do analisando, cuja função é promover a elaboração de conteúdos recalcados. Numa linguagem lacaniana, seu objetivo é situar o lugar do sujeito na fantasia fundamental para favorecer o seu atravessamento (JORGE, 2011). Cabe ainda acrescentar que o esforço de teorização psicanalítico também pode ser entendido como um trabalho de construção que parte do material clínico em direção a uma formulação metapsicológica, valendo-se, para tanto, da capacidade do analista/teórico de fantasiar (BARROCAS; MARTINS, 2012).
É instigante nesse ponto trazer as considerações de Izcovich (2017), para quem o fazer artístico, à semelhança do trabalho de uma psicanálise, também é capaz de promover, em alguns casos, um desejo autêntico, isto é, um desejo advindo do atravessamento da fantasia e de um novo saber-fazer com o Real.
Pamuk, por sua vez, nos mostra que há na criação literária uma operação similar à construção que o analista executa. No entanto, não podemos ignorar as diferenças: se, na psicanálise, o analista constrói a cena da fantasia para orientar a direção da cura, na literatura, a cena construída reconfigura elementos da fantasia do próprio escritor. Os resultados são diferentes: na psicanálise, a construção orienta o manejo da transferência e as intervenções do analista (OLIVEIRA; MARTINS, 2010); na escrita literária, ela transmite o prazer estético e a experiência do sublime. Assim, na literatura, as manifestações da fantasia são mobilizadas de modo mais livre no que tange a sua consideração à objetividade do que, por exemplo, na construção em análise ou na produção teórica psicanalítica (BARROCAS; MARTINS, 2012).
Com Freud ([1912] 2010), em Artigos sobre técnica: recomendações ao médico que pratica a psicanálise, e com Lacan ([1967] 2003) em Proposição de 9 de outubro de 1967, podemos afirmar que a incidência do desejo do psicanalista na sua práxis também é sensivelmente diferente quando comparada ao lugar do desejo do escritor no exercício de seu ofício. No lugar do analista, deve prevalecer um desejo transformado por sua própria análise. Através daí é possível ao analista operar em sintonia flutuante com a fala em associação livre do analisando, sem que elementos de sua própria fantasia prevaleçam sobre o que ele escuta e recorda (FREUD, [1912] 2010). Assim, o inconsciente do analista deve estar em condições de captar com o menor grau possível de interferências as manifestações do inconsciente do analisando.
Assim também, as construções na análise devem se submeter às exigências da clínica (FREUD, [1937] 2010). Elas não são avaliadas em função de sua complexidade, engenho ou do prazer estético que despertam. Uma construção é julgada adequada quando promove a mobilização de conteúdos psíquicos que até então estavam inacessíveis. De modo diferente ao que ocorre com o analista, somos levados a supor que uma forma peculiar de depuração no uso da linguagem e da fantasia é efetivada pelo escritor literário. Vejamos o que Pamuk nos ensina a esse respeito.
Sobre as competências do escritor, no livro A maleta de meu pai, Pamuk (2007) designa uma característica que considera fundamental a todo ato de criação literária: a introspecção.
Para ele, o escritor é uma pessoa que tenta
[...] descobrir com paciência um segundo ser dentro de si, e o mundo que faz ser quem é (PAMUK, 2007, p. 12).
Para isso,
[...] volta-se para dentro, cercado pelas sombras, constrói um mundo novo com palavras (PAMUK, 2007, p. 13).
E afirma:
Escrever é transformar em palavra esse olhar para dentro, estudar o mundo para o qual a pessoa se recolhe em si mesma (PAMUK, 2007, p. 13).
Concluímos daí que o mundo que constitui a matéria-prima do fazer literário não é a percepção imediata da realidade. Antes de um pensamento translúcido, cuja verdade se mostra acessível à reflexão, o produto desse olhar para dentro revela a opacidade misteriosa de um segundo ser, que se furta na mesma medida em que se deixa capturar. Por isso, há que fazer uso de uma álgebra própria, que seja capaz de recortar e reordenar alguns dos elementos dessa experiência estética evanescente para fixá-los e reordená-los. Por meio desse processo de deciframento e ciframento, ocorre uma transmissão ao leitor do sublime pela constituição de um laço discursivo bastante singular até mesmo paradoxal.
Pamuk (PAMUK, 2007, p. 81) afirma:
Escrever um romance é estar aberto a esses desejos, anseios, ventos e inspirações, aos recessos mais obscuros da mente e aos seus momentos de névoa e silêncio.
Prossegue:
Um romance é uma cesta que carrega dentro de si um mundo sonhado que desejamos conservar vivo para sempre, e sempre à nossa disposição (PAMUK, 2007, p. 81).
E na continuação, arremata:
O que dá coesão aos romances são os pequenos fragmentos de devaneios que nos ajudam, a partir do momento que entramos neles, a esquecer o mundo tedioso do qual desejamos escapar (PAMUK, 2007, p. 81, 82).
Nesse ponto, é importante situar a distinção proposta por Lacan entre real e realidade (JORGE, 2010). A realidade é um arranjo constituído a partir da fantasia, que promove um entrelaçamento entre real, simbólico e imaginário. Por isso, o acesso ao mundo externo não é estabelecido como um dado primário no psiquismo. Trata-se antes de uma conquista secundária, uma transformação do princípio de prazer, que submete uma parcela do aparelho psíquico ao funcionamento do princípio de realidade (FREUD, [1911] 2010).
O real, por sua vez, é a própria insistência do sexual e do pulsional no psiquismo. O que distingue o real é o seu caráter traumático e a sua condição de resto, que advém da impossibilidade de ser esgotado por meio de recursos imaginários e simbólicos. Em função disso, o real constitui o cerne da fantasia (JORGE, 2010). As repetições concernidas ao real são vividas pelo sujeito como um encontro faltoso, a tiquê (LACAN, [1964] 1998). Portanto, a verdade do sujeito se atualiza através das repetições, que escapam às tentativas da fantasia de domesticar o real.
De acordo com Freud ([1908] 2015), em As fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade, as manifestações da fantasia são invariavelmente lacunares e fragmentárias. Seus efeitos são sentidos mais no plano afetivo do que propriamente reconhecidos como produto de uma atividade psíquica. Em função disso, o que chega à consciência são apenas pedaços de imagens, palavras e frases, de onde se justifica a importância de construções ficcionais, seja para o analista, seja para o escritor.
Pamuk (2007) nos mostra que o trabalho do escritor apoia-se numa seleção de manifestações de sua fantasia que se tornaram acessíveis à consciência. Trata-se de um bem dizer que permite constituir um arranjo de fragmentos de uma vivência, que para muitos pode ser corriqueira, banal ou mesmo inóspita. O espantoso é que, sem negar as manifestações do real em jogo, a criação literária produz um prazer suplementar diante de uma vivência subjetiva que normalmente poderia ser acompanhada de sofrimento. Desse modo, o escritor opera uma cifragem do real, gerando um saber novo.
Na canção Poder da criação, composta e gravada em parceria com João Nogueira (1980), Paulo César Pinheiro parece referir-se a algo semelhante quando tematiza o processo criativo do letrista. Ele descreve a inspiração como algo fulgurante, que está para além das preferências do artista, mas que também é marcada, por um lado, pela angústia e, por outro, pela alegria de encontrar o reconhecimento do público.
Não, ninguém faz samba só porque prefere
Força nenhuma no mundo interfere
Sobre o poder da criação
Não, não precisa se estar nem feliz nem aflito
Nem se refugiar em lugar mais bonito
Em busca da inspiração
Não, ela é uma luz que chega de repente,
Com a rapidez de uma estrela cadente
Que acende a mente e o coração
É, faz pensar que existe uma força maior
Que nos guia que está no ar
Bem no meio da noite ou no claro do dia
Chega a nos angustiar
E o poeta se deixa levar por essa magia
E o verso vem vindo e vem vindo uma melodia
E o povo começa a cantar lá lá iá.
texto de Pamuk (2007) nos traz algumas indicações sobre esse processo. Segundo ele, com palavras e muita obstinação, o escritor se apropria das visitas do anjo da inspiração, alinhavando histórias, conjugando fragmentos de sonhos, imagens e frases de modo a obter um prazer específico. Define esse prazer como um instante de surpresa, arrebatamento e felicidade. Trata-se do momento em que o produto do fazer literário se torna independente de sua origem na imaginação, transmutando-se em um dom: um generoso presente conferido pelo capricho de uma força misteriosa e autônoma: a voz do escritor.
No entanto, a felicidade que resulta desse instante de inspiração é episódica. Ela é incessantemente contrastada pela exigência de renúncia e privação que o ofício de escrever impõe:
[...] o ponto de partida de uma verdadeira literatura é o homem que fecha a porta e se recolhe com seus livros (PAMUK, 2007, p. 19).
Tal isolamento constitui uma pré-condição – embora não suficiente – para que ocorra a transformação por meio da imaginação criativa de tudo aquilo que foi vivido objetiva e subjetivamente. Apesar das aparências, essa situação, em sua essência, demonstra ser uma falsa solidão. Para Pamuk (2007), o escritor em introspecção está sempre na companhia das palavras de outras pessoas e da tradição literária. Daí que a atitude de recolhimento que propicia a escrita pode ser definida com mais precisão como um isolamento eletivo. Dele resulta um compromisso entre desejo e resignação, entre o reconhecimento penoso de uma insuficiência – um sentimento de inadequação e desassossego – e uma promessa de compensação para essa falta: a esperança de ler e aprender.
Pamuk (2007, p. 37) declara:
A escrita e a literatura estão intimamente ligadas a uma carência no centro da vida e aos nossos sentimentos de infelicidade e culpa.
Por isso, empenha-se em explicitar de onde provêm sua culpa e suas carências. Afirma ter avançado onde seu pai se deteve. Enquanto o pai não se afastou suficientemente do convívio social e dos prazeres mais imediatos, o que fez com que a literatura fosse colocada em segundo plano na sua vida, Pamuk se mostra recluso e prefere a literatura ao agito da vida social.
Encontramos aqui uma crítica ao pai, permeada por sentimentos de raiva e ciúmes, convivendo ao lado de uma atitude de reverência e gratidão. Se, por um lado, reconhece como decisiva a influência do pai na sua formação literária, por outro, constata com tristeza que ele não foi suficientemente obstinado para prosseguir no caminho que o levaria a assumir finalmente a condição de escritor.
Nas suas palavras:
Quando me tornei escritor, nunca esqueci que isso se devia em parte ao fato de eu ter um pai que falava muito mais dos grandes escritores do mundo que dos paxás ou dos grandes líderes religiosos (PAMUK, 2007, p. 17).
Conclui lembrando o quanto “[...] devia a sua imensa biblioteca” (PAMUK, 2007, p. 17).
Em outro trecho, declara:
Meu pai teve uma infância e juventude confortáveis, e não tinha a menor vontade de passar por provações por amor à literatura, à escrita (PAMUK, 2007, p. 11).
Após falar de sua posição em relação à herança paterna, Pamuk eleva o conflito ao patamar de condição necessária a toda atitude de criação literária. Voltando a se referir às contingências de sua vida, situa no embate entre sentimentos díspares o motor de sua literatura: de um lado, a insuficiência, a degradação, o medo e a vulnerabilidade; de outro, a fé ingênua e infantil na humanidade, que define como a crença em um mundo sem centro, onde todas as pessoas são iguais. Daí os oximoros otimismo angustiado e desconforto feliz.
Segundo ele, é essa parcela de otimismo que leva um escritor a continuar a escrever. Para avançar na redação de uma obra, deve prevalecer a esperança de que alguém lerá o texto e compreenderá sua intenção mais secreta, ainda que tal intenção não esteja totalmente clara nem para o próprio escritor. Temos aqui outro componente da resposta que Pamuk esboça para explicar o fato de ter se tornado escritor ao contrário de seu pai. Além da dificuldade de se isolar para se dedicar à escrita, não haveria prevalecido nele essa fé ingênua na literatura.
Pamuk (2007, 2010, 2011) também localiza em fatores culturais e sociais alguns dos prováveis motivos dessa carência da fé de seu pai na literatura. Nos seus livros encontramos referências recorrentes à má reputação que, via de regra, acompanha os escritores na Turquia. Tal fato exige uma atitude ainda mais decidida de quem investe no ato de escrever. Sob os auspícios dessa má reputação, Pamuk (2010) recorda a tristeza e a decepção de sua mãe quando ele abandonou a arquitetura para seguir a carreira de escritor. Lembra ainda as dificuldades encontradas no seu percurso de formação.
Temos, então, outro desdobramento da questão da vocação de escritor: Qual a razão da má reputação atribuída aos escritores na Turquia? O que gera tanta perseguição e desconfiança? Segundo Pamuk, a resposta a essa pergunta mostra, para além das especificidades culturais e políticas de seu país natal, uma propriedade mais fundamental da escrita literária e da relação do leitor com o escritor.
Pamuk (2007) busca elucidar as causas dessa má reputação a partir do entrelaçamento do ofício de escrever com a verdade subjetiva do próprio escritor, na sua articulação entre o subjetivo e o coletivo. Para ele, ao se autonomizar, a voz do escritor lança para o autor a indagação sobre sua autenticidade, questionando os limites de sua própria individualidade. Essa voz acaba por revelar uma realidade insabida, um novo centro, ainda que provisório, mas até então ignorado.
Ser escritor é:
[...] reconhecer as feridas secretas que carregamos, tão secretas que mal tomamos consciência delas, e explorá-las com paciência, conhecê-las melhor, iluminá-las, apoderar-nos dessas dores e feridas, e transformá-las em parte consciente de nosso espírito e nossa literatura (PAMUK, 2007, p. 27).
Cabe salientar que essa dimensão da paciência é destacada por Neusa de Sousa Santos (1996) em um texto sobre a ética da psicanálise. A autora compara o analista à figura do guerreiro aplicado, em referência ao romance de Jean Paulhan, de mesmo nome (PAULHAN apud SANTOS, 1996). Para ela, tanto em um caso como noutro, trata-se de uma posição subjetiva modificada, que pressupõe uma ultrapassagem dos limites do eu e um desapego em relação a seus ideais, de onde surge uma atitude de espera, assentimento e responsabilidade em relação à vida e às suas contingências.
Daí que o guerreiro/analista e, acrescentamos, o escritor também:
[...] aprende tanto a tornar-se impassível quanto a retirar de fatos insignificantes sentimentos incomuns (SANTOS, 1996, p. 174).
Em sintonia com essa citação, Pamuk (2007, p. 27) escreve: “O escritor fala de coisas que todos sabem, mas não sabem que sabem”. Se Lacan ([1953-1954] 1986), com Freud, descreve o inconsciente como um saber que não se sabe, é justo concluir que o escritor mobiliza seu saber inconsciente no exercício de seu ofício, por meio do qual estabelece um laço com os leitores.
Pamuk (2007) defende que uma quota de despreocupação com a realidade constitui outro pré-requisito para o ofício de escrever. Essa atitude, que qualifica como irresponsável e lúdica, coloca o escritor na condição de porta-voz desse saber insabido, de representante do rebotalho cultural que o constituiu.
Por isso, afirma acerca do trabalho do escritor:
[...] é inevitável que acabe trazendo algum mal-estar para seus familiares, amigos, pares e concidadãos (PAMUK, 2007, p. 55).
E prossegue:
[...] é a ficção que nos dá acesso às verdades que a família, a escola e a sociedade mantêm veladas, ocultas; é a arte do romance que nos permite perguntar quem afinal realmente somos (PAMUK, 2007, p. 56).
Temos, a partir desse comentário, um material bastante profícuo para a discussão do alcance político e social da hipótese do inconsciente (FREUD, [1915] 2010) e das resistências que ela suscita.
Pamuk (2007, 2010, 2011) sentiu na pele os perigos do seu ofício. Ainda que a contragosto, aceitou a responsabilidade e o desafio de conjurar a sua coletividade. Por isso, teve que pagar o preço do exílio e da perseguição política.
Do exposto, não consideramos exagerado estender o comentário de Lacan ([1958] 1998) acerca do preço da transferência para o analista ao escritor literário. Ambos, como consequência do exercício de seu ofício, devem estar preparados para pagar com sua palavra, seu nome e com seu ser. Por isso, somos levados a concluir que uma forma de transferência se estabelece entre o escritor e o leitor, de onde se impõem consequências tanto estéticas quanto éticas.
Nos seus livros, Pamuk (2007, 2010, 2011) frequentemente amalgama suas memórias pessoais às reminiscências de sua família. Essa atitude repercute amplamente as ideias de Freud ([1909] 2015), que identifica no romance familiar do neurótico a própria estrutura da fantasia.
De acordo com Pamuk (2007), os arranjos de fantasia que o escritor promove são, em última instância, uma tentativa de apropriação e significação de uma dimensão mais radical da alteridade.
Segundo ele, um tema central na arte do romance é o
[...] do outro, do forasteiro, do inimigo que reside na cabeça de cada um de nós, ou melhor, a questão de como transformá-lo (PAMUK, 2007, p. 44).
Por isso, pergunta quem é esse outro
[...] que nada tem a ver conosco […] que mobiliza nossos ódios, medos e ansiedades mais primitivos. [...] a grande literatura não se dirige à nossa capacidade de julgamento, e sim à nossa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro (PAMUK, 2007, p. 57-58).
Para produzir um texto literário, revela que foi preciso cultivar o talento de
[...] contar as próprias histórias como se fossem história dos outros e contar as histórias dos outros como se fossem suas (PAMUK, 2007, p. 19).
Por fim, relaciona esse outro à essência última daquilo que é transmitido pelo escritor:
A vida só pode ser feliz se conseguirmos enquadrar esse estranho e intrigante produto a alguma moldura (PAMUK, 2007, p. 66).
Encontramos aqui a reverberação das ideias de Freud ([1919] 2010) acerca do Unheimliche, ou seja, aquilo que é ao mesmo tempo mais íntimo e mais estranho ao Eu e que lhe desperta angústia. Essa linha de raciocínio é encampada por Almeida (2014) ao se referir à produção poética de Fernando Pessoa e Mário de Andrade. Em seu artigo, o autor explica o ímpeto da criação artística como uma urgência em forçar o caminho do trabalho simbólico para abrigar as manifestações desse estrangeiro que habita em nós.
A partir desses argumentos, situamos a fantasia na literatura de Pamuk como um enquadre anamórfico da experiência do estranho, como uma moldura cuja tela tempera, seleciona e filtra as incidências do real, possibilitando um tratamento de uma parcela da subjetividade que, até então, não possuía expressão psíquica. Nas palavras de Pamuk, trata-se de um processo de “cura de papel e tinta” (PAMUK, 2007, p. 76).
Deve-se salientar, por conseguinte, que os efeitos da literatura no leitor não se reduzem às vivências de catarse e prazer, mas incluem também o enigma e a estranheza. Afinal, a obra de arte se avizinha do irrepresentável, daquilo que permanece como resíduo do trabalho de imaginarização e simbolização. Nesse sentido, há uma proximidade do fazer artístico com o lugar do analista, isto é, com aquele em que se pode esvaziar da busca por significação e construir um modo peculiar de lidar com o sem sentido das experiências.
Retornemos ao texto de Pamuk (2007). O que ele diz surpreendê-lo, ou mesmo arrebatá-lo, é o fato de o escritor conseguir lançar luz nas áreas de sombras do leitor. Temos então o cerne de nossa questão enunciada:
Mas de que maneira um hábito criado pelas alegrias e prazeres de uma única pessoa pode produzir uma obra que interessa a tantos outros? (PAMUK, 2007, p. 83).
Dito de outro modo:
[...] por que o sonho que funciona como remédio para o autor pode ter o mesmo efeito para o leitor? (PAMUK, 2007, p. 83).
Em outro livro, O romancista ingênuo e o sentimental, Pamuk (2013) se interroga sobre os efeitos de ilusão criados pela literatura, de onde surge um território misterioso e paradoxal de intimidade compartilhada. Nessa zona, o leitor é estimulado a flanar irresponsavelmente, deixando-se levar ao sabor das letras. Para que isso ocorra, faz-se necessária uma sintonia entre leitor e escritor, o que permite a confluência do produto da fantasia do escritor com a atividade espontânea de fantasiar do leitor. Tal sintonia pressupõe uma suposição de saber de mão dupla: do lado do escritor, ele crê que o leitor terá acesso e compreenderá a sua verdade mais íntima, que estará apto a desvelar o centro secreto do romance, utilizando como instrumento de deciframento a sua própria fantasia. O leitor, por sua vez, também deve acreditar que o livro toca em questões cruciais concernentes a sua subjetividade, que ele próprio desconhece.
Essa suposição de saber da parte do leitor faz com que a presença da pessoa do escritor seja sentida como um “fantasma” (PAMUK, 2007, p. 73). O fenômeno da transferência se faz perceber destacadamente nessa situação, muito embora o tratamento dado a ela difira consideravelmente da situação analítica (OLIVEIRA; MARTINS, 2010). Sabemos com Freud ([1913] 2010) e com Lacan ([1953-1954] 1986 e [1964] 1988) que a presença do analista se faz sentir de forma mais premente nos momentos de resistência, quando o eu do analisando revigora a intensidade do recalque e das moções de contrainvestimento em resposta a uma atualização de seu próprio inconsciente. A dinâmica de forças subjacentes a esse processo é mobilizada no fenômeno da transferência sob a forma de amor. Assim, a transferência ocorre espontaneamente nos vínculos sociais cotidianos e artificialmente na situação analítica (FREUD, [1915] 2010).
Ainda que não se refira nominalmente à transferência, acreditamos que Pamuk (2007) aborda os seus impasses ao confessar o desconforto com alguns leitores que buscam numa relação pessoal com o autor a extensão da sensação de intimidade que a leitura de um livro proporcionou. No entanto, reconhece uma variação mais amena dessa demanda por parte de alguns leitores mais advertidos: muitos solicitam que o próximo livro seja mais extenso que o último; que torne possível perdurar por mais tempo a ilusão de compartilhamento de sentimentos.
Se anteriormente Pamuk havia salientado a má reputação do escritor, destacando sua condição de portador de uma verdade recalcada, de dejeto do Outro, aqui ele explora uma valência diametralmente oposta: o fascínio e a suposição de saber que a literatura desperta. Como consequência, traz indicações valiosas – não só ao escritor, mas também ao analista – sobre a importância de uma atitude de reserva frente às demandas por reciprocidades afetivas. Assim como Freud ([1913] 2010) se manifestou acerca dos riscos e limites do tratamento que denomina afetivo, Pamuk demonstra também preocupação com os excessos da parte de alguns leitores.
Mia Couto (2017, p. 3) também aborda os impasses da suposição de saber entre leitor e escritor:
[...] as perguntas que me dirigem nas entrevistas e nos debates públicos fazem-me crer no seguinte: há quem pense que o escritor escreve porque sabe. Acredita-se que o escritor entende e comanda os processos de criação de que ele é sujeito. [...] Eu escrevo porque não sei. A preparação para a viagem da escrita implica, no meu caso, o despojar de toda a bagagem. A construção de uma narrativa implica estar disponível. E para se estar completamente disponível há que deixar de saber, há que deixar de estar ocupado por certezas.
Assim como para Mia Couto, para Pamuk há um arranjo específico entre saber e não saber, que viabiliza o trabalho de escrita. Tal fato se deixa apreender em seu comentário sobre os leitores mais advertidos, que se abstêm de solicitar que uma determinada temática seja contemplada no enredo de um eventual próximo livro. Eles não esperam, portanto, a realização de suas expectativas, nem a comprovação de uma eventual correspondência de intenções. Para eles, não interessa sobre o que se escreve, mas como a história é contada, de preferência, longa e duradoura. Essa demanda, segundo o autor, ainda que mais moderada, mostra-se inatingível, pois há um limite na sua extensão que o próprio texto impõe. Faz-se necessária uma economia que é ao mesmo tempo formal, estética e psicológica. Não se trata de dizer tudo, mas de dizer bem. A ficção do escritor produz alusões precisas e concisas. Isso é o que torna possível a um dizer do leitor encontrar no dito do autor o seu suporte.
Pode-se dizer que a força de um texto literário está em sua capacidade de condensar, de dizer mais com menos, de indicar sem explicitar. A economia da escrita literária permite ao escritor bordejar algo da essência de seu ser que lhe é estranho, fugidio e intermitente (FREUD, [1919] 2010). Ou, como diz o poeta Manoel de Barros, o fazer poético está em saber amarrar o tempo no poste (CEZAR, 2010).
Se considerarmos o que Pamuk traz, tudo leva a crer que tanto o escritor quanto o analista se oferecem à transferência como objeto privilegiado das manifestações do real conjuradas pela fantasia. Daí, para além das vertentes simbólica e imaginária da transferência, deve-se considerar uma dimensão real que participa desse laço. Tal dimensão da relação autor-leitor remete, por sua vez, à relação do próprio escritor com os autores que participaram de sua formação.
Pamuk (2007) nos ensina que a síntese literária resulta da transmutação em literatura das vivências subjetivas do escritor. A esse respeito, Pamuk (2007) propõe uma inversão dialética. Não é o escritor que faz o livro, mas o livro que faz o escritor. Segundo ele, cada livro que escreveu tem um escritor diferente; cada livro exigiu uma transformação específica na sua pessoa para que pudesse existir.
Diz que foi necessário um considerável esforço para se tornar o escritor que os seus livros exigiram:
[...] sonhar um livro não é difícil. O difícil é tornar-se o autor implícito do livro dos seus sonhos (PAMUK, 2007, p. 90).
Não temos oportunidade aqui de explicitar mais detalhadamente a proposta de autor implícito que Pamuk desenvolve a partir de uma subversão conceito de leitor implícito, de Iser (1996). De todo modo, somos levados a admitir que a formação do escritor na sua relação com os livros, sua cultura e suas próprias vivências constituem um território complexo de transferências cruzadas, que produzem uma intertextualidade e um horizonte de interpretação sempre singulares.
Em outro livro, O romancista ingênuo e o sentimental, Pamuk (2013) lança algumas indicações sobre essa questão ao se referir à sintaxe da escrita que cativa o leitor. Ele fala de uma operação de descentramento, cujo objetivo é arrefecer a exigência de responsabilidade trazida pelo sentimento de realidade das coisas. Segundo ele, todo livro, assim como o sonho, evoca “desejos obscuros” (PAMUK, 2013, p. 79), quase inefáveis. A função do descentramento da escrita poética é dar-lhe voz. Por isso, acredita que todo romance possui um “centro secreto” (PAMUK, 2013, p. 25) que só se evidencia no ato da leitura.
Nesse ponto, resgatamos as considerações de D’agord, Trisk, Araldi e Sudbrack (2014). Para os autores, as manifestações de gozo agenciadas pela fantasia e pela literatura são vividas de modo impessoal, haja vista que elas só se evidenciam no momento em que aparecem no campo do Outro, no instante de fechamento do circuito pulsional.
Seguindo essa linha de raciocínio, propomos que a escrita literária mobiliza e transforma a gramática do circuito pulsional, possibilitando o compartilhamento de uma construção formada a partir da fantasia do escritor, que adquire um caráter impessoal por meio da transformação de suas vivências subjetivas em expressão literária.
Dessa forma, o contar torna-se maleável, e o leitor se insere no enredo da história a partir da báscula entre sujeito e objeto, que a sua fantasia suporta. O gozo engendrado dessa situação, no entanto, é sempre singular. Ele traz a marca da individualidade de cada sujeito, mesmo quando se acomoda, como via de regra acontece, a uma ilusão de intersubjetividade recíproca.
Oliveira e Martins (2010) também destacam a relação paradoxal na literatura entre o circuito e o objeto da pulsão. O objeto, na construção literária, possui um valor exclusivamente tático. Por isso, o que é determinante na fantasia é o percurso pelo qual a pulsão contorna o objeto (LACAN, [1964] 1988), não o objeto em si. No entanto, sua incidência como falta é essencial no processo de estruturação psíquica, na medida em que se apresenta como uma negatividade, um hiato entre uma experiência original de prazer e as tentativas de revivê-las pela mobilização dos traços de memória.
Devemos destacar, contudo, que, na literatura, ainda que se produza um bem dizer que desencadeia transformações significativas no circuito pulsional, não é garantido – nem é esse seu objetivo principal – que ela leve ao atravessamento da fantasia, tal como pondera Izcovich (2017). A análise, por sua vez, deve se empenhar desde o início em alcançar tais efeitos. Espera-se que o analisando possa experienciar abalos de sua fantasia e que esteja na condição de elaborá-los, produzindo mudanças suficientes que o habilitem a ocupar o lugar de analista, ainda que esse passo final permaneça uma aposta. Nesse caso, é o manejo da transferência que agencia esse processo, por meio da vivência em ato de uma vertente amorosa e erótica.
Conclusão
Retornamos, então, à questão inicial: O que pode ser dito acerca das diferenças e semelhanças entre a situação analítica e o fazer literário de Pamuk? Primeiro, as semelhanças. Os dois são modos de tratamento do simbólico pelo real. O ofício do escritor, para Pamuk, assim como o do psicanalista implica um trabalho com a linguagem, onde a enunciação é colocada em primeiro plano (a voz do escritor, no caso da literatura). Ambos operam com construções, cuja matéria-prima são fragmentos da fantasia. Os dois também podem ser tomados como práticas de cura, que mobilizam uma verdade subjetiva e promovem transformações.
Listamos agora as diferenças. O escritor, no caso de Pamuk, opera num sentido sintético. A via da decomposição e da dissecação prepondera no ofício do psicanalista: quando elabora sínteses, o seu valor no tratamento é meramente tático.
Na literatura, do lado do escritor estão o saber e o bem dizer, que repercutem no leitor como uma fruição estética e, eventualmente, por acréscimo, proporcionando uma elaboração psíquica. Na psicanálise, o bem dizer está do lado do analisando. Aqui o efeito estético não constitui a meta principal. Muito embora em uma análise um bem dizer possa também ser poético, sua função é propiciar uma atualização da realidade sexual do inconsciente.
O tratamento dado à fantasia também difere nos dois casos. Se a psicanálise se empenha em promover um atravessamento da fantasia pelo analisando, nada garante que a escrita literária, na perspectiva de Pamuk, no seu trabalho de descentramento, possa produzir um efeito análogo. A razão disso talvez possa ser explicada pelo lugar da transferência e das construções no trabalho do escritor.
Na análise, as construções são uma atividade do analista, que mobiliza e repercute uma dimensão poética, estética e sensível da perlaboração do analisando. Sua finalidade é a reconstituição de seu lugar na fantasia fundamental. No fazer literário, elas se apoiam na própria fantasia do escritor, repercutindo em um segundo momento no leitor, que usufrui do texto e obtém um gozo estético. De todo modo, deve-se considerar que o autor, antes de se tornar escritor, também ele próprio foi um leitor que fez um uso transferencial dos textos dos escritores que participaram de sua formação.
O escritor, ao redigir um livro, supõe um saber no leitor como lugar de endereçamento. O texto literário é descrito por Pamuk como uma mensagem cifrada que liga transferencialmente os planos da fantasia do leitor e do escritor. Tal entrelaçamento é o que torna possível ao leitor prosseguir na operação de atualização do romance a partir de suas próprias vivências. Já na análise, pelo menos de uma perspectiva lacaniana, toda incidência das manifestações da fantasia do analista durante a análise constitui um obstáculo ao tratamento, uma forma de resistência.
Levantamos, então, a hipótese de que essa imbricação dos planos da fantasia do leitor e do escritor talvez constitua o principal impedimento para a promoção da experiência de seu atravessamento, muito embora reconheçamos na literatura o agenciamento de efeitos subjetivos que incidem no circuito da pulsão, promovendo transformações. Talvez seja interessante indagar até que ponto esse fluxo cruzado de transferências no fazer literário pode ser suficientemente depurado.
Para concluir, defendemos que, apesar das fortes ressonâncias, psicanálise e literatura permanecem como caminhos distintos, que levam a destinos diferentes, mas que possuem vários e significativos pontos de encruzilhadas. Por isso, a literatura, constitui um campo de pesquisa profícuo para o analista, que pode se beneficiar do legado dos escritores como suplemento ao trabalho clínico.
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Endereço para correspondência
Fabio Chagas Rabêlo
E-mail: fabrabelo@gmail.com
Osvaldo Costa Martins
E-mail: osvaldocosta.mar@gmail.com
Karla Patrícia Holanda Martins
E-mail: kphm@uol.com.br
Recebido em: 12/06/2018
Aprovado em: 10/02/2019
SOBRE OS AUTORES
Fabiano Chagas Rabêlo
Graduado em psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Mestre em psicologia pela UFC.
Doutorando em psicologia pela UFC.
Psicanalista.
Bolsista PDSE/CAPES.
Professor assistente do curso de Psicologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI) – Campus Ministro Reis Velloso - Parnaíba (CMRV-Parnaíba)
Osvaldo Costa Martins
Psicanalista.
Graduado em psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e em direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Mestre em psicologia pela UFC.
Doutorando em psicologia da UFC, bolsista CAPES.
Professor do curso de Psicologia do Centro Universitário Fametro (UNIFAMETRO).
Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.
Karla Patrícia Holanda Martins
Psicanalista.
Graduada em psicologia pela Universidade Santa Úrsula.
Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Pós-Doutora pela Universidade de Paris 7 e pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).
Professora adjunta da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Professora nos cursos de graduação e pós-graduação em psicologia e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC.
Doutora em teoria psicanalítica pela UFRJ.