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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

Documentos da cultura /documentos da barbárie*

 

Documents of culture/documents of barbarism

 

 

Jeanne Marie Gagnebin**

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Universidade Estadual de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do texto As teses sobre o conceito de história, de Walter Benjamin, tenta-se descrever uma relação crítica e viva à cultura, em oposição a uma concepção reificante e fetichista de “bens culturais” como propriedade ou posse. Ressalta-se a importância de uma ética da transmissão, que não considera as obras do passado como substâncias imutáveis, mas como reservas de sentidos, muitas vezes encobertos e esquecidos, e de possibilidades de resistência e transformação que cabe ao presente reencontrar.

Palavras-chave: Cultura, Memória, Transmissão, Walter Benjamin.


ABSTRACT

Based on the theses “On the concept of history” by Walter Benjamin, the author seeks to describe a critical and lively relationship with culture, as opposed to a reifying and fetishist conception of “cultural assets” as property or possession.The author emphasizes the importance of a transmission ethics that does not consider the works of the past as immutable substances but rather as reserves of the senses, often concealed and forgotten, and as possibilities of resistance and transformation that must be reconciled in the present time.

Keywords: Culture, Memory, Transmission, Walter Benjamin.


 

 

Na tese VII do seu último texto As teses sobre o conceito de história (1940), Walter Benjamin descreve o “cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje por cima dos que, hoje, jazem por terra” e declara:

A presa, como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante. Chamam-na bens culturais. Eles terão que contar, no materialismo histórico,com um observador distanciado, pois o que ele, com seu olhar, abarca como bens culturais atesta, sem exceção,uma proveniência que ele não pode considerar sem horror. Sua existência não se deve somente ao esforço dos grandes gênios, seus criadores, mas também à corvéia sem nome de seus contemporâneos. Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie (2005, p. 70).

Essa fórmula teve uma fortuna crítica ímpar. Todos leitores marxistas ou de esquerda de Benjamin a usam para justificar sua desconfiança legítima em relação à cultura vigente, quando não seu desprezo por ela. Esquecem, no mais das vezes, uma outra declaração do autor, tão enfática quanto a primeira, na tese IV:

A luta de classes, que um historiador escolado em Marx tem sempre diante dos olhos, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não há coisas finas e espirituais. Apesar disso, estas últimas estão presentes na luta de classes de outra maneira que a da representação de uma presa que toca ao vencedor. Elas estão vivas nessa luta como confiança, como coragem, como humor, como astúcia, como tenacidade e retroagem ao fundo longínquo do tempo. Elas porão incessantemente em questão cada vitória que couber aos dominantes (2005, p. 58).

Como entender esse aparente paradoxo: de um lado a cultura como testemunho da barbárie que subjaz à sua produção, do outro a cultura como manancial de tenacidade e astúcia, de humor, de resistência e de questionamento da continuidade da dominação? Proponho desfazer essa contradição por meio de uma reflexão sobre dois momentos muitas vezes negligenciados pela leitura“militante”de Benjamin (assim como de outros teóricos da cultura de esquerda), a saber, sua crítica à concepção de cultura como uma acumulação de “bens” culturais e sua ênfase na decisiva significação da“transmissão” cultural. Ambos os momentos se completam num esforço de dessubstancialização daquilo que se costuma chamar de cultura: essa não consistiria num aglomerado de objetos preciosos, mas seria definida muito mais como relação espiritual viva do presente ao passado, do passado ao presente.

Para pensar a relação do presente ao passado, em particular do presente em relação à cultura que lhe foi transmitida pelo passado, Benjamin desconstrói o conceito trivial de “atualidade” que é geralmente empregado para justificar o recurso a obras antigas. É um conceito de Vergegenwärtigung ou, literalmente, de “presentificação”, muitas vezes usado quando se tenta demonstrar, por exemplo, aos alunos que vale a pena, sim, ler Platão, porque ainda haveria coisas “atuais” nesse velho pensador. É uma concepção rasa porque parte de uma imagem acrítica do presente para procurar algo no passado que se assemelha, mesmo de longe, com as preocupações desse presente insosso. Por isso, são geralmente figuras e valores muito vagos e amplos que são encontrados e exibidos como “ainda ou sempre atuais” apesar de sua roupagem caduca. Em vez de ressaltar as diferenças entre passado e presente, diferenças estas que permitiriam colocar em questão o narcisismo epistemológico do presente, esses valores ditos sempre atuais são designados como valores eternos que fortalecem as certezas da cultura dominante.

A presentificação obedece a uma concepção de cultura como “inventário”, diz com força Benjamin (GS I-3, 1974, p. 1248): “O inventário do butim que os vencedores pegaram dos seus adversários vencidos e que expõem à vista não pode ser considerado senão de maneira crítica pelo historiador materialista. Esse inventário é chamado de cultura”, diz ele, nas anotações às “teses”. A cultura como “inventário”, inventário de “bens culturais” justamente, garante o valor intemporal das obras que a tradição dominante erige como canônicas, mas, ao mesmo tempo e paradoxalmente, as declara como espólio de um morto, esse passado embalsamado e engavetado. O atual é sinônimo de intemporal.

Em oposição à concepção achatada e trivial de “atualidade” como presentificação, isto é, como repetição de um valor eterno do passado no presente, concepção apologética e repetitiva, Benjamin forja um conceito intensivo de atualidade (Aktualität) que retoma a outra vertente semântica da palavra, ou seja, vir a ser ato (Akt) de uma potência. Uma potência que jaz encoberta “como confiança, como coragem, como humor, como astúcia, como tenacidade” nas obras do passado e que cabe ao presente reencontrar. Essa atualidade plena designa muito mais a ressurgência intempestiva de um elemento ocultado, esquecido dirá Proust, recalcado dirá Freud, do passado no presente &– o que também pressupõe que o presente esteja apto, disponível para acolher esse ressurgir, reinterpretar a si mesmo e reinterpretar a narrativa de sua história à luz súbita e inabitual desse emergir.Se essa concepção lembra as reflexões do narrador da Busca do tempo perdido e do fundador da psicanálise, é porque Freud e Proust são, para Benjamin, os dois grandes modelos de uma outra relação com a memória: a temporalidade do passado não se reduz mais ao espaço indiferente de uma anterioridade que precede o presente na linha monótona da cronologia; ao contrário, momentos esquecidos do passado e momentos imprevisíveis do presente, justamente porque são separados, portanto “distantes”, se interpelam mutuamente numa imagem mnêmica que cria uma nova intensidade temporal. Em oposição à representação de uma linearidade contínua e ininterrupta do tempo histórico, representação cuja relevância ideológica para a manutenção do existente deve ser realçada, essa concepção disruptiva e intensiva de “atualidade” coloca em questão a narração dominante da história,isto é.também,a compreensão de um passado cujo sentido pode revelar-se outro e a autocompreensão de um presente que poderia ser diferente.

Essa compreensão de uma atualidade viva e subversiva (subversiva em relação ao status quo do presente histórico) pressupõe que a cultura não seja assimilada a uma acumulação de “bens”, de “bens culturais” (Kulturgüter) como denuncia Benjamin na tese VII citada no início. Tal concepção opera uma reificação das obras culturais, transformadas em mercadorias de mais ou menos valor, cuja propriedade cabe a alguns proprietários privilegiados que puderam pagar o preço exigido e assim ostentar seu próprio valor. Essa concepção bancária e,diríamos hoje,“glamorizada”de cultura, reproduz as relações reificantes e fetichistas que regem as relações dos sujeitos entre si, dos sujeitos aos objetos, e dos sujeitos “a si mesmos” na sociedade capitalista: não é uma relação viva de transformação, mas sim uma relação morta de posse e de acumulação.

Mesmo a tradição cultural de esquerda padece dessa concepção reificada quando se pergunta, por exemplo, quais obras do passado podem de direito formar a “herança” (Erbe) do movimento socialista. Tal debate foi travado, na época de Benjamin, por importantes teóricos de esquerda como Georg Lukács e Ernst Bloch. Benjamin critica os próprios termos dessa discussão porque ela continua a fazer da cultura um acúmulo de “bens” nos quais os militantes deveriam separar os objetos que consideram úteis ou não à sua luta daqueles que, como no espólio de um morto, podem ser descartados e jogados fora; isto é, como os proprietários burgueses, eles tomam os produtos da atividade humana como “coisas” imutáveis e definitivas, como “substâncias” em si independentes de sua história e de sua transmissão.

Num texto um pouco anterior à redação das “teses” (1940), um ensaio sobre “Eduard Fuchs, o colecionador e o historiador” (GS II-2, 1977) que o Instituo de Pesquisa Social, na pessoa de Horkheimer, tinha lhe encomendado, Benjamin critica implicitamente essas discussões sobre o Erbe e lhes opõe uma outra reflexão, a reflexão sobre “o processo de conservação e transmissão” do passado, das obras e dos acontecimentos do passado, um processo nada inocente, mas ele mesmo profundamente cambiante e histórico. Escreve Benjamin:

Se, para o materialismo histórico, o conceito de cultura é um conceito problemático, sua decomposição em um conjunto de bens que seriam para a humanidade objeto de propriedade, essa é uma representação que ele não pode assumir. A seus olhos, a obra do passado não é acabada. Ele não pode considerar nenhuma obra, em nenhuma parte, como cabendo para uma época enquanto disponível sem mais. Como um conjunto de formações consideradas independentemente, senão do processo de produção, do qual nasceram, mas, no entanto, do processo, no qual elas perduram, o conceito de cultura tem um aspecto fetichista.A cultura aparece aí reificada.Sua história não seria nada afora a sedimentação formada por coisas memoráveis que se acumularam na consciência dos homens sem nenhuma experiência autêntica, isto é, política (GS II-2, p. 477).

Contra o materialismo vulgar que se contenta em analisar o processo de “produção” das obras culturais e, muitas vezes, decide então de sua validade para uma tradição de esquerda, condenando, por exemplo, as obras de autores decretados conservadores ou reacionários ao esquecimento, Benjamin insiste no processo de transmissão no qual as obras do passado “perduram”, um processo que pode, aliás, realçar tal aspecto e esconder outro. Deve-se, portanto,analisar a história do processo de transmissão e desconstruí-lo criticamente. Assim, conclui também a tese VII citada no início:

Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, assim também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo (2005, p. 70).

O conceito-chave de Überlieferung pode ser traduzido também como “tradição”, mas prefiro restituí-lo de maneira mais literal como “transmissão”, ressaltando assim o processo histórico concreto, material, de desistências, de perseverança, de lutas e de violência que transporta ou não, leva ou não, transmite ou não um acontecimento ou uma obra do passado até nosso presente. Benjamin retoma aqui a reflexão crítica do romantismo alemão de Iena (ao qual tinha consagrado sua tese de doutorado), esse grande momento do idealismo especulativo, para solapar as trivialidades do materialismo vulgar. Fazem parte de uma obra de arte segundo Friedrich Schlegel, por exemplo, não só sua feitura num determinado momento temporal, mas também sua recepção, suas críticas, suas traduções, suas adaptações porque não se pode separar, senão de maneira abstrata, a obra “em si” de sua vida “para nós”. Traduzindo em termos mais materialistas, Benjamin afirmará que nenhuma obra nos chega de maneira neutra como se a tradição histórica fosse um mero depósito de produtos prontos, que esperam imóveis nas gavetas empilhadas do tempo.

A obra é transmitida até nosso presente, ou então deixada de lado, negligenciada, recusada ou esquecida num processo nem sempre consciente, mas isso é o de menos, de formação e aceitação de uma tradição histórica, processo nada tranqüilo de lutas histórico-políticas que levam, por exemplo, à formação de um cânone e à exclusão de vários autores ou de várias obras dessa tradição canônica. De maneira análoga, poderíamos pensar que o processo de formação pessoal da identidade também remete a uma narrativa canônica e exclusiva que o sujeito constrói e se transmite por assim dizer a si mesmo e aos outros, uma transmissão que pode e deve ser questionada quando ela o enclausura numa única história possível. Assim, uma análise crítica não pode se contentar com a análise do processo de produção da obra, mas deve igualmente considerar como tal obra ou tal acontecimento foi interpretado e retomado e nos chegou “através dessa interpretação”, através dessa narrativa &– e não de maneira imediata e direta. Assim também, a análise não pode se contentar em separar o joio do trigo, os autores ditos progressistas dos ditos reacionários, os acontecimentos essenciais dos secundários, pois esquece que essas etiquetas também foram afixadas por sujeitos históricos nada imparciais.“É,pois,uma ilusão do marxismo vulgar, querer determinar a função social seja de um produto material, seja de um produto espiritual, fazendo abstração das circunstâncias e dos portadores de sua transmissão” (GS I-3, 1974, p. 1161), declara Benjamin nas suas anotações aos ensaios sobre Baudelaire, um poeta tido até ele como um representante reacionário do esteticismo da corrente da arte pela arte.

Quando Benjamin afirma, no trecho citado do ensaio sobre Eduard Fuchs, que “a seus olhos (isto é, aos olhos do historiador crítico) a obra do passado não é acabada”, ele parece apontar para dois motivos diferentes: primeiro, as obras de arte, por exemplo, que pertencem ao passado, não se encerram em si mesmas, mas continuam a agir e viver na sua recepção e transmissão, como já afirmaram os Românticos; e, em segundo lugar, lendo um genitivo subjetivo, o passado continua agindo, operando, no presente, ele não é um tempo definitivamente morto, mas continua vivo, mesmo que encoberto, no presente. Essa frase caracteriza uma relação ao passado e à cultura que não é uma relação de posse e de acumulação, mas uma relação viva, ancorada numa certa ética da transmissão. Cabe ao presente, em particular ao historiador de hoje, ficar atento àquilo que jaz nos acontecimentos e nas obras do passado como promessa ou protesto, como “confiança, como coragem, como humor, como astúcia, como tenacidade”, enumera Benjamin na quarta tese “Sobre o conceito de história”, como sinal ou balbucio de um outro porvir. Nesse sentido preciso, o historiador materialista de Benjamin desconstrói a imagem engessada da tradição e da cultura e procura nas interferências do tempo, do passado e do presente, os signos de uma outra história possível.

 

Referências

Benjamin, W. (1974). Über den Begriff der Geschichte. In W. Benjamin, Gesammelte Schriften (Vol.I-2, pp. 693-704). Frankfurt/Main: Suhrkamp Verlag.         [ Links ]1

Benjamin, W. (1977). Eduard Fuchs, der Sammler und der Historiker. In W. Benjamin, Gesammelte Schriften (Vol. II-2 pp. 465-505). Frankfurt/Main: Suhrkamp Verlag.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Jeanne Marie Gagnebin
Rua Barbosa de Andrade, 642 &– Jardim Chapadão
13070-158 &– Campinas &– SP
Tel.: 19 3241-6746
E-mail: posfil@pucsp.br

Recebido: 14/12/2007
Aceito: 21/12/2007

 

 

* Este texto retoma alguns motivos desenvolvidos numa palestra no Instituo Goethe de São Paulo, 15 outubro de 2007.
** Professora titular de filosofia na PUCSP e livre-docente em teoria literária na Unicamp. Principais publicações: Zur Geschichtsphilosophie Walter Benjamins, Erlangen, 1978; Walter Benjamin. Os cacos da História, São Paulo, 1982; Histoire et narration chez Walter Benjamin, Paris, 1994 (trad. br. História e narração em Walter Benjamin, São Paulo, 1994; trad. alemã Geschichte und Erzählung bei Walter Benjamin, Würzburg, 2001); Sete aulas sobre memória, linguagem e história, Rio de Janeiro, 1997; Lembrar. Escrever. Esquecer, São Paulo, 2006.
1 As obras de Benjamin são todas citadas segundo essa edição pela seguinte abreviação: G. S. e o número correspondente do volume. Tradução brasileira de Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Lutz-Müller no livro de Michael Löwy, Walter Benjamin: Aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”, São Paulo: Boitempo, 2005.

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