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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.146 São Paulo jun. 2008

 

EM PAUTA - CULTURA

 

Do mal-estar das pobrezas

 

Uneasiness of poverties

 

 

Fernando Paixão*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Sendo o Brasil um país pobre, cuja população mal tem acesso aos meios de cidadania, é interessante observar e avaliar as diferenças existentes entre duas obras literárias que se debruçam para espelhar essa condição: Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, e Capão pecado, de Ferréz. Distantes no tempo por quase meio século, em verdade representam visões distintas da pobreza, sendo a visão de Carolina mais inocente e imediata, enquanto a visão do autor contemporâneo envereda por um grau de perversidade inexistente em sua antecessora. Sinal dos tempos ou da transformação da literatura?

Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus, Ferréz, Literatura brasileira contemporânea, Pobreza, Sociedade brasileira.


ABSTRACT

As a developing country, Brazil, whose population has barely any access to the beneficts of citizenship, it is interesting to observe and evaluate the existing differences between two literary works which mirror this condition: Quarto de despejo, by Carolina Maria de Jesus, and Capão pecado, by Ferréz. With nearly half a century between them, in fact they represent distinct visions of poverty, the former being more naïve and immediate, the latter taking us to a high degree of perversity absent in its predecessor. Sign of times or the transformation of literature?

Keywords: Carolina Maria de Jesus, Ferréz, Contemporary Brazilian literature, Poverty, Brazilian society.


 

 

Se uma das naturais vocações do olhar literário é a de estabelecer contato com a pobreza dos homens, vale a pena ressaltar algumas diferenças agudas entre a história da catadora de papéis &– retratada em Quarto de despejo,1 publicado há mais de quarenta anos, com enorme sucesso &– e o relato mais recente de Capão pecado, ficção-testemunho sobre a periferia pobre paulistana, criado por quem é de lá: o escritor Ferréz.2 Ambos, aliás, aproximam-se, sobretudo, pelo caráter de exceção em meio ao contexto da ficção brasileira contemporânea, pois se particularizam enquanto textos “autênticos”, diretos da fonte, pode-se dizer.

São muitos os confrontos possíveis entre os dois livros, mas o que interessa ressaltar aqui diz respeito, sobretudo, à expressiva distância que separa uma pobreza da outra. Já o ciclo regionalista dos anos 30 &– de Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e outros &– trouxera à cena principal das letras nacionais o registro de uma realidade agrária, pobre e que, afinal, representava uma fotografia do país através de sua gente humilde. Como movimento literário, inclusive, configurou um fenômeno de extensão nacional sem precedentes, que foi talentosamente conduzido em torno à figura de José Olympio e de sua prestigiosa casa editorial.

Em 1960, no entanto, o Brasil já se tornara urbano e certamente outras espécies de pobreza haviam surgido ao longo das décadas. Que novos pobres eram esses, vivendo agora sob o desenvolvimento acelerado da era JK? Desta vez, a melhor resposta veio não através das mãos de um escritor letrado ou profissional e sim da sensibilidade de Carolina Maria de Jesus, favelada cujo diário acabou alcançando naquele ano inesperado êxito de vendas e enorme repercussão na mídia e no meio literário.

Quarto de despejo descreve o pequeno cotidiano da favela &– variante histórica da senzala, ao final das contas &– e recorre ao miúdo dos detalhes para compor o retrato dessa mulher adulta e marginalizada, solitária e continuamente à beira de uma situação de despejo. Contudo, embora ameaçada por adversidades, a sua história revela uma posição firme e convicta quanto ao código de honra: “… O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora” (Jesus, 2006, p. 26), argumenta ela numa passagem do livro.

Captura direta da palavra feminina, o diário de Carolina mantém o tom confessional em justa medida e dá voz aos pensamentos de alguém que sofre, que sente o ronco da fome &– mas ainda assim encontra energia em si para enfrentar as dificuldades:

Fui comprar carne, pão e sabão. Parei na banca de jornais. Li que uma senhora e três filho havia suicidado por encontrar dificuldade de viver. ... A mulher que suicidou-se não tinha alma de favelado, que quando tem fome recorre ao lixo, cata verduras na feiras, pedem esmola e assim vão vivendo (Jesus, 2006, p. 56).

A pobreza guarda, neste caso, um sentido de potência moral a servir de exemplo para os leitores.

Bafejada pela sorte, Carolina experimentou uma verdadeira transformação de sua vida pessoal. Consagrada pelo reconhecimento público, logo conseguiu algum dinheiro de direitos autorais e realizou o sonho de comprar casa própria &– feito que lhe rendeu assunto para um segundo livro, Casa de alvenaria, 1961. No meio dos escritores, encontrou gente que defendeu a sua escrita (não faltando mesmo o elogio de Manuel Bandeira à força espontânea do texto), mas houve também quem lhe negasse a autenticidade, acusando-a de ter o seu diário corrigido pelas mãos de outros. Preconceito puro.

Carolina Maria de Jesus faleceu em 1977, autora de quatro livros, mas já desconhecida do público e morando num sítio afastado da grande cidade em que vivera. No final da vida, havia vencido as dificuldades maiores, mas continuava “machucada” pela experiência que tivera: “Quando matei um porco, lá na favela do Canindé, alguns vizinhos exigiram um pedaço de carne. Rondaram o meu barraco feito bicho que fareja presa”, declarou em entrevista. Tal qual uma hidra que é capaz de refazer as cabeças mutiladas, a miséria tem uma estranha capacidade de renovar suas aparições.3

Passado quase meio século, o tema continua a ser provocante e, infelizmente, mantém sua atualidade. Não por acaso tem inspirado inúmeras obras de cunho literário, mas é com Capão pecado, de Ferréz, que o depoimento de Carolina encontra o paralelo mais convincente. Publicado em 2000, alcançando no primeiro ano a cifra de alguns milhares de exemplares vendidos, oferece igualmente um retrato do meio pobre vivido na favela-senzala de Capão Redondo, na periferia da capital paulista. A diferença entre os mundos, no entanto, é o que primeiro salta aos olhos.

Narrado em terceira pessoa, o livro de Ferréz toma corpo a partir do princípio de que deve “aderir” à miséria de seus personagens. Tomar o partido deles é o que lhe interessa, afirmando desse modo uma atitude participante e que não esconde o seu ponto de vista: metido numa vida em que só respira a violência, mortes e sangue, quase não sobram alternativas para o protagonista Rael, jovem que se deixa seduzir pela namorada de um traficante e mal consegue equilibrar-se no emprego.

Envolvido num cerco de fatalidades, assiste aos amigos e inimigos metidos numa guerra de confrontos, traições. E muitos acertos de contas, realizados à base da troca de tiros, como manda a certa ética moderna. Malandro agora tem que ter extenso currículo de mortes para se sentir realizado... A antiga e singela figura do ladrão &– termo que, aliás, sumiu de circulação &– faz parte hoje das histórias de carochinha.

A pobreza nas ruelas de Capão Redondo, como se pode deduzir, perdeu em inocência o que ganhou em barbárie. A Rael não resta outra opção: “esqueceu de Deus, de sua mãe e das coisas boas da vida, apertou o gatilho e fez um buraco de oito centímetros na cabeça do Seu Oscar” (Ferréz, 2000, p. 165). Na falta de relações sociais que garantam o mínimo de identidade pessoal, a justiça tem que ser feita com as próprias mãos, de forma bestial, sem piedade.

Ferréz opta por adotar o tom “militante” da escrita, o que empobrece a qualidade literária do texto, recheado de diatribes contra os playboys da burguesia, mas ainda assim Capão pecado termina por realizar a crônica de uma pobreza outra, que transcende a questão imediata da fome. Afinal, que laços sociais restam aos miseráveis do Capão? &– ao que o texto responde: “Não temos muitas oportunidades por aqui, a não ser o tráfico, o roubo a banco, o futebol e o pagode” (Ferréz, 2000, p. 160). Encruzilhada essa que dá margem a uma mistura de discursos e que diz respeito a um entrechoque de visões.

Enquanto, na voz de Carolina, os elementos da vida buscam a organização do pensamento e dos valores morais, na versão pós-moderna do Capão, a trama ganha em tensão porque transmite uma visão temperada de revolta. Distante da miséria digna de Carolina Maria de Jesus, o jovem Ferréz busca atualizar o retrato perverso da desigualdade social brasileira, levando em conta a complexidade &– e a crueldade maior &– da vida marginal de nossos dias. Contaminado de “ideologia”, o seu texto chega mesmo a parecer uma escrita suja e irada.

Em termos de escrita, eles também se opõem. De um lado, temos a singela epopéia da catadora de papel, inspirada no modelo do bem escrever observado nos modelos literários vigentes. E de outro, um autor que sabe estar sendo lido por um leitor “burguês” e assume diante disso uma atitude coruscante, marcada por recursos de ênfase e do uso freqüente de verbos valorativos. Seu narrador mesmo confunde-se com esse universo lingüístico, contaminando de indignação quase todas as páginas.

Os dois livros, aliás, despertam no leitor um sentimento comum, de mal-estar, difícil de ser definido, mas que certamente está relacionado ao valor ético do tema e à abordagem direta de seus autores. Representam, em verdade, duas formas de pobreza bem distintas entre si, cuja diferença espelha o caminho da modernidade no país. Da esfera individual presente na visão ingênua da fome, retratada por Carolina, saltamos para um complexo mosaico de violência, envolvendo criminosos que se matam e se devoram em meio à lei da selva.

Uma mera catadora de papéis já não cumpre função nesta ciranda perversa do novo século. A pobreza, quem diria, já não reside no estômago: está agora impregnada no sangue que chega ao coração e à cabeça.

 

Referências

Ferréz (2000). Capão pecado. São Paulo: Labortexto editorial.        [ Links ]

Jesus, C. M. de (2006). Quarto de despejo. São Paulo: Editora Ática.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Fernando Paixão
Rua Pedro Ortiz 178 &– Vila Madalena
05440-010 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3816-6468
E-mail: fernando.paixao@atica.com.br

Recebido: 03/09/2007
Aceito: 10/09/2007

 

 

* Poeta e editor. Doutorado pela PUC-SP em Comunicação e Semiótica.
1 A edição original de Quarto de despejo foi publicada pela Editora Francisco Alves, em 1960. Atualmente, a edição disponível é da Editora Ática.
2 A primeira edição de Capão pecado ocorreu em 2000, pela Editora Labortexto. Atualmente é publicado pela Editora Objetiva, que também editou outros livros do autor, tais como Manual prático do ódio (2003), Os inimigos não mandam flores (2006) e Ninguém é inocente em São Paulo (2006).
3 Vale recomendar o texto “Subversão do sonho: A censura cultural nos diários de Carolina Maria de Jesus”, em que José Carlos Sebe Bom Meihy elabora uma interessante leitura sobre os diários da autora e o potencial do sentido onírico ali presente. A partir dos sonhos enunciados, o autor delineia uma visão dialética em torno do imaginário de Carolina. In Maria Luiza Tucci Carneiro, Minorias silenciadas: história da censura no Brasil (pp. 325-345). São Paulo: Edusp, Imprensa Oficial, Fapesp, 2002.