SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número47O psicanalista estranhaO grotesco, o estranho e a feminilidade na obra de Cindy Sherman índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

Notas sobre o conto “O espelho”, de Guimarães Rosa*

 

Guimarães Rosa’s “The mirror”

 

 

Yudith Rosenbaum**

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do conto “O espelho”, de Guimarães Rosa, a autora busca algumas aproximações entre cinema, literatura e psicanálise, discutindo aspectos referentes ao imaginário e seu enlace com o real.

Palavras-chave: Cinema, Guimarães Rosa, Psicanálise.


ABSTRACT

Based on “O espelho”, Guimarães Rosa’s short story, I look for some relations between cinema, literature and psychoanalises, discussing some of the ways by which the imaginary and the real interweave.

Keywords: Cinema, Guimarães Rosa, Psychoanalises.


 

 

É necessário certo grau de cegueira para poder enxergar
determinadas coisas. É essa talvez a marca do artista.
Qualquer homem pode saber mais do que ele e raciocinar com
segurança, segundo a verdade. Mas exatamente aquelas coisas
escapam à luz acesa. Na escuridão tornam-se fosforescentes.

Perto do coração selvagem, Clarice Lispector.

Interessada em pensar algumas possíveis relações entre literatura, cinema e psicanálise, pretendo desenvolver aqui um sobrevôo analítico em torno do conhecido conto “O espelho”, de Guimarães Rosa. A escolha se deve, entre outras coisas, pelas aproximações evidentes com o tema da imagem, da representação do real e do imaginário &– aspectos afins ao cinema &–, além de configurar um percurso muito próximo ao trabalho do sujeito em análise.

Guimarães Rosa é um autor que dispensa apresentações, mas de qualquer maneira vale a pena relembrar que Rosa é resultado da intersecção do romance regionalista dos anos 30, que buscava resgatar o interior do Brasil e suas mazelas, deslocando o olhar etnocêntrico do litoral para o interior desconhecido e esquecido do país, com a vertente espiritualista, que trazia o sopro da metafísica, da transcendência e da introspecção. Rosa sintetiza as duas linhas de força da literatura da época, transcendendo o mero registro documental do sertão mineiro. Através dele, o sertanejo se transforma, nas palavras do autor, em um “enxadachim”, ou seja, um ser heróico medieval, um espadachim de posse de uma enxada.

A proposta de sua linguagem é desestabilizar o status quo da língua. As formas da língua envelhecem e cabe ao escritor fazê-las recobrar sua energia primitiva, desgastada pelo uso. Sua meta é utilizar cada palavra como se tivesse acabado de nascer para limpá-la das impurezas e reduzi-la ao sentido original (Lorenz, 1983). Qualquer semelhança com o que se propõe um analista ao escutar a fala de seu paciente não será mera coincidência. Exemplos de criações lingüísticas &– que carregam revelações do real &– não faltam na obra rosiana: “passarinhos que bem-me-viam”, “sussuruído”, “adormorrer”, “sozinhozinho” (já que a palavra sozinho teria perdido seu impacto pelo uso repetitivo, sendo preciso resgatar sua força original); ou então criar um verbo pela enumeração de vogais &– “o vento aeiouava”, ou a palavra “Moimeichego”, nome de personagem da novela Cara-de-bronze, que integra Corpo de baile, de 1956, formado por vários pronomes em primeira pessoa em várias línguas: moi, me, ich, ego.

O ataque ao lugar comum, ao clichê, também atinge os provérbios e as máximas, desmontados para revelar sentidos imprevistos. Exemplos: “infelicidade é questão de prefixo”, “amor à futura vista”, “ele era um caso achado”, “no que lhe dizia desrespeito”, “num impasse de mágica”, “foi um Deus-nos-sacuda” etc.

Esse trabalho sobre o significante mostra que, para Rosa, vida e linguagem são uma coisa só. Modificando as palavras, alteram-se o olhar e o agir sobre o mundo. Daí a literatura &– e certamente o cinema &– ser um espaço de transformação do sujeito. O que vemos na tela e o que lemos na página escrita nos confrontam e nos descentram, nos capturam para uma região que, não sendo a realidade tal qual percebemos a olho nu, constitui o acesso possível a verdades sobre o ser e o real. Verdades que fora do espaço imaginário da arte não seriam visíveis. Esse é, no meu entender, o papel central do artista: ver na escuridão o que nos passa totalmente despercebido na vida e comuni carnos pela luz da arte.

De certa forma, o conto “O espelho” trata dessa questão: ver o que não se vê, deixar de ver o que sempre se vê. A idéia seria partir do espelho, tela plana, metáfora da literatura, metáfora do cinema, para discutir as complexas relações entre imagem e realidade, essência e aparência, verdade e ilusão. O narrador protagonista começa perguntando ao leitor “que sabe e estuda” se tem idéia do que seja na verdade um espelho. Não no campo da física e da ótica, alerta o narrador, mas no domínio do transcendente.

Desde o início o conto opõe um narrador, que conhece o mundo pela experiência e pela intuição, a um leitor de teorias (seremos nós?), sedento de provas científicas, mas que se deixa enganar pela ilusão de que a fotografia é cem por cento fiel ao que retrata. Para convencer esse interlocutor aparentemente mais sabido, Rosa atribui ao texto uma máscara ensaística, de estudo rigoroso e exato, quando na verdade se trata de uma narrativa ficcional. Seria como um filme que se traveste de documentário para ganhar adesão do público, escamoteando sua natureza inventiva e imaginária. Talvez como “A bruxa de Blair” (EUA, 1999, direção de Daniel Myrick e Eduardo Sanchez)1. Quem narra no conto de Rosa acredita que “tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (Rosa, 1962/1988, p. 65). Após algumas linhas, o leitor positivista &– criado para ser o duplo oposto (especular?) de um narrador aberto ao transcendente - se vê no incômodo de duvidar da sua própria imagem no espelho.

A pergunta que guia o protagonista se dirige ao estatuto da imagem em nossa vida cotidiana. Diz ele: “Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, somos, no visível? O senhor dirá: as fotografias o comprovam” (Rosa, 1962/1988, p. 65), ao que o narrador mesmo discorda: “Ainda que tirados de imediato um após o outro, os retratos serão entre si muito diferentes” (Rosa, 1962/1988, p. 65)2. O debate continua com os supostos argumentos desse interlocutor incrédulo &– que acredita, por exemplo, ser possível, a um só tempo, ver o rosto e sua reflexão no espelho. Mas a simultaneidade é impossível, diz o narrador, pois o “tempo é o mago de todas as traições...” (Rosa, 1962/1988, p. 66). Além disso, prossegue, os próprios olhos “padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram mais e mais” (Rosa, 1962/1988, p. 66). E o fecho do parágrafo é incontestável: “Os olhos, por enquanto, são a porta do engano; duvide deles, dos seus, não de mim. Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente... E então?” (Rosa, 1962/1988, p. 66).

O esperto narrador vence e convence com as armas do inimigo desconfiado, ou seja, apresentando-se como um “racional”: “piso o chão a pés e patas. Satisfazer-me com fantásticas não-explicações?” (Rosa, 1962/1988, p. 67), ele desmonta as frágeis convicções do leitor, que só pela racionalidade pode aceitar que exista algo da ordem do surpreendente, do inquietante, do que a lógica não alcança. Afinal, “são para ter medo, os espelhos”. Certamente, a dupla narrador/protagonista versus leitor descrente parece reeditar o par freqüente da obra rosiana: de um lado, o leitor culto, letrado, doutor da cidade, personagem da modernidade; de outro, o narrador oral, o contador de estórias da coletividade, o habitante do sertão arcaico, distante do mundo moderno, capaz de intuição e sabedoria diferenciadas.

A cena bizarra que o narrador conta, no intuito de confrontar o paradigma científico de seu ouvinte, é a seguinte: “Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente, vaidoso. Descuidado avistei... Explico-lhe: dois espelhos &– um de parede, o outro de porta lateral, aberta em ângulo propício faziam jogo. E o que enxerguei, por instante foi uma figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deu-me náusea, aquele homem, causava-me ódio e susto, eriçamento, espavor. E era &– logo descobri... eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?” (Rosa, 1962/1988, p. 67)3. Estranhando a si mesmo no espelho, ele começa a procurar “o eu por detrás de mim”. A crença do narrador de que existiria uma realidade mais verdadeira por trás da imagem especular, uma essência para além da aparência, move-o numa jornada analítica assim expressa: “... necessitava eu de transverberar o embuço, a travisagem daquela máscara, a fito de devassar o núcleo dessa nebulosa &– a minha vera forma” (Rosa, 1962/1988, p. 68).

Tem início, então, um processo que em tudo remete ao que Lacan chamaria de travessia do fantasma, ou seja, o confronto com o que nos atravessa sem que tenhamos consciência da trama imaginária onde se perdeu ou se alienou o nosso eu. O procedimento do narrador, para encontrar-se, é suspender ou bloquear as várias componentes que se interpenetram no “disfarce do rosto externo”, anulando-as uma por uma, “desde as mais rudimentares”, começando a não ver suas semelhanças com os animas (no seu caso, o parentesco era com a onça), passando pela anulação dos elementos hereditários (“lastro evolutivo residual”, pois “nem no ovo o pinto está intacto”), pelas “pressões psicológicas transitórias” e pelas “idéias e sugestões alheias”. Tudo é submetido a uma radical extirpação, de modo a revelar o que foi sepultado por tantas identificações. Como descortinar as capas imaginárias que encobrem nosso ser mais profundo? Não seria a análise, justamente esse meticuloso proceder no sentido de transitar pelas numerosas identificações que nos constituem e perceber onde se enredam os fios do nosso desejo? E não seria o cinema essa tela projetiva onde nos reconhecemos e nos estranhamos, onde recuperamos signos de identificação e também perdemos a familiaridade para penetrar em cantos desconhecidos?

Inevitável tocar aqui no conceito de “estádio de espelho” lacaniano. Nossa primeira noção de “eu” seria justamente uma totalidade imaginária, uma completude fantasiosa, que nos foi oferecida pelo olhar de fora (a mãe, os outros), e na qual nos colamos para obter um contorno necessário ao desenvolvimento. Levamos uma vida inteira para nos desgrudarmos desse fundo ilusório &– a bela imagem na qual Narciso se perdeu. Acreditamos, como o leitor do conto, que somos (tudo ou apenas) o que percebemos no espelho. Lacan chama atenção para esse percurso titubeante entre um corpo vivido como fragmentado até uma forma “ortopédica” de sua totalidade. Vale a pena destacar o momento em que Lacan esquematiza essa passagem, que nos parece tão próxima da experiência expressa no conto “O espelho”:

O desenvolvimento é vivido como uma dialética temporal que projeta decisivamente em história a formação do indivíduo. O estádio do espelho é um drama cuja ação interna se precipita da insuficiência à antecipação; e que para o sujeito, presa da ilusão da identificação espacial, produz as fantasias que se sucedem desde uma imagem fragmentada do corpo até uma forma que chamaremos de ortopédica de sua totalidade - à armadura por fim assumida de uma identidade alienante, que vai marcar com sua estrutura rígida todo seu desenvolvimento mental (Lacan, 1987, p. 90). (Tradução da autora).

Até que nos vemos como outro e nossas certezas se quebram em pedaços. O espelho de Rosa (cujo desenlace no conto difere do texto homônimo de Machado de Assis4) nos devolve primeiro uma imagem lacunar, desfigurada, para depois simplesmente refletir o vazio. Após meses descascando seu esquema perceptivo (“a modos de couve-flor ou buchos de boi”), o narrador se mira no espelho e nada vê: “Eu não tinha formas, rosto? Apalpei-me, em muito. Mas, o invisto. O ficto. O sem evidência física. Eu era &– o transparente contemplador?” (Rosa, 1962/1988, p. 70). E mais adiante a pergunta estarrecedora: “... não haveria em mim uma existência central, pessoal, autônoma? Seria eu um... des-almado?” (Rosa, 1962/1988, p. 71).

O que somos para além (ou aquém) das imagens que nos conformam? Seríamos, nas palavras do conto “um entrecruzar-se de influências, e tudo o mais que na impermanência se indefine? (Rosa, 1962/1988, p. 71)”. Como captar isso que nos escapa a não ser pela ficção, pelo imaginário, pela arte?

Talvez aí o cinema nos responda até mais do que a literatura quando nos apresenta imagens em ação, tão reais e que, no entanto, são a mais perfeita ilusão de movimento, montagens e cortes que delimitam o infinito incessante da vida real. Vale aqui lembrar Pier Paolo Pasolini (1967/1985)5, que diferenciava cinema de filme: o cinema seria um interminável registro da realidade pela câmera, comparável à vida em sua inesgotável e inacessível produção de possibilidades; já o filme encerra o acontecimento num limite temporal e narrativo, do mesmo modo que o enquadramento da morte encerra o ser vivo. Só com a morte, diz Pasolini, o sentido de uma vida pode ser explicitado.

Fluxo e corte (aqui representado pelo espelho, pela tela, moldura definidora de uma imagem, que assegura a cada um de nós ser algo palpável frente à dispersão que nos marca), também acena para as duas componentes fundamentais do humano: eros e tânatos, fusão e dissociação, ligação e impedimento. Entregues a Eros, seríamos pura indiferenciação e não haveria o estranhamento e tampouco o traço do caminho, a marca funda da lâmina que rasga o horizonte sem fim e sem fundo da vida.

Mas, há ainda, um último movimento no conto, que não termina no nada (como o de Machado). Anos mais tarde, um novo confronto com o espelho. Dessa vez, surge “uma luz, que se nublava, aos poucos tentando-se em débil cintilação, radiância ... Que luzinha, aquela, que de mim se emitia, para deter-se acolá, refletida, surpresa?” (Rosa, 1962/1988, p. 71). E muito mais tarde a visão final, refletida no espelho: “Sim, vi a mim mesmo, de novo, meu rosto, um rosto: não este, que o senhor razoavelmente me atribui. Mas o ainda-nem-rosto &– quase delineado, apenas &– mal emergindo, qual uma flor pelágica, de nascimento abissal... E era não mais que: rostinho de menino, de menos- que-menino, só. Só. Será que o senhor nunca compreenderá?” (Rosa, 1962/1988, p. 72).

Talvez o espelho &– tela do cinema, escrita literária &– não seja apenas imagem alienante, retrato infiel de nós mesmos. Desse espelho brota uma luz nova, face renovada e desconhecida (inconsciente?) para o sujeito, um outro si-mesmo nascido da desmontagem das identificações, recomeço original e originário. Descentrado, desviante da cômoda identidade tão conhecida, o homem descobre na sombra uma luzinha surpreendente, rostinho de menino.

Para terminar esse percurso focado e desfocado, relembro a frase de Máximo Górki quando assistiu aos primeiros dez minutos da história do cinema, exibido pelo cinematógrafo dos Irmãos Lumière, em Paris no ano de 1895. Tratava-se da famosa cena da “Chegada do trem na estação Ciotat”:

Surge um trem que, tal qual uma flecha, mergulha direto sobre o espectador. Cuidado! Ribombando na obscuridade, ele se apressa em transformá-lo num saco de pele esfolada, cheio de carniça humana e ossos quebrados, e teme-se que ele destrua esta sala, esta casa onde abundam o vício, as mulheres e a música, onde o vinho corre em torrentes, só deixando atrás dele ruínas e poeira. Mas na realidade não passa de um trem fantasma” (Sampaio,2000, p. 54).

Ilusão, imaginação, fantasmas do imaginário gerando efeitos de realidade. Talvez sejamos um pêndulo a jamais tocar por inteiro a polaridade do real, como as linhas de uma função assintótica que beiram o impossível, sem nunca alcançá-lo. Mas, a julgar pelo texto de Rosa, é preciso partir das imagens que nos constituem, desconstruí-las e desvendar um núcleo inexistente. Só então vislumbramos um eterno recomeçar, reescrevendo a história sem fim de nós mesmos.

 

Referências

Assis, M. de (1994). O espelho. In M de Assis, Obras completas (Vol. 2, pp. 345-352). Rio de Janeiro: Nova Aguila.        [ Links ]

Freud, S. (1976). O estranho. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 17, pp. 275-314). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919).        [ Links ]

Lacan, J. (1987). El estadio del espejo como formador de la funcion del yo. In L. Lacan, Escritos I (pp. 86-93). México: Siglo Ventiuno.        [ Links ]

Lorenz, G. (1983). Diálogo com Guimarães. In E. F. Coutinho et al. (Orgs.), Guimarães Rosa (pp. 67-92). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.        [ Links ]

Pasolini, P. P. (1985). Observações sobre o plano seqüência. In E. Geada (Org.), Estilísticas do cinema (pp. 71-76) . Lisboa, Dom Quixote, 1985. (Trabalho original publicado em 1967)        [ Links ]

Rosa, J. G. (1988). Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1962).        [ Links ]

Sampaio, C. P. (2000). A potência do imaginário. In G. Bartucci (Org.), Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação (pp. 45-69). Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Yudith Rosenbaum
Rua Paraguaçu, 174/52 &– Perdizes
05006-010 &– São Paulo &– SP
E-mail: yudith@uol.com.br

Recebido: 26/05/2008
Aceito: 30/06/2008

 

 

* Literatura, psicanálise e cinema. Artigo apresentado na mesa “O foco da imagem real arrasa a imaginação desfocada”, em parceria com o cineasta Ugo Giorgetti, no Primeiro Encontro Bienal de Psicanálise e Cultura da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto, junho de 2008.
** Professora de literatura brasileira na USP, formada em psicologia pela PUC-SP e pesquisadora da interface da literatura com a psicanálise. É autora, entre outros, dos livros Manuel Bandeira: Uma poesia da ausência. São Paulo: Edusp/Imago, 1993, e Metamorfoses do mal: Uma leitura de Clarice Lispector São Paulo. Edusp/Fapesp, 1999.
1 Sobre essa e demais referências ao cinema, devo ao ensaio “O cinema e a potência do imaginário”, de Camila Pedral Sampaio, do livro Psicanálise, cinema e estéticas da subjetivação (Sampaio, 2000).
2 Grifo do autor.
3 Em uma nota de rodapé no texto “O estranho” (1919), Freud relata, curiosamente, uma cena bastante semelhante a essa, o que torna ainda mais pertinente aproximarmos ambos os textos: “Estava eu sentado sozinho no meu compartimento no carro-leito, quando um solavanco do trem, mais violento do que o habitual, fez girar a porta do toalete anexo e um senhor de idade, de roupão e boné de viagem, entrou. Presumi que ao deixar o toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e entrado no meu compartimento por engano. Levantando-me com a intenção de fazer-lhe ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta. Recordo-me ainda que antipatizei totalmente com a sua aparência.” (Freud, 1919/1976, p. 309).
4 Refiro-me ao conto “O espelho (Esboço de uma nova teoria da alma humana)”, de Machado de Assis, do livro Papéis avulsos. Nesse texto, Machado perfaz um caminho em tudo contrário ao de Guimarães Rosa, embora partindo de uma semelhante cena matriz, qual seja, a experiência de um alferes, que sem a farda não se vê mais refletido no espelho. Em Rosa como se verá aqui, a individuação passa pela anulação de si como abertura para um encontro radical com a própria natureza humana, solapada pelas determinações de toda ordem. Já em Machado, o ser não existe para além das identificações imaginárias:“o alferes eliminou o homem”, ou seja, a imagem social representada pela farda como insígnia de inserção e de status destruiu o indivíduo dela portador. Sem o seu uniforme e o público para o qual exibir-se, o alferes não é nada, tendo desaparecido sua imagem no espelho sem qualquer chance de resgate de um outro mais autêntico (Assis, 1994, pp. 345-352).
5 Citado por Sampaio, 2000, p. 32.