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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013
ARTIGOS
Entre a criação e a invenção: a busca pela forma em George Steiner, Wilfred Bion e Rem Koolhaas
Between creation and invention: the search for form in George Steiner, Wilfred Bion and Rem Koolhaas
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
A questão central subjacente a este artigo são as limitações da palavra, e, por extensão, da linguagem na apreensão, registro e comunicação da experiência emocional. Bion destacou-se no cenário psicanalítico por tentar contornar estas limitações pela criação, ao final de sua obra, de uma "linguagem de ficção científica" que, ao integrar os vértices místicos, estéticos e científico-filosóficos, tem nos ajudado na clínica a nos dirigir a nossos analisandos com uma "linguagem certeira". Encontrei na extensa obra ensaística de George Steiner um rico material para nos ajudar a entender a forma a partir da poiesis filosófica e poética. Para encerrar, pareceu-me inspirador fazer referência ao provocador conceito de "espaço-lixo", proposto pelo arquiteto-urbanista Rem Koolhaas, talvez o maior estudioso atual dos efeitos sociais caóticos da pós-modernidade.
Palavras-chave: Forma, Criação, Invenção, Metapsicologia.
ABSTRACT
The central question in this article is the limitation of the word and language in the register and communication of emotional experience. Bion tried to surpass this limitations creating a "language of science fiction", to integrate mystical, aesthetical and scientific-philosophical vertices. I found in the work of George Steiner a rich material in order to help us to understand form springing from philosophical and poetical poiesis. Finally, I mention the concept of "junkspace", built by the architect Rem Koolhaas.
Keywords: Form, Creation, Invention, Metapsychology.
Nenhuma obra, por mais iconoclasta ou "original"
(o que significa, exatamente, essa palavra?)
chega a si própria ou a nós mesmos sem pré-
-figurações. Pode haver movimentos audaciosos,
mas nunca há nenhum salto quântico.
(Steiner, 2011, p. 270).Todo homem nasce original e morre plágio.
(Millôr Fernandes)
1. Introdução
Acho legítimo atribuir a gênese desta comunicação a meu interesse em divulgar os estudos que tenho desenvolvido a respeito de estética e metapsicologia (com especial ênfase no desvendamento dos padrões estéticos subjacentes à obra de Bion), bem como na oportunidade de ampliar nossa compreensão da gênese do pensamento através das magníficas contribuições de George Steiner à poiesis intrínseca à filosofia e à poesia.
Segundo Pierre Kaufmann (1993), o termo "metapsicologia" expressa a tensão entre um ideal de completude epistemológica e a realidade de uma fermentação original de onde não se pode excluir a "estranheza", o "inesperado" e o "misterioso". De fato, Freud, como sabemos, anunciou sua disposição de escrever um livro sobre os Preliminares para uma Metapsicologia, constituído por doze artigos, dos quais só cinco sobreviveram (já que se admite que os demais possam ter sido destruídos). De qualquer modo, a mais famosa definição de Freud para a metapsicologia é essencialmente descritiva: "Proponho que ao conseguirmos descrever um processo psíquico em seus aspectos dinâmico, topográfico e econômico, poderíamos nos referir a ele como uma figuração ou representação [darstellug] metapsicológica" (Freud, 1915/1973a, p. 181).
Admitamos a tese de que este "retrato metapsicológico" freudiano possui uma moldura operativa constituída pelo artigo de 1905 sobre o Witz e sua relação com o inconsciente, e pelo artigo de 1919 sobre o estranho, Das Unheimliche. Estes dois artigos ressaltam com insistência a participação dos elementos econômicos e estéticos na operacionalidade do witz-arbeiten (aquilo que gera "desconcerto e iluminação"1) e da gênese da vivência de estranhamento.
Em função destas premissas, desenvolvi para meu uso pessoal a seguinte definição de metapsicologia: a metapsicologia é constituída pelo conjunto dos esforços econômicos empreendidos pelo psiquismo para representar a experiência emocional, através de uma artimanha estética geradora de desconcerto ou iluminação.
Creio que nossa experiência clínica em psicanálise já tenha nos demonstrado que a linguagem é nosso "pecado natural"2 inevitável, em função de sua deficiência diante da tarefa ciclópica de intermediar a transformação de nossos sentimentos em pensamento. Quer dizer então que a "talking cure" caiu em pecado? Se a palavra for uma teoria sabidamente falsa (Coluna 2 de Bion) ou um veículo transparente para transmitir uma mensagem sem contaminar sua eficácia, como nos dizem hoje os designers gráficos, será que encontraríamos uma outra matéria-prima para a metapsicologia psicanalítica? A hipótese de trabalho que quero propor é de que esta matéria-prima poderia ser a forma.
Os artistas sempre estiveram mais cônscios da importância da forma na constituição da natureza do que os cientistas. Um antigo provérbio chinês definia o fazer poético como "a captura do céu e da terra na jaula da forma". Em sua famosa Ode a uma urna grega, Keats exclamava com ardor: "Ática forma! Tu, forma silenciosa, a mente nos tortura. A beleza é verdade, a verdade beleza". Nos Four Quartets, T. S. Eliot chamava nossa atenção para o fato que "Só pela forma, o padrão / Podem as palavras ou a música /alcançar a tranquilidade". Coleridge, por seu turno, descreveu a metamorfose espiritual através do aforismo: "Tal a vida, tal a forma".
Num famoso libelo em que contrapõe a superioridade da pintura em relação à poesia, Leonardo da Vinci argumentava que:
Se o poeta é tão livre quanto o pintor na invenção, as suas ficções não são tão satisfatórias aos homens quanto a pintura, porque se a poesia se aventura a figurar a forma, as ações e os locais com a palavra, o pintor lida com a real similitude das formas para representá-las. Diga-me pois o que é que está mais próximo do homem, o nome do homem ou a imagem do homem? O nome do homem varia com os diferentes países, ao passo que a sua forma só é modificada pela morte. (1970, p. 327, tradução do autor)
2. George Steiner (1929 – )
Um dos mais importantes pensadores da atualidade, Steiner doutorou-se por Oxford, lecionou em Cambridge, Princeton, Stanford, Yale e Genebra, tendo publicado dezenas de livros sobre linguagem, pensamento, literatura, música, enfim, sobre toda a transmissão do conhecimento.
Em seu incomparável curso sobre as gramáticas da criação, ministrado em 1990 na Universidade de Glasgow, buscando respostas para o sentido da criação, Steiner começa postulando um problema ancestral em coro com Leibniz: "Por que o Nada não prevaleceu?" Que força desconhecida induziu, a partir de um caos sem forma, o surgimento da matéria orgânica e da vida, os rituais de sobrevivência, as técnicas de caça e coleta de alimentos, a geometria sagrada, a arquitetura, as epopeias de Homero, os pensamentos de Platão, a obra de Shakespeare, a filosofia de Bergson, Nietzsche e Heidegger e a poesia de Paul Celan? Qual o significado, em última instância, da criação? De que forma a criação na arte pode se comparar à criação do mundo? O que fazia com que Tolstói chegasse a se considerar um rival de Deus? Em suma: seria possível falarmos em criação sem invocar a esfera do sagrado?
No entender de Steiner, seria o postulado de uma "singularidade", de um começo no tempo, que torna necessário o conceito de criação. Será que tal postulado estaria inscrito na mentalidade humana? Seria possível, no plano da imediatez, da intuição, imaginar ou apreender significados substantivos ligados a uma existência sem origem? É interessante constatar-se que não possuímos mitos nem imagens de uma divindade não criadora.
Por outro lado, nossas definições do divino, de uma forma tautológica, estão sempre associadas ao atributo da criatividade. Deus é, por autodefinição, Le Grand Commenceur ("O Supremo Iniciador"), se emprestarmos a expressão com a qual René Char designou o poeta. Um Deus estéril, um Deus que no idioma hegeliano fosse incapaz de negar a negação, seria um insolúvel escândalo lógico.
Os seres humanos acreditam que a totalidade dos dados sensoriais e empíricos fornecidos e organizados pela observação, as ciências e a análise racional não dão conta de compreender o mundo: esta convicção seria a base de nossa cultura. Portanto, mais que homo sapiens somos homo quaerens, um animal que funciona segundo o princípio do pedir e do procurar: é esse impulso que mobiliza a linguagem e a imaginação para estabelecer a convicção de que o "outro" existe. A Psicanálise parte deste ponto ao perceber que a criação de uma identidade própria implica na entrega entusiasta ao conhecimento do outro: ou, como resumiu Paul Celan, "o máximo de mim está em você".
Segundo Steiner, uma discussão das gramáticas da criação na tradição ocidental apoia-se no intercâmbio linguístico e semântico entre o hebraico, o grego e o latim. Na Torá, o vocabulário da criação, da modelagem na roda do oleiro e da causação, é algo central. Em grego, a esfera denotativa e conotativa do poieo, e seu derivativo poieseo, inclui formas imediatas de ação, o plano da fabricação material e certo nível de licença poética. Já a creatio latina fundamenta-se na biologia e na política: sua base é a geração de filhos e a indicação de magistrados. Os termos invenio (descobrir), inventio e inventor (inventar e, por extensão "imaginar"), originam-se da junção de in + venio, ou seja, "vir em direção a", "cair sobre" e, por extensão, "encontrar". O latim invenire pressupunha tudo aquilo que podia ser "descoberto" ou "encontrado" como se o universo já existisse, pronto para ser desvelado ou para que a divindade pudesse tropeçar nele. É isto que está implícito no célebre aforismo de Picasso: "Eu não procuro, eu encontro".
Na Roma antiga, o verbo fingere tinha o sentido literal de "modelar na argila" e em seguida, por extensão, "modelar" (no sentido físico e moral), mas também "imaginar" e "representar" (daí tanto o francês feindre quanto o nosso "fingir"). O fictor seria tanto um auxiliar de ritos sacerdotais que prepara as oferendas quanto Dédalo, o criador de imagens. A partir de meados do século XVI, no entanto, o conceito de "invenção" passa a ser maculado com as conotações de "fingimento", "artimanha" ou "fabricação", criando em torno de si uma aura de falsidade. Atualmente, ambos os sentidos coabitam: tanto o sentido de origem, produção e primeiro vislumbre quanto o de possível mentira e ficção.
Há uma inevitável contiguidade entre as noções de "criação" e "invenção", mas a ideia de criação parece impermeável a sugestões de falsidade que rondam a invenção: para nós, um grande artista é um criador, não um inventor, seria venal pensarmos que "Deus inventou o universo". A criação não cessa de nos assombrar da mesma forma que o trovão ou um raio que corte a noite estrelada, mas a invenção ainda retém um sentido de poiesis ao produzir uma realidade virtual que ultrapassa a percepção e os limites da sensibilidade humana.
Outro ponto importante diz respeito às associações que estabelecemos, talvez inconscientemente, entre a invenção e a forma, por um lado, e a criação e o conteúdo, por outro: o conteúdo, assim, implica um vínculo profundo com a criatividade e com a dinâmica de certos atos geradores. O conteúdo forma, as formas substanciam. A distinção entre o inventado e o criado acaba sendo abolida pelo horizonte do estético, do semiótico e também do metapsicológico, como espero demonstrar ao falar de Bion. De qualquer forma, Shakespeare já intuía no Ricardo II que "pensar é procriar":
Meu cérebro oferecer-se-á de esposa para minha alma,
E minha alma será um pai, e ambos procriarão
Uma geração de pensamentos tranquilos e férteis:
E serão estes pensamentos que povoarão este mundinho...
(Shakespeare, 1974, p. 835, tradução do autor)
Em seu último livro, Steiner (2011) dispõem-se a explorar a possibilidade da existência de uma "poesia ou música do pensamento", de intuições que antecedam a própria linguagem e que permitam tanto ao filósofo quanto ao literato escapar das "dinâmicas executivas e limitações da fala humana". Não por acaso, de Plotino até o Tractatus de Wittgenstein, a essência da mensagem filosófica reside naquilo que não é dito e que jaz silente nos interstícios dos textos. Ou então os filósofos têm tentado construir uma nova linguagem, um idioleto, como Derrida, que bebeu nas fontes do surrealismo, do dadaísmo e da escrita automática. Há alguma dúvida de que aquilo que melhor expressa a Fenomenologia de Hegel é o non de non de Edith Piaf, uma dupla negação que deleitaria o filósofo?
Parece ter sido o descobrimento da metáfora que permitiu o despertar do pensamento abstrato e desinteressado. Não é só a linguagem que está saturada com a metáfora, mas também nossa capacidade de vislumbrar e examinar mundos alternativos, de construir possibilidades lógicas e narrativas que transcendam as restrições empíricas. A metáfora desafia e se sobrepõe à morte, transcendendo o espaço e o tempo.
Consideremos, por exemplo, o Noturno do notívago ao léu, que encerra o Assim falava Zaratustra:
Oh Homens! Acautelem-se!
Qual a mensagem da meia-noite profunda?
"Eu dormi, e dormi,
Despertei de um sonho profundo:
O Mundo é profundo
Mas mais profundo que o dia lembrado
É profunda sua dor –
O desejo jubiloso é mais profundo do que a dor do
coração:
A tristeza ordena: suma!
Mas todo desejo jubiloso busca a eternidade –
Busca uma eternidade profunda, profunda!"
(Nietzsche citado por Steiner, 2011, p. 220, tradução
do autor)
Nesta construção, a ontologia e a poesia ressoam de modo soberano. O recurso retórico da repetição de palavra é um artifício expressivo emprestado da música: a própria pontuação complexa evoca uma notação musical. Todo conjunto está impregnado com a densidade e profundidade da escuridão do meio da noite. A profundidade, seja filosófica ou poética, é em si mesma uma forma viva de escuridão. Nietzsche nos revela aqui as penumbras que flutuam entre o sono e a vigília, uma profundidade de sofrimento e de desejo que, através do contraste entre apetites tão primitivos3, causa uma dor mais aguda que aquela do coração. A sensualidade almeja a eternidade, uma "eternidade profunda, profunda", já que se constitui numa força de vida além do bem e do mal.
Após resenhar de forma magistral a fome radical pela forma estética desde os pré-socráticos até os filósofos-poetas como Hegel, Bergson, Nietzsche, Heidegger e Celan, Steiner faz uma curiosa crítica epistemológica a Freud, sugerindo que o pai da Psicanálise teria subestimado a "paixão pelo conhecimento" que, a seu ver, representaria uma libido mais poderosa que a sexual. Sua conclusão é provocativa: a paixão intelectual desinteressada pode ser melhor explicada que o amor?
Mas, a crítica a Freud estende-se à amostra viciada de suas pacientes neuróticas, à sua negligência da historicidade, sua desconsideração da sociologia dos sonhos e das estruturas generativas da linguagem. Ao colocar Freud como um mestre da prosa alemã, escorando seu método na premissa de que "as palavras falam o mundo", como se a sintaxe se relacionasse organicamente com as realidades por ela descritas, Steiner reduz a Psicanálise a uma sofisticada criação mitopoética. Em nenhum momento, no entanto, ele deixa transparecer a mínima noção sobre a natureza do trabalho onírico, sobre as dinâmicas do campo transferencial ou sobre o papel da identificação projetiva na constituição da identidade: em resumo, fiel às suas origens, ele se mostra alheio às implicações metapsicológicas da natureza humana. No entanto, mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, sua contribuição me parece inestimável a nós psicanalistas.
De fato, ele nos convence que, na história da filosofia ocidental, foi Heidegger quem realizou a mais radical subversão da linguagem no limiar do silêncio. Seus neologismos, suas redefinições lapidares de termos conhecidos, suas torções violentas da sintaxe engendram um idioleto hipnótico, por vezes até repulsivo, que nos convence que somos falados pelas palavras, e que, portanto, as palavras seriam os verdadeiros donos do homem.
A tese explícita de Steiner é que a poesia tenta reinventar a linguagem inoculando-a com um sopro de vida, enquanto a filosofia trabalha para tornar a linguagem rigorosamente transparente, para purgá-la de suas ambiguidades e confusões. No entanto, sua tese implícita é que a filosofia e a poesia "pós-linguísticas" estão cada vez mais ancoradas em gêneros híbridos como a música, a dança, as artes figurativas e abstratas: estão ancoradas na forma, eu diria. Assim sendo, o significado poderá ser "dançado" ou transformado num jogo, confirmando a formulação de Huizinga de que somos, em essência, homo ludens. Segundo Meg H. Williams, algo semelhante ocorre com quem se dedica ao desenho com modelo vivo:
[…] as linhas traçadas pelo modelo no espaço são um tipo de dança abstrata, que o desenhista traduz em traços no papel […] As linhas não existem na natureza, mas a linha desenhada tem o poder de traduzir o tridimensional em bidimensional, devido às suas intensas qualidades magnéticas. […] O desenho é uma atividade a salvo das complicações da expressão verbal, trazendo-nos de volta à infância da raça humana. (2010, p. 123 e s.)
3. Wilfred Bion (1897 – 1979)
Em artigo recente, sugeri que, na esteira de Bion, seria legítimo afirmar-se que "pensar é trans-formar" (Junqueira Filho, 2011, p. 309).
Através de sua teoria das transformações, Bion (1965) ampliou a teoria kleiniana da identificação projetiva e dos objetos internos numa teoria do conhecimento que envolve o estabelecimento de uma tensão entre o afeto e sua abstração correspondente: é esta tensão, descrita por Meltzer e Meg Williams como conflito estético, que nos autoriza a propor a forma como o elemento metapsicológico essencial. Em que medida a personalidade pode ser considerada como algo que possui uma forma? Indaga Bion. A forma, diz ele, está implícita tanto na trans-forma-ção quanto na de-forma-ção, no sentido exposto por Poincaré:
Se olharmos o mundo refletido num daqueles espelhos complicados que deformam os objetos de modo estranho, a relação mútua entre as diferentes partes do mundo não se altera […] nós detectamos prontamente a deformação, pois o mundo real existe independentemente de sua imagem deformada […] Mas se imaginarmos a deformação de nosso corpo como se ele estivesse refletido num espelho já não poderíamos nos fiar no corpo como instrumento de medida e, então a deformação em si já não pode ser avaliada. (citado por Jacobus, 2005, p. 236)4
À visão clássica que considerava que a geometria euclidiana teria derivado da experiência do espaço, Bion contrapõe a sugestão de que sua origem intrapsíquica seria a experiência do "espaço" onde um sentimento, emoção ou qualquer outra vivência mental "estavam".
Em Transformations, Bion descreve a tarefa do analista como a de um expectador de uma obra de arte executada num meio, numa escala ou num código cromático que lhe é desconhecido (Bion, 1965, pp. 114-115). O psicótico pode falar de um "pênis escuro de raiva" ou de um "olho verde de inveja", fazendo parte de uma pintura: como o analista não reconhece esses objetos, ele pode achar que se trata de uma alucinação.
Bion acreditava que o psicanalista só se consegue ouvir por seus analisandos se utilizar aquilo que chamou de "linguagem certeira", ou seja, uma linguagem que seja tanto um prelúdio para a ação como ela mesma um tipo de ação (Bion, 1970, p. 125). Poder-se-ia dizer que esta é "a forma de comunicação psicanalítica eficaz". Ele nos oferece um belo exemplo disso num diálogo de sua trilogia Uma memória do futuro, onde fica claro que o psicanalista não pode furtar-se a usar uma linguagem chula, caso ela lhe ofereça um máximo de eficiência:
Roland: Lembro-me da moda de se falar de "Figuras Parentais": a paisagem mental era de tal ordem que as pessoas mal conseguiam enxergar seus pais genéticos de tanto que o ar estava poluído de "Figuras Parentais".
P. A.: Os termos técnicos não estão isentos de de-grada-ção: é por isso que eu separo as sílabas, na esperança que a retomada de uma dificuldade de aprendizado infantil possa reforçar minha comunicação. Será que nós não devíamos deixar nossos termos técnicos constantemente na oficina para reparos? Se eu uso a expressão "bloody cunt" ["porra de xoxota!"], não é porque ela esteja ligada ao sexo anatômico, seja o masculino ou o feminino, nem com hematologia, nem com o aspecto sagrado da religião5, mas porque, pelo menos no ocidente, ela é universalmente compreendida, apesar de degradar tanto quem a utiliza como quem a recebe. (Bion, 1991, p. 492)
Neste diálogo, Bion ilustra que uma expressão como "figuras parentais" pode se transformar num jargão, tornando-se uma moeda de troca aviltada (aquilo que, ironicamente, ele chamou de "Jargonificador Satânico"). Por outro lado, uma expressão chula, mas que guarda "a economia selvagem dos hieróglifos, ou a clareza da inarticulação primitiva", como diria Beckett, pode cumprir muito melhor sua missão de funcionar como "linguagem certeira".
Ao circunscrever o background intuitivo psicanalítico por um termo como "pré-concepção", Bion se justifica apoiando-se na teoria das formas de Platão. Na sua interpretação, "Vários fenômenos, como o aparecimento de um belo objeto, são significativos, não porque o objeto seja belo ou bom, mas porque eles servem para 'lembrar' o observador do belo ou do bom que outrora foi conhecido, mas que já não o é. Este objeto, do qual o fenômeno serve de lembrete, seria a Forma" (Bion, 1965, p. 138). Platão torna-se assim um avalista para o conceito de preconcepção, do objeto interno kleiniano, e da antecipação inata. É este pano de fundo que levou Bion a afirmar reiteradamente que a cada nova sessão sempre estaremos diante de um "infinito vazio e informe". Bion, aliás, identifica Milton com Galileu, cujo telescópio representaria a contraparte sensorial da "faculdade intuitiva", aquela que confere forma ao amorfo.
Para que a personalidade experimente sua existência, a função de autoconsciência precisa estar presente como um fenômeno contínuo. Bion descreveu algumas situações clínicas onde a ausência de um continente estruturado leva a personalidade a evacuar ou a deixar esvair esta função: o resultado é a instalação de uma ansiedade psicótica que ele denominou de mindlessness, e que poderíamos entender como uma liquefação do self. Na personalidade não-psicótica, uma dificuldade equivalente apresenta-se na expressão de fenômenos inefáveis, aqueles órfãos de palavras (word-less).
No entender de Bion, a essência do processo psicanalítico não reside na revisão de experiências passadas, mas sim no acesso a sentimentos atuais que serão transformados pela função alfa em ideogramas.
O seminal artigo de Serguei Eisenstein, o pai da montagem cinematográfica, O princípio cinematográfico e o ideograma, publicado em 1929, é extremamente útil para nossa compreensão do processo de ideogramaticização proposto por Bion. A junção de dois hieróglifos copulativos (hyuei-i) produz algo novo, um conceito. Esta foi a origem do ideograma: a combinação de dois elementos passíveis de serem pintados permite a representação de algo que não pode ser graficamente retratado, uma faca + um coração = tristeza. Observando este tipo de composição, Eisenstein exclamou: "Mas isto é montagem!". Como em toda arte, a montagem é conflito, ou seja, uma "transformação imagética do princípio dialético".
No meu entender, para Bion o ideograma, produto da função alfa, não deve ser confundido com um símbolo. Uma boa definição de símbolo sugere que ele é a forma adquirida por um pedaço de conhecimento inefável quando se torna visível, respirável, audível ou ingerível. Ele possui uma "existência finita" que aponta além de si para "formas de relações num universo infinito" (Bion, 1965, p. 46). Como nos alerta Meg H. Williams, é algo que toma uma forma e que molda a personalidade, e não algo que é moldado por ela (2010, p. 56). Os símbolos, por serem expressivos, são fontes de inspiração; os signos, por serem referenciais, são fontes de convencimento ou conversão.
Alguns psicanalistas, como Civitarese, sugerem que pensar é dar forma a um sentimento. Bion descreve isto bem numa passagem da Memória do Futuro:
Roland: Vocês mulheres são todas iguais. Ela é uma víbora cruel. A serpente não tentou Eva; foi ela que tentou a serpente. Eu a vejo agora, deslizando pela árvore e sua língua tremulando à medida que Eva a acaricia.
Alice: Boa noite... eu já estou quase dormindo.
Roland: Você não passa de um diabinho bem feioso. Quem é você? Você não é o diabo? Seria um pesadelo? Você não é um pesadelo? Você não é um fato.
Du: Eu sou Futuro do Passado: a forma da coisa a existir. (Bion, 1991, pp. 273-274, itálico meu)
Neste diálogo, Roland (representando o raciocínio lógico) defronta-se com o nascimento em si de uma ideia embrionária denominada Du ("tu" em alemão, representando o Outro que é desconhecido), deixando claro que, enquanto esta ideia não adquirir uma forma, será vivida como um corpo estranho persecutório. Pode-se conjecturar que a ideia em questão pretende representar o sentimento de desconfiança de Roland em relação às mulheres, ou seja, a tentativa de dar uma forma a este sentimento.
4. Rem Koolhaas (1944 – )
Um dos mais prestigiados arquitetos urbanistas da atualidade, Remment Lucas Koolhaas é professor de Arquitetura e Desenho Urbano na Universidade de Harvard. Vencedor em 2000 do prêmio Pritzker de Arquitetura, tem estudado o urbanismo da pós-modernidade, em especial as formas de coabitação caótica. Entre seus projetos de destaque estão o Kunsthal (Roterdã, 1992), o Museu Guggenheim (Las Vegas, 2001), a Casa da Música (Porto, 2005) e o Central Chinese Television (Pequim, em construção).
Há cerca de doze anos, o OMA (Office for Metropolitan Architecture), por ele fundado em Londres, vem desenvolvendo o conceito de junkspace, a ideia de um "espaço-lixo", que é o resíduo que a humanidade tem deixado em nosso planeta, depois que a modernização termina seu curso.
O junkspace, nos diz Koolhaas, "é um colossal objeto transicional, um imenso paninho de dormir que cobre a terra, a soma de todas as decisões não tomadas, problemas não enfrentados, escolhas não adotadas, prioridades não definidas, contradições perpetuadas, concessões feitas, corrupção tolerada... Império vago da indistinção, ele funde público e privado, reto e torto, inchado e esquálido, alto e baixo, para oferecer uma colcha de retalhos incansável do perpetuamente desconjuntado".
A continuidade seria a essência do junkspace, na medida em que aproveita qualquer invenção que permita a expansão, que junte recursos, que promova a desorientação (espelhos, polimento, eco), e que instale uma infraestrutura contínua: a escada rolante, o prinkler, a porta corta-fogo, a cortina de ar quente, o ar condicionado.
No junkspace não há projeto, mas sim proliferação criativa, sua estética "bizantina" produz milhares de cacos gerando um populismo pan-óptico alucinado, sua arquitetura é efêmera como a pele de um réptil, ela renasce toda segunda-feira de manhã.
A regularidade e a repetição são as palavras de ordem, os materiais de construção se tornaram cada vez mais modulares, unitários e padronizados. Em vez de tentar extrair a forma do caos, o pitoresco agora é arrancado do homogeneizado e a materialização é provisória: verbos desconhecidos na história da arquitetura como prender, grudar, despejar, colar, duplicar, fundir, passaram a ser indispensáveis.
O junkspace representa uma tipologia degradada de identidade cumulativa e promíscua, uma substituição da espécie pela quantidade: sua essência é como um líquido que pode se condensar em qualquer forma, ou como uma teia sem aranha.
Quanto à consciência de localização o junkspace é pós-existencial: ficamos sem saber onde estamos, em dúvida para onde vamos e perdidos de onde viemos. Quem somos? De tanto subestimá-lo, não conseguimos entendê-lo e, por isso, jogamos fora as chaves...
Em termos políticos, metade da humanidade polui para produzir e a outra metade polui para consumir. O junkspace conhece todos nossos desejos e emoções, antecipa nossas sensações como um Big Brother que fizesse uma espionagem visceral.
A previsão para o terceiro milênio é que o junkspace assumirá a responsabilidade pelo entretenimento e pela proteção, pela exposição e pela intimidade, pelo público e pelo privado. Ele manipula o entretenimento através de invenções requentadas: a imagem em movimento, a montanha-russa, o som, os desenhos animados, os palhaços, os dinossauros, os noticiários, as guerras. Mesmo destinado ao interior, o junkspace pode engolir uma cidade inteira em forma de Espaço Público ®. Ao se tornar uma marca registrada, o espaço público deixa de ser "o outro" do espaço privado e se transforma num simples predador para engoli-lo e depois cuspi-lo.
Os tentáculos do junkspace, através de um farisaísmo disfarçado de hiperecologia, cria um ambiente falsamente acolhedor que, no fundo, expressa a institucionalização da desnaturalização. O ar, a água, a madeira, tudo é pasteurizado para dar a ilusão de um conforto customizado.
Na visão pessimista (ou realista?) de Koolhaas, a morte pode ser causada tanto por excesso quanto por falta de esterilidade, ambas as situações ocorrendo no junkspace. Ali, o mínimo é o ornamento supremo, o barroco contemporâneo sendo o crime mais farisaico. O mínimo não significa beleza, mas culpa: esta inversão estratégica visa minimizar a vergonha do consumo. O mínimo agora coexiste num estado de dependência parasitária com o exagero: ter e não ter, possuir e ansiar, parecem, finalmente, unidos na mesma emoção.
O junkspace é uma espécie de adaptador que orquestra a transição contínua do real para o virtual. O mundo real vai gradualmente perdendo sua vida, sua cor, e materializando o epitáfio que Beckett vaticinou para o mundo: de algo "defuntado" (corpsed), ou seja, desprovido de vida própria – a janela da alma não é mais o olho, mas sim a tela do computador.
Referências
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Endereço para correspondência
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Rua Helena, 170, conj. 123 – Vila Olímpia
04552-050 – São Paulo – SP
tel.: 11 3842-3060
E-mail: mr.junqueira@uol.com.br
Recebido: 28/02/2013
Aceito: 07/06/2013
* Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP.
1 Kuno Fischer sugere a necessidade de uma "força que possa iluminar os pensamentos. A única força com tal poder é o julgamento. O witz é um julgamento que produz um contraste cômico: ele já desempenhava um papel silencioso na caricatura, mas somente no julgamento ele atinge sua forma peculiar onde pode se desdobrar livremente" (Freud, 1905/1973b, p. 10). Acho que a melhor tradução para witz seria "sagacidade".
2 Numa frase de grande inspiração, ouçamos T. S. Eliot: "Uma grande simplicidade só é extraída de um momento intenso ou mediante anos de esforço inteligente, ou por ambos. Ela representa uma das mais árduas conquistas do espírito humano: o triunfo do sentimento e do pensamento sobre o pecado natural da linguagem" (citado por Ricks, 1993, p. 47, tradução do autor).
3 Correspondendo àquilo que Meltzer e Meg H. Williams (1988) denominaram de "conflito estético".
4 Isto no fundo é o que ocorre com o bebê no Estádio do Espelho, descrito por Lacan.
5 Segundo Bion, "bloody" é a corruptela de "By Our Lady" ("Por Nossa Senhora").