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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.39 no.62 São Paulo ago./dez. 2016

 

EM PAUTA | CORPO REFLEXIVO: O EU E O OUTRO

 

Farol que se ilumina

 

Self illuminating beacon

 

 

Clarice Niskier

Atriz e dramaturga

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A crença em uma unidade em nós que preside nosso corpo é o eixo central. O "todo" é maior que a soma de suas partes. Corpo esquartejado versus corpo que se reparte, por meio de sua integridade possível. Como um sol que se reparte em crinas... Verdades absolutas versus primado da percepção, que leva em conta o tempo todo o olhar do Outro sobre si e sobre o mundo.

Palavras-chave: Unidade. Unidade da libido. Alma imoral. Corpo moral. Paradoxos.


SUMMARY

A belief in the unity which presides over our body is the main axis. The "whole" is greater than the sum of its parts. Butchered body versus body that divides itself by means of its possible integrity. Like the sun which parts itself into rays... Absolute truths versus the primacy of perception, which permanently takes into consideration the gaze of the Other over one's self and the world.

Keywords: Unity. Oneness of libido. Immoral soul. Moral body. Paradoxes.


 

 

A gente se ilude dizendo/ Já não há mais coração.

(Alceu Valença)

Um dos comentários mais surpreendentes que ouvi após uma sessão da peça A alma imoral, monólogo que apresento há alguns anos no teatro, foi o de uma artista plástica: "Parabéns, Clarice, eu sabia que você ia escapar da loucura da sua casa". Levei um susto. Que diabos uma coisa tinha a ver com a outra? Mas depois entendi o que ela estava querendo dizer, e sorri. Não havia maldade alguma em seu olhar, nem na sua voz. Há 40 anos, sua filha, adolescente, foi uma das melhores amigas da minha irmã mais velha. Ela, muitas vezes, esteve em nossa casa. Era uma mulher atraente, à frente de seu tempo, estávamos na década de 1970, eu tinha uns 14 anos, minha irmã mais velha, uns 17. Ela presenciou algumas brigas entre minha mãe e minha irmã, que, em alguns dias, saía batendo a porta e ia embora com ela, para dormir na casa da amiga. Minha mãe chegou a ir à delegacia pedir que resgatassem minha irmã de sua residência. Meu pai, admirador de seu trabalho, aberto ao diálogo, não sabia o que fazer: minha irmã arrancara a parte de cima do biquíni no píer de Ipanema, Rio de Janeiro, e estava disposta a vivenciar sua liberdade sexual, fosse qual fosse o preço a pagar. Minha mãe desesperava-se, não aceitava. Exigia, com os nervos à flor da pele, obediência a uma ordem familiar mais conservadora. Nos instantes de trégua, eu brigava com Deus: por que você faz a minha mãe sofrer? Minha outra irmã, nove anos mais moça que eu, com sua inocência, era a única que conseguia acalmar as crises de choro da mamãe. Vivia conosco também nossa segunda mãe. Trabalhava na casa desde que meus pais se casaram, eu a adorava, ela frequentava o candomblé e me contava em segredo várias histórias de terreiros. O fato é que minha irmã mais velha perdera a virgindade antes do casamento e minha mãe se entregara ao sofrimento. Nasci em 1959, ainda presenciei isso. Tinha dias que nossa casa era realmente um pandemônio. Mas o que aquela artista vira em mim, aos 14 anos, para afirmar que sempre soubera que eu escaparia daquela fase tão difícil? Não faço a menor ideia. Arriscaria um palpite: meu corpo.

Da infância à adolescência, fui atleta. Mirim, amadora, mas atleta. Joguei vôlei, tênis de mesa, pratiquei natação; fui excelente jogadora de queimado, capitã de vários times em olimpíadas intercolegiais; primeira colocada em uma maratona com mais de cem participantes em uma colônia de férias; adorava atletismo, salto em distância, corrida de obstáculos, cabo de guerra; e fui ciclista maluca nas ruas de Copacabana, agarrava com uma das mãos a barra de ferro dos ônibus e ia de carona com eles pelas avenidas. Lia pouquíssimo, escrevia muitíssimo. Minha irmã mais velha leu a coleção de Monteiro Lobato que tinha lá em casa, eu não. Foi ela quem me iniciou nas reinações da literatura. Eu era física. Guardo boas lembranças dessa época, muitos poemas, algumas medalhas, tudo no fundo do armário até hoje. Talvez meu corpo gritasse por socorro entre as cortadas na quadra, as braçadas na piscina, as boladas contra as adversárias em campo. Engessei a perna algumas vezes e, adulta, administrei duas crises de hérnia de disco na lombar. Talvez aquela senhora tenha escutado esse grito.Vontade louca de conversar."Clarice é a mais comunicativa de todas", dizia mamãe. Eu pressentia uma tragédia caso a comunicação não fosse restabelecida. Eu desejava o futuro. Ali, no teatro, nos abraçamos. Eu devia ter dito baixinho em seu ouvido: nos salvamos todos. Meu pai nunca aceitou levar minha mãe às obscuras clínicas terapêuticas dos anos 1970. Por meio de um esforço financeiro, levou-a para conhecer a Europa. Com toda a simplicidade de seu coração, quando voltou, ela dis-se: "se eu morasse na Europa, não teria ficado tão nervosa com sua irmã". Nos grandes centros urbanos, a questão da liberdade sexual já estava sendo discutida, os jovens saíam da casa dos pais para morar com os amigos, tudo era mais natural e não demonizado como aqui. Amo meu pai por sua atitude. Se por um lado deixou a coisa se estender demais - foram muitos gritos e brigas por dois longos anos -, por outro sabia que um banho de cultura podia curar minha mãe, e curou. Assim que voltaram, ela aceitou fazer psicanálise. Depois, fizemos todos. Eu devia ter perguntado por sua filha, após o abraço. Mas não deu tempo. O encontro foi rápido. Lembro-me que ela disse que a peça era política. Sim, nossa alma é política. Mas eu devia ter dito: nosso corpo é político. Nele, as histórias das civilizações: sujeição e liberdade. Ele é o nosso destino, nossa espiritualidade, nossa encarnação, nosso ponto de chegada e de partida. Nele, a história de nossa família, êxodos, exílios, aconchegos, proteções, medos e traumas. "Há 40 anos você viu a alma imoral em meu corpo como hoje no teatro?", eu devia ter perguntado. Mas não foi possível. Jamais poderia imaginar "a visita da velha senhora" (título de uma peça de teatro do dramaturgo suíço Friedrich Durrenmatt).

[...] oh meu amor!, como te amo e como amo os teus terríveis malefícios, ah como te adoro, escrava tua que sou. Mas eu sou física, meu amor, eu sou física e tive que esconder de ti a glória de ser física [...] (1999, p. 28),

escreve Clarice Lispector no conto "A partida do trem", do livro Onde estivestes de noite. A personagem, Angela Pralini, em sua viagem de fuga, conversa em pensamento com Eduardo, seu grande amor, enquanto observa a paisagem da janela de um trem:

"Eduardo", pensou ela para ele,"eu estava cansada de tentar ser o que você achava que sou. Tem um lado mau - o mais forte e o que predominava embora eu tenha tentado esconder por causa de você - nesse lado forte eu sou uma vaca, sou uma cavala livre que pateia no chão, sou mulher de rua, sou vagabunda - e não uma 'letrada'". Sei que sou inteligente e que às vezes escondo isso para não ofender os outros com minha inteligência, eu que sou uma subconsciente. Fugi de você, Eduardo, porque você estava me matando com essa sua cabeça de gênio que me obrigava quase a tapar os meus ouvidos com as duas mãos e quase gritar de horror e cansaço. E agora vou ficar seis meses na fazenda, você não sabe onde estarei, e todos os dias tomarei banho no rio misturando com o barro a minha abençoada lama. Sou vulgar, Eduardo! E saiba que gosto de ler historinhas em quadrinhos, meu amor, oh meu amor! [...] E você, que é o próprio fulgor do raciocínio, embora não saiba, era alimentado por mim. Você, superintelectual e brilhante e deixando todos admirados e boquiabertos. [...] - estou livre!!! Estou ficando mais saudável, oh vontade de dizer um desaforo bem alto para assustar todos. [...] Quero comer, Eduardo, estou com fome, Eduardo, fome de muita comida! Sou orgânica! [...] Vou para a minha própria vida, Edu. E digo como Fellini: na escuridão e na ignorância crio mais [...]. (pp. 28-30)

Ai, a glória de ser física. Meus sonhos de outrora, o de entrar para o melhor time de vôlei do mundo era o desejo de alcançar com o corpo as alturas, na rede, na luta, na vida. Unir fôlego e raciocínio, inteligência e força física, entusiasmo e controle de si. Crença na unidade. Observador e observado. Farol que ilumina e é iluminado por dentro ao iluminar o outro que o vê, o transforma, o engrandece, o enfraquece, o ignora e o reinicia. Haverá prazer maior? Dor maior? Haverá outra condição possível nessa dimensão da vida? Não será essa a nossa própria vida? "Hélio, diga-me agora, qual a coisa mais importante do mundo?", pergunta Clarice Lispector ao psicanalista Hélio Pellegrino, em uma entrevista realizada pela autora para a revista Manchete, reeditada em 1999 no livro De corpo inteiro:

- A coisa mais importante do mundo é a possibilidade de ser-com-o-outro , na calma, cálida e intensa mutalidade do amor. O Outro é o que importa, antes e acima de tudo. Por mediação dele, na medida em que o recebo em sua graça, conquisto para mim a graça de existir. É esta fonte da verdadeira generosidade e do entusiasmo - Deus comigo. O amor genuíno ao Outro me leva à intuição do todo e me compele à luta pela justiça e pela transformação do mundo. (Lispector, 1999, pp. 56-57)

E, em resposta a outra pergunta, "Que é o amor?", Hélio Pellegrino afirma: "[...] Amor é dom, demasia, presente. Dou-me ao Outro e, aberto à sua alteridade, por mediação dele, recebo dele o dom de mim, a graça de existir, por ter-me dado" (1999, p. 57). Ai, glória de ser-com-o-outro. Meu corpo, unidade imperfeita e repartida.

Há muitos anos, dei aula de teatro para crianças de aproximadamente 10 anos em uma escola de ensino fundamental. Um dia, propus à turma que cada um fosse até o quadro negro e contasse uma história, cantasse uma música, fizesse um desenho. As crianças riam, gritavam, debochavam umas das outras. Limitei o tempo de cada apresentação batendo em um tambor de brinquedo pendurado em meu pescoço por tiras de plástico: uma batida para o início, outra para o fim. Todos respeitavam uma fila imaginária, formada magicamente. Chegou a vez de uma menina... Ela vem lá de trás. Tem um braço mais curto que o outro, a mãozinha com os dedos contraídos fica na altura da cintura. Seu olhar é assustado. Diante do quadro negro, ela se vira para mim e para a turma. Ouve a batida do tambor, e não faz nada. Olha para os colegas que vão se acalmando. Silêncio. Ela não faz absolutamente nada. Apenas olha para a turma. Todos esperam. O que vai acontecer? O olhar dela é cada vez mais assustado e assustador. Ela começa a tremer, o corpo começa a tremer. Está apavorada. Olha novamente para mim, olha para a turma. E antes de ouvir a segunda batida do tambor, retorna ao seu lugar. Aplausos. Estamos comovidos. O que aconteceu? A turma espera de mim uma explicação. Afinal, o que aconteceu se ela não fez nada? Respiro fundo. Ela fez muita coisa. Ela nos contou uma história com o seu corpo. Tudo nela era verdade. Ela tocou vocês, com a fragilidade e a coragem de quem arrisca a vida. Ela sofre desde sempre, ela quer brincar, ela quer pertencer ao grupo, ela não sabe como se esconder, nem de vocês, nem de si. Ela confia em nós. Seu defeito físico é a exigência de uma escolha: ou presença absoluta ou exílio constante. Ela deseja vocês, ela se revela em segredo exposto, pois não há nenhuma fuga possível além de sermos o que somos e nos deixarmos devorar pelos olhos do outro, em nosso corpo-enigma, esfinge que somos para o outro e para nós mesmos. Vivemos em eternos ciclos de identidades, em um jogo perigoso, cruel, prazeroso, crucial. Ganha quem conseguir dar conta de sua tremedeira. Alcançar a alma apesar dos machucados, acidentes, doenças, desventuras, amputações, traumas, defeitos. Medo desgraçado de tudo isso. Das humilhações que vêm com isso. Ganha quem suportar os preconceitos, dar conta de sua mortalidade, conseguir o respeito do outro, de si e da morte (como conseguir o respeito da própria morte?). A vergonha que a menina sente de seu corpo é tão evidente quanto a coragem de se expor a uma humilhação que milagrosamente não acontece, tal a autenticidade de sua expressão. Ela tornou-se bela diante de nós. Nós a reconhecemos. Agora pertence ao grupo, o grupo pertence a ela, o que aconteceu foi teatro, e dos bons. Não falei tudo isso às crianças, mas falei tudo isso às crianças. Dei os parabéns a todos e, principalmente, à menina, destacando sua generosidade e coragem. "[...] minha solidão incomunicável no campo de visão de outro e de todos os outros", escreve Maurice Merleau-Ponty em O primado da percepção e suas consequências filosóficas (2015, p. 51).

Se meu corpo é a manifestação material e imaterial de tudo o que é vivo e presente, de tudo o que vivencia e pressente, e não coisa imutável aos próprios olhos e aos olhos dos outros, objeto mecânico que comprova ou não dogmas resultantes de pesquisas em cadáveres dissecados, fantoche de preceitos ideológicos totalitários que impõem marcha em direção ao nada, suporte e utensílio do "Eu", grito aos sete ventos minha crença em uma unidade substantiva e paradoxal em nós, capaz de interagir consigo mesma e com infinitas outras unidades, apesar da solidão incomunicável que a constitui, condição que, longe de ser fonte de impedimentos, é fonte preciosa de aproximações. Dar conta dessa unidade desvendada em pensamentos, consciências, instintos, vozes, pulsões, funções, movimentos, músculos, órgãos, gozos, ossos, libido, alma, recalques, sonhos, sangue, fezes, desejos, e influenciada fortemente, a meu ver, por aspectos tanto biológicos quanto culturais e socioeconômicos, demanda tal disposição para entendimentos, observações e relações que, muitas vezes, nos parece missão impossível. Afinal, para que tanto esforço? Para que nos abrirmos ao Outro e para nós mesmos, por meio de nossa unidade sensível? Melhor seria nos fecharmos em verdades absolutas. Mas, apesar de tudo, podemos reconhecer o que diz Maurice Merleau-Ponty:

[...] o primado da percepção - o reconhecimento, no próprio coração de nossa experiência mais individual, de uma contradição fecunda que a submete ao olhar de outrem - é o remédio para o ceticismo e para o pessimismo. Se se admitir que a sensibilidade está fechada nela mesma e se se buscar a comunicação com a verdade e com outrem somente no nível de uma razão sem carne, então não há muito a esperar. Nada é mais pessimista e cético do que aquele famoso texto onde Pascal, ao se perguntar o que é amar, observa que não se ama uma mulher por sua beleza, que pode perecer, nem por seu espírito, que ela pode perder, e conclui subitamente: "Portanto, nunca amamos ninguém, amamos somente qualidades". É que Pascal procede como o cético que se pergunta se o mundo existe, e observa que a mesa é somente uma soma de sensações, a cadeira, outra soma de sensações e conclui por fim: nunca vemos nada, vemos somente sensações. Se, ao contrário, como exige o primado da percepção, chama-se de mundo aquilo que percebemos, e de pessoa, aquilo que amamos, há um tipo de dúvida sobre o homem, e de maldade, que se torna impossível. Certamente, o mundo que se encontra desse modo não é absolutamente seguro. Mede-se a ousadia do amor, que promete além do que sabe, que pretende ser eterno, embora uma doença, um acidente, talvez o destrua... Mas é verdade que, no momento dessa promessa, ama-se para além das qualidades, além do corpo, além dos momentos, mesmo não sendo possível amar sem qualidades, sem corpo, sem momentos. É Pascal que, para reencontrar a unidade no além, fragmenta a bel-prazer a vida humana e reduz a pessoa a uma série descontínua de estados. O absoluto que ele procura além de nossa experiência está implicado nela. Assim como eu capto o tempo através de meu presente e estando presente, percebo outrem através de minha vida singular, na tensão de uma experiência que a supera. Não há aqui, portanto, nenhuma destruição do absoluto ou da racionalidade, senão do absoluto e da racionalidade separados. [...] Ao avançarmos a tese de um primado da percepção, temos menos o sentimento de propor uma novidade do que levar às suas devidas consequências os trabalhos de nossos antepassados. (2015, pp. 51-52)

Pelo corpo há salvação. Eu escreveria essa frase na carroceria do meu caminhão se eu o tivesse. Corpo humano, feito de presença, cabeça, tronco e membros, que respira por si, em si, complexo em sua simplicidade, incomum por seus paradoxos, possuidor de uma unidade inconclusa, ancestral, primitiva, animal, espiritual, imaginária, mítica. Corpo bordado por conexões, reflexões, regenerações milagrosas, manancial de entendimentos, muitas vezes, inexatos, mas precisos.

Certa vez, apresentei A alma imoral em um festival. No teatro trabalhava uma funcionária analfabeta, como nos contou depois, responsável pela limpeza do camarim. Ficou comigo até a hora de eu entrar em cena. Quando a peça acabou e retornei ao camarim, encontrei-a chorando, com as mãos apoiadas na vassoura, o queixo apoiado nas mãos, entregue ao mais fundo sentimento.Amir Haddad, diretor teatral, estava comigo,"o que aconteceu?", perguntamos. Ela disse que tinha assistido ao espetáculo: "Não entendi nada, mas achei tão bonito". Amir, na mesma hora, falou: "Minha amiga, você entendeu tudo. Olha só como você está. Só não sabe verbalizar o que entendeu". Ela nos olhou. Depois de um tempo, disse: "Isso foi". Experiências de vida, no fluxo sanguíneo das ideias. Voz, som, sopro, palavras e gestos formam um corpo, acariciam a pele do outro, evocam afetos. O que a senhora do teatro entendeu teve enorme impacto sobre mim. Eu não sei o que ela entendeu. Sei que A alma imoral traz a filosofia e a religião para o domínio do corpo, legitima o corpo nesses domínios do saber e do sagrado. Penso que a funcionária do teatro viu o seu corpo espelhado no meu, sua alma espelhada na minha, sua vida espelhada nas histórias bíblicas, seu texto interno espelhado no texto do rabino. "A peça empodera", como diz Amir. O teatro é a arte das aproximações, na tradição de uma presença real que jamais se repete, pois a própria presença é mutação diária benigna. O ator (sujeito-objeto) está no tablado em constante relação com o público (sujeito-objeto) na plateia. O ator vivencia simultaneamente o seu duplo em relação direta com o duplo do outro. Espelho fantástico, multiplicado, multifacetado, pelo qual o Outro vê muito mais do que supomos, iluminados que estamos, e nós, diante do negror abissal do Outro, vemos a luz que, muitas vezes, ele não supõe. Acredito no primado da percepção e no primado da percepção do público. Ele não é burro, como muitos gostam de afirmar. Pode não gostar de nós, é um direito dele. E, claro, pode não nos entender. Mas o contrário também é verdadeiro. Se nós não o vemos, ficamos burros. O desejo obsessivo do desejo do outro sobre nós é uma fixação perversa, masoquista, motivo de inúmeras frustrações, chantagens emocionais, vaidades excessivas e até suicídios, simbólicos ou não. Além de operações plásticas questionáveis. Um dia, na saída do espetáculo, uma atriz me disse na lata: coloquei silicone nos seios, você acha que eu poderia fazer a peça nua como você faz? Fiquei olhando um tempo para ela. Não sabia o que responder. Disse mais ou menos o seguinte (e isso vale dia a dia para mim): "olha, se você realmente se sentir nua diante do público, vulnerável, desarmada, conectada com a dimensão humana da mortalidade, pode, claro". Nossa unidade é nossa unidade. O importante é compreender que o "todo" é maior do que a soma de suas "partes". Os autores do artigo "Corpo, saúde e doenças", Roy Porter e Georges Vigarello, do livro História do corpo, afirmam, no segmento do artigo intitulado "A anima", o seguinte:

Alguns aspectos da filosofia natural de Newton incentivaram os cientistas a rejeitar concepções estritamente mecanicistas do corpo e a levantar questões mais amplas sobre as propriedades da vida. O que implicava reabrir antigos debates sobre temas antigos, como a doutrina da alma. A obra de Stahl é muito significativa sob este ponto de vista. Fundador da eminente escola prussiana de medicina, Georg Ernest Stahl (1660-1734) defendia argumentos antimecanicistas clássicos. Os "todos" são maiores que a soma de suas partes. A atividade humana dirigida para fins supõe a presença de uma alma, compreendida como poder de presidência, intervindo de modo constante, a própria quintessência do organismo. Mais do que um "fantasma" cartesiano "numa máquina" (que está ali presente mas essencialmente separado dela), a anima (a alma) de Stahl é o veículo sempre ativo da consciência e da regulação fisiológica: um guardião, um protetor contra a doença. A doença, segundo ele, é um efeito, um distúrbio das funções vitais provocado por males da alma. O corpo, estritamente falando, é guiado por um espírito imortal. Porque a alma age diretamente - isto é, sem ter necessidade da mediação dos archaei (fermentos) de Van Helmont ou de algum outro intermediário tangível -, nem a anatomia geral, nem a química tem no fundo grande poder explicativo: para compreender as operações do corpo é preciso compreender a alma e a própria vida [...]. (2012, pp. 466-467)

De forma intuitiva, desde sempre compreendi o corpo como um lugar para o desnudamento e expressão da alma, nunca como o lugar de seu aprisionamento. Como o texto da peça A alma imoral afirma, há uma tensão em nós entre as forças do corpo moral (forças conservadoras) e as forças da alma imoral (forças transgressoras), que forma um Ser que luta bravamente para não se dilacerar. A alma briga por nós e briga para sobreviver em nós. O corpo se reproduz e se conserva e a alma transgride as leis desse corpo, para preservá-lo, não por meio da reprodução, mas pela evolução. Esse é o coração do texto do rabino Nilton Bonder, autor do livro A alma imoral, no qual a peça se baseia. No coração da matéria, o imaterial. No coração do espírito, sua porção mortal. Um dia, uma amiga me ligou e disse que o marido tinha ficado transtornado com a peça. No bar, bebia calado. De repente, disse: "- o que aconteceu comigo? Uma mulher fica nua na minha frente e eu presto atenção em tudo o que ela diz?". Rimos. Então, lhe contei um detalhe.

Durante os ensaios, insistia que seria, sim, por meio do corpo que a plateia veria a dimensão da alma, mas algo incomodava o Amir. Um dia, ele teve um insight genial. No final do prólogo, ao tirar o vestido e me sentar em uma cadeira para começar a falar o texto da peça propriamente dita, ele me interrompeu: "Clarice, me dá três segundos antes de começar a falar. Assim que você se sentar, deixe eu escanear o seu corpo, depois você fala". Esse pequeno silêncio inicial fez toda a diferença. Eu me sento, deixo que o público veja meu corpo (antes eu me sentava e começava a falar), e o público, reconhecido em sua curiosidade, relaxa para ouvir. Quando digo a primeira frase, "Não há nudez na Natureza", ele é pego de surpresa, mas não é julgado. Quando eu começava a falar logo, Amir sentia que eu me defendia, pois havia um tom moral, de crítica ao outro. Velado, mas havia. Mas como trabalhamos preferencialmente com entendimentos, e não com direcionamentos de consciência (ideologia, moral), não era o tom ideal. Ele tinha toda razão. Eu não fazia isso conscientemente, era totalmente inconsciente. Mas, com os três segundos iniciais, assumi de forma mais clara minha própria ideia cênica, e a própria ideia do texto, que afirma a tensão entre natureza e cultura. Sim, há nudez na cultura. Não há na natureza, e é sobre isso que vamos falar. Daí partimos todos juntos, em comunhão.

O psiquiatra, psicanalista e jurista Patrick Landman, autor do livro Freud (2007), ao abordar os campos do saber que sofreram profunda influência da psicanálise, fala de um campo em que essa influência, na sua opinião, ainda é pouco expressiva, a biologia. Ao tratar do assunto, ele afirma que há certa distância entre as "ciências da natureza" e alguns conceitos freudianos, mas "isso não quer dizer que Freud não tenha tido intuições científicas, como aquela da unidade da libido, por exemplo, ou que não tenha desejado fazer da psicanálise uma ciência da natureza [...]". E afirma: "[...] nada indica que será sempre assim, e sobretudo nada leva a crer que haverá uma incompatibilidade entre as descobertas biológicas e os fundamentos da psicanálise" (2007, pp. 15-16). Transcrevo esse trecho não para levantar polêmicas ou questões sobre a relação psicanálise e biologia ("As relações da doutrina freudiana com a biologia são por demais complexas para serem resumidas numa conclusão definitiva" - Landman, 2007, p. 124), mas para perguntar: o que seria a unidade da libido? Posso afirmar que o trabalho de uma atriz sobre o tablado traduz, de certa forma, esse termo? O que estou falando desde o início tem a ver com a unidade da libido? Como falar do corpo sem falar dessa unidade? O corpo é a experiência dessa possível unidade? Com quantas libidos se faz um corpo? Como conectar-se com essa unidade diariamente? Quando decidi iniciar o texto da peça A alma imoral, sentada nua em uma cadeira, para que compreendessem a dimensão da alma, brincava com Amir, dizendo: essa nudez é a "unidade do ser". Compreendo a nudez não como o ato de tirar a roupa, mas como um ato simbólico de revelar a alma que preside o corpo, que se move em direção ao futuro, em tensão constante com as forças do passado.

O cartunista francês Jean Giraud, conhecido pelo pseudônimo Moebius, criou uma história em quadrinhos intitulada "O homem é bom?". Um astronauta está perdido em um planeta. O planeta é habitado por selvagens. Milhares de selvagens começam a persegui-lo. Ele sobe em uma pedra para proteger-se. Os selvagens o capturam e o levam para o chefe. O chefe arranca um pedaço de sua orelha e a mastiga. Argh, ele a cospe no chão. Não, o homem não é bom. Os selvagens vão embora e abandonam o homem nu e perplexo, no planeta estranho. Moebius surpreende nossa lógica, acostumada a pensar se o homem é bom ou mau em sua essência, não em sua carne, e faz uma crítica mordaz, por meio do corpo, ao homem, lobo do homem. Nossa carne não é boa se desprovida de um corpo. O esquartejamento do corpo para deleite e consumo é uma monstruosidade. Todo esquartejamento é uma monstruosidade. Um peito de silicone não pode presidir um corpo. E o terror político decepa os corpos, o ser-com-o-outro, a alteridade, arranca as vísceras do ser humano, altera a rota do seu destino, tira o continente de afetos dos seus pés. Todas as monstruosidades da nossa história estão ligadas à tentativa de eliminar do corpo a alma, como afirma Nilton Bonder e tantos outros autores. Todo conhecimento depende do corpo para existir. Esse não reconhecimento é a tragédia da nossa civilização. (Lembro-me de minha avó, imigrante polonesa, que confundia a palavra destino com intestino. No hospital, já bem idosa, um dia me disse: "meu destino está doendo muito"; recordo de minha mãe que só após entrar em contato com o próprio corpo pôde aceitar a alteridade de sua filha mais velha e continuar a amá-la, a nos amar e a amar a própria vida; lembro-me do meu parto, uma cesárea, quando me percebi dentro e fora ao mesmo tempo, essa doideira, essa fronteira, a barriga aberta, o médico dizendo ao meu marido, "vai, tira seu filho", "não, pode tirar você", os risos, a comoção, as contrações cardíacas da alegria, o recém-nascido, sua corporeidade absurda, o nascimento, festa absoluta do corpo, "salta para dentro da vida", como escreveu o poeta, meu filho em carne e osso pela primeira vez do lado de fora, seus olhos procurando o mundo, eu procurando por ele em meus braços, quem negaria o espírito ali, tanto sentido faz a vida, prazer e medo de pertencer a essa roda de aparecimentos e desaparecimentos, a essa humanidade, cuja carne não é boa, cuja carne é imprescindível, é a delícia das delícias, os suplícios dos suplícios, cuja anatomia é só um mapa do tesouro, da unidade rara e tensa, original e vulgar, contida em bilhões de seres humanos sobre a Terra, por onde passou o poeta que grita: "comigo a anatomia ficou louca/ sou todo coração", Maiakovski.)

O jornal O Globo (2016) noticiou: "Albert Einstein estava certo". A teoria da relatividade, em 1915, previu a existência de ondas gravitacionais no universo. "Previsão confirmada após cem anos". As ondas gravitacionais foram finalmente detectadas. "O sinal, que chega ínfimo à Terra, foi captado pelo Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferometria a Laser (Ligo, em inglês), a partir da fusão de dois buracos negros que colidiram há 1,3 bilhão de anos, em uma galáxia distante." É surpreendente essa notícia. Como Einstein entendeu o corpo do Universo! Calculava e sentia. Imaginava e equacionava suas intuições. Algumas descobertas ele não teve como provar em vida. Ao ler essa notícia, pensei: aquela funcionária do teatro não teve como provar, racionalmente, o seu entendimento da peça. Não possuía os instrumentos da cultura oficial para isso. Einstein não tinha, em 1915, os instrumentos tecnológicos necessários para provar que as ondas gravitacionais chegariam a Terra. (A matéria afirma que agora iniciaremos uma nova era na observação do espaço.) Seja lá quem formos, seja lá em que classe social tenhamos nascido, seja lá em que estágio estivermos do conhecimento, sempre nos faltará algo para provar ao Outro nossas certezas mais profundas, oriundas do corpo, corpo antena do Universo, corpo antena do seu próprio inconsciente e ambiente político cultural. Essas certezas sem provas são valiosas, causam verdadeiro impacto sobre o Outro. Amir e eu compreendemos muitos aspectos da linguagem da peça por meio da análise silenciosa e emotiva da funcionária do teatro. O mundo científico buscou incessantemente provas da teoria da relatividade. Amir não falaria para qualquer pessoa o que falou para a senhora do teatro. O mundo não investiria tanto dinheiro para investigar afirmações de qualquer teoria científica. Aí está uma das incríveis belezas do corpo. Seja ele teórico, biológico, psíquico, artístico, é ele, sempre ele, a nos sinalizar uma provável verdade em si, fecunda para todos, presente de forma oculta ou aparente, pronta para ser investigada, reconhecida e potencializada. O corpo não é a prova, o corpo é a prova definitiva.

[...] Sempre acreditei que cada ator traz consigo um material fantástico, inimitável e único, muito difícil de ser conservado e desenvolvido nesta nossa era brutalizada e massificada.

É um cálice de cristal interior que deve ser preservado e defendido através de muitos terremotos, muita contrariedade, muita decepção e sensação de abandono, mas com momentos também de enorme luminosidade que quando acontecem recompensam o artista e engrandecem o ser humano.

Cada ator é único e inimitável se ele mergulha com honestidade em si mesmo e retrata o seu semelhante com generosidade, verdade e paixão. [...]

Cada ator tem obrigação de zelar e desenvolver o seu instrumental - sua voz, seu corpo: seu cavalo. Devemos transformar nosso corpo num grande arquivo de imagens com possibilidades de serem utilizadas em nossos futuros personagens; nossa voz deve poder miar, rugir, gemer, uivar - nossas mãos podem ser galhos de árvores, garras de feras, folhas secas ao vento - nossos pés, colunas de um templo, patas de animais. Nossos olhos devem poder reproduzir o enigma do olhar da esfinge, e a clareza cristalina de um poema de Brecht.

E mais, devemos nos preparar para poder receber com artística mediunidade a alma do mundo, as grandes interrogações do nosso tempo, a voracidade deste universo em constante transformação.

Devemos ser suficientemente fortes para poder reproduzir simultaneamente a maravilha e o horror do ser humano, a criatividade e a autodestrutividade de nós todos, homens, através desta difícil caminhada da vida.

O nosso cavalo deve então se preparar para poder assumir todas estas formas, e por isso ele tem que ser constantemente reabastecido e renovado.

O cavalo é também o estimulador de nossa energia, o conservador de nosso entusiasmo e de nossa fé; quando as crises vierem (e não tenham dúvida de que elas virão), nada melhor do que trabalhar na fortificação do cavalo, porque no mínimo - estaremos crescendo durante a crise, estaremos trabalhando e temperando novas energias, adquirindo novas técnicas, novos conhecimentos. Podem ter certeza de que um bom cavalo torna o ator indestrutível [...]. (Corrêa, 1984, pp. 30-31)

Somos todos a criança que treme, galopando rumo ao futuro, "brincando nos campos do Senhor" (título de um filme de Hector Babenco, baseado em livro de Peter Matthiessen).

 

REFERÊNCIAS

Albert Einstein estava certo. (2016). O Globo (Rio de Janeiro, matéria de primeira página).         [ Links ]

Bonder, N. (1998). A alma imoral. Rio de Janeiro: Rocco.         [ Links ]

Corbin, A., Courtine, J-J. & Vigarello, G. (2012). História do corpo. Vol. 1: Da Renascença às Luzes. Rio de Janeiro: Vozes.         [ Links ]

Corrêa, R. (1984). Cálice, cavalos, fogo e menino. Cadernos de Teatro, n. 100.         [ Links ]

Landman, P. (2007). Freud. São Paulo: Estação Liberdade.         [ Links ]

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Neto, J. C. de M. (2008). Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
CLARICE NISKIER
Rua Viúva Lacerda, 249/603
22261-050 - Rio de Janeiro - RJ
tel.: 21 99594-1912
clariceniskier@gmail.com

Recebido 10.03.2016
Aceito 21.03.2016

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