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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.64 São Paulo jul./dez. 2017

 

EM PAUTA | INTERPRETAÇÕES DA CULTURA

 

O ritmo na vida psíquica: diálogos entre psicanálise e arte1

 

The rhythm in psychic life: dialogues between psychoanalysis and art

 

 

Victor Guerra

Psicanalista, membro da A.P.U. Falecido em 27 de junho de 2017

 

 


RESUMO

Este artigo, em homenagem a Victor Guerra, recentemente falecido, aborda temas que lhe são muito caros e que foram proferidos em uma conferência na qual ele estabelece o diálogo entre psicanálise e arte ao discorrer sobre o ritmo na vida psíquica.

Palavras-chave: Rítmica. Ritmo na dança, na poesia, na pintura. Psicanálise. Autismo.


SUMMARY

This paper, published in honor of Victor Guerra recently deceased, discusses topic that are very dear to him and give in this conference in which he establishes a dialogue between psychoanalysis and art discussing the rhythm in psychic life.

Keywords: Rhythmic. Rhythm in dance, poetry and painting. Psychoanalysis. Autism.


 

 

Espero desenvolver parcialmente um tema que me convoca há pelo menos 25 anos, o das zonas de coincidência dos processos de construção subjetiva psicanalítica, de subjetivação e os processos da arte. E, por sua vez, dar testemunho da minha surpresa ao descobrir como um artista, ao descrever os processos de criação em que está envolvido, parece referir-se às dobras da construção subjetiva.

Para mim isto é muito importante porque demonstraria como é necessário que nós, psicanalistas, estejamos atentos e abertos aos processos de criação artística, não apenas como aspecto estético, mas para poder incursionar a partir de outra perspectiva, tanto nos processos de subjetivação como nas formas de sofrimento que o paciente pode trazer em uma sessão.

Poderíamos dizer, tomar a arte a serviço da clínica e, por sua vez, tomar a tarefa clínica como forma de arte.

Quero apresentar uma forma de pensar a investigação a partir das contribuições de Pascal Nouvel (2004), para quem investigar é tomar uma ideia e segui-la em todos os detalhes, manter-se próximo da ideia, pensando e sentindo o que se irradia a partir dela.

Se tomarmos a frase com certa liberdade de interpretação, poderíamos também equipará-la ao processo de criação de um artista. Há certa forma de materialização do vínculo com a ideia, com a qual o investigador dialoga. Nesse caso não se busca comprovar nada de modo confiável e racional, busca-se dialogar com a ideia e deixá-la tomar um rumo, um caminho... Para quê?

Para manter-se próximo da vivência de que a ideia a investigar tem um modo de vida próprio e, em parte, uma existência autônoma que o investigador acompanha.

Essa é uma forma de refletir a investigação qualitativa. Quero pensar que, de alguma forma, isso foi o que também estava no espírito de Freud ao empreender essa aventura, ao tentar ir além do que na época existia como saber científico em torno da histeria, e lançar-se a algo novo, manter-se na proximidade de uma ideia e deixá-la irradiar e criar conceitos que podem se entrelaçar.

Além do mais, com surpresa, também encontramos o conceito de "irradiação" em uma poeta uruguaia que muito admiro, Circe Maia.

Em reportagem em que lhe perguntam o que a poesia é para ela, Circe (21010) afirma que o gesto primário na vida consiste em abrir-se ao exterior, comunicar-se e assimilar o gesto que também ocorre ao olhar: trata-se de ir para o mundo. A poesia também é um olhar que nos conduz para a realidade externa, sem deixar de irradiar-se a partir de um centro íntimo.

Circe começa aí uma definição clara da vida como um gesto de abertura a partir de uma rítmica expressa nesse movimento de saída para o exterior (tanto no gesto como no olhar ou no olhar como gesto), de nos conduzir à realidade externa e, ao mesmo tempo, manifestar essa irradiação de um centro íntimo. Centro que me faz pensar no conceito de verdadeiro self, de Winnicott, que diríamos ser o centro de irradiação do gesto espontâneo, como uma possível expressão do genuíno no sujeito.

Por conseguinte, é significativo que tanto P. Nouvel quanto C. Maia, que obviamente não se conhecem e pertencem a diferentes latitudes culturais, usem o mesmo verbo, o mesmo termo: irradiar, seja a partir de um centro íntimo ou de uma ideia.

Insisto que há algo alheio ao sujeito que pulsa, que é motor de criação e de investigação... estranheza do inconsciente?

Outro investigador que reúne também algo de espessura poética é o francês J. C. Ameisen (2015), ao falar em aprender, inovar, transmitir, responder e apropriar-se do novo - vibrar ao ritmo das emoções que as experiências novas imprimem em nós.

O que descreve Ameisen? Creio, entre outras coisas, que descreve o que denominamos pulsão epistemofílica, que é o desejo de saber, que implica a articulação entre o pensar e o sentir. Esse aspecto é um elemento até "diagnóstico" dos processos de subjetivação de uma criança, de um bebê: quanto responde ou não à novidade. Se ele se abre ou não à novidade, se ele se abre ou não a novos ritmos e como os integra subjetivamente.

De Ameisen, que é biólogo, passemos a um poeta português: Eugénio de Andrade. É um poeta pouco conhecido, mas com coisas muito interessantes, porque Eugénio trabalha a poesia e também é um sutil crítico de arte sobre a obra de alguns pintores. Descobrimos que ele, que nada tem a ver com a subjetivação psicanalítica - ao menos no manifesto -, nos traz uma frase muito sugestiva, ao dizer que, no início, há o ritmo, surdo, espesso, do coração ou do cosmo, pois não se sabe onde um começa e o outro termina. Soltas do limbo, surgem as primeiras sílabas, palpando a escuridão, trêmulas e inseguras em busca do amanhecer tênue e difícil. De súbito brilha uma palavra, outra e mais outra. Como se, ao chamar, aproximassem-se dóceis: o ritmo é seu leito, em que se fundam em um encontro nupcial ou não se tocam no decurso de uma breve confidência, às vezes se repelem, crispadas de ódio ou aversão para regressar à noite mais opaca.

Eugénio nos traz sua própria versão das origens. Poderíamos brincar com a ambiguidade da ideia... de que princípio se trata? Do princípio da escrita? Da inspiração do escritor? Do princípio da vida psíquica? Da alba da subjetivação? Uma e outra dialogam, uma e outra se fertilizam mutuamente...

Se tomamos o caminho da criação, o poeta nos fala que a escrita nasce de um ritmo de base que provém do dentro ou do fora, e não importa precisar a origem. Ou melhor, nasce de um "entre"?

Fala que as primeiras sílabas surgem de um "limbo", e isso me evoca essa palavra tão querida de J. B. Pontalis (2000), que tentou trabalhá-la em seu livro L'enfant des limbes. O limbo seria esse espaço intermediário entre a vida e a morte, indefinível, inacessível, que, para ele, é a metáfora do que nunca acaba de nascer.

Para Eugénio, as sílabas se buscam, encontram-se, criam uma ligação libidinal, que se funde em um encontro nupcial, dando a entender o valor sexual do encontro e da palavra. Mas também pode acontecer o oposto, o desencontro, o repelir-se e o retorno à noite opaca do que não pôde acontecer.

Isso marca tanto o desencontro do poeta com as palavras como o que poderia ser também o desencontro de um bebê com seu ambiente, quando, por efeito de uma disritmia, o ritmo não acontece como "leito-apoio" do encontro e da palavra e isso implicaria um risco na subjetivação (grifo meu).

Salomón Resnik, psicanalista argentino que vive em Paris, traz algo do que o poeta Eugénio de Andrade nomeia.

Inspirado nos filósofos gregos, Salomón Resnik (2009) diz que o Caos do princípio era matéria informe, atmosfera originária. O Caos originário era um continente sem fundo, sem matéria organizada. A experiência de movimento torna-se ritmo e introduz ordem no tempo e no espaço, em que "elementos" podem adquirir significado.

No princípio, nesse caso, ele fala de uma situação caótica, informe, em que emerge um movimento que se torna ritmo, e esse ritmo organiza o tempo e o espaço. Estamos em uma das primeiras funções do ritmo: o ritmo é um primeiro organizador psíquico, como a palavra. Um dos primeiros organizadores psíquicos, quando estamos em contato com um bebê, a primeira coisa que fazemos é estabelecer uma comunicação rítmica corporal. Seja com a repetição da palavra ou através do movimento corporal, tanto para brincar como para acalmá-lo.

Seguimos na relação com outros, nessa polissemia, essas texturas várias. Paul Valéry também dizia que o ritmo seria "uma ordem em movimento".

Amado Alonso, que é crítico literário, ao analisar o ritmo na poesia, diz que "o ritmo na poesia é o prazer de criar uma estrutura". O ritmo é o prazer de criar uma estrutura. A citação, além disso, diz: "[...] para ordenar, integrar os elementos sensoriais dispersos".

Retomaremos adiante a correlação entre sensorialidade e rítmica.

Apresentarei agora um aspecto muito interessante da minha investigação, a expressão do ritmo na poesia, na dança e na pintura.

 

O ritmo na poesia

Octavio Paz, em livro denominado Sombra de obras (1988), recompila análises de pintura e de pintores, formula também uma definição de ritmo relativa ao poema. Para ele, o poema é organismo rítmico, forma em perpétuo movimento. Feito de lâminas de ar que, ao girar, emitem turbilhões de sons, redemoinhos de significados. Ideias bailam, sons pensam. Vasos comunicantes: ouvimos o poema com os olhos, pensamos com os ouvidos, sentimos com a mente. Unimos em um único rodopio, em onda rítmica, o sentir e o pensar.

Unir em onda rítmica o sentir e o pensar... Deixemos trabalhar em nós algumas frases que surgem no poema, pois é um poema em prosa. Veja o que ele traz: ideias bailam, sons pensam, ouvir com os olhos, pensar com os ouvidos. Trabalho analítico, escuta analítica, não é também pensar com os ouvidos? Digo de forma metafórica. Unir em onda rítmica o sentir e o pensar?

Octavio Paz propõe o poema como um organismo vivo. Esse foi e é um ponto fundamental do processo criativo de muitos poetas e do trabalho analítico também. Dotar de vida as palavras, poder dar-lhes caráter sensorial, pulsional, vivo, matéria viva que transporta sentimentos.

Há uma linha atual de psicanalistas, por exemplo, René Roussillon, que, em seu trabalho de escuta e trabalho analítico com pacientes especiais, denominado por ele "sofrimento narcisista identitário", insiste muitas vezes que o trabalho analítico deve estar muito mais atento à sensorialidade e rítmica das palavras do que ao conteúdo do discurso. Tanto no que diz o paciente quanto sobre a maneira de o analista intervir.

Nesse aspecto que Octavio Paz traz e no que dizemos a esse respeito, submergimos de novo na qualidade sensorial, pulsional, viva da palavra. Visitemos outro escritor, em outra latitude, Rio Grande do Sul: Armindo Trevisan.

Perguntam a Armindo Trevisan: "Senhor, conte-me, como você é poeta? De onde vem sua poesia?". Armindo responde (2006) que sua forma de ser poeta é quase artesanal. Ele prefere a carpintaria à magia. Relembra seu amor ao trabalho com madeira de lei, todas impregnadas dos aromas da terra. Maravilhado de observar todos os instrumentos reunidos a serviço das necessidades do homem. Quando menino, emocionava-se ao observar a caída das camadas de madeira escovada, ao ver o trabalho do avô. O gosto por poesia vem dessa concretude, dessa sensualidade primária. A palavra é algo sólido, tátil, audível, olfativo, degustável, enfim, sinestésico.

Do que nos fala Trevisan de processo criativo? Presenteia-nos com uma versão do processo criativo que parece ter ao me-nos duas vertentes. Uma, a identificação com o prazer libidinal do avô de criar, transformar o objeto de madeira é um processo de transformação. A outra, o revisitar suas raízes da infância e, em especial, o contato sensorial com a palavra, através do que ele chama "sinestesia".

A que denominamos "sinestesia"? Se formos à etimologia, a sinestesia vem do grego e significa "juntar" e "sentido". Ou seja, juntar os sentidos. Seria uma percepção conjunta de vários tipos de sensações de diferentes sentidos em um mesmo ato perceptivo.

Os sinestésicos percebem, com frequência, dizem alguns, correspondências entre tons de cor, tons de som e intensidade dos sabores de forma involuntária. "Correspondências" é o poema de Baudelaire que, de alguma forma, inaugura este aspecto da percepção da sinestesia ou transmodalidade, que é outra forma de denominar essa experiência. Por quê? Porque isso que alguns chamam de "sinestesia", outros investigadores, que fazem intersecção com a psicanálise, como Daniel Stern (1990), chamam de "transmodalidade".

Essa potencialidade de nosso pensamento sensorial aparentemente estaria presente em todo ser humano desde o nascimento. O bebê, ao nascer, tem a potencialidade de viver a transmodalidade, ou seja, a faculdade de traduzir a informação de um canal sensorial a outro.

Essa forma de articular, unir, integrar diferentes modalidades sensoriais, foi reconhecida por Daniel Stern como uma das primeiras formas de organização do ser. É também, às vezes, um dos pontos de risco diante da perda da mesma por meio da chegada precoce de uma linguagem categorial, que seria, segundo Jean-Bertrand Pontalis, a "primeira castração".

Em relação a isso, tive oportunidade de observar os processos de subjetivação da criança, seja no lar ou, por exemplo, no trabalho em um jardim de infância. Trabalhei muitos anos como psicólogo em um jardim de infância e posso dizer que meu trabalho teve uma dimensão psicanalítica porque, na consulta, dediquei-me também a escutar os pais e as educadoras em suas angústias.

Uma das coisas que mais observei foram certas dificuldades surgidas quando uma criança entre 18 e 24 meses estava à beira da linguagem. Crianças que foram "apressadas" a crescer, sem respeito ao seu ritmo, começavam a gaguejar. Houve certa gagueira que se repetiu em muitas consultas de crianças que foram apressadas em seu desenvolvimento, em que os pais apontavam para uma linguagem muito categorial: não quero que fale mais "tatibitate", que fale como criança grande. Porque os pais já tinham em sua mente a representação de uma criança maior. Ou seja, a palavra perdia a dimensão sensorial e rítmica. Tinha que já falar em outro estilo, categorial, discursivo.

Daniel Stern afirma que esse momento de passagem para a linguagem verbal é uma aquisição, em que ganhamos muito e também perdemos bastante nessa dupla vertente paradoxal. Temos aí as grandes contribuições de Jean-Bertrand Pontalis com seu conceito de in-fans. Pontalis (2000) afirma que os sons emitidos ao balbuciar são extremamente variados, fazendo parte do fluxo sonoro que conduz aos fonemas. Mas há uma primeira castração dentro e por meio da linguagem, operada sobre o fluxo de sensações e de sons em risco de desaparecer, com a tirania da linguagem exercida sobre o mundo sensível dos sentidos (visão, audição, olfato, tato, paladar). Assim sendo, o papel de certas artes, a pintura, por exemplo, seria garantir a presença dos sentidos, tanto no visual como também no tato. A pessoa poderia palpar o que a pintura representa mesmo sem tocá-la. O ideal artístico seria recuperar a complexidade, a variedade e a riqueza do mundo sensível do in-fans.

Pontalis nos fala desse aspecto que assinalávamos: uma primeira castração necessária porque é preciso abandonar essa ilusão de um mundo peculiarmente global, mas, uma coisa é que seja de forma "violenta" e, outra coisa, que vá se dando de forma progressiva e integrada a outra modalidade de comunicação.

Sobretudo no aspecto de como se faz no concreto, às vezes em um jardim de infância com os próprios pais. O que Pontalis aborda de forma muito interessante, ao dizer que seria como se a pessoa pudesse palpar o que está representado na pintura ainda que sem tocá-la, é a experiência de transmodalidade que os poetas põem em jogo em situações distintas.

Manoel de Barros, poeta brasileiro que viveu toda sua vida no Pantanal e se dedicou a trabalhar o que ele chama de "a infância da língua", ou seja, a experiência de polissensorialidade em um poema, pergunta se o lagarto pode lamber o lado azul do silêncio. Ou seja, há uma correspondência e uma passagem de um canal sensorial a outro, com valor metafórico e poético.

Há muitas outras amostras dessa experiência na poesia. Evoco agora um poeta espanhol, Marcos Ana, que foi um dos últimos presos na era franquista. Uma pessoa que sofreu tortura, reclusão, e esteve muitos anos preso, traz um poema que se chama "Minha casa é um pátio", no qual relata que sua casa era o pátio do cárcere, já que não podia sair.

Em um momento no poema, ele conta que palpava com seu olhar a paisagem e os tons de verde que não podia alcançar com seu olhar. Palpava com o olhar o que não podia tocar com as mãos. Mostra, assim, como em situações limites o sujeito põe em jogo também toda essa polissensorialidade para, desse modo, estar em contato com o mundo.

Essa transmodalidade inicial de que falamos, em um bebê deve ter um correlato exterior, que é a capacidade de a mãe entrar em contato com essa forma de funcionamento primário, que chamo de "complexo do arcaico". Porque, ao mesmo tempo que o bebê tem sua potencialidade transmodal para organizar suas polissensorialidades, tem do ambiente o valor do ritmo materno como organizador exterior que ele logo introjeta.

O que queremos dizer com isso? Antes de ensaiar uma hipótese psicanalítica, revisitemos mais uma vez a arte, só que desta vez sob a visão de um psicanalista, Edmundo Gomez Mango (2011), diante da visão da obra "Los peines del viento" [Os pentes do vento], do artista basco Antonio Chillida.

Gomez Mango conta o impacto que viveu quando visitou as praias do País Basco e deparou-se com a obra "Los peines de viento", ancorada nas rochas da praia. Obra que, segundo Chillida, plasma-ria a batalha entre as forças que sobem e as forças que descem, entre as linhas curvas e as verticais, entre o centrípeto e o centrífugo, entre a convexidade e a concavidade. Trabalho de articulação de contrários, do "entre", de pares opostos, que é uma das funções do ritmo...

Gomez Mango (2011), muito sutilmente, afirma que não é o simples contemplar de uma escultura, mas entrar e habitar o espaço criado pelas formas dos pentes. Espaço estranho, que nos aliena e nos torna estrangeiros, nos faz sentir falta, afasta-nos de nós mesmos, mas nos aproxima de algo muito íntimo. Descobrimos uma espécie de ritmo, de batimento primordial primário, o das formas artísticas, da natureza, e o corpo do espectador.

 

 

 

 

Mais adiante assinala algo fundamental: entre o lugar e a obra há um limite inacabado, interminável, sempre transgredido, de onde surge a vivência coincidente do originário incessante que gera as obras. O lugar é o eco do testemunho arcaico dos inícios, do homem ao perceber o mundo que nasce da percepção criadora do homem.

 


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Minha interpretação é que o bebê, através do ritmo, da sensorialidade e depois da palavra, conecta-se com esse originário incessante que o engendra em seu processo de subjetivação, mas, claro, não se trata de uma experiência solipsista, precisa da interação fundante do outro que cuida dele (função materna e paterna), que deve entrar em um ritmo em comum com esse bebê para que torne a se lançar esse originário incessante...

Baseado em tudo isso, proponho que o conceito de "arcaico" não se refira apenas ao eixo temporal, o que começou primeiro, mas que seu aspecto fundamental seja dar forma a um "originário incessante", fonte de criação e de descoberta do mundo e da novidade para um bebê, sempre e quando contar com um encontro intersubjetivo adequado, pautado (entre outras coisas) pela construção conjunta de um ritmo comum com o outro2.

 

Epidemia de autismo?

Vejamos algo disso em sua face oposta: o sofrimento infantil dessubjetivante grave.

Atualmente, assistimos na América Latina e na Europa também a uma espécie de epidemia de "crianças pequenas com suspeita de autismo". Em que "explodiu" o que seria a taxa de prevalência, sobretudo nos Estados Unidos. Nos anos 1980, o que era de 3 em 10.000, no ano passado se falava de 1 criança em 70.

Esse é um aspecto que, de forma muito intensa, nos questiona como psicanalistas, porque na clínica parece prevalecer a frase "crianças com suspeita de autismo e analista com suspeita de ineficácia"3.

Há algo muito interessante, porque quando se trabalha com crianças pequenas e graves, de acordo com minha experiência e de muitos colegas, há um tema essencial: como uma criança pode integrar suas polissensorialidades, uma das formas arcaicas de integração do self.

Há muita evidência clínica (por exemplo, a experiência de

A. Brun [2009] na França, com uso de pintura como forma de expressão e de terapia com essas crianças) de que uma das primeiras formas de integração das polissensorialidades é quando a criança começa a fazer movimentos rítmicos sobre a folha em branco e esse movimento rítmico é respondido em eco pelo outro, o que leva ao contato do olhar com o coordenador e juntos começam a organizar um ritmo no encontro. Nasce um ritmo, nasce um vínculo4.

A rítmica organizaria as polissensorialidades (B. Golse, 2004) e, insisto, um ponto importante no trabalho com essas crianças é como propiciar a mudança de uma relação sensorial com o ambiente (que muitos autores já descreveram amplamente) para uma relação de objeto com o outro, em que possam entrar em jogo as emoções e as representações (intersubjetividade).

 

O ritmo na dança

De modo muito conciso, traremos o exemplo de Vaslav Nijinsky, que revolucionou a arte da dança no início dos anos 1900. Quando ele seguiu o quê? Segundo Garner (2009), ele seguiu o método de um autor, Jacques Dalcross, que afirmava que o ritmo do corpo é o ponto de partida de toda configuração do balé, do teatro e também de todos os processos do movimento humano.

 


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Nijinsky, no papel do Fauno, no de Arlequim em Petruschka, segundo alguns críticos, executava "uma pérola de imaginação rítmica". Aparentemente o que revolucionou foi o que se seguiria, não era o ritmo que propunha a música senão a consonância entre o ritmo do corpo e o ritmo da música5.

 

O ritmo na pintura

Yolande Escande (2003), especialista francesa em cultura chinesa, conta que na China Antiga, quando um pintor pintava uma paisagem, não buscava integrar apenas seu aspecto visual, como também os sons e imagens que emitia: ruído do vento, sons das ondas, suas qualidades táteis e olfativas, recriadas por sua imaginação sensorial.

Existe no chinês antigo uma palavra que designa esse processo. A palavra é woyou, que significa "passear na imaginação".

O termo que provinha da antiguidade foi desenvolvido especialmente por Zheng Rikiu, pintor chinês do século XVII. Para pintar uma paisagem, ele realizava seu próprio passeio. Em seu texto ele dizia que fixava com os olhos o que queria pintar. Ao sentir o sopro da brisa, passeava nela com seu nariz... Sentia a água deliciosa ao passear nela com a língua. O ritmo das ondas em que passeava com suas orelhas respondia a suas perguntas. Quando já não via nada, entrava no barco e revisitava com a memória os relevos das montanhas e as curvas do caminho... e a partir disso conseguia pintar.

 


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O que é interessante nisso e como se articula com o ritmo?

Primeiro, porque se analisarmos a frase, ao se referir às diferentes experiências sensoriais, fala de "passeio", dando a ideia de um contato especial, mas a única forma de resposta que aparece no texto é no ritmo: "o ritmo das ondas responde às minhas perguntas". Além de demonstrar como, para a cosmovisão chinesa, o ser humano tem uma relação direta com a natureza, mostra o valor que o ritmo tem como forma de comunicação metafórica. Ou seja, a correlação entre ritmo, comunicação e linguagem.

Há muita evidência científica atual que nos leva a pensar que em grande parte a linguagem verbal nasce do ritmo.

Em segundo lugar, Marie P. Lassu (2011) afirma que o pintor, para escutar a musicalidade dos sentidos e da paisagem, deve deixar-se levar por um ritmo interior que o fará descer à noite da sua própria subjetividade. Além disso, diz que essa polissensorialidade não é diferente da dos músicos.

Escutar, integrar essa musicalidade dos sentidos e da paisagem, precisa ter um ritmo interior. Vemos assim que para muitos artistas a obra surge de um diálogo sensorial e de um ritmo que surge a partir do objeto e que sai ao encontro de um ritmo próprio no criador. A partir disso surgiria a expressão do ato criador.

Penso em um artista e nos processos de subjetivação, e em quem cumpre uma função materna, pai, mãe ou a educadora de um jardim de infância, e penso a mesma coisa: para que aconteça a subjetivação, é preciso haver um diálogo sensorial, captar as intensidades sensoriais, as preferências sensoriais desse bebê e entrar em um ritmo para que, por sua vez, o bebê encontre um ritmo próprio.

Cada díade, tríade, cada família, dota esse bebê com um ritmo que o ajudará a se constituir como sujeito.

Vemos aí o ponto importante: nisso os artistas e as mães se parecem. Graças ao ritmo surge a aurora de uma obra ou a aurora da subjetividade de um ser.

Julio Cortázar, em Rayuela6, afirma:

Por que escrevo isso? Não tenho ideias claras nem sequer tenho ideias. Há fragmentos, impulsos, obstáculos e tudo busca uma forma, então entra em jogo o ritmo e eu escrevo dentro desse ritmo, escrevo por ele, movido por ele e não por isso que chamam pensamento e que faz a prosa literária ou outra. Há primeiro uma situação confusa que só pode definir-se na palavra, dessa penumbra parto e (se o que se quer dizer) tem força suficiente, imediatamente se inicia o swing, um balanceio rítmico que me tira da superfície que ilumina tudo, conjuga essa maneira confusa e o que a padece em uma terceira instância clara e fatal: o parágrafo, a página, o capítulo, o livro... Assim, pela escrita me aproximo das Mães, me conecto com o Centro, seja o que seja. (1990)

Temos aí um exemplo, para mim impressionante, dessa articulação entre os processos de subjetivação, porque quando ele fala de "fragmentos, impulsos, obstáculos", "tudo busca uma forma", "entra em jogo o ritmo e eu escrevo dentro desse ritmo". Eu o tomo como metáfora desse processo de subjetivação.

No princípio há uma situação confusa em torno de uma discriminação entre o ser e o outro. Dessa situação confusa se parte, há uma penumbra da subjetivação, até que se inaugura um balanceio rítmico. E os próprios processos de subjetivação têm a ver com um balanceio rítmico.

Quem não viveu a experiência de que uma das formas mais primárias e "eficazes" de acalmar um bebê angustiado é tomá-lo nos braços e cantar para ele, criar um ritmo que transforme a angústia em calma e em prazer de contato? Além disso, intuitivamente se sabe que esse ritmo a princípio é regular e contínuo e, a seguir, vai integrando pequenas variações como formas necessárias de descontinuidade.

Podemos entendê-lo também dessa forma, ao interpretar o fort-da de Freud (1920), que deu base ao nascimento do pensamento sobre os processos de simbolização. O fort-da é um jogo de balanceio rítmico, de vai e vem, de ida e volta. Fort-da, fort-da. Uma repetição (com variações) que busca elaboração, o que implicaria uma estrutura na qual se veicula o pulsional.

O fort-da tem uma reincidência na qual o pequeno Ernst lança o carretel sempre para o mesmo lugar, não o atira para o teto, para outro lado, para trás, para adiante, ele não experimenta nada, não investiga o destino do objeto no espaço. Ele elabora uma perda. E essa elaboração diz respeito a uma experiência rítmica, a um balanceio que o tira do lugar em que está, através do uso da pulsão de domínio. Tira-o do lugar daquele que sofre passivamente e nada pode fazer.

É como se dissesse: esse balanceio me leva a outra coisa aonde eu, ativamente, agora domino a situação e posso elaborar o que sofri passivamente.

Não temos que esquecer que o próprio Freud, quando nos apresenta o texto em que descreve esse jogo, na citação de rodapé do texto, diz: este bebê, que começava a jogar o fort-da, antes de brincar com o carretel, brincava com seu próprio corpo, olhando em frente do espelho, entrando e saindo no movimento do fort-da.

Então, esse aspecto da escrita que Cortázar nos apresenta, "eu escrevo dentro desse ritmo", habilita-me a pensar que esse encontro mãe-bebê, que pode ser pai-bebê, é uma experiência de coescrita assimétrica. Porque a mamãe - ou o papai - usa o lápis do seu corpo para marcar seu desejo nesse texto que é o corpo do bebê.

Mas o bebê também tem uma caligrafia, no início confusa, e marca também os outros com seu corpo. Assim, podemos pensar esse processo de subjetivação como uma forma de coescrita assimétrica.

Necessitamos reiterar que o ritmo não seria somente a repetição de uma experiência a intervalos regulares, como forma de organizar a experiência e oferecer uma vivência de continuidade. Essa é uma possível definição de ritmo: a repetição de uma experiência a intervalos regulares que permite organizar uma experiência e oferecer uma vivência de continuidade, mas com a integração progressiva da descontinuidade, do inesperado.

O ritmo é também a experiência que, partindo de uma espécie de "caos" inicial, dá forma, organização temporal, e tem como função abrir para a terceiridade, abrir para o outro.

 

O ritmo na subjetivação

Utilizarei algumas fotos de um filme que tenta descrever os processos de subjetivação do bebê no primeiro ano de vida, em que meu filho Maximiliano Guerra e eu filmamos nove mães e bebês em seu lar para descrever o processo de subjetivação em relação com o outro, que podemos denominar processo de intersubjetividade.

O filme se chama Indicadores de intersubjetividade 0 a 12 meses, do encontro de olhares ao prazer de brincar juntos (Guerra, 2014). Porque penso que o bebê - não sou o único a pensar, muitos apresentam assim - faz uma viagem do encontro do olhar com o outro para o processo de simbolização. Antes de caminhar e deslocar-se, como momento de separação, descobre entre outras coisas o prazer de criar um jogo juntamente com o outro, que é uma das bases dos processos de simbolização, recurso psíquico fundamental para possibilitar a separação do objeto e desenvolver mais plenamente seu funcionamento mental em múltiplos aspectos.

Nesse filme, tento transmitir esse processo de estruturação, apelando a uma polifonia de vozes - porque há também intervenções de um pediatra, uma fonoaudióloga, uma psicomotricista, e as mamães e papais contando como vivem esse processo de subjetivação do seu bebê.

Avalia-se, nesse lento processo de subjetivação dinâmica, como o bebê avança em sua viagem até o prazer de brincar juntos, para depois adquirir a capacidade de brincar sozinho. Aqui coloco em jogo o conceito de Winnicott (1958), porque para desenvolver "a capacidade de estar só" é preciso primeiro descrever a capacidade de brincar sozinho. E, para chegar à capacidade de brincar sozinho na presença de alguém, tenho de ter sido "brincado" por esse outro materno ou paterno.

Apresento umas fotos de um dos itens de Indicadores de intersubjetividade, que é a imitação. É a filmagem de uma bebê - Rocío - de 4 meses com sua mamãe - Florência - brincando de imita.

É um momento de imitação, que é um dos momentos de encontro subjetivo, e marca das identificações primárias, passo fundamental na construção do eu do bebê.

 

 

 

 

Observe como se dá esse momento de imitação e de quase sincronia entre elas. Estamos em um ponto muito importante nesse processo de subjetivação no qual há evidentemente o encontro de olhares, a atenção mútua e a busca, sobretudo da mamãe, de estabelecer momentos de imitação, em espelho com seu bebê.

Esse é um aspecto que permite estabelecer, ao menos de modo metafórico, o que nos ensinava Winnicott (1970): o rosto da mãe como espelho, no qual o self do bebê começa uma forma de existência.

Isso também nos leva a mencionar pontos teóricos muito interessantes sobre a correlação evidente da imitação no processo de introjeção. Porque a imitação para mim é uma forma de hospedar o outro em meu corpo. Se imito o bebê, estou transmitindo a ele uma forma de hospedá-lo, dando-lhe um lugar em um gesto corporal, que, por sua vez, é uma forma de incorporação-introjeção, porque tomo algo do outro que fica em meu corpo.

Voltemos a ver Rocío, de 8 meses, com sua mamãe, em um momento capital em que brinca de esconder. Nesse caso, o jogo esconde-esconde, que surge nessa etapa, é um jogo fundante, que muitos analistas tomaram como metáfora inicial do fort-da.

Ao falar do fort-da, Freud descreve que antes o menino brincava de entrar e sair do espelho, mas seguramente esse bebê antes disso brincou com a mãe de esconder, como um passo prévio nesse processo dialético. Com o fato determinante de que é um jogo que se realiza para ir elaborando a ausência do objeto, mas na presença corporal e intersubjetiva, em que ambos desempenham um papel ativo e passivo.

O ponto interessante nesse caso é que não é o bebê quem se esconde. Nesse caso é a mamãe. É Rocío quem descobre a mamãe, adorando a alegria do encontro.

Há um prazer no encontro, em que a mamãe lhe pergunta: "Onde está a mamãe? Rocío, onde está a mamãe?", tendo o rosto coberto. Rocío se sente habitada pela voz da mãe que enuncia sua presença ausente. É a bebê que descobre a mamãe, retirando suas mãos para ir ao encontro do seu olhar. É preciso dizer que é um jogo rítmico, repetem três, quatro vezes.

 

 

 

 

 

 

 

 

A mamãe comentava na entrevista do filme que a bebê ficava fascinada com esse jogo. Evidentemente ela também.

Seu prazer pode ter múltiplas fontes, mas quero marcar que, talvez, na construção conjunta dessa experiência lúdica a bebê se subjetiviza e ela também se re-subjetiviza. Ou seja, revisita sua própria infância, e há um processo de re-subjetivação, como seria todo processo de maternidade quando as coisas se dão "suficientemente bem" e a mãe integra essa nova experiência de criação da sua bebê como uma oportunidade criativa para si mesma (na qual também há lugar para o desencontro e a ambivalência).

Há outro elemento fundamental, como Winnicott dizia: o bebê sozinho não existe, a mamãe sozinha não existe, a mamãe necessita de um bebê que a busque de forma libidinal, que se apresente, diríamos, como objeto de desejo.

Algo que, às vezes, podemos metaforizar com o que traz Marie Christine Laznik (2004), tomando também a contribuição de Lacan com o terceiro tempo do circuito da pulsão, que é o momento em que o bebê se oferece ao outro como objeto de desejo.

Essa disponibilidade da mãe para deixar-se descobrir no jogo com a bebê implica permitir que a bebê defina a temporalidade do encontro com a mamãe. A mamãe está disponível para que a bebê a encontre e também há dimensão rítmica como organização temporal que comanda a bebê.

 

O ritmo e a lei materna

Isso sugere que essa disponibilidade lúdica, necessária, que a mãe precisa ter para que o bebê se subjetive e se separe, levou-me a formular uma hipótese sobre como pensar esses encontros rítmicos, que favorecem os processos de subjetivação e simbolização.

Tomando em parte a contribuição de René Roussillon (1991), formulo a hipótese de uma lei materna. Porque, em psicanálise, estamos muito acostumados às grandes contribuições de Lacan, de pensar uma lei paterna que propicia a separação da mãe e do bebê. Mas, por que não pensar que ao lado da lei paterna haveria uma lei materna do encontro, que está em consonância com a lei paterna?

René Roussillon foi o primeiro a apresentar esse aspecto da lei materna. Diz que se existisse uma lei materna seria a lei do respeito ao ritmo próprio do sujeito. Deixa aberto o caminho dessa hipótese e eu a retomo.

Primeiro elemento, a lei de respeito ao ritmo próprio do sujeito - adequação aos tempos do bebê -, e apresento a ideia da criação conjunta de um ritmo. A criação conjunta de um ritmo em comum, uma temporalidade em comum, que se expressa em todas as iniciativas lúdicas e nas rotinas de cuidado.

O segundo elemento dessa lei materna seria o espelhamento, tradução e transformação de suas vivências afetivas. Tema que não poderei desenvolver porque significaria uma extensão excessiva do texto.

O terceiro elemento dessa lei materna seria a abertura à palavra, ao brincar e ao terceiro, de maneira a transmitir ao bebê que nem tudo é o corpo da mamãe. Esta, em algum momento, por seu próprio limite, capta que precisa dar abertura à palavra, ao brincar e ao terceiro.

Isso faria parte (dito de maneira muito resumida) do que podemos chamar de leis da subjetivação primária. Existiria então um entrecruzamento da lei materna do encontro e da lei paterna da separação.

Animo-me a dizer que a estruturação psíquica de um bebê, seu processo de subjetivação, dependerá da integração rítmica adequada da lei materna do encontro com a lei paterna da separação. Ambas as experiências organizadoras se alternam em um ritmo que cada família organiza.

Não pode haver união sem perspectiva de separação, e não se pode separar o que não se uniu.

Para dizer algumas palavras sobre a função paterna, diríamos que um dos primeiros elementos da função paterna é capacitar e sustentar o encontro mãe-bebê. Não creio que a primeira função paterna seja separar. A primeira função paterna, o primeiro elemento da função paterna, é que o pai tolere a exclusão desse encontro mãe-bebê e sustente a díade.

Apresento isso de forma gráfica em uma frase que surgiu a partir de escutar muitas vezes as mães falando da importância do apoio concreto paterno. A frase seria: "São necessários três para que dois tenham a ilusão de ser um".

Esse "três" precisa tolerar a exclusão temporal para depois transmitir a proibição do incesto e de tomar a mamãe como objeto de desejo. Entre outras coisas, com a consequência de o ponto dois estabelecer a diferença de gerações.

O terceiro elemento da lei paterna, evidentemente, é preparar para a exogamia. A libido orientada para outros objetos.

Então, insisto, creio que a estruturação psíquica e, mais ainda, a patologia grave da infância, têm a ver com a difícil inter-relação desses dois aspectos. Não apenas a falha na lei paterna, mas esse aspecto da difícil instauração dessas duas leis subjetivantes.

Apresentarei um desenho e um poema meu que talvez representem de forma gráfica esse conceito de ritmo e lei materna.

Milton Matos, artista plástico brasileiro de Porto Alegre, realizou o desenho. Em uma atividade na qual eu iria participar, em um grupo psicanalítico em Porto Alegre, em que o tema era justamente o ritmo na vida psíquica, encomendou-se a ele a realização de uma imagem. Esse autor em poucas linhas criou e conseguiu plasmar o que para mim é uma imagem impactante.

Eu denominei "Três linhas em ritmo".

 

 

Três linhas apenas
ondulantes
ascendentes
descendentes

Três linhas dançando no universo da folha em branco.

O círculo da folha envolve a figura, enquanto
Esta viaja pelo papel inaugurando vida.
Inaugura traço, marca, sentido.
Pode apenas uma linha vestir de sentido um espaço vazio?

Em três linhas duas vidas,
a mãe que olha o bebê
que dorme ou olha outro espaço

Na verdade não importa
se dorme ou olha,
importa que unidos estão se separando

Porque entre a mãe e o bebê
Há um espaço em branco.
Porque entre a mãe e o bebê
Pulsa um pequeno vazio:

separação,
distância,
ponte.
respiração,
ritmo.

O que os une na imagem?
o gesto do rosto que olha, que envolve?
a mão que guia
e continua na curva do corpo?

Continuidade na descontinuidade
Além do buraco em branco,
algo da mãe continua:
a ondulação de um ritmo,
aberto ao outro que espera ansioso,
fora do quadro:
O Pai?

Tradução: Tania Mara Zalcberg

 

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Recebido 11.08.2017
Aceito 12.09.2017

 

 

1 Conferência aberta realizada em Córdoba, 2015, com público que incluía não psicanalistas. Este trabalho reflete os conceitos apresentados nessa atividade e colocarei em citações, em notas, alusões atuais de 2017 ao tema que poderão ser úteis ao leitor que deseja aprofundar o tema.
2 Tema que desenvolvi no trabalho inédito: "El complejo de lo arcaico en los padres y la estética de la subjetivación en el bebe" ["O complexo do arcaico nos pais e a estética da subjetivação no bebê"].
3 Premissa que foi minha contribuição original quando cumpria funções de coordenador do Espaço de Crianças e Adolescentes na FEPAL, que se concretizou na realização da minha proposta da "Declaração de Cartagena" no Congresso de Cartagena de Índias, levado adiante pela minha colega Monica Santolalla, por problemas pessoais não pude comparecer (2016).
4 Sobre as contribuições interessantes de muitos analistas que mostram a utilidade e a eficácia das nossas abordagens nessa forma de sofrimento infantil, encontramos autores como Tustin (1996), D. Meltzer (1985), G. Haag (2008), J. Hochmann (1999), A. Alvarez (2002), R. Diatkine (2000), Prego Silva (1999), D. Marcelli (1986), D. Houzel (1988), Parada Franch (1996), F. Muratori (2008), S. Maiello (2013), L. Viloca e B. Alcacer (2013), C. Lheurex (2003), D. Houzel (2011), P. Delion (2005), B. Touati, F. Joly, M. C. Laznik (2007), M. Mendes de Almeida (2008), N. Woscoboinik (2008), M. C. Pereira da Silva (2013), J. Larban Vera (2013), P. Palau (2009), A. Nakov (2004), M. Boubli (2009) etc.
5 Existe outra autora que desenvolveu especialmente o tema, S. Langer (1986).

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