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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. v.39 n.70 São Paulo jun. 2006
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
Psicanálise, ciência e ficção
Psychoanalysis, science and fiction
Psicoanálisis, ciencia y ficción
Fabio Herrmann*
Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Professor da Pontifícia Universidade Católica
RESUMO
O presente artigo trata do futuro da Psicanálise; em primeiro lugar, se terá ou não futuro. A discussão traz à baila problemas nodais de sobrevivência: tecnologia versus ficção (Freud, pensador por escrito), pseudoconhecimento e fatores teóricos ignorados, extensão ou encolhimento da clínica etc. Baseia-se nas notas e redação do capítulo introdutório de A Psique e o Eu (Herrmann, 1999).
Palavras-chave: Futuro da Psicanálise, Epistemologia psicanalítica, Método interpretativo, Psicanálise e ficção.
ABSTRACT
This paper deals with the future of Psychoanalysis, firstly if it will or will not have a future. The discussion points out crucial questions on psychoanalytic survival: technology versus fiction (being Freud a writer), pseudo knowledge and unknown theoretical propositions, clinical extension or shrinkage, and so on. The paper is based on notes and in the text of the introductory chapter of A Psique e o Eu (The Psyche and the Self, Herrmann, 1999).
Keywords: Future of Psychoanalysis, Psychoanalytic epistemology, Interpretative method, Psychoanalysis and fiction.
RESUMEN
El presente artículo trata del futuro del Psicoanálisis; en primer lugar, si tendrá o no futuro. La discusión pone en cuestión problemas nucleares de supervivencia: Tecnología versus ficción (Freud, pensador por escrito), seudo-conocimiento y factores teóricos ignorados, extensión o reducción de la duración de la clínica etc. Se basa en las notas y redacción del capítulo introductorio de A Psique e o Eu (Herrmann, 1999).
Palabras-clave: Futuro del psicoanálisis, Epistemología psicoanalítica, Método interpretativo, Psicoanálisis y ficción.
Este artigo reúne diversos excertos do capítulo de introdução ao livro A Psique e o Eu (Herrmann, 1999), a qual o leitor não tem mais que consultar, e aos demais capítulos, caso lhe interesse seu desenvolvimento. Também, ainda que embrionariamente e sem uma nomenclatura precisa, encontrará aqui a noção de análogo da Psicanálise, ou seja, a função especial desempenhada pela ficção, que equivale à das matemáticas na Física. Do ponto de vista clínico, este texto não é carente de interesse também, já que trata da extensão da prática às condições do real humano, para lá da análise convencional de consultório, o que viria, posteriormente, a denominar clínica extensa. Por fim, este artigo tematiza um assunto de interesse geral: sobreviverá a Psicanálise, ou nós a conseguiremos destruir, por atos e omissão de criatividade?
Psicanálise, ciência e ficção (1999)1
Para a saúde da ciência futura, que terá de optar entre ser tecnologia ou saber, entre a propaganda e a hesitação, é desejável podermos contar com a existência de uma teoria da alma que, mal parodiando Castoriadis (1978), possa vir a considerar-se ciência. O requisito mínimo para tal psicologia seria, espera-se, o de não contentar-se em solucionar o problema da psique por simples eliminação, substituindo-a por comportamento emocional ou por atos cognitivos, sob o pretexto de tornar a psique verificável, testável, comprovável ou qualquer coisa do gênero. Resolver um problema mudando de assunto não é difícil. Mas as conseqüências, nesse caso, são inequívocas: a recusa em fazer face à questão do psiquismo precipita a confusão final entre tecnologia e ciência e entre informação e conhecimento, mal que tem vitimado parte da produção intelectual de nosso século. O interesse extremo que ainda hoje desperta a Psicanálise vem em grande parte do fato de ser esta a mais forte candidata à posição de teoria científica da alma, estrategicamente colocada como está entre Filosofia, Psicologia, Medicina e Literatura. Talvez venha a surgir alguma outra forma de psicologia mais apta a cumprir o papel; já houve promessas: a conjugação de fenomenologia e Gestalt, por exemplo, prometia muito. É preciso esperar. Por enquanto, a Psicanálise reúne as melhores aptidões ao posto e, mesmo que não o venha a preencher pelos azares da disputa científica, continuará a ser a fonte principal dos tratamentos psicoterápicos disponíveis e uma especulação de longo alcance sobre o homem2.
Nascida nos fins do século XIX, a Psicanálise completou cem anos de existência; que se pode esperar então de seu futuro, no próximo milênio? As ciências costumam crescer devagar e durar muito, tanto tempo pelo menos quanto resiste a cultura em que nasceram. Mas será uma ciência a Psicanálise, uma árvore grossa e bem copada, com fundas raízes, ou um capinzal que se espalhou vertiginosamente pelo solo de nossa cultura, mas que pode desaparecer sem deixar vestígio?
Inclino-me a pensar que a nossa é uma situação média, nem peroba nem grama, nem provisória técnica terapêutica, à espera da solução bioquímica da doença psíquica, nem ciência completa. Como ciência, falta-nos alguma coisa essencial. E não é a ausência de comprovação empírica, nem mesmo o caráter singular de nossas conclusões clínicas que constituem o empecilho para em sã consciência reivindicar o título de ciência. Que por essas razões a teoria do conhecimento hoje dominante negue à Psicanálise estatuto científico é bastante compreensível: completa como pode vir a ser ou incompleta como ainda é, a Psicanálise pode esperar com tranqüilidade que se invente uma epistemologia à sua medida. O óbice fundamental para dizer-se da Psicanálise uma ciência reside, a meu ver, na parcialidade com que encara seu próprio objeto. Numa palavra, a Psicanálise não ocupa ainda o espaço inteiro a ela reservado por direito de origem, não preenche o horizonte de sua vocação3.
É de Althusser uma sugestão inspiradora sobre este problema: a Psicanálise seria uma "teoria regional" que carece da correspondente "teoria geral". Entretanto, diferentemente daquele autor, não prefiguro a constituição de uma "teoria geral do discurso", à qual se iria filiar a Psicanálise como um saber localizado e especial, fosse este o do discurso terapêutico, fosse o do discurso do inconsciente. Ao contrário, a "teoria geral" requerida pela Psicanálise atual, segundo imagino, deve ser a própria Psicanálise, porém uma Psicanálise generalizada, tanto em seus temas, que praticamente se centram hoje nas áreas de interesse terapêutico, sem cobrir a totalidade da experiência psicológica do homem, quanto em seu método, que haveria de preparar-se para esta última e decisiva extensão, uma Psicanálise coextensiva ao horizonte de sua vocação. Esta idéia exige explicação, naturalmente, mas uma conclusão inicial já se pode adiantar: para que a Psicanálise sobreviva longamente e bem, para que produza todos os frutos que dela se esperam, é forçoso que se transforme naquilo que é por vocação, completando o todo de que a obra de Freud é a semente, a antecipação de sua forma geral, talvez se pudesse dizer: os prolegômenos.
É certo que não somos ainda tudo isso, mas como seremos nós quando (ou se) o formos? A direção em que pode progredir da situação de incompletude presente rumo ao desejável estado de inteireza envolve diversas batalhas numa frente muita ampla: é necessária uma rigorosa recuperação crítica do próprio método psicanalítico, que se confundiu depois de Freud com o do tratamento clínico; também é de esperar-se uma generalização das teorias metapsicológicas que venha a dar conta das condições psíquicas não individuais, sem prejuízo do aprofundamento da própria especulação teórica sobre a psicopatologia individual e a posição da consciência; nem se pode dispensar a análise do real humano, lugar onde a Psicanálise encontra as demais ciências do homem4; por fim, há que ser ampliado o espectro de temas que se consideram psicanalíticos, hoje ainda limitados quase apenas àqueles que Freud pessoalmente abordou. Um exemplo mais ou menos óbvio, tratado de passagem numa nota da Psicanálise do quotidiano: "Seria talvez demasiado exigir de Freud que, além de convencer o leitor das complexas razões psíquicas subjacentes ao esquecimento do nome do pintor Signorelli, com que abre seu livro (A psicopatologia da vida quotidiana), também o pretendesse convencer de que toda e qualquer correta lembrança de um nome segue provavelmente caminho tão estranho e de igual complexidade" (Herrmann, 2001b, pág. 273, nota 51). E no entanto tudo indica que assim deva ser, que, submetido à interpretação psicanalítica, o processo associativo normal não difira grandemente daquele que surge ao dissecarmos os caminhos tomados por um ato falho ou sintoma. Sucede, porém, não ser esta a praxe psicanalítica; sem muita reflexão, usamos a Psicanálise para a exceção patológica e uma psicologia comum para os rendimentos normais. Uma Psicanálise que venha a cobrir todos os casos englobados pelo horizonte de sua vocação de ciência da psique não pode evidentemente ter por fronteira a exceção patológica ou a situação terapêutica, nem muito menos o sujeito singular, mas tem de preparar-se para ser uma Psicologia completa do indivíduo, da coletividade e sobretudo da psique do real — o reino do sentido humano que constitui, a rigor, o mundo em que vivemos.
Dentre os limites a superar, existe um, muito peculiar e até curioso, que afeta o analista em sua atividade clínica. Ao longo da história de nossa prática, temos estado pouco à vontade em nossos consultórios, como se nos estivéssemos apropriando de uma ação que não é completamente nossa. Certos maneirismos repetem-se automaticamente, repete-se uma forma de dizer, de portar-se, até de trajar-se para o trabalho. Estamos com certeza imitando alguém, e não é difícil adivinhar quem. Mesmo a produção teórica ressente-se disso. Ou nossos trabalhos são comentários das idéias freudianas, ou rompem em demasia com elas e tomam um setor da problemática psicanalítica como novo ponto de partida, reduzindo o todo a uma parte menor, como se se estivesse almejando um recomeço arbitrário — que privilegia só os instintos e a metapsicologia, só as relações de objeto, só o pensamento, só a prática clínica etc. —, processo a que chamei, noutra ocasião, de assassinato metonímico da Psicanálise5.
Existe causa para isso, na verdade duas causas. A primeira é a mais surpreendente. Freud foi antes de tudo um escritor, muito mais que conferencista, professor ou até mesmo terapeuta. Ele pensava por escrito e escrevia boa ficção, mesmo quando fosse ficção científica — num sentido que não se confunde, salvo por maldade, com o gênero literário que se havia de criar nos meados do século XX. Suas histórias clínicas são literatura de primeira água, mas sua teoria da sociedade e da cultura, sua descrição do psiquismo e do destino humano formam um conjunto respeitável de ficção especulativa, como raramente se encontra na Filosofia, na Física teórica e até mesmo na Literatura. Ora, entre tantas coisas que inventou Freud, o escritor, estamos justamente ele e nós, bem como a Psicanálise e o movimento psicanalítico. Ele se soube criar por escrito como "pai da horda primitiva" — e quem negaria a força literária da imagem? E criou-nos, a nós, psicanalistas praticantes, como personagens de sua obra. Os dramas dos pioneiros e discípulos, o segredo dos anéis, a ascensão e derrubada do herdeiro ariano, o isolamento esplêndido, a epopéia da conquista do mundo científico são em larga medida um enredo literário; não menos, cumpre notar, o analista atual, sentado em sua poltrona diante de um divã, escapa desse destino. Como pode a personagem questionar a obra de que faz parte? Assim, um pouco canhestramente, aceitamos o ritual prescrito; o tempo arbitrário da sessão, o número e a forma das mesmas, até os tiques e jargões que pensamos haver herdado de nossos analistas didatas, são na verdade o caráter da personagem literária por excelência criada por Freud: o psicanalista. As diferenças, mínimas aliás, vão por conta do jeito de cada um e de seu grupo, mais ou menos como muda um pouco a personagem de um livro quando este é transformado em filme: o analista didata é no máximo um diretor, mas o script já estava montado muito antes que qualquer candidato o procurasse.
A outra causa disso a que poderíamos chamar em conjunto alienação interna da Psicanálise — a dificuldade dos analistas em se sentirem plenamente autores de sua clínica e de sua produção teórica, característica, a propósito, que costuma separar ciência de doutrina — foi o obscurecimento do método psicanalítico, em parte confundido com a técnica de consultório, em parte com as teorias mais bem admitidas e mais tradicionais. Por método, entenda-se a forma geral da produção psicanalítica, tanto na investigação teórica, quanto nos estudos concretos de configurações psíquicas individuais e culturais, isto é, o método interpretativo. Nosso método parece estar envolto em brumas de mistério, como uma casa assombrada — assombrada, no caso, pelas grandes figuras da disciplina, por Freud e pelos chefes de escolas, mas também pelas figuras teóricas, das quais cada grupo costuma dizer: "Sem isso ou aquilo, sem après-coup ou sem identificação projetiva, não se pode já falar em Psicanálise". A relação entre teorias e método é muito complexa para que a discutamos aqui; mas o importante, de qualquer modo, não é a assombração, senão a bruma que nos impede de dizer com clareza que vem a ser uma interpretação6.
Em essência, propor uma interpretação significa geralmente mostrar que certo conjunto de idéias, de falas, de comportamentos, de emoções, de fatos sociais etc. significa algo diferente do que parecia manifestar, daí a expressão usual "conteúdo manifesto". Como se faz para o provar? Em geral, o analista, acuado por uma pergunta simples como esta, recorre a expressões do tipo intuição, vivência emocional, metáfora, teoria. Com isso, diz-se aproximadamente que uma intuição de sentido evocou certa vivência emocional na dupla analítica, a qual mostra que os ditos do paciente eram na verdade uma metáfora de certa teoria canônica, do complexo de Édipo, por exemplo. Não parece mau, em princípio, mas há problemas nesta definição. Para começar: de onde vem a intuição? Se vem da teoria, estamos diante de um caso modelar de petição de princípio, a premissa repetida na conclusão. Se vem da própria vivência emocional, já se trata de um clássico exemplo de sugestão, nossa praga epistemológica maior, pois a vivência emocional produz uma sensação de verdade a que é impossível a intuição resistir. Se a intuição vem de si mesma, como não é raro escutar, há que considerar ser a intuição algo como o cheiro de uma cor: porventura guia o pintor numa pincelada, mas não dá sentido ao quadro. O mais comum, segundo tenho observado na escuta de trabalhos clínicos, é vir a intuição da própria metáfora, ou melhor, da perspectiva iminente de uma metáfora que dê sentido ao conjunto das falas do paciente, conjunto que se pode traduzir então, ponto por ponto, nos termos da teoria, enquanto a vivência emocional confere-lhe credibilidade e certa eficácia prática. À parte o fato de não estarmos tratando aqui propriamente de metáfora, mas de alegoria7 — figura retórica de valor duvidoso —, descontando ainda a dificuldade de operar por vivências emocionais quando se trata de psicanálise da cultura, é preciso pelo menos argüir que metáforas, como diz o nome, apenas abrem caminho para o conhecimento, levam-no adiante, mas não provam o resultado.
A contribuição que a Teoria dos Campos pode proporcionar à superação desse obstáculo ao crescimento da Psicanálise consiste exatamente numa investigação cuidadosa do método interpretativo8. Partindo da evidência de que o método psicanalítico, empregado por Freud com naturalidade clássica, transformou-se num problema misterioso para nós, tivemos de esforçar-nos para o resgatar de sua bruma, por meio de uma reflexão às vezes árdua. Porém, simplificando um pouco o resultado, creio haver uma resposta sensata para a questão que nos ocupa agora, pese a que com derivações que — sou o primeiro em admiti-lo — devem soar bastante insensatas. E a resposta é: a interpretação não prova coisa alguma, ela apenas cria condições para que surja o sentido, sentido este que, para ter validade, deve ser diverso do da própria sentença interpretativa que o analista eventualmente haja formulado. Interpretar é como partejar — espera-se que nasça um bebê e não que nasça um fórceps, que do paciente surja um sentido, não que resulte o instrumento teórico do analista. Esta é a idéia básica da noção de ruptura de campo. O analista que interpreta, ao tomar em consideração o valor metafórico do discurso do paciente — ou, a propósito, de qualquer recorte do real —, espera induzir (outra palavra obstétrica) uma ruptura dos pressupostos que limitavam seu sentido, encarnados numa área psíquica transferencial ou campo, provocando o estado de momentânea confusão chamado vórtice9, em que ressurgem representações que haviam sido proscritas da consciência por estarem em desacordo ou serem incoerentes com as regras daquele campo em particular. Comparando as qualidades de tais "representações aberrantes", é possível deduzir com alguma precisão qual a regra que as excluía, ou seja, a regra de organização do campo rompido, que agora podemos conhecer razoavelmente. Trata-se simplesmente de um método indutivo-dedutivo: a ruptura de campo corresponde ao movimento de indução que evidencia uma nova representação eficaz; desta, deduz-se a estrutura do sistema (campo) que a negava. Tal representação é confiável, porque o analista não a criou ou sugeriu, mas só abriu caminho para ela; enquanto a dedução da regra é confiável porque limitou-se a buscar a fôrma estrutural da forma representacional. E se isso não é uma demonstração científica aceitável, pelo menos no reino psíquico, então a Psicanálise deve resignar-se a ser arte ou ofício, mas dificilmente ciência.
Claro, esta é a parte boa das notícias. O preço a pagar por este elementar exercício de sensatez é considerável, constituem-no as tais derivações insensatas, que são inúmeras. Tratarei de duas delas por sua relevância epistemológica. A primeira é o próprio objeto de nosso conhecimento, ou, para dizê-lo sem rodeios, o Homem Psicanalítico10, este ser que, como logo veremos, tem por carne e ossos seu sentido e por hábitat e origem o real humano, psíquico. A segunda derivação importante para nosso tema será o montante de desconhecimento que é preciso admitir, quando se trabalha com o método de ruptura de campo, pois nem sempre Freud explica…
Vamos por partes: o Homem Psicanalítico. Por que psicanalítico? Simplesmente porque o objeto da Psicanálise — que nasce na clínica —, a psique, o homem da psique, não é o homem inteiro, concreto, total. É verdade que não há ciência que abarque o homem total, nem mesmo a Antropologia — onde se pensa apanhá-lo inteiro, ele escapa por uma das portas de vai-e-vem da epistemologia das ciências humanas: natureza e cultura, sujeito e objeto, corpo e alma, infra ou superestrutura etc. De qualquer modo, nosso objeto é que não poderia ser o homem total. Primeiro, por ser este somente o psiquismo humano, o reino dos sentidos e significados; segundo, porque ele é estudado através de um método interpretativo muito especial, como acabamos de ver, que só é confiável quando põe seu objeto em movimento dialogal; terceiro, por ser constituída de campos a psique assim exposta, vale dizer, apreensível apenas em subconjuntos particulares, circunstanciais, histórica e socialmente determinados. O Homem Psicanalítico é o ser do método da Psicanálise, transferencial e descentrado internamente, dividido e múltiplo no íntimo de suas operações, este que aparece na sessão por efeito da ruptura de campo: o Homem Psicanalítico é um ser da estranheza.
Porém, se cada uma das ciências humanas confunde, em certo momento de sua evolução, seu objeto com o homem inteiro e pugna por impô-lo às demais, que mal haveria em fazermos nós o mesmo? Creio que para nós o risco é mais sério, por não manejarmos tão-somente um operador de conhecimento como outras disciplinas, em que a ilusão de totalidade é de pequenas conseqüências imediatas, mas ao mesmo tempo um operador de cura, uma ação concreta. Quer dizer: podemos criar de fato aquilo em que acreditamos. Quando o clínico confunde Homem Psicanalítico com homem concreto, gruda-se à realidade, tentando, por exemplo, adaptar o paciente à vida social dominante, sem crítica da mesma, ou, ao contrário, propondo que a realidade pessoal deva seguir algum dos cânones psicanalíticos, com o resultado prático de induzir comportamentos egoístas, de justificar implicitamente condutas pautadas pela liberação emocional, de favorecer o irracionalismo ou a racionalização, dois equívocos parecidos. O saneamento desse desvio fático não é terrivelmente difícil, mas é caprichoso, sobretudo porque implica o reconhecimento dos direitos da ficção dentro da Psicanálise. Vamos deixar clara a idéia: ficcional não significa falso, nem mesmo cientificamente menor, mas inserido num tipo de verdade peculiar à literatura, que é em geral mais apropriada para a compreensão do homem que a própria ciência regular. Ficção é uma hipótese que se deixou frutificar até as últimas conseqüências, antes de decidir sobre sua validade, é um instrumento poderoso de descoberta, mas tende a capturar o investigador, que também é personagem dela, levando-o a crer que sua história é fato. Nem mesmo Freud, nosso inventor, escapou por completo à atração fática da clínica. Quando ele desenvolve sua teoria da relação do aparelho psíquico com a realidade, temos a impressão de que toma a realidade como fato posto, cumprindo ao psiquismo acatá-la, reconhecê-la, percebê-la no mínimo. Vem daí uma teoria da relação entre psique e mundo que se poderia dizer perceptualista: a percepção da realidade é a grande tarefa do psiquismo, que tem de evitar os erros causados pelo princípio do prazer que gere os instintos e as emoções deles decorrentes. É inegável, por outro lado, que existe em Freud uma outra e diversa teoria da relação com a realidade, onde esta é essencialmente representação ativa criada pelo sujeito, sendo o próprio mundo humano uma espécie de psique extensa, confrontada à psique individual11. O legado desta teoria implícita, que norteia seus grandes historiais clínicos e as análises da cultura — implícita, por oposição à teoria explícita, de matiz perceptualista, que aparece no Projeto, no capítulo sétimo da Traumdeutung, nos textos metapsicológicos, no Ego e o id —, será, a propósito, nosso ponto de partida neste artigo. Os historiais freudianos constituem grande ficção, saber literário, penetração na essência humana singular — e por esta via na humanidade que em cada qual de nós reside. A ficção antropológica freudiana é ciência fantástica realizada em grande estilo. Certos textos doutrinários, posteriores ao Ego e o id, como "A negação", os ensaios sobre "Neurose e psicose", o "Fetichismo", as "Divisões do eu no processo de defesa", assim como alguns momentos privilegiados do Mais além do princípio do prazer, podem contar-se igualmente entre os subsídios de uma ciência ficcional rigorosa do Homem Psicanalítico. A estreita vinculação entre nosso conhecimento e a ficção constitui uma parte do preço a pagar — nada exorbitante, a meu ver — pela generalização da Psicanálise como ciência completa: seu objeto de conhecimento, o Homem Psicanalítico, não pode ser o homem inteiro e concreto, mas uma ficção verdadeira.
Penso que a ambigüidade representada pelas teorias explícita e implícita da realidade habita o miolo mesmo da Psicanálise que leituras diferentes de Freud permitem destacar. Explicitamente e por propósito original, a Psicanálise foi chamada a explicar os desvios da percepção correta do mundo. Os homens não são suficientemente racionais em seu julgamento da realidade, deixam-se levar pelas emoções, pelas paixões, pela neurose; assim, surge uma discrepância que deve ser explicada: a diferença entre o desejável realismo e a indesejável apreensão emocional que, por exemplo, faz ver perigos em situações inócuas ou que distorce os fatos em busca de prazer. Dentro desta visão simplista, a realidade é um conjunto de fatos e coisas, confunde-se com materialidade, e a percepção não constitui senão uma espécie de fotografia do mundo, que sai errada se se interpõe o filtro colorido dos conflitos psíquicos entre lente e objeto. Realismo ingênuo costuma chamar-se esse tipo de proposição. Ao buscar razões para o filtro emocional que proporciona uma imagem distorcida do mundo, Freud, porém, foi derivando insensivelmente numa direção de início imprevisível. Ainda que explicitamente estivesse à procura de explicação para as exceções à racionalidade da percepção, acabou por construir um sistema de pensamento que refuta cabalmente toda e qualquer ingenuidade perceptualista. Inexiste percepção não emocional do mundo, por um lado, e, por outro, a realidade mesma mostrou ser uma complexa e mutável construção subjetiva. Ou, para situar com economia o paradoxo, a realidade para a Psicanálise é em si mesma muito pouco realista.
Vem daí a ambigüidade a que há pouco me referia. Em nossa disciplina convivem as duas posições: explicitamente, realismo ingênuo e a idéia de uma distorção subjetivo-emocional, implicitamente, uma teoria do real que sustenta ser a realidade pura representação — o que significa que nos falta sempre o termo de comparação absoluto para julgar as distorções, mas não que estas deixem de ocorrer — e o real, uma espécie de psique embrenhada no mundo, em paz ou em guerra com a psique do sujeito individual, mas sempre humana no que concerne à Psicanálise. Este real demasiado humano, logo absurdo, domina vasta porção do pensamento do século XX, que haverá de ser conhecido, ao que tudo indica, como o século de Kafka, seu intérprete mais lúcido, objetivo e, portanto, realista — uma época marcada pela crise aguda da noção de realidade, desafio cuja resposta justa consiste provavelmente numa atitude epistemológica de descrença relativa, solução do confronto entre objetividade tecnológica e ceticismo niilista.
A segunda prestação, por assim dizer, do preço a pagar pela Psicanálise no cumprimento de seu horizonte de vocação, o montante do desconhecimento que nos cumpre aceitar, não é tão diferente desta primeira, pensando bem. É até um pouco embaraçoso tratar do assunto do desconhecimento na Psicanálise, pois os psicanalistas estão sempre prontos a admitir que sabem pouco ou que nada sabem, talvez pressurosos demais em admiti-lo. A verdade é que descobrimos muita coisa acerca da alma humana, bem mais do que a Psicologia e a Psiquiatria sonharam desvendar; apenas não sabemos aquilo que pensamos saber. Por exemplo, se nosso conhecimento é essencialmente provido pela ruptura de campo, então devemos encarar de frente o fato de que cada bocado de saber alcançado por nosso método diz respeito a um campo psíquico — a um complexo inconsciente, usando a expressão de Freud — mas que não temos meio algum de reunir a totalidade dessas descobertas numa teoria monolítica. O inconsciente, a unidade total, é o nome que se dá a uma abstração, ao conjunto de todos os campos possíveis. Por conseguinte, qualquer discussão de princípios, em que um analista diz ao outro: "Para mim, o essencial do inconsciente é isto (o complexo de Édipo, os mecanismos da posição esquizoparanóide, a cesura, a repressão etc.)", carece de sentido, não apenas pela arbitrariedade do argumento, mas principalmente pela inexistência do objeto referido, a substância inconsciente unitária. Mesmo que, por um artifício duvidoso, colocássemos no mesmo plano todos os fragmentos de saber a respeito dos campos do inconsciente, como uma coleção de objetos sobre a mesa, ainda assim não saberíamos dizer qual a relação exata entre eles, pois é seguro que, entre o objeto B e o A, existiria uma centena de objetos I (I de ignorados), cuja omissão inviabilizaria qualquer proposição positiva sobre o organismo anímico12. Teorias gerais, nesse caso, são especulação ficcional: úteis, utilíssimas para evidenciar a extensão do desconhecimento, mas dificilmente probatórias. Analogamente, na ordem genética, é preciso reconhecer que nenhuma ruptura de campo pode comprovar que o bebê pensa dessa ou daquela forma, nem que a série do desenvolvimento psíquico de certo campo possa ser extrapolada para os demais. Em suma: para que a Psicanálise complete-se como ciência geral, não se pode fazer caso omisso dos elos desconhecidos, nem é permissível englobar apressadamente os campos numa teoria unificada do inconsciente, ou tampouco acreditar que os indícios de séries genéticas correspondam, mesmo que aproximadamente, à realidade da desconhecida vida emocional da primeira infância. Dito isso, paga a conta, o que sobra para nós?
A Teoria dos Campos não é um comentário da obra de Freud, muito menos um comentário desabonador. Tampouco é uma teoria independente, ou uma escola psicanalítica, mas uma espécie de interpretação: uma forma de ver a Psicanálise e, conseqüentemente, uma forma de ver a psique. Parte das duas premissas acima: que, para sobreviver, a Psicanálise deve ocupar o espaço demarcado pelo horizonte de sua vocação e que, para ocupá-lo com coerência, deve aceitar as limitações de seu método, das quais decorre em particular a inexistência de uma teoria geral do inconsciente. O que lhe sobra são campos, regiões psíquicas cuja lógica emocional o processo de ruptura permite compreender. Cada complexo psíquico investigado pela Psicanálise possui propriedades características, que, numa analogia aproximada, são como a forma do espaço-tempo que se oferece aos corpos materiais na Teoria da Relatividade, os campos sendo o espaço-tempo e os corpos, as representações que neles ocorrem. Quase sempre ignoramos como se formam tais campos, qual sua gênese e história, porém — e nisto talvez resida boa parte da contribuição da Teoria dos Campos à Psicanálise — nem por isso nosso trabalho fica inviabilizado: operamos com as regras dos campos, mesmo sem as poder subordinar a uma teoria geral das origens; a Teoria dos Campos lucra o possível do reconhecimento da ignorância da Psicanálise. Esta peculiaridade de nosso aparelho científico torna-o útil para a análise de condições psicossociais, mas igualmente faz dele uma espécie de metateoria, de epistemologia interna da Psicanálise, a que se poderia chamar teoria do conhecimento limitado, ou, como talvez fosse preferível, teoria do desconhecimento relativo. Nesse sentido, a Teoria dos Campos trata as teorias vigentes na Psicanálise também como relações internas aos campos em que foram produzidas e, com isso, procura evitar o erro básico em que hoje incide comumente nossa disciplina, que é o de transformar algumas regras, descobertas num contexto particular, em doutrina ou sistema geral de uma escola de pensamento. O próprio progresso da teoria psicanalítica não é concebido como acumulação paulatina, no feitio que se consagrou no reino da tecnologia onde uma descoberta possibilita a seguinte, senão como rupturas sucessivas das próprias teorias; a generalização de teorias particulares em teorias mais amplas afigura-se para nós não como uma soma, um processo de adição de novos dados e de novas concepções, mas como uma crise: o choque entre teorias deve pôr a nu seus pressupostos gerais, suas regras de organização, que servirão em seguida como ponto de partida da generalização. Por isso é adequado dizer que a Teoria dos Campos não é mais que uma interpretação da Psicanálise: induz rupturas dos campos teóricos.
Talvez uma vista rápida da clínica da Teoria dos Campos possa ajudar o leitor a compreender melhor essa forma de procedimento. Como ciência da psique, a Psicanálise pode fundar diversas modalidades de terapia, porém é justo que o tratamento-padrão, a psicanálise, seja o laboratório — o lugar de trabalho — em que suas teorias ganhem corpo e sejam verificadas. Para tanto, é fundamental que não se incorra no erro vulgar de aplicar mecanicamente concepções gerais a qualquer analisando. É muito fácil inventar uma teoria psicanalítica: basta juntar alguma hipótese sobre a estrutura do psiquismo a alguma hipótese sobre a origem do psiquismo e aplicar o resultado à direção da cura analítica, que os efeitos de sugestão inerentes ao campo transferencial sempre acabarão por "provar" qualquer premissa. Este gênero falacioso de comprovação prática está, todavia, muito abaixo da dignidade que se espera de um saber de raiz que pretende desvelar a constituição da alma humana. O antídoto previsto pela Teoria dos Campos para tal falácia é relativamente simples, embora seja preciso admitir que nunca chegará a ser muito popular entre os analistas. Ao caçador que mal vislumbra seu caminho no mato cerrado da clínica, aconselha-se apagar a lanterna teórica para não espantar a caça.
Em primeiro lugar, diante de um paciente, nunca partimos de qualquer um dos roteiros que propõem via de regra as diversas correntes para o processo analítico. Para nós, nenhum tema é em princípio mais importante que outro. É provável que a sexualidade jogue um papel central em todas as análises, para usar um exemplo extremo, mas estaremos antes de mais nada interessados em saber que significa sexualidade neste caso particular — e freqüentemente acabamos por descobrir que é algo a que anteriormente nem sonharíamos aplicar semelhante nome. A interpretação, o ato psicanalítico essencial, sendo considerada pela Teoria dos Campos como indutora de rupturas, não se confunde com as falas do analista, por mais acertadas que sejam; às falas chamamos sentenças interpretativas, enquanto reservamos o termo interpretação para o entrejogo de pequenas interferências, toques emocionais, digressões, silêncios que induzem o surgimento de representações disruptivas do campo a que se limita a vida psíquica de nosso paciente; e em geral tais representações surgem dele mesmo, não são sugeridas. Em conformidade a tal procedimento, as falas do analista não procuram ser explicativas nem mesmo completas; basta normalmente uma repetição, uma modulação especial do tom de voz, uns pedaços de sentença para ressaltar o ponto eficaz do discurso do analisando e precipitar uma ruptura de campo. A explicação, a sentença interpretativa, vem depois, para dar ciência ao analisando do que se passou; não é o motor do processo13.
Talvez o melhor caminho para compreender dois dos pontos mais difíceis da Teoria dos Campos dentre os que viemos tratando, a diferença entre interpretação e dito do analista e a idéia de ruptura de campo teórico, passe pela questão da transferência no processo analítico (Herrmann, 2001a, "Introdução"). Pode não ser estranha ao leitor a frase que afirma: psicanálise é a operação do campo transferencial — mas que significa ela exatamente? Reduzindo-o ao termo mínimo que o uso consagrou, o conceito original freudiano afirmava ser a transferência uma repetição com outra figura, a do analista principalmente, de certos padrões emocionais conflituosos, dirigidos de início a uma das figuras-chave da vida infantil. Ou seja, a emoção certa, porém na hora errada e com alguém que nada tem a ver com isso. Depois, com a evolução da prática clínica, transferência passou a designar igualmente uma forma muito especial de tradução metafórica, em que se considera que tudo o que o paciente diz ou faz "tem uma dimensão transferencial", um segundo sentido, bem ou mal escondido, que exprime as emoções vividas no aqui e agora da sessão; e é esse sentido que o analista deve mostrar a seu paciente. Aceitamos a dupla acepção do termo, mas pensamos também que não basta tentar traduzir a emoção transferencial, sendo antes necessário, ou melhor, inevitável, tomar em cuidadosa consideração a força de criação ficcional da transferência na análise. A análise de um paciente não é psicanálise + paciente, um processo sempre igual com diferentes pessoas, senão uma história singular, um campo bem determinado pela história psíquica, capaz de organizar os demais campos que nele ocorram. Assim sendo, cada análise tem um enredo que é a vida do analisando, sob espécie transferencial. Ao analista cabem vários papéis nesse enredo, podendo ser um deles o de tradutor, mas a análise encarnada é como a neurose do paciente: é história viva. Seria um pouco forçado querer desempenhar o papel de príncipe Hamlet, em Macbeth.
É notável como as análises de Freud, relatadas em seus historiais clínicos, tinham a feição exata dos pacientes tratados, enquanto as nossas descrições têm muito mais a cara da Psicanálise. É que para ele a análise era um experimento histórico, este o sentido forte da noção de neurose de transferência. Freud compartia o enredo psíquico dos analisandos, aceitava entrar no campo transferencial para o romper com a cura. Ao discutir os detalhes do sonho do Homem dos Lobos, as peripécias da dívida não paga do Homem dos Ratos, os lances da história amorosa do Caso Dora, já estava interpretando transferencialmente, sem a necessidade de dizer: "O senhor (ou a senhora) sente que eu…". Tomando ao pé da letra essa atitude fundadora da clínica psicanalítica, a Teoria dos Campos propõe que o processo de construção da sentença interpretativa, e não sua comunicação ao paciente, constitui a verdadeira interpretação, sendo aquela apenas um momento posterior e às vezes prescindível dentro do trabalho analítico. E mais, que as teorias envolvidas nessa construção fazem parte do campo transferencial — ou ele só age sobre o paciente? —, e sobretudo que a teoria que serve de eixo para uma interpretação, dure esta quanto dure, de um curto instante até a análise inteira, nunca está acima da interpretação, não é um cidadão acima de qualquer suspeita. A ruptura do campo particular em que se está trabalhando (dentro do campo transferencial mais amplo) acarreta necessariamente a ruptura da teoria em uso, que pode ressurgir fortalecida, refutada ou corrigida. Na prática analítica, esta é a função possível da teoria: operar como interpretante na ruptura de um campo, e é caso de desconfiar de qualquer teoria que passe incólume pela prova de ruptura de campo; ou não se trata de uma legítima teoria clínica, mas de uma especulação abstrata que não se deixa tocar, ou o analista a emprega com fé cega e não está disposto a teorizar por sua conta e risco.
Essa mesma atitude pode ser transposta para a interpretação de condições sociais. Uma ciência da psique não se há de restringir ao campo de uma só situação, a terapia analítica, criada artificialmente para que funcione bem. Tendo a Psicanálise de ser mais que a ciência da situação analítica, somos convidados a praticar uma clínica generalizada para as condições concretas do homem; prática difícil, em que a noção de campo transferencial passa a ser realmente indispensável, já que o fenômeno transferencial não está disponível. Um campo transferencial é uma rede de indução de sentidos, sem indutores concretos, causais; ele determina o sistema estudado, levando-o a posicionar-se em relação ao sujeito do conhecimento, e cria uma interação, mesmo onde não existe um diálogo material. Mas as mesmas regras de operação continuam vigentes aqui grosso modo, em especial a que rege a validade das teorias, que só se mantêm na medida em que se transformam com o uso. Ao contrário da História ou da Arqueologia, não é o patrimônio de conhecimentos adquiridos o principal suporte da Psicanálise, mas sua capacidade de arriscar parte desse cabedal acumulado a cada novo problema que enfrenta, mais ou menos como o faz a Filosofia. É neste sentido também que a Teoria dos Campos deve ser vista sobretudo como uma interpretação da Psicanálise: não só é uma reinterpretação teórica de alguns conceitos psicanalíticos, como opera ao modo de uma interpretação psicanalítica da própria Psicanálise, por ruptura de campo.
Quero usar, como exemplo desse proceder da Teoria dos Campos, uma breve discussão sobre a noção de eu na Psicanálise14. Enquanto o grosso dos conceitos psicanalíticos aponta em direção a uma crítica bastante radical do realismo ingênuo — processos como negação, repressão, transferência, projeção etc. não constituem desvios psíquicos, mas o modo mesmo do funcionamento mental —, a noção de eu, um pouco deslocada do conjunto, encarna o ideal superado de retratar objetivamente o mundo. Vale dizer que o eu, uma das instâncias do psiquismo, sede das funções de juízo, ação motora, memória etc., mais que uma simples teoria, é um agente ideológico infiltrado: a noção de eu funcional guarda, no interior do sistema teórico psicanalítico, os restos da psicologia funcionalista de onde se desgarrou a Psicanálise. No entanto, mesmo este eu funcional não é um ente puro. Os fenômenos de interferência que Freud descreve com fartura atingem o eu, através de sua representação psíquica — ou não se diz, por exemplo, que o eu é amado ou atacado pelo superego? Não cabendo falar em duas entidades distintas, o eu-função é arrastado pelo eu-representação ao jogo vertiginoso dos valores emocionais; então, temos de tomar uma decisão, ou consideramos o eu funcional uma espécie de transeunte que se vê metido na briga alheia, ou reconhecemos, com Freud aliás, que o exercício das funções psíquicas que se costuma atribuir ao eu são produto de complexos arranjos posicionais entre os atores que contracenam na vida mental, cada qual portando suas próprias representações e disfarces (Herrmann, 1999, capítulos 1 e 2).
Por força dessa última opção pela complexidade, até mesmo a existência de uma unidade singular chamada eu pode ser questionada. Freud deixou perfeitamente clara a relativa impotência do eu diante da pressão dos instintos e das exigências da realidade. Não impotência completa, mas relativa impotência, num sentido análogo ao que se dizia acima da descrença relativa na possibilidade de percepção correta do mundo. Todavia, mesmo a idéia de um eu relativamente fraco tentando fazer acordos para sobreviver em meio à tempestade dos instintos pode ser enganadora. E isto por uma simples razão. Dos três elementos em jogo nessa figuração — realidade, eu, instintos —, só o terceiro é propriamente psicanalítico quando assim formulado; a realidade exigente é muito mais uma noção do senso comum — os fatos e as coisas, a exigência implacável da matéria —, enquanto o eu parece representar uma noção psicológica corrente, apanhada pela turbulência afetiva e pelo emaranhado de significados que propõe a teoria psicanalítica. O passante incauto…
Pensando melhor, essa noção de eu está ligada a um modelo do psiquismo, do sujeito e da realidade que, por ser intuitivo e usual, geralmente nos escapa quando estudamos Psicanálise: não acreditamos estar diante de um modelo, mas da verdade pura e simples, e reservamos nossa atenção e esforço para compreender apenas aqueles conceitos complicados que tentam dar conta dos desvios dessa verdade. É um modelo, porém, e uma pequena filosofia que aí se escondem. Neste modelo pelo qual passamos há pouco, o eu percebe a realidade, que é aquilo que o cerca, que é dado. Percebe-a bem, quando vê o que existe, às vezes se engana e troca o que é pelo que não é. As razões dessas confusões periódicas devem-se a causas internas, à força dos instintos e ao desejo de não enfrentar desprazer contrariando-a. O mundo externo influi sobre o psiquismo de fora, via percepções. A situação é, por conseguinte, análoga à de um homem a ler uma página de texto. O texto já estava lá quando abriu o livro, mas ao ler pode cometer algum lapso — ler más onde estava escrito mas, por exemplo. Como se sabe que era mas o que estava escrito? Porque ele mesmo depois se corrige ao voltar à página, bem como qualquer outra pessoa que porventura tenha acesso ao livro o pode testemunhar. Compreender por que cometeu o ato falho demanda um esforço de análise, ler corretamente não chama a atenção.
Verdadeiramente simples, não é fato? Notemos, entretanto, algumas peculiaridades do modelo. Em primeiro lugar, é um modelo perceptual e, dentre todos os sistemas sensoriais, escolhe o olhar como paradigma — não o olfato, cujo mundo é impregnante e envolvente, nem a propriocepção, cujo mundo é incorporação orgânica, mas a visão, este sentido que põe o mundo à distância e que serve à distinção entre os seres e entre sujeito e objeto15. Em seguida e conseqüentemente, neste modelo a realidade é a própria matéria tangível, visível ou inteligível — as manchas de tinta no papel que possuem significado fixo na língua, não o sentido, a rede de conotações do texto lido. Por fim, o sujeito leitor é distinto do autor: é um indivíduo, não a comunidade cultural, que pode ler um texto por meio de um eu individual, justamente porque o escreveu por meio de outro eu individual. Por isso, é compreensível que se distinga tão bem interior de exterior; pois a cultura, o real humano, ela estaria dentro e fora, como sistema gerador de realidade. Que realidade? Ora, a materialidade certamente existe e permanece, mas não é assunto psicanalítico; já o sentido, a representação do real, é a realidade que nos concerne, mas esta não permanece incólume e inalterável, um texto lido mil anos depois de escrito já quer dizer outra coisa, modifica-se mesmo a uma releitura imediata, ou no cotejo com a leitura alheia e, fora do contexto de alguma interpretação, não possui sentido algum. E, última conseqüência do modelo, os instintos animais, a fome e o impulso reprodutivo, da mesma forma que as secreções hipofisárias ou que a bomba sódio-potássio da célula nervosa, embora existam e determinem o comportamento, tampouco são primariamente assunto nosso, mas só sua transformação cultural; o homem é decerto instaurado no animal humano, mas a Psicanálise apenas trata do homem, não de seus muitos substratos físicos, orgânicos, bioquímicos etc.16. Assim sendo, o interior que nos concerne não está isolado do exterior, é a continuidade interna daquilo que está aí gerando sentidos no indivíduo, na coletividade humana, ou, por outra, no reino do espírito encarnado.
Logo, não sem surpresa, temos de admitir que o que parecia simples evidência começa a mostrar-se uma filosofia do sujeito e do mundo. Esta filosofia, que combina realismo e perceptualismo em doses equivalentes, é de fato útil para inúmeras situações da vida humana e serviu como ponto de partida para a Psicanálise, sem qualquer problema. A interrogação só viria depois e não por acaso. É que a própria Psicanálise, quando estabelecida como forma de pensar o homem, começa a exigir outros modelos de relação entre homem e mundo. Freud criou o sistema de pensamento que abala seu ponto de partida, levando-nos à curiosa situação de ter por base um modelo filosófico que se presta bem a quase todas as condições quotidianas, até mesmo a certos setores da ciência, mas não à única condição que nos importa, à própria visão psicanalítica do homem. Para que a Psicanálise se transforme numa ciência geral da psique, é forçoso reconhecer o modelo que se oculta em seus alicerces e construir alternativas que permitam ao psicanalista compreender psicanaliticamente não apenas os momentos de estranheza manifesta — um sintoma, um ato falho —, senão a totalidade da vida anímica, o normal como o patológico, os equívocos de leitura, mas também a leitura em si, para não falar dos diversos mundos em que vivemos: olfativo e gustativo, visceral e motor, sexual e agressivo, cada qual repleto de sentido humano que nos cabe deslindar. E este modelo alternativo não é preciso procurá-lo fora, ou dar tratos à mente para o inventar, pois a própria teoria freudiana já o supõe implicitamente e seus conceitos mais vitais esboçam-no a contento17.
Tentemos figurá-lo brevemente. Imagine-se o real — o real humano evidentemente, encarnado na vida cultural e no indivíduo — como um sistema gerador de sentidos. Um puro produtor de sentido humano, uma psique mundanizada, concreta, sempre ativa. O sujeito, individual ou coletivo, seria então criado por um movimento que se poderia comparar a uma dobradura, um canto da folha de papel dobrado sobre o resto, para facilitar a comparação com o modelo anterior. O contato entre a folha e o canto dobrado delimita um espaço virtual: é como se o papel encarasse a si mesmo, como se o real fosse posto diante dele próprio. Tal contato corresponde, nesta analogia, à representação que o sujeito (essa porção de real seqüestrado no indivíduo ou na subjetividade social) cria continuamente daquilo que se lhe antepõe. A isso chamamos realidade, à tentativa sempre precária de representar o real que nos está diante da consciência. Contudo, há também uma porta de trás. É esta a continuidade entre real e sujeito, a continuidade do papel que foi dobrado. Esta dimensão "real" do sujeito — isto é, o conjunto das determinações irrepresentáveis que o fabricam, o real seqüestrado — pode ser compreendida de diferentes maneiras e receber nomes diversos, segundo a ciência que a estude. A Psicanálise encontrou o nome desejo para identificá-la e chamou instinto às determinações mais básicas que o impulsionam, àquelas que fazem fronteira com a animalidade do homem, mas que, convém não esquecer, já são parte do real humano, da cultura (Herrmann, 2001a, Parte Segunda, capítulos V e VI).
Este não é um modelo necessariamente verdadeiro, nenhum modelo o é, mas serve-nos para pensar o eu. Aceitando-o provisoriamente, teremos como resultado não ser o eu forte ou fraco, e sim o agente (ou agentes) da tentativa de representar a porção do real que internamente o constitui — o desejo — e todo o resto do real que o constitui externamente: ao primeiro grupo de representações chamaríamos identidade e ao segundo, realidade (Herrmann, 1998, "Prólogo: O escudo de Aquiles"). O eu não é pois um passante inocente, vindo sabe-se lá de onde, da Psicologia em última instância, mas o produto de uma perturbadora relação dialética entre duas dimensões do real que, sem prejuízo de sua continuidade profunda — a porta de trás… —, duelam e procuram negar-se na superfície das representações. Digamos que o organismo humano — a cria da espécie, o bebê, o corpo físico, as potencialidades psíquicas — é o lugar onde se inventa o homem, onde o real dedica-se a sua autocontemplação consciente, mas sobretudo onde cria a possibilidade de auto-superação. A noção de eu procura fixar esse passo problemático do processo.
Conclusão
O eu não pode vencer a batalha contra os instintos, pois instinto é o nome que se aplica à constituição básica do eu, àquilo que o impulsiona, e que já é cultura — o instinto animal, bem como as flutuações hormonais e o sistema nervoso, não são assunto psicanalítico, já ficou dito. Seria como querer serrar o galho da árvore em que se assenta, ou, ainda melhor, o galho da árvore de que é fruto. A consciência, por conseguinte, não é uma folha no vendaval das paixões, um anão numa guerra de instintos gigantescos. Ela, sabemos muito bem, é extremamente forte, para o bem ou para o mal. Apenas é impotente quando procura executar alguma tarefa absurda, como a de controlar suas próprias determinações, negando ser produto delas mesmas. Nós não vivemos no escuro, podemos conhecer-nos razoavelmente e agir de acordo, só não podemos escolher quem somos. É possível que os psicanalistas tenham por vezes menosprezado o poder da consciência, assim como, noutras, exagerado suas expectativas sobre ela. Ter consciência de um conflito não significa resolvê-lo, aí o exagero da expectativa. Mas considerar a consciência como um simples observador do psiquismo é o exagero oposto. A consciência é ativa e capaz de estabelecer rumos e soluções, mesmo na vida intrapsíquica. Porém, não é unitária ou homogênea, não é sempre a mesma a consciência que temos das coisas ou de nós mesmos (Herrmann, 2001a, Parte Primeira, capítulos IV e V). Ademais, seu instrumento fundamental, as representações, não cobre a totalidade da identidade nem da realidade, as representações são sempre parciais e comprometidas. Basta reconhecer que esses dois pólos, identidade e realidade, apenas se distinguem pela posição relativa ao eu, ou ao setor do eu que está de serviço no momento; se o desejo é uma extensão do real, se é a porção do real seqüestrado no interior do sujeito, cada representação de realidade deve conter uma representação da identidade, direito e avesso do mesmo tecido.
Talvez o fenômeno que ilustre melhor a força e a fraqueza da consciência humana seja este equívoco universal e quotidiano a que se chama projeção. É extremamente comum vermos um paciente avaliar uma situação complicada de maneira muito precisa, distinguindo com clareza os elementos que compõem a trama de um conflito psíquico e sabendo indicar o caminho a seguir, para culminar atribuindo às circunstâncias ou ao outro aquilo que está a sentir ou fazer. Este equívoco ocorre tão sistematicamente que se poderia até generalizar, afirmando que a consciência incide sempre num erro essencial de pessoa em seus julgamentos. Mas não resta dúvida, por outro lado, de que esse mesmo julgamento tem conseqüências muitas vezes gravíssimas — pensemos no preconceito, por exemplo —, atestando o poder efetivo da consciência em encaminhar o psiquismo a certa direção, mesmo que na direção mais absurda (Herrmann, 1998, capítulo 2). De modo geral, a consciência é bastante eficaz na criação e transformação do sujeito sempre que opera no sentido de criar formas de ser, a partir do reconhecimento das tendências internas, e muito pouco eficaz quando tenta controlá-las: a consciência humana é bem mais competente como artista que como guarda de trânsito intrapsíquico.
Outro aspecto da questão psicanalítica do eu que mereceria ser reconsiderado dentro do modelo com que estamos trabalhando agora — a dobradura do real humano que produz sujeitos — é a noção de narcisismo. Esta pode ser deslocada da simples quantidade de amor exigido pelo eu das demais instâncias psíquicas, ou dos outros eus que a compõem, e de seu reflexo na exigência de amor e aprovação externos, para a relação entre o real seqüestrado no sujeito e a extensão muito maior do real que se lhe antepõe. Com efeito, seria difícil compreender as psicoses como produto de uma intoxicação libidinal, por maior que fosse. O problema está antes, é pelo menos concebível, no grau de exclusão imposto pelo desejo ao real: na psicose, o desejo retira-se desgostoso do real e se proclama autônomo, ou decide que constitui a totalidade do real. Mais interessante, entretanto, é a recíproca desta situação. Pois o real humano pode também ser afetado de narcisismo, recolher-se em si próprio, excluindo o sujeito humano e interrompendo o circuito dialético de sua constituição. Essa situação infeliz não se resume à proverbial indiferença das coisas às nossas necessidades e intenções, pois não se trata aí propriamente do real, mas da materialidade. Ao contrário, é no exagero da humanização do mundo que sobrevém o narcisismo do real, quando o homem passa a ser um simples elemento da cadeia de meios para a consecução de um fim humano. O fenômeno da alienação é presumivelmente o exemplo mais perfeito do narcisismo do real, que ocorre também nas condições de super-representação, como o regime de moralidade e a farsa18, e em geral na maioria das patologias sociais, caso da anomia, das crises coletivas de identidade, de certos fenômenos de massa etc.
O projeto de generalização da Psicanálise como ciência da psique dificilmente poderia ser esboçado hoje com precisão suficiente para transformá-lo num programa de trabalho. Faltam condições organizacionais, por exemplo, já que o movimento psicanalítico está centrado no desenvolvimento e na defesa da profissão de psicanalista, especialmente na formação de novos analistas. Falta-nos igualmente uma reflexão filosófica mais aprofundada sobre os fundamentos requeridos por essa ciência a construir e mesmo sobre a disciplina já existente. Nem mesmo é claro, no momento, quais tópicos teóricos deveriam ser tratados com prioridade; no entanto, creio estar acima de qualquer dúvida razoável que a discussão da noção de eu tem de ser um deles, ou, quando menos, que sua discussão fornece um bom exemplo dos limites que encontramos pela frente.
Voltemos ao caráter ficcional da produção psicanalítica pelo problema clínico-teórico mais amplo e delicado acima abordado: a posição complexa entre fato e ficção ocupada pelo Homem Psicanalítico. Sob um prisma restrito, o problema surge por ser a situação analítica uma condição artificial, montada especialmente com vistas ao bom funcionamento da operação interpretativa. Durante uma análise, incontáveis vezes o par terapêutico embarca a velas soltas numa certa linha de representações — numa identidade perdida ou num disfarce potencial, só o futuro do trabalho o esclarecerá —, cujo enredo tem de ser acompanhado sem qualquer garantia de que seja verdadeiro ou relevante, a tal hipótese levada às últimas conseqüências. Pode ser uma história inventada com propósitos defensivos, mas toda história é História para nós até prova em contrário, no sentido da prática encarnada freudiana. Verossimilhança ou plausibilidade não constituem então um crivo útil para a exclusão ou o acolhimento de certo conjunto de representações, mas só a produtividade heurística que ele promete. No interior do processo analítico com nossos pacientes, portanto, a ficção reclama vigorosamente seu direito de cidade.
Será esta uma peculiaridade, ou mesmo um vício, exclusivos da Psicanálise? Não, com certeza. Com todas as ciências dá-se o mesmo, e muito especialmente com a Filosofia. O pensamento científico e filosófico desnaturaliza o mundo do quotidiano: o mundo físico é o mundo encarado pelo método da Física, Sociedade é um conceito sociológico e assim por diante. Onde aparece a ciência, a coisa do senso comum afasta-se encabulada, entra num eclipse parcial, do qual sobrevém este análogo negativo da coisa que é o objeto. Falando com rigor, o verdadeiro objeto da Física não é a pedra nem é o átomo em que esta se dissolve diante do olhar teórico, mas o próprio movimento de solvência cinematográfica que representa tal dissolução — ainda se vê a sombra da pedra, já se notam as minúsculas partículas, mas o foco é a representação do movimento teórico que leva de uma às outras, e do átomo às partículas subatômicas etc.; analogamente, na Psicanálise, o objeto não é certa consciência racional ou o inconsciente relativo em que esta se dissolve a cada ruptura de campo, mas o mesmo momento mágico de solvência, como entre pedra e átomo, quando o pensamento põe suas entranhas à vista, sob forma de vórtice, e o movimento metodológico entra em foco. Na ruptura de campo o fato transforma-se em ficção e ganha mais verdade.
Diante do método e do objeto da ciência, o espírito do quotidiano costuma perguntar: "Tudo está muito bem, mas onde estão as coisas de verdade?". Recordo-me de uma aula de ciências, em que nos era apresentado um esquema do corpo humano — ossos, músculos, vísceras etc. —, quando um dos colegas de secundário perguntou: "Professor, e onde fica a carne?". Essa mesma iluminada questão ou estúpida — segundo o ponto de vista —, repetem-na incessantemente os leigos antepostos à crítica filosófica da realidade, à relativização dos conceitos de tempo e espaço na Física, à dissolução do eu, enquanto consciência racional, na Psicanálise. "Onde enfim está a carne de verdade?" A resposta pode ser rude — no açougue — ou mais sutil e embaraçada — são ordens diferentes de ser, segundo o olhar que os visa. O que não há, evidentemente, é uma realidade para lá dos pontos de vista, ou das escutas, ou dos entendimentos, isto todo mundo sabe e todo mundo esquece. Em nosso caso, o esquecimento manifesta-se numa espécie de reticência com respeito aos limites da Psicanálise, dos quais estamos tratando. Quando é que um homem tem psicologia e quando suas representações são mesmo de verdade? Muito embora a questão careça completamente de sentido, o fato é que o termo psíquico acabou por associar-se a parapsicológico (como em fenômenos psíquicos), ou, mais comumente, a psicopatológico: dir-se-ia que alguém com psicologia já é candidato ao hospício…
Pois bem, o Homem Psicanalítico, além de ter psicologia, sofre gravemente de psicanálise. O mundo, visto pela óptica das ciências, é composto de objetos, de solvências cinematográficas das coisas e das pessoas, de eclipses parciais da matéria comum. A descrição mais realista desse mundo é, por conseguinte, uma obra de ficção. Só com ela saberemos responder à pergunta sobre "como são as coisas de verdade". Espera-se da ciência futura saber combinar-se com a literatura para produzir essa grande obra que poderá sintetizar vida quotidiana e ciência, selando o hiato que hoje as separa, hiato onde o homem acabou por ser vítima da tecnologia, do retorno sobre si daquilo que lhe é essencialmente alheio, por ser produto direto de sua alienação. A ciência geral da psique que se dispuser a participar dessa tremenda realização deverá estar preparada para empregar corretamente os recursos da ficção a fim de transmitir aos homens uma visão correta e ao mesmo tempo apreensível de si mesmos, habitados por psicologia, talvez por psicanálise, se o destino assim o quiser.
Referências
Adorno, T. (1993). Minima moralia (2ª ed.). São Paulo: Ática. (Trabalho original publicado em 1951). [ Links ]
Castoriadis, C. (1978). Épilégomênes à une théorie de l’âme que l’on a pu présenter comme science. In C. Castoriadis, Les carrefours du labyrinthe (pp. 29-64). Paris : Ed. du Seuil. [ Links ]
Herrmann, F. (1983). O Homem Psicanalítico: Identidade e crença. Revista Brasileira de Psicanálise, 12 (4), 417-427. [ Links ]
Herrmann, F. (1989). Interpretação: A invariância do método nas várias teorias e práticas clínicas. In S. A. Figueira, I. Kirschbaum & M. Mélega (Orgs.), Interpretação: Sobre o método da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Herrmann, F. (1998). Psicanálise da crença. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
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Herrmann, F. (2001a). Andaimes do real: O método da psicanálise. (3ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Herrmann, F. (2001b). Andaimes do real: Psicanálise do quotidiano. (3ª ed.) São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Herrmann, F. (2003). Clínica psicanalítica: A arte da interpretação. (3ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Herrmann, F. (2004). Introdução à Teoria dos campos. (2ª ed.). São Paulo: Casa do Psicólogo. [ Links ]
Endereço para correspondência
Fabio Herrmann
R. Agrário de Souza, 106 — Jardim Paulistano
01445-010 São Paulo, SP
Fone: 3088-8123
E-mail: herrmannfl@globo.com
Recebido em: 20/03/2006
Aceito em: 20/04/2006
* Membro Efetivo e Analista Didata da SBPSP e Professor da PUC.
1 Foram acrescentadas notas e atualizadas as referências bibliográficas.
2 Ao contrário, é menos provável que possa manter indefinidamente seu rito de exclusão — que sustenta a seleção de analistas e de escolas —, baseado em regras de moldura clínica, standards de formação e escolas dominantes. Ele nos traz dois problemas sérios: afasta de nossa área pessoas e formas de conhecimento de grande valor e tende a transformar-se em autodefinição de nossa disciplina, de nossas instituições e dos psicanalistas: constituir-se por diferença não é apenas antipático, é perigoso.
3 Esta expressão — horizonte de sua vocação — diz respeito à idéia de a Psicanálise vir a se tornar uma ciência geral da psique (Herrmann, 2001b, capítulo 1: "O momento da Psicanálise").
4 Uma generalização da Psicanálise de extensão e profundidade suficiente para a transformar em ciência geral da psique — mantendo ou não o nome psicanálise — deveria não apenas confrontar seus limites com outras ciências do homem, porém verdadeiramente incluir certas formas de interpretação, praticadas por elas, que participam da mesma vocação crítica da ruptura de campo. A título de exemplo, o Adorno das Minima moralia deveria a rigor vir a ser contado entre tais psicanalistas, lato senso, pese a que afirme numa delas: "Na Psicanálise nada é verdadeiro a não ser seus exageros".
5 Interpretação: a invariância do método nas várias teorias e práticas clínicas, conferência realizada durante o Congresso da Federação Psicanalítica da América Latina, São Paulo, 1988 (Herrmann, 1989).
6 Remeto o leitor ao meu livro Clínica psicanalítica: A arte da interpretação, especialmente a seu capítulo 6 (Herrmann, 2003).
7 Uma interpretação alegórica põe em paralelo duas histórias, das quais a segunda é o sentido correto da primeira — por exemplo, as peripécias da Busca do Santo Graal representam passo por passo o caminho da alma até Deus, ou, inversamente, o material de um paciente pode ser traduzido como representação de cada figura ou tema do Édipo Rei. Já de uma metáfora, literária ou científica, espera-se um pouco mais — a saber, que, como a alegoria, ilumine algo obscuro ou problemático, mas que desempenhe esta função com valor heurístico.
8 Tarefa a que foi dedicado o livro Andaimes do real: O método da Psicanálise (Herrmann, 2001a).
9 Ver, sobre a noção de vórtice, Herrmann, 2001a, Parte Terceira, capítulo I. Resumidamente: entende-se, por vórtice, o estado de confusão que uma interpretação eficaz produz, aspirando as representações periféricas e negadas de um campo para o centro da consciência.
10 Cf. "O Homem Psicanalítico: identidade e crença" (Herrmann, 1983) e "Introdução" (Herrmann, 2001a).
11 Esta análise encontra-se no capítulo 12 de meu livro sobre a psicanálise do quotidiano (Herrmann, 2001b).
12 Na realidade, os campos do inconsciente não se podem sobrepor arbitrariamente, como se estivessem dispostos sobre uma mesa. Diante de um paciente, ou de outro recorte do mundo humano, a visão que o analista pode alcançar a cada momento é comparável a olhar de cima uma caixa contendo vários quebra-cabeças de armar incompletos: pode ser que a cena visualizada faça sentido, que apareça, por exemplo, uma casa, frente a um lago, com pessoas e um cão; porém, ao tentar organizá-lo sobre a mesa, logo se constata que, embora as cenas se complementem na aparência, o formato das peças de nível diferente não admite encaixe e, pior, ao puxar uma só peça do terceiro ou quarto nível, desmonta-se todo o conjunto, que nada era mais que passageira ilusão de óptica.
13 Uma das funções da sentença interpretativa, que é aquilo a que vulgarmente se chama de interpretação, é a de convocar a consciência do paciente à análise, para que possa oferecer resistência ao processo, pois a resistência indica o ponto de eficácia de uma intervenção. Sem resistências, o analista estaria tentando escrever no gelo: nada é mais fácil, mas como ler depois? (Herrmann, 2004, capítulo 5, "O sentido da técnica psicanalítica").
14 Tema a que dedico meu livro A Psique e o Eu (Herrmann, 1999).
15 Na realidade, o paradigma perceptual mais comum de Freud é visual-auditivo; poderia ser figurado como a visão que se tem de uma palavra escutada e, reciprocamente, como os efeitos de sentido atuantes sobre o objeto visível. A metáfora do mundo como um grande livro, tão comum em Borges por exemplo, poderia aplicar-se sem atrito à maior parte dos textos freudianos.
16 Se fosse possível delimitar num segmento de reta o domínio da Psicanálise, destacando-o arbitrariamente de quaisquer outras considerações metodológicas, diríamos que à sua esquerda, por exemplo, está o fato de ocorrerem sensações de prazer quando os genitais masculino e feminino são estimulados e à sua direita a legislação atual sobre o casamento. O domínio próprio da Psicanálise começaria, portanto, nas curiosas condições que levam (ou não) a serem simultâneos tais estímulos prazerosos, estendendo-se pelo conjunto das mediações que levaram à não menos curiosa idéia de legislar sobre essas condições. Dentro de seu domínio próprio, ganham sentido as contribuições psicanalíticas às áreas fronteiriças, no caso, o de uma psicanálise da sexualidade biológica ou das instituições culturais.
17 As noções de transferência e de neurose de transferência propõem uma teoria clínica do real, modelada no ato analítico; negação, ressignificação (Nachträglichkeit) etc., uma teoria psicológica do real, o tema inteiro dos mecanismos de defesa e, em especial, os estudos sobre a psicose, uma teoria psicopatológica; certos momentos das investigações sobre sociedade e cultura não apenas põem em prática a teoria implícita, como introduzem o método ficcional em seu desenvolvimento (Moisés e o monoteísmo, Totem e tabu etc.).
18 Ver, a propósito, a terceira parte de meu livro sobre a Psicanálise do quotidiano, "O mundo em que vivemos".