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Jornal de Psicanálise
versão impressa ISSN 0103-5835
J. psicanal. v.39 n.70 São Paulo jun. 2006
REFLEXÕES SOBRE O TEMA
A psicanálise entre o descritivo e o prescritivos
Psychoanalysis: between the descriptive and the prescriptive
El psicoanálisis: entre lo descriptivo y lo preceptivo
Osmyr Faria Gabbi Júnior*
Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas
RESUMO
Antes de começar uma investigação é prudente saber se existe uma questão. Quando se aplica tal preceito ao exame das questões postas pela psicanálise, pode-se chegar à conclusão de que seu campo se situa entre o descritivo e o prescritivo.
Palavras-chave: Filosofia da psicanálise, Kant, Freud.
ABSTRACT
Before starting an investigation it is wise to know if there is a real issue. If one applies such precept to the psychoanalytic issues, one may arrive to the conclusion that its field of research is located between the descriptive and the prescriptive.
Keywords: Philosophy of psychoanalysis, Kant, Freud.
RESUMEN
Antes de empezar una investigación es prudente saber si hay una pregunta verdadera. Si uno aplica tal precepto a las preguntas del psicoanálisis, se puede llegar a la conclusión de que su campo de investigación está situado entre lo descriptivo y lo preceptivo.
Palabras-clave: Filosofía del Psicoanálisis, Kant, Freud.
Freud conclui a primeira parte do seu artigo sobre Schreber com a tese de que: "Os dois elementos principais do delírio de Schreber, a transformação em mulher e a relação privilegiada com Deus, estão ligados em seu sistema por intermédio da atitude feminina frente a Deus" (Freud, 1911/1999, p. 268)1. Tese esta que exige a comprovação da relação genética essencial entre os dois elementos, caso contrário, sua abordagem poderia ser vista como exemplo da célebre citação de Kant: "Um segura a peneira, enquanto o outro munge o bode".
A citação mencionada por Freud encontra-se na Crítica da razão pura em B83:
Já é uma grande e necessária prova de inteligência ou discernimento saber o que se deve perguntar de forma racional. Pois se a pergunta é em si absurda e requer respostas supérfluas, então além de embaraçar quem a propõe tem também a desvantagem de conduzir erroneamente o ouvinte incauto para respostas absurdas e de oferecer a visão ridícula de alguém (como diziam os antigos) mungindo o bode enquanto o outro segura uma peneira (Kant, 1787/1981, p. 102).
Ao recorrer a essa citação, Freud parece propor algo bastante pertinente, ou seja, a necessidade de saber, antes de responder, se de fato estamos efetivamente diante de uma questão. Para ilustrar o ponto, voltemos ao programa de investigações desenvolvido por Lacan na década de 30. Ele pretendia defender, no interior de uma reflexão sobre a Crítica dos fundamentos da psicologia de Politzer, a possibilidade de constituir uma terceira via para a psiquiatria, ou seja, elaborar uma abordagem que recusaria tanto uma psiquiatria organicista como uma psicologista, cuja inspiração filosófica era basicamente a fenomenologia, portanto, de caráter não-empirista. Este projeto envolvia, por conseguinte, saber se era possível constituir uma psicologia científica como antropologia. Como todos sabem, o projeto inicial de Lacan fracassou e o levou a redefinir seu programa de investigações, ou seja, a Antropologia do Imaginário que ele elaborou para responder à sua questão sobre a terceira via não foi satisfatória. Meditando sobre este fracasso, proponho se não seria mais produtivo investigar se a questão posta por Lacan pode efetivamente ser respondida, isto é, se é possível constituir tal psicologia. Assim, talvez seja mais proveitoso do que relatar, mais uma vez, a descrição crítica da ascensão e queda de mais um projeto para a psicologia procurar deter-se um pouco sobre o exame da questão e perguntar se de fato ela existiria e, antes de tudo, se haveria de fato um objeto a ser investigado. Aproveitando a pista de que Lacan teria buscado sua antropologia no interior da crítica de Politzer, proponho examinar se o próprio Kant, fonte inequívoca das preocupações de Politzer, não teria aberto a possibilidade de um projeto voltado para a constituição das próprias ciências humanas, entre elas, a psicologia. Afinal, Alain Renaut, no anverso da capa de sua tradução da Antropologia de Kant, observa (Renaut, 1993):
Em 1798 Kant publica a Antropologia do ponto de vista pragmático, sua última obra. Nesta, o homem é estudado nos seus comportamentos, ações e condutas. Reflexão sobre a passagem da natureza à liberdade, a Antropologia participa do projeto de resolver o problema difícil da unidade da filosofia. Na sua realização, Kant também prepara da sua maneira o nascimento das ciências do homem.
Caso Kant esteja efetivamente no nascedouro da chamada ciência humana, talvez não seja ocioso olhar para esta Antropologia como uma matriz fértil e procurar descobrir o que há aí de positivo, de guia, para a constituição de uma psicologia que nos dê um mínimo de confiança de que não estaríamos, para de novo parafrasear Kant, construindo castelos no ar. No entanto, para que possamos caminhar na direção assinalada, é preciso afastar os argumentos postos por Foucault na sua leitura desta mesma Antropologia, presentes na tese secundária de seu doutorado, até hoje inédita, a saber, Gênese e estrutura da Antropologia de Kant (Foucault, 1960).
Segundo Foucault, o exame das ciências humanas surge no interior da filosofia de Kant como tentativa de responder a uma questão bastante precisa, a saber, se a passagem do a priori para o fundamental passa pelo empírico. Para compreender seu sentido, precisamos determinar cada um de seus termos. O a priori designa a relação entre a intuição e o entendimento, ou seja, as condições a priori estabelecidas por Kant para que possamos constituir, construir os objetos da natureza, tratados e exaustivamente analisados na Crítica da razão pura. O fundamental, por sua vez, designa as relações entre a verdade e a liberdade. Ora, Kant procurou mostrar que há dois usos bastante distintos da razão, um uso constitutivo, ou seja, um uso pelo qual construímos objetos e, sendo assim, somos capazes de descrevê-los, e um uso regulador, pelo qual prescrevemos algo. Em outro vocabulário, Kant diferencia entre a ciência, domínio das leis, e a moral, domínio das regras. Assim, na Crítica, ele mostra que todas as três Idéias transcendentais da Razão, a alma, o mundo como totalidade atual e Deus, não podem ser descritas, ou seja, substancializadas, mas podem ter um uso regulador, prescritivo.
Notem que as considerações de Foucault até aqui não contradizem a proposição de Renaut, pois este também coloca a Antropologia como uma reflexão na passagem da natureza para a liberdade. Ou seja, o estatuto da Antropologia de Kant é inequivocamente empírico; a questão é determinar a natureza deste empírico, pois, diferentemente da física, não existe aqui uma parte pura, a priori. Em outras palavras, a função da parte pura na física é determinar o campo de investigação, enquanto a parte empírica dedica-se a estudá-lo. Tampouco a Antropologia pode ser entendida como descrevendo as condições a priori da moralidade, ou seja, ela tampouco é uma Crítica da razão prática; em outras palavras, seu espaço de investigação, por assim dizer, situa-se entre as leis da ciência, a natureza, e as regras da moral, a liberdade, portanto, entre o descritivo e o prescritivo.
Ora, este espaço entre o a priori da ciência natural e o a priori da moralidade, caso seja possível, parece corresponder exatamente ao espaço das chamadas ciências humanas e da psicanálise em particular. Não por acaso, em relação à última, são inúmeras as tentativas de mostrar seu caráter científico ou de considerá-la como estando mais próxima de uma ética. Ambigüidade que se revela de forma explícita quando se fala do complexo de Édipo, sem muito cuidado, como sendo uma lei, mas que lei é esta: Lei ou Regra?
Seria praticamente impossível no espaço de que disponho examinar na profundidade devida os argumentos de Foucault. Mas, para despertar pelo menos um pequeno germe de dúvida, irei diretamente ao núcleo da tese de Foucault e a um dos seus principais argumentos. Para ele, a Antropologia longe de ser o nascedouro da possibilidade das ciências humanas é a demonstração da sua impossibilidade. Kant teria mostrado que a noção de natureza humana só pode ter valor prescritivo e não descritivo. Em termos bastante claros, a questão "Que é o homem?" só teria sentido na Antropologia como Idéia da Razão, ou seja, como idéia reguladora. Para Kant, o homem deve agir como se a humanidade caminhasse no sentido de realizar a república cosmopolita, ou seja, uma forma de socialização em que cada homem reconheceria outro homem como um fim em si mesmo. Idéia da Razão é sinônimo de independência lógica de qualquer condição empírica. Para dizer o mesmo outra vez e quem sabe de forma mais esclarecedora: acreditar que exista uma natureza humana como objeto é partilhar da mesma ilusão que se tinha quando se pretendia descrever a alma ou Deus ou o mundo como totalidade na metafísica clássica. Caso Foucault tenha razão sobre sua leitura de Kant e caso este tenha de fato mostrado que a noção de natureza humana só pode ter um sentido prescritivo, então a pergunta posta por Lacan não tem sentido, simplesmente porque o objeto de sua pretensa terceira via inexiste. A psicologia em todas as suas formas estaria baseada na mesma ilusão transcendental e seria esta a razão de seus múltiplos projetos nascerem e morrerem, varridos pelo sopro do tempo.
Posto o núcleo da tese, passo a examinar um dos argumentos apresentados por Foucault para defendê-la. A ilusão transcendental teria sido possibilitada pela transformação da condição de conhecimento em limitação para o conhecimento. Para Kant, não conhecemos as coisas como elas são em si, mas somente por meio dos a priori da intuição e do entendimento impomos formas a algo e sob estas formas a priori nós tomamos conhecimento dos objetos assim constituídos. Neste processo de sintetizar o que nos afeta estão presentes, como já dissemos, as formas a priori da intuição, espaço e tempo, as formas a priori do entendimento, as categorias, e o Eu transcendental que as unifica no ato de conhecer. Este Eu transcendental teria sido transformado pela posteridade kantiana de condição do conhecimento em limitação para o conhecimento, ou seja, surgiram projetos filosóficos que se dedicaram a saber se não haveria algo anterior a este Eu que seria responsável pelo fato de estarmos limitados a este conhecimento para nós, a esta indesejável finitude, se não seria possível superá-la. Em consonância com este projeto de revisão, alguns se dedicaram a ler a Antropologia de Kant como uma chave de compreensão para as três Críticas, isto é, a questão "Que é o homem?" comandaria e determinaria a resposta a cada uma das três Críticas, ou seja, "Que posso saber?", "Que devo fazer?", "Que posso esperar?". Para Foucault, além de defender que a Antropologia é comandada pelas três Críticas, também (Foucault, 1960, pp. 123-124) "…é preciso recusar todas essas ‘antropologias filosóficas’ que se dão como tendo acesso natural ao fundamental; e todas essas filosofias cujo ponto de partida e horizonte concreto são definidos por uma certa reflexão antropológica sobre o homem".
Antes de prosseguir, é preciso mostrar a relevância dessas considerações para a filosofia da psicanálise. Neste sentido, examinemos rapidamente um exemplo retirado de Freud para ilustrar a pretensão denunciada por Foucault. Freud, nos Três ensaios, pretende ter descoberto a sexualidade infantil e justifica a ignorância dos pesquisadores anteriores em relação a ela alegando que estes, como homens, estão sujeitos aos mesmos processos de esquecimento descritos pela psicanálise; ou seja, existiria um momento anterior ao processo de conhecimento que teria sido descrito pela teoria freudiana, a prevalência do desejo infantil, e que, por meio da própria psicanálise, poderia ser idealmente neutralizado. Na mesma direção, podemos citar Totem e tabu, um verdadeiro tratado de antropologia freudiana e que merece ser explorado como tal. Nesta obra, Freud pretende mostrar a origem da moralidade e do sentimento religioso. Nos dois casos, procura-se exibir por meio da construção de hipóteses sobre a constituição do humano, de sua subjetividade, como superar os limites impostos e presentes no próprio ato de conhecer.
A conseqüência da transformação de condição em limitação é tripla: coloca-se em relação o que não tem relação, toma-se como contínuo o que é descontínuo e, finalmente, transforma-se em positividade o que é finitude.
Coloca-se em relação o que não tem relação porque nesta transformação três noções completamente distintas são tomadas como se fossem praticamente idênticas. Assim, o Eu transcendental, condição lógica do conhecimento, é relacionado com o eu empírico, noção psicológica, e finalmente com a alma, noção metafísica. Confusão, cuja primeira parte já era denunciada pelo próprio Kant na sua Antropologia quando constatava (Kant, 1797/1982, pp. 430-431):
A causa destes erros está no fato de sentido interno e percepção serem geralmente considerados como sinônimos pelos psicólogos, embora sentido interno devesse designar somente consciência psicológica (aplicada), enquanto apercepção deveria designar consciência lógica (pura).
Em outras palavras, a confusão inicial está em tomar a condição do conhecer, a consciência lógica que unifica todas as representações, como sendo uma consciência empírica, ou seja, aquela consciência psicológica que me permite descrever minhas impressões e sentimentos. A segunda parte da confusão reside em substancializar ambas as consciências, isto é, considerá-las como tendo existência em um suposto espaço mental. Para exemplificar, recorro mais uma vez a teoria de Freud. Basta recordar como no Projeto, cujo título bem poderia ser O Eu e suas vicissitudes, Freud descreve a noção de eu para constatar como estas três noções distintas estão presentes e unificadas: o eu tem a função psicológica de registrar as impressões internas e externas, a função lógica de sintetizá-las, unificá-las, e finalmente, como se fosse uma substância, ocupa um lugar no espaço mental.
A transformação também acarreta tomar como sendo contínuo o que é descontínuo. Por exemplo, quando ignora as distinções entre causa e motivo e as trata como sendo sinônimas. Ou ainda quando procura pensar as relações de intencionalidade dentro de um referencial mecanicista. Podemos facilmente identificar ocorrências deste tipo na obra de Freud.
Finalmente, examinemos a finitude, problema central de Kant, dado que a grande questão para a qual se volta seu projeto filosófico, determinar como é possível um ser finito ter conhecimento e agir moralmente, é transformada em uma questão que pode e deve ser respondida empiricamente. É justamente esta esperança que fundamenta a crença na possibilidade de se construir uma ciência humana. De novo, não é nem um pouco difícil mostrar como a psicanálise de Freud procura "resolver" empiricamente tanto a questão epistemológica — aliás, como mais um indício de que a presente análise é bastante razoável, as teorias psicológicas tendem a ser também teorias sobre o conhecimento — quanto a questão da moralidade. Dada a ausência de uma parte pura que determine o campo da experiência possível, a psicanálise, como toda investigação do humano, é obrigada ao mesmo tempo a determinar o campo empiricamente e a estudá-lo, produzindo uma confusão entre o transcendental, ou seja, a determinação do campo de investigação, e o empírico, a investigação do campo.
Para terminar, espero que as minhas parcas observações sejam suficientes para despertar a dúvida de que talvez seja possível que as psicanálises ofereçam respostas para perguntas que talvez não sejam perguntas, dada a impossibilidade de elas determinarem seus objetos, o que não significa de modo algum que tais questões não tenham sentido para a vida humana, ao contrário, elas são as questões relevantes.
Referências
Foucault, M. (1960). Genèse et structure de l’Anthropologie de Kant. Tese de Doutorado, Sorbonne, Paris. [ Links ]
Freud, S (1999). Psychoanalytische Bemerkungen über einem autobiographisch beschriebenen Fall von Paranoia (Dementia Paranoides). In S. Freud, Gesammelte Werke (Vol. 8, pp. 239-320). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1911.) [ Links ]
Kant, I. (1981). Kritik der reinen Vernunft. In I. Kant, Werkausgabe (Vol. 3, pp. 5-340). Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1781, segunda edição em 1787.) [ Links ]
Kant, I. (1982). Anthropologie in pragmatischer Hinsicht. In I. Kant, Werkausgabe (Vol. 12, pp. 395-690). Frankfurt am Main: Suhrkamp Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1797.) [ Links ]
Renaut, A. (1993). Traduction, présentation, bibliographie et chronologie. In I. Kant, Anthropologie du point de vue pragmatique. Paris: Flammarion. [ Links ]
Endereço para correspondência
Osmyr Faria Gabbi Júnior
Caixa postal 59
13820-000 Jaguariúna, SP
Fone: (19) 3867-4917
Recebido em: 10/05/06
Aceito em: 25/05/06
* Professor Associado do Departamento de Filosofia da Unicamp, professor na Psicologia da USP-SP de 1975 a 1986 e na Filosofia da Unicamp de 1983 até a presente data. Foi Diretor do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, sendo autor de diversos artigos e livros, em especial Freud: racionalidade, sentido e referência (1994), Notas a "Projeto de uma psicologia" (2003) e dois capítulos em Freud na filosofia brasileira (2005).
1 Todas as traduções são de nossa lavra.