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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.43 no.78 São Paulo jun. 2010

 

TRADUÇÕES

 

Humano – inumano: os limites do humano1

 

Human – inhuman: the limits of the human

 

Ser humano – inhumano: los límites del ser humano

 

 

Marcelo Viñar2

Membro efetivo e analista didata da Asociación Psicoanalítica del Uruguay

Endereço para correspondência

 

 

Perante a grandiosidade, profundidade do título, efemeridade do tempo e limitação da minha compreensão surge, em primeiro lugar, o problema de como delimitar e se posicionar frente ao assunto. Para começar a esclarecer o tema, transcorreram sessenta anos e prometo que nos próximos sessenta o terei resolvido e mostrarei um saber consistente.

Comecemos pelo óbvio, essa questão da realidade que chamamos evidência empírica: A espécie humana é capaz tanto de produzir, por um lado, exemplares como Aristóteles, Galileu, Beethoven, Mozart, Freud ou Einstein, quanto, por outro, Hitler, Stalin, Pol Pot ou Bush. Considero esses ícones exemplos emblemáticos, extremos e opostos entre o melhor e o pior de uma escala fictícia, nos quais cabem as facetas ou traços de uma grande variedade com uma esmagadora dispersão. Só em Hollywood, os bons são os bons e os maus, muito malvados (mais próximo da verdade está Crime e luxúria, de Ang Lee, que ilustra, com delicadeza, como cada um de nós guarda nas entranhas um pedaço de Cristo ou de Gandhi, e outro de Leviatan), é claro que em proporções diversas e variáveis, e de acordo com a pessoa e as circunstâncias. Permitam-me citar M. Proust: “O rosto humano é verdadeiramente como um deus da teogonia oriental: todo um conjunto de rostos justapostos, em planos diferentes e que não se veem todos de uma vez”. 

Por esta dificuldade e amálgama entre contrários, uma autoridade em antropologia como Claude Levi-Strauss, condena toda definição de humanidade como redutora, já que ao definir discrimina e exclui. Parte daí o oxímoro de sua sentença: “Toda definição de humanidade é porta de entrada para o campo de concentração”, ou, no extremo oposto, a lacônica e sucinta definição de Heidegger: O homem é humano porque fala.

O verbo discriminar pode então assinalar a exaltação da fineza e riqueza do semiólogo (que destaca a diversidade), como acentua o ódio do xenófobo, que a condena. A diversidade é a qualidade mais humana do humano, diz Hannah Arendt; o homem responde mais na contingência do que no predízivel. Diversidade que não se deixa aprisionar em uma essência homogênea (é arriscado criar prisão identitária de uma natureza humana). Também não é suportável nos diluirmos no amorfo do indeterminado. O único caminho possível e divertido é então arriscar a se surpreender com os contrastes da alteridade, não apenas pelo moralizante dever de tolerância, mas pela paixão de se surpreender frente ao inesperado da diferença, para se enriquecer e desfrutá-lo. Acolher o estrangeiro é descobrir. A mais bela criatura ainda não nasceu; o mais belo dos mares é aquele que ainda não vimos, dizia o poeta Nazim Hikmet, na aposta de um horizonte de futuros, do asno atrás da cenoura que nunca alcançará. Isso sim é uma constante universal da identidade humana, em qualquer tempo e lugar; o humano é a mudança, não a fixidez. O que foi relevante ontem, não o será amanhã. Lamentavelmente, essa celebração da diferença e do inacabado – inacabável nem sempre termina bem, transforma-se em conflito ou em guerra, em condenação ou extermínio do diferente.

Desde Michel de Montaigne há cinco séculos, a Jean P. Clastres, passando por Sigmund Freud, tem-se assinalado a tendência da mente humana à veneração autorreferencial, a considerar o próprio como o bom, o excelente, e o alheio, o diferente, como inferior, quando não, infame ou abjeto. Isso é uma constante. O etnocentrismo conduz a este fundo xenófobo, intolerante da diferença. Esta abjeção pelo diferente e estranho habita de maneira explícita (ou calada e oculta), no interior de cada um de nós. Não se trata de negar ou refutar a existência desse impulso, senão de admitir e processar, de transformar o impulso xenófobo em algo diferente, de percorrer o longo e difícil caminho do reconhecimento e legitimação da alteridade. Trata-se, ao menos, de conter e frear esse impulso, impedir a passagem ao ato destrutivo dos quais a história dos indivíduos  e da humanidade está densamente saturada, dando lugar ao ominoso e sórdido do denominado processo civilizatório. O difícil –  porém necessário – é reconhecer em cada situação concreta como extinguir as condições de negociação que detenham o impulso de destruir o diferente. Diz o antropólogo Clifforf Geertz:

“Nossa próxima necessidade (…) não é a construção de uma cultura universal à semelhança do idioma esperanto, nem a invenção de uma vasta tecnologia de organização humana, mas sim aumentar as possibilidades de um discurso inteligível entre pessoas com diferentes interesses, aspecto, riqueza e poder, e que no entanto se encontram em um mesmo mundo no qual permanecem em conexão constante, e onde ao mesmo tempo é cada vez mais difícil afastar-se do caminho dos demais”.

Como diz Moti de Mello, é necessário um longo e difícil caminho de consolidação interior de si mesmo para poder aceitar e valorizar as qualidades da alteridade que sempre nos perturbam ou ameaçam. É diferente o amor primário que reproduz a ternura dos primeiros olhares da mãe com o seu bebê, consagrado na epifânia de contemplação do Menino Rei, que provoca e promove o espelho do idêntico. O ressoar no homogêneo, no uníssono é uma experiência idílica e necessária, mas depois tóxica. O abraço que acalenta termina sendo adormecedor ou mortífero quando se prolonga em demasia. Essa exaltação do mito do Narciso nos ameaça e assedia a vida toda.

A esse amor de igualdade, de anexação ao idêntico, torna-se necessário desestabilizar para provocar o desejo de explorar, a atração irresistível do inédito e desconhecido, da transgressão como propulsor. Toda epistemofilia está impregnada de sadismo, como comenta com pertinência Melanie Klein. O desconhecido transformado como força de atração e não de espanto.

 

Com que critérios caracterizamos ou definimos a humanidade de um ser humano?

Houve um tempo em que entronizávamos a natureza como referência e delegávamos a definição do humano à primazia da biologia ou da teologia: falávamos da criatura criada por Deus ou do humano do homem pela morfologia do seu crânio ou de seu corpo, por ser bípede ou pela oposição do seu polegar e, ainda hoje, por seus dons genéticos. Tudo predeterminado, é verdade. Essa maneira de pensar conduz à consideração do sujeito individual como prévio e anterior à sua condição social: um sujeito individual que posteriormente se relaciona. Além de instituir a biologia como referência nos induz a pensar sobre a natureza humana como algo fixo e atemporal, ou de mudanças muito lentas na evolução da espécie. Hoje consideramos o homem produto de suas condições históricas, a partir da perspectiva construtivista e dinâmica do que ele faz e não a partir da ficção substancialista do que ele é. 

Hoje raciocinamos desde uma posição oposta ao ponto anterior, em um nós que precede o eu. Não há um homem natural que preceda o homem cultural, a identidade humana se define em termos de relação, de inclusões, de lealdade, tradições ou rupturas com o grupo com o qual se compartilham os hábitos, os costumes ou as regras de vida. Para se submeter ou para se rebelar e transgredi-lo, o código é anterior e precede o sujeito individual. Isso quer dizer que biologia e cultura são simultâneas e coextensivas, que a biologia não precede a cultura, mas que é simultânea e interatuante com ela. Natureza e cultura, uma sem a outra são ininteligíveis, e articulá-las é uma enorme confusão, ou,  mais academicamente, um problema epistemológico (sempre difícil).

A mudança de postura é radical e subverte toda a nossa cosmologia. Eu já não sou um ser autoengendrado, sou em relação com outros que me configuram e determinam. Não há uma homogeneidade identitária autorreferida a não ser relevos e contrastes no mundo da diversidade humana. 

Jean Pierre Vernant afirma – e eu assino embaixo – que no transcorrer da evolução das espécies, o original da nossa é o aparecimento da linguagem simbólica. Como os animais, diz Vernant, somos seres viventes que nascemos, crescemos, nos reproduzimos, adoecemos e morremos. O que nos distingue – na evolução e na história – é o aparecimento de algo que não estava implicado na própria animalidade: a irrupção do pensamento simbólico, isto é, a capacidade de fazer presente o que está ausente, e de representar a ausência em todas as suas formas, e com isso gerar objetos de pensamento, dando lugar à linguagem, à memória e, a partir daí, às instituições sociais (regras de aliança, arte, religião). A diferença com a inteligência animal é que supomos que esta é perceptiva, operatória, adaptativa à circunstância presente; o extraordinário do pensamento humano é a sua capacidade de construir, reconstruir algo que não está ali, e torná-lo atual e presente na consciência. Ou seja, nosso pensamento opera sob signos mediadores, sob outra forma que não a do objeto exterior em sua qualidade perceptiva. A diferença específica entre linguagem humana e animal é a capacidade de recursividade, complementa Chomsky. 

Martin Heidegger, em sua conferência para engenheiros “Linguagem técnica e língua tradicional”, diz: “O ser humano fala. Falamos acordados e falamos por meio de sonhos. Falamos sem parar, mesmo quando não proferimos nenhuma palavra e não fazemos outra coisa que escutar ou ler; falamos ainda se nem escutando ou lendo, nos entregamos a uma tarefa ou a não fazer nada. Falamos constantemente de uma forma ou de outra. Falamos porque falar nos é natural, e isso não provém de uma vontade que seria anterior à palavra. Diz-se que o homem possui a palavra por natureza. O ensinamento tradicional postula que o homem é o ser vivente capaz de falar, à diferença da planta ou do animal. Mas essa afirmação não significa que, ao lado de outras faculdades, o homem possua também a de falar. A afirmação significa que é só a palavra que torna o homem capaz de ser o vivente que é por ser humano. 

O homem é humano quando ele é aquele que fala. Em A palavra ameaçada, Ivonne Bordelois acrescenta: “A língua não é um ‘meio’ que faz a intermediação entre o eu e a realidade, mas é um léxico que dá forma à imprecisão, à desordem, ao caos da realidade.”

 

O inumano

De mil enfoques possíveis, eu desejo ou escolho pôr em destaque como traço relevante da atualidade a crise do relato, talvez porque é o que um psicanalista pode melhor focalizar. A ausência da palavra plena, a palavra ociosa, porém fecundada por afetos, a palavra onde se modela e se cozinha a intimidade. É o que na literatura contemporânea se define como cultura da imagem ou do efêmero. É o desmoronamento (na mente) do tríptico do tempo vivencial interiorizado, em que o presente é um articulador de memórias e projetos, de nostalgias e desejos. Crise do relato por estar aprisionado na intensidade de um presente superaquecido e epilético, que devora o passado e suprime os horizontes do futuro, da vida como projeto, como romance cujo argumento nunca se realizará, mas na irrealização reside o assombro e a surpresa que desenvolve outro futuro possível. A existência e permanência, a perenidade destes espaços de intimidade é crucial para a humanização de um sujeito. Para que o humano não se mascare como um robô de sensações. 

É na renúncia e neutralização desse foro interior de ilusões e projetos, na compreensão do peremptório das urgências do presente, no qual o conflito psíquico se eclipsa, e sem conflito psíquico a angústia se descarrega no corpo ou na conduta. Repertório de comportamentos em que o Outro do código, o dos ideais heroicos ou sacrificiais, que dava ao sujeito singular a trama que o vinculava aos grupos de lealdade ao qual pertencia, a criar o social para viver, deixa esses parâmetros fragmentados ou excluídos. 

E na solidão desolada o sujeito ilhado na multidão, na massa anônima, prisioneiro da anomia de não ser nada para ninguém, torna-se um bicho diferente do humano que esperamos dele. Ou, como alternativa quando não suporta a solidão do isolamento na anomia, quando não lhe dão ou lhe mostram, ou, ainda, quando não alcança o espaço social que o humanize, surgem formas artificiais e substitutivas de sociabilidade: os fanatismos baseados em um particularismo identitário, as seitas e religiões sincréticas, as tribos urbanas, as gangues, as quadrilhas sociopatas e delinquentes. 

Dilacerado o laço social que permite o reconhecimento recíproco na pluralidade, o mundo se subsume ao universo simbólico da própria tribo, a novos códigos e lógicas que regem ou se impõem na legalidade local, em detrimento das chaves que definem os costumes e valores de uma cultura plural. Aprendendo da experiência do totalitarismo nazista e estalinista, François Villa postula que o esmorecimento dos laços horizontais do conhecimento entre pares, entre seres humanos próprios da vida cotidiana, provoca o reforço dos vínculos verticais, de sujeição ao carisma do líder e o funcionamento societário retoma as qualidades da horda primitiva. 

O ressurgimento e auge na modernidade de fundamentalismos religiosos e étnicos, que às vezes culminam em genocídios e guerras, a expansão e o sucesso de religiões sincréticas, e, em outro nível, a ativa produção de excluídos da riqueza material e dos bens da cultura, fomentam a irrupção de sociedades protéticas, os bandos, as quadrilhas, as máfias, onde a legalidade local (aberrações se quiser), inscreve-se em lógicas e lealdades diferentes da pluralidade democrática, mas onde os membros conseguem um espaço de reconhecimento – a invencível necessidade de serem amados e reconhecidos. Nos corpos tatuados dos membros das quadrilhas salvadorenhas, além de figuras bizarras, me surpreendeu uma inscrição, um texto lacônico, porém eloquente: “primeiro, nós”, explícita contrapartida da exclusão. 

Há sessenta anos W. Benjamin definia como aresta saliente dos males da modernidade “o desaparecimento da comunidade de ouvintes”. A necessidade do sujeito perdido na anomia da metrópole, a urgência peremptória de fabricar o conjunto transubjetivo que o reconheça. 

Minha tese é que estes espaços locais de reconhecimento são substantivos para reconstituir esse foro interior, faltante, ou anêmico na cultura atual, para que o sujeito possa pensar-se na introspecção e que esse gesto é decisivo para conter e retardar o impulso – passagem ao ato mediante o qual o sujeito sai de seu vazio e toma consciência de existir.   

Presumo eu – com ou sem razão  – que quando Damian Schroeder me convidou para essa intervenção, ele pensou que eu ia centrar minhas reflexões sobre o mundo concentracionário, o inumano da tirania, da prisão arbitraria, a tortura, o genocídio, as desaparições, assunto sobre os quais temos conversado interminavelmente. Lamento se o decepciono, mas escolhi – por minha conta e risco –  pensar  que no presente esse assunto do horror está saturado e escolhi apontar a etapa prévia, a das condições subjetivas que preparam e possibilitam ou fomentam sua irrupção. Diz-se – com razão – que quando se pode é melhor e mais eficaz investir em medicina preventiva do que medicina curativa e de reabilitação, tomara que eu não me engane.

 

 

Endereço para correspondência
Marcelo Viñar
Joaquín Núñez, 2946
Montevideo
11300 Uruguay
E-mail: maren@chasque.net

Recebido em: 09/09/2009
Aceito em: 04/11/2009

 

 

Tradução: Darcy Haddad Dacache
Revisão: Marta Úrsula Lambrecht
1 Conferência proferida em “El informe Orletti. Conexión internacional”. Montevideo 24 e 25 de julho de 2009.
2 Médico, Psicanalista. Membro efetivo e analista didata da Asociación Psicoanalítica del Uruguay,  Ex Professor  do Departamento de Educación Médica da Facultad de Medicina (UDELAR). Coordena Grupos de Investigación de Campo sobre Adolescencia Marginalizada e Menores fora de la lei. Foi Presidente da Asociación Psicoanalítica del Uruguay (APU). Presidente da Federación Psicoanalítica de América Latina (FEPAL). Representante na Junta Directiva da Asociación Psicoanalítica Internacional (IPA); Asesor del Consejo Nacional de Educación em temas de convivencia saudável e prevenção da violencia. Publicou diversos artigos e livros, entre outros:
¿Semejante o enemigo? – Entre la tolerancia y la exclusión. Montevideo: Trilce, 1998.
Fracturas de Memoria; Crónicas para una memoria por venir. Montevideo: Trilce, 1993.
Psicoanalizar hoy – Problemas de articulación teórico clínica. Montevideo: Trilce, 2002.

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