SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número70Trauma e filiação em Ferenczi: efeitos na relação professor-alunoPrincípios e práticas do empreendedorismo: um novo paradigma em educação e em psicopedagogia índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista Psicopedagogia

versão impressa ISSN 0103-8486

Rev. psicopedag. vol.23 no.70 São Paulo  2006

 

ARTIGO DE REVISÃO

 

O desenvolvimento da criatividade e da autonomia na escola: o que nos dizem piaget e vygotsky

 

The development of creativity and autonomy at school: what Piaget and Vygotsky say

 

 

Ana Luisa Manzini Bittencourt de Castro

Professora do curso de Pedagogia da PUC - RS (Departamento de Fundamentos e Estudos Especializados em Educação); Mestre em Educação pela UFRJ; Especialista em Psicopedagogia pela UFRJ; Pedagoga formada pela UNICAMP

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo pretende discutir alguns pressupostos considerados fundamentais para o desenvolvimento da criatividade e da autonomia em crianças, segundo a visão de Jean Piaget e Lev S. Vygotsky. A partir das colocações dos autores em questão, o artigo tem como finalidade discutir o papel da educação no desenvolvimento de tais habilidades. Partindo do princípio que a qualidade das atividades desenvolvidas na escola é fundamental no desenvolvimento e construção da inteligência e da imaginação das crianças, pretendeu-se apontar algumas questões relacionadas à metodologia de ensino, à construção dos espaços físicos e inter-relacionais das salas de aula e à oferta de atividades significativas aos alunos. Ao discutir os elementos envolvidos no desenvolvimento da autonomia e da criatividade infantis, torna-se clara a necessidade de que os professores conheçam as necessidades infantis, as etapas do desenvolvimento da inteligência das crianças e se proponham a construir um ambiente escolar rico em interações e pleno de possibilidades de desenvolvimento social, moral, criativo e intelectual para os alunos.

Unitermos: Autonomia. Criatividade. Desenvolvimento cognitivo.


SUMMARY

The objective of the present study is the analysis of the development of creativity and autonomy in children, according to the authors Jean Piaget and Lev S. Vygotsky. According to their theories, this study will discuss the role of education in autonomy and creativity development. In order to achieve the proposal, the activities that kids use to be involved at school will be put forward for consideration in terms of development of intelligence and imagination (creativity). So, some points related to the learning methodology, physical and inter-relational spaces of classrooms and the quality of school's activities are discussed here. In this discussion, the knowledge of teachers about children development (cognitive, social, moral) and necessities are essential and very serious.

Key Words: : Autonomy. Creativity. Cognitive development.


 

 

"A função básica (essencial) da inteligência humana é entender e inventar, em outras palavras, construir estruturas (enquanto) estruturando a realidade."

Jean Piaget

"Há um tipo de inteligência criadora. Ela inventa o novo e introduz no mundo algo que não existia. Quem inventa não pode ter medo de errar, pois vai se meter em terras desconhecidas, ainda não mapeadas. Há um rompimento com velhas rotinas, o abandono de maneiras de fazer e pensar que a tradição cristaliza. Pense, por exemplo, no milagre do iglu. Como terá acontecido?... A gente encontra o mesmo tipo de inteligência no artista que faz uma obra de arte, no cientista que visualiza na imaginação uma nova teoria científica, no político-sonhador que pensa mundos utópicos...

Já o mecânico pensa diferente. Tudo está bem. Foi apenas um pequeno defeito. Trocar uma peça, fazer um ajustamento... Fazer como sempre se fez, de acordo com o manual de instruções. Há receitas para tudo. Há respostas certas para tudo.

Claro que estes dois tipos de inteligência se aplicam a situações diferentes. Acontece que a inteligência se parece com sementes. Não basta que a semente seja boa. Ela precisa de terra para germinar, brotar e crescer.

A questão que se coloca é se no nosso sistema educacional tem lugar para a inteligência criativa... Negativo.

Tudo é preparado como se houvesse somente mecânicos nesse mundo. Não há lugar para o desenvolvimento da capacidade de perguntar - o fator mais importante no desenvolvimento da inteligência e da ciência. O aluno aprende que existe sempre uma resposta certa entre as alternativas apresentadas, e que precisa apenas dar a solução para determinada questão preparada por outro..."

Rubem Alves

A situação descrita por Rubem Alves1 sobre o nosso sistema educacional parece ser uma das razões para a existência de crianças consideradas "fracassadas"i na escola: a postura de treinamento da educação escolar na qual apenas a repetição, a cópia e as soluções prontas parecem ser incentivadas em sala de aula. Tal postura da escola faz com que as crianças, muitas vezes, percam um universo todo de possibilidades - a possibilidade do uso da imaginação e da criatividade, a possibilidade de agir no mundo, de perguntar e de buscar respostas. Essa mesma postura também deixa de lado os pressupostos básicos para que tais indivíduos se desenvolvam de maneira autônoma, na medida em que não participam plenamente da construção do conhecimento que os rodeiam ou do entendimento das regras que lhes são impostas.

Segundo Vygotsky2, a imaginação não pode ser considerada um "divertimento caprichoso do cérebro", mas sim uma função vitalmente necessária, que se encontra em relação direta com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo ser humano, porque "esta experiência é o material com que se constróem os edifícios da fantasia"2. A partir desta afirmação, o autor conclui sobre a necessidade pedagógica de se ampliar a experiência da criança, a fim de que uma base suficientemente sólida para a atividade criadora seja construída. "A função imaginativa depende da experiência, das necessidades e interesses daqueles nos quais se manifesta"2. Quanto mais ricas e diversificadas forem as experiências, as interações da criança com o mundo (outros sujeitos e objetos) e as atividades que ela é incentivada a realizar, maiores serão suas possibilidades criadoras e mais rica será sua criatividade, porque maior será o material de que sua imaginação poderá dispor na construção de algo novo.

"Quanto mais vê, ouve e experimenta, quanto mais aprende e assimila, quanto mais elementos reais dispõem em sua experiência, tanto mais considerável e produtiva será a atividade de sua imaginação"2.

Imaginação e criatividade não são atividades a serem postas num segundo plano, que possam ser consideradas como de importância inferior à razão ou à memória. Ao contrário, são atividades que alimentam ambas - a razão e a memória - interagem com elas, realizando novas combinações de elementos e, possuindo, assim, importância inegável na vida humana.

"A imaginação, como base de toda a atividade criadora, se manifesta por igual em todos os aspectos da vida cultural, possibilitando a criação artística, científica e técnica. Neste sentido, absolutamente tudo o que nos rodeia e que foi criado pela mão do homem, todo o mundo da cultura, em diferenciação ao mundo da natureza, tudo é produto da imaginação e da criação humana, baseados na imaginação"2.

Ao olharmos as atividades desenvolvidas na escola, porém, constatamos que o ensino em geral está pautado essencialmente no verbalismo3. Ouvir o que o professor fala, copiar o que ele escreve, responder ao que ele pergunta, eis o significado de estar na escola. Piaget, contudo, afirma em algumas de suas obras que este ensino é, no mínimo, insuficiente.

"Somos freqüentemente vítimas da mesma ilusão em todos os campos de ensino: toma-se como ponto de partida o que é ponto de chegada e considera-se como sendo o método mais simples aquele que é o mais natural para a inteligência verbal do adulto, quando, para a criança, a ordem a ser seguida tem de ser a inversa"3.

E ainda complementa:

"Toda aula tem de ser uma resposta3.

A demonstração pelo adulto não dá mais que a simples percepção, o que vem a mostrar que, ao se fazer experiências diante da criança em vez de fazê-las ela própria, perde-se todo valor de informação e formador que apresenta a ação como tal"4.

A relação ativa da criança com o mundo a sua volta e com os outros é o ponto de partida para o desenvolvimento da criatividade e da autonomia. A interação da criança com este mundo que a rodeia permite que ela desenvolva sua imaginação e criatividade, na medida em que possibilita que ela formule perguntas, busque respostas, descubra e construa o conhecimento. E esta relação é também, segundo Piaget3-7, pressuposto básico para o desenvolvimento do indivíduo autônomo, tanto moral, quanto cognitivamente, na medida em que permite que a criança se desloque de sua própria perspectiva, colocando-se na perspectiva dos outros e percebendo a existência de vários pontos de vista e da necessidade de troca e cooperação.

A possibilidade de agirmos de modo autônomo, segundo Piaget3,4,6,7, pressupõe desenvolvimento e aquisição de conhecimentos, atividades cooperativas, descentração e entendimento dos pontos de vista de outros sujeitos, o que significa que tais atitudes são adquiridas através da experiência com os outros sujeitos e da relação dos sujeitos com o mundo a sua volta.

A criança, para Piaget3, não é "um ser passivo cujo cérebro deve ser preenchido, mas um ser ativo, cuja pesquisa espontânea necessita de alimento". Esta idéia vem ao encontro da idéia de cooperação, na medida em que o trabalho em grupo e a pesquisa são atividades que permitem colaboração e troca. Recepção passiva de informações, memorização de dados, cópias de atividades são atividades que isolam intelectualmente os alunos.

A cooperação pode ser considerada como atividade efetivamente criadora, na medida em que ela é condição indispensável para a constituição plena da razão.

Imaginação e criatividade, portanto, não são instâncias circunscritas apenas ao trabalho artístico. São fundamentos do desenvolvimento do homem completo. São pressupostos para a ação do homem sobre o mundo e para a análise, construção e modificação das coisas que o rodeiam.

"As possibilidades de agir com liberdade que surgem na consciência do homem estão intima-mente ligadas à imaginação, ou seja, à tão pecu-liar disposição da consciência para com a realidade que surge graças à atividade da imaginação"2.

Criatividade e autonomia andam de mãos dadas na medida em que alguns pressupostos para o desenvolvimento de ambas são os mesmos. A experiência do mundo, a interação entre sujeitos e a construção ativa do conhecimento podem proporcionar impulso criador e questionador, além de levar a criança a um desenvolvimento do sentido de cooperação e de diálogo.

"Educar é adaptar a criança ao meio social adulto, isto é, transformar a constituição psicobiológica do indivíduo em função do conjunto de realidades coletivas às quais a consciência comum atribui algum valor. Portanto, dois termos na relação constituída pela educação: de um lado o indivíduo em crescimento e de outro, os valores sociais, intelectuais e morais nos quais o educador está encarregado de iniciá-lo"4.

O presente artigo pretende mais que mostrar a importância do desenvolvimento de pessoas ativas, autônomas, críticas e criativas: pretende-se, com este trabalho, deixar claro que existem conexões entre o ensino em sala de aula e a possibilidade de desenvolvimento de tais conceitos (autonomia e criatividade), entendendo que a realização de atividades significativas na escola está em relação direta com a formação de indivíduos dotados de potencial criativo e de condições para construção da razão autônoma. Assim, pode contribuir não só para ampliar as questões que apontam as causas do fracasso escolar, mas também para que se possa repensar os objetivos e métodos escolares, tendo como principal foco as pessoas que queremos formar e a sociedade que pretendemos construir.

Autonomia intelectual

O tema da autonomia e de seu desenvolvimento nas crianças durante o processo de escolarização é cada vez mais presente entre pesquisadores, sejam estes educadores ou psicólogos, pela sua importância valorativa em uma sociedade em transição e pela necessidade crescente de formação e valorização de homens livres, porém socialmente e moralmente comprometidos.

O termo autonomia8 é originário do grego, em referência à faculdade de regência própria (ou autogoverno) da polis; liberdade ou independência moral ou intelectual. Refere-se à propriedade pela qual o homem pretende poder escolher as leis que regem sua conduta; propriedade que, segundo Kant, a vontade tem de encontrar em si própria a lei das suas determinações (Kant fez dela o único princípio da moral). A palavra "autônomo" vem do grego: autos (eu mesmo, si mesmo) e nomos (lei, norma, regra). Aquele que tem o poder para dar a si mesmo a regra, a norma, a lei, é autônomo e goza de autonomia ou liberdade. Autonomia significa autodeterminação. Quem não tem capacidade racional para a autonomia é heterônomo. Heterônomo vem do grego: hetero (outro) e nomos; receber de um outro a norma, regra ou lei9.

Piaget usa o termo autonomia referindo-se à "submissão efetiva do eu às regras reconhecidas como boas"4 e em oposição à heteronomia (submissão do eu a regras exteriores, impostas pelo grupo social ou por outro sujeito por coação) e à anomia (ausência de reconhecimento das regras e submissão às mesmas).

A autonomia intelectual está caracterizada na teoria piagetiana a partir da articulação dos conceitos de estrutura, gênese e equilibração.

Estrutura, para Piaget, é um "sistema de transformação que comporta leis enquanto sistema (por oposição às propriedades dos elementos) e que se conserva e se enriquece pelo próprio jogo de suas transformações, sem que estas ultrapassem suas fronteiras ou recorram a elementos exteriores". Este é um conceito que se refere à estrutura cognitiva dos indivíduos; é análogo ao conceito biológico referente às estruturas hereditárias (estrutura física, reações comportamentais).

Para Piaget, a estrutura cognitiva não é hereditária, mas se desenvolve no processo de interação do indivíduo com o ambiente a partir da construção de esquemasii . Tais esquemas evoluem de acordo com o desenvolvimento e interação do indivíduo com o ambiente.

Para caracterizar tais estruturas cognitivas do pensamento, Piaget6 se utiliza de modelos lógicos e matemáticos, que definem a inteligência humana em relação à estrutura e suas possibilidades estruturada e estruturante. Estudar a evolução da inteligência significa acompanhar as transformações estruturadas e estruturantes da realidade, tal qual as estruturas lógicas e matemáticas se estruturam e compõem. As transformações estruturais da inteligência se assemelham aos modelos lógicos e matemáticos de grupo, agrupamento e reticulado. Um grupo é um sistema que possui como propriedades a composição, a associatividade, a identidade e a reversibilidade.

O reticulado é uma estrutura que se refere à classificação. Ele é definido por um limite superior mínimo e um limite inferior máximo para cada par de classes. O limite superior mínimo é a menor classe que inclui o par de classes que dela se origina. E o limite inferior máximo se refere à menor classe do par que ainda comporta as características daquela que a origina. O agrupamento, por sua vez, é uma estrutura híbrida e complexa criada por Piaget, oriunda dos conceitos acima e que possui a característica mais importante de ambos, o que lhe confere o caráter operatório: a reversibilidade. É uma estrutura que comporta tanto as características do grupo, como as do reticulado. O agrupamento operatório é um sistema de operações com composições isentas de contradição, reversível e que conduz à conservação das totalidades. É uma estrutura que comporta as capacidades de seriação, classificação, compensação, combinação, que permite o desenvolvimento do pensamento hipotético-dedutivo, do pensamento proposicional, do pensamento proporcional e do estabelecimento de vínculos lógicos entre os diversos tipos de pensamento (tais como implicação, conjunção, disjunção, análise combinatória, indução e probabilidade). Os agrupamentos, tais como os reticulados, são possíveis apenas a partir do estágio das operações concretas. No estágio das operações formais, o sujeito já é capaz de pensar em termos de matriz, tendo como elementos das classes, proposições verbais e não mais objetos palpáveis e concretos. Neste estágio, já são resolvidos problemas de análise combinatória, de conservação de volume e de lógica abstrata.

No desenvolvimento da inteligência na criança, estruturas vão se formando e compondo relações entre si, possibilitando a formação de novas estruturas que, aos poucos, terão características como as descritas acima (grupo, reticulado e agrupamento), atingindo sua forma máxima na estrutura do agrupamento. As características do agrupamento são as mesmas da estrutura de pensamento formal, que por sua vez foi construído a partir de esquemas menos elaborados, como os simbólicos, sensório-motores e operatórios concretos.

Outra característica que identifica a inteligência humana se refere à gênese e ao desenvolvimento das estruturas. Para Piaget10:

"O conhecimento não procede, em suas origens, nem de um sujeito consciente de si mesmo, nem de objetos já constituídos (do ponto de vista do sujeito) que se lhe imporiam: resultaria de interações que se produzem a meio caminho entre sujeito e objeto, e que dependem, portanto, dos dois ao mesmo tempo, mas em virtude de uma indiferenciação completa e não de trocas entre formas distintas. Por outro lado, e por conseqüência, se não existe no começo nem sujeito, no sentido epistêmico do termo, nem objetos concebidos como tais, nem, sobretudo, instrumentos invariantes de troca, o problema inicial do conhecimento será, portanto, o de construir tais mediadores".

O instrumento de troca inicial é "a própria ação em sua plasticidade muito maior"10.

O processo psicológico da gênese e estruturação da inteligência se dá através da interação ativa entre sujeito-objeto e se caracteriza por ser um processo que tem por finalidade última a equilibração de suas estruturas. Equilibração, para Piaget, caracteriza-se por ser um estado de equilíbrio dinâmico que atinge as estruturas em seu desenvolvimento. Tal equilíbrio é considerado dinâmico na medida em que o desenvolvimento das estruturas intelectuais não cessa nunca no indivíduo, ou seja, é sempre passível de novas assimilações e acomodações. Através dos processos de assimilação e acomodação, a inteligência caminha em direção à adaptação, construindo estruturas cada vez mais estáveis. Para Piaget, a inteligência é a "forma de equilíbrio para a qual tendem todas as estruturas (cognitivas)".

A finalidade da atividade intelectual, como já foi dito, é atingir um estado de equilíbrio ou equilibração. Tal finalidade pode ser chamada também de adaptação. O auge da equilibração intelectual se dá a partir da aquisição das estruturas formais de pensamento - o desenvolvimento de atividades reflexivas, do pensamento descentrado, reversível e conceitual, da formulação de hipóteses, do pensamento metafísico. Tais estruturas formais de pensamento se caracterizam por também serem pré-requisitos para o desenvolvimento da autonomia intelectual (de pensamento).

A construção da autonomia está pautada nas trocas sociais e interindividuais e na cooperação entre os pares, ou seja, num sistema de operações executadas em comum ou por reciprocidade. Os agrupamentos são sistemas de relações que contêm a reversibilidade necessária para serem caracterizados como operações. Caracterizam-se por serem totalidades formadas por elementos que se coordenam e se subordinam uns aos outros. São alcançados pelo indivíduo através da possibilidade do mesmo de agir de modo cooperativo. "O estudo do desenvolvimento da razão mostra uma estreita correlação entre a constituição das operações lógicas e as de certas formas de colaboração"6. É perceptível, também, a estreita correlação existente entre o desenvolvimento da autonomia intelectual e moral. Para Piaget, as leis do agrupamento são simultaneamente as da cooperação e das ações individuais dirigidas ao mundo físico:

"As relações sociais equilibradas em cooperação constituirão agrupamentos de operações, exatamente como todas as ações lógicas exercidas pelo indivíduo sobre o mundo exterior, e as leis do agrupamento definirão a forma de equilíbrio ideal comum às primeiras como às segundas"6.

A lógica preenche duas funções, comuns às atividades individual e social: a equilibração e a majoração. Piaget considera a majoração ou equilibração majorante uma estruturação orientada para um melhor equilíbrio.

A formação da lógica na criança evidencia dois pontos fundamentais:

1. que a ação é o meio necessário para a construção das operações lógicas e

2. que a passagem do egocentrismo à cooperação implica uma socialização das ações, sendo que tal socialização acompanha a passagem das operações irreversíveis para as reversíveis.

Tais operações reversíveis (agrupamentos) constituem a forma de equilíbrio final atingida pela coordenação das ações interiorizadas. A evolução individual da lógica se caracteriza, portanto, pela sucessão de estruturas em direção a um estado superior de equilíbrio ou equilibração. É preciso frisar que a lógica não é inata, mas se constrói em função das relações de reciprocidade. Piaget10,11 define períodos sucessivos de equilibração das ações, sendo que esta sucessão está em íntima relação com a socialização do indivíduo. Cada progresso lógico equivale, portanto, a um progresso na socialização do pensamento e do indivíduo. "Para tornar o indivíduo capaz de construir agrupamentos, é necessário, preliminarmente, atribuir-lhe todas as qualidades da pessoa socializada6".

Ao todo Piaget6,10,11 define quatro períodos sucessivos da equilibração das ações e operações. Trabalhos mais recentes acrescentam novos períodos aos definidos por Piaget, incluindo as formas de pensamento pós-formais que são, em essência, as verdadeiramente criadoras de conhecimento. De todo modo, o fato é que esta evolução do pensamento e das ações em operações está estreitamente vinculada à socialização do indivíduo. Sendo assim, percebe-se que o aspecto lógico e o aspecto social da evolução individual compõem um sistema indissociável e o amálgama de tal sistema é caracterizado pela cooperação.

Cooperar na ação é, pois, operar em comum, isto é, "ajustar por meio de novas operações de correspondência, reciprocidade ou complementaridade as ações executadas por cada um dos parceiros"6. Cooperar implica coordenação de pontos de vista, conservação e estabelecimento de regras de reciprocidade6. Tais são as três condições para que se atinja um estado de equilíbrio ou equilibração e se construam os fundamentos da autonomia.

A cooperação implica reciprocidade entre indivíduos e personalidades diferenciadas e se caracteriza por ser um fator de objetividade na medida em que "elimina o subjetivo em proveito de um método de relacionamentos"6.

A construção do conhecimento pela criança

Partindo do pressuposto de que a construção da autonomia intelectual da criança está em dependência das atividades que ela estabelece ao longo de sua vida na escola e fora dela, torna-se necessário e fundamental conhecer como ela constrói o conhecimento para que se entenda a natureza das interações que a criança estabelece a partir do que vivenciou.

Já dissemos anteriormente que o desenvolvimento da inteligência implica uma coordenação progressiva das ações, assim como uma reversibilidade crescente do pensamento. Tal desenvolvimento intelectual está relacionado à socialização progressiva da criança.

"Toda operação é solidária a um conjunto de 'co-operações': a cooperação social e a elaboração dos 'agrupamentos' constituintes da própria lógica são, em definitivo, nada mais que as duas faces de uma única e mesma realidade"5.

Enquanto permanece egocêntrico, o pensamento da criança encerra certa incoerência, dada a sua ausência de reversibilidade. Tal incoerência pode ser encontrada tanto na justaposição (falta de ligações e encadeamentos entre idéias e objetos; falta de deduções e induções) quanto no sincretismo (tendência a pensar globalmente, sem discernir os detalhes; tendência a achar analogias imediatas entre objetos e idéias aparentemente não relacionados), ambos característicos do pensamento infantil pré-operatório. É, portanto, pela falta de consciência do próprio pensamento que o mesmo permanece sincrético ou justaposto na criança. O pensamento pré-operatório da criança é dito irreversível, pois ela é capaz de, a partir de uma premissa, chegar a uma conclusão, mas não é capaz de fazer o caminho inverso. Na medida em que a criança junta conceitos heterogêneos, em que suas representações se processam por esquemas globais e subjetivos (e, portanto, as ligações estabelecidas não são passíveis de verificação por qualquer outro indivíduo), na medida em que não adapta seu ponto de vista ao dos outros e mantém sua percepção imediata como absoluta, a criança permanece incapaz de realizar operações não contraditórias e, portanto, não domina a lógica das relações. Pode-se dizer que o pensamento da criança pré-operatória é transdutivo, ou seja, parte do singular para o singular, sem generalização e sem rigor lógico. Piaget5 usa o termo transdutivo para definir esse tipo de pensamento, diferenciando-o do pensamento indutivo (que parte do singular para o geral) e do pensamento dedutivo (que parte do geral para o singular).

Sintetizando, o egocentrismo infantil implica um pensamento repleto de contradições, por não ser consciente das relações entre os objetos e as idéias. Além disso, a criança julga tudo a partir de seu próprio ponto de vista, emitindo juízos absolutos acerca do mundo a sua volta. A criança pré-operatória é, em suma, incapaz de manipular a lógica das relações e, por isso, seu pensamento apresenta as características acima descritas.

E o que é a lógica "senão a arte de provar?"5

A tomada de consciência do próprio pensamento está em dependência direta dos fatores sociais. Na medida em que sente necessidade de demonstrar o próprio pensamento e convencer a partir do choque deste último com o pensamento dos outros, a criança começa a estruturar logicamente o próprio pensamento. Na medida em que a criança se socializa e se adapta a uma realidade social, ela cria uma realidade nova (o pensamento falado e discutido, a imaginação e o uso das palavras), ela toma consciência de relações e operações que até então eram manipuladas unicamente pela ação. Tomar consciência de uma operação significa, portanto, passar do plano da ação para o plano da linguagem; significa reinventar a ação na imaginação para poder exprimi-la em palavras. A socialização, portanto, é fator fundamental tanto no desenvolvimento moral quanto no desenvolvimento intelectual da criança. Na medida em que tem possibilidade de realizar trocas, de compartilhar idéias com seus pares, a criança tem motivação para desenvolver seu pensamento e para compreender o do outro.

É importante salientar que, muitas vezes, a criança tem dificuldade em executar ações no plano das idéias, embora já seja capaz de realizá-las no plano concreto. A décalageiii entre a ação e o pensamento é incessante. Apenas quando toma consciência de seu próprio pensamento, quando é capaz de regular os mecanismos de construção da realidade, quando é capaz de criar conscientemente implicações entre juízos, é que o sujeito domina a lógica formal (adolescente) e, portanto, é capaz de tornar as experiências mentais reversíveis.

Partindo do pressuposto da décalage entre ação e pensamento e do pressuposto da irreversibilidade e incoerência do pensamento infantil, surge uma questão pedagógica importante: a criança precisa de espaço para testar suas hipóteses, para agir sobre o objeto, para fazer perguntas e interpretar a realidade. Ela primeiro precisa agir sobre a realidade e os objetos para posteriormente reelaborar mentalmente tais ações, reinventá-las. Precisa de espaço também para se relacionar em grupos e partilhar experiências e conhecimentos com seus pares.

Ao afirmar isso, trago duas outras questões: a crítica ao verbalismo escolar e a necessidade da não condenação dos erros das crianças.

A primeira questão é fortemente enfocada por Piaget3, a crítica ao ensino escolar pautado na fala do professor, nos seus conhecimentos e na passividade dos alunos e aceitação desses conhecimentos. O professor como aquele que domina o conhecimento e não permite que haja espaço para dúvidas, para perguntas, para a imaginação e para a busca e construção de respostas dos alunos, para o trabalho em grupo e as trocas sociais está supondo ser ponto de partida para a aprendizagem o que é ponto de chegada e acaba por considerar o conhecimento e sua aquisição sob o ponto de vista do adulto e não da criança. Se o professor considerar a aquisição de conhecimentos sob o ponto de vista do desenvolvimento infantil, terá que agir de modo inverso. Assim, ele terá que partir da experiência concreta para chegar ao conhecimento das coisas e não o contrário. Terá que se apoiar nessas experiências, nas testagens, perguntas, dúvidas e curiosidades dos alunos e não no próprio discurso.

"As melhores aulas continuarão sendo letra morta se não se apoiarem sobre a própria experiência, assim como a inteligência das leis da física é impossível sem a manipulação de um material concreto"3.

Quanto à segunda questão, é necessária a percepção de que o erro é parte do processo de conhecimento e não um desvio do processo. Quando partimos de nossas idéias em busca de um conhecimento ou da criação de algo novo, estamos sujeitos a cometer erros no meio desse caminho e estes erros não podem ser considerados como problemas, mas sim como etapas necessárias para aquisição das respostas às perguntas desejadas ou mesmo na criação do novo. A atividade de pesquisa não pressupõe apenas acertos, mas idas e vindas, aquisições e reavaliações, ensaios e erros e nada disso pode ser desprezado nessa busca do conhecimento.

"Um erro revelador de uma verdadeira pesquisa é freqüentemente mais útil que uma verdade simplesmente repetida, porque o método adquirido durante a pesquisa permitirá corrigir a falta inicial e constitui um verdadeiro progresso intelectual, ao passo que a verdade meramente reproduzida pode ser esquecida e a repetição é em si mesma desprovida de valor"3.

Quando se fala em olhar a criança em termos de suas potencialidades, não se quer dizer simplesmente ignorar seus erros, mas sim dar importância adequada a eles. Quando um aluno é condenado por seus erros, exagera-se a importância destes mesmos erros. Quando, por meio dos erros, verifica-se qual o processo que a criança está adotando na busca pelo conhecimento e adaptam-se os métodos às capacidades cognitivas da criança, tem-se uma atitude pedagógica coerente com uma postura preocupada com um desenvolvimento infantil pleno e rico. Olhando para esses erros como etapas necessárias na construção do conhecimento e tentando superá-los a partir deles mesmos e não apesar deles (ignorando-os ou condenando-os), os professores podem ser capazes de inferir sobre os processos de maturação que ainda estão em desenvolvimento na criança e de ajudá-las a amadurecer e a se desenvolver. Essa é uma das abordagens do conceito de zona de desenvolvimento proximal introduzido por Vygotsky, que se refere à diferença entre o nível de desenvolvimento real do sujeito, determinado pela capacidade de resolver problemas de forma independente e o nível de desenvolvimento potencial do mesmo, caracterizado pela capacidade de solucionar problemas com ajuda de outros sujeitos. A zona de desenvolvimento proximal define, portanto, as funções cognitivas (ou estruturas) que ainda estão em processo de maturação: o que é zona de desenvolvimento proximal hoje, será nível de desenvolvimento real amanhã.

"A zona de desenvolvimento proximal permite-nos delinear o futuro imediato da criança e seu estado dinâmico de desenvolvimento, propiciando acesso não somente ao que já foi atingido através do desenvolvimento, como também àquilo que está em processo de maturação14".

Esta é uma maneira de olhar a aprendizagem e o desenvolvimento infantil em termos prospectivos. É um pressuposto do trabalho de pesquisa, que é um trabalho caracteristicamente ativo. Invenção, criatividade e verificação são os pressupostos desse trabalho.

A atividade criadora e seu desenvolvimento

Chamamos atividade criadora a toda realização humana criadora de algo novo, quer se trate de reflexos de algum objeto do mundo exterior, quer de determinadas construções do cérebro ou de determinados sentimentos que vivem e se manifestam somente no próprio ser humano2.

A atividade criadora para Vygotsky2 engloba toda criação do novo, seja esta criação artística, científica ou técnica. Para ele, tudo a nossa volta que foi criado por mãos humanas, todo o mundo da cultura (em oposição ao mundo da natureza), tudo é produto da imaginação e da criação do homem.

Assim, "todos os objetos da vida diária, sem excluir os mais simples e habituais vêm a ser algo como 'fantasia cristalizada"2. Vygotsky2, portanto, não se limita a considerar criativas apenas as invenções e obras dos grandes gênios, artistas e cientistas reconhecidos, mas enfatiza a enorme "criação anônima coletiva de inventores anônimos"2.

Para Vygotsky2 (assim como uma das premissas do movimento da Gestalt), a base da criação se refere à capacidade de combinar elementos já conhecidos com novos elementos, compondo um novo conjunto, um todo com eles. Tal capacidade criadora não se encontra desvinculada da realidade cotidiana, restrita a um universo apenas fantasioso, mas resulta de interações contínuas entre o sujeito e o mundo que o rodeia, assim como de interação entre os sujeitos (partilhando histórias, desejos, etc). Fantasia e realidade compõem um conjunto estruturado que serve de base para a criação. Para Vygotsky, tal composição pode ocorrer de várias formas diferentes2. Uma das maneiras se refere ao fato de que toda imaginação se compõe sempre de elementos tomados da realidade, da experiência do homem no mundo. A imaginação e a criação não surgem do nada, mas são frutos de experiências anteriores do sujeito, nas quais os elementos que as compõem são recombinados e reelaborados formando um todo novo. Assim, a primeira lei sobre a função imaginativa é descrita pelo autor:

"A atividade criadora da imaginação se encontra em relação direta com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, porque esta experiência é o material com que ele ergue os edifícios da fantasia. Quanto mais rica for a experiência humana, tanto maior será o material de que dispõe sua imaginação. Por isso, a imaginação da criança é mais pobre que a do adulto, por ser menor sua experiência"2.

Ao fazer tal afirmação sobre a relação entre a riqueza da experiência humana com a imaginação e a capacidade criadora, Vygotsky conclui pela necessidade pedagógica de ampliação da experiência da criança. Quanto mais experimentar, quanto mais interagir com o mundo, com os objetos à sua volta e com as pessoas ao seu redor, maior e mais rico será o material que a criança acumulará para servir de base para a atividade criadora; também mais ricos e diversificados serão seus elementos de referência. Isto também significa que, quanto mais conhecimento constrói, quanto mais se desenvolve cognitivamente, mais o indivíduo torna-se capaz de criar ou imaginar o novo.

O começo do processo criador reside sempre na percepção interna e externa dos objetos e fatos que nos circundam, no contato com o mundo, na possibilidade de ver e manusear objetos, na interação com os outros e escuta de suas histórias, o que nos possibilita o acúmulo de experiência e materiais para a construção da fantasia. A crian-ça deve estar em contato com experiências variadas e ricas que lhe permitirão posteriormente atos de criação baseados nos elementos que ela colheu destas experiências. Ao combinar estes elementos dissociando-osiv e associando-osv, poderá criar, enriquecer sua fantasia, desenvolver seu pensamento abstrato, alimentar sua imaginação figurada.

Podemos dizer que a função imaginativa está em dependência direta da experiência, necessidades, interesses daqueles no qual se manifesta, está em dependência dos conhecimentos que acumulamos e das tradições das quais fazemos parte, mas também e, principalmente, está em dependência direta do meio ambiente que nos rodeia.

Segundo Commons & Bressete, criatividade se refere a uma ação original. Mesmo que os instrumentos usados para a criação do novo não sejam originais, pelo menos o modo em que são usados deve ser original. Commons & Bressete tratam da questão da criatividade e do que eles chamam de "inovação criativa" pela perspectiva do Modelo de Complexidade Hierárquica (MHC). O MHC de Commons & Richards15,16 é um sistema que classifica o desenvolvimento em termos de uma organização hierárquica de ações. Este sistema deriva da noção piagetiana de que as ações dos estágios superiores de desenvolvimento cognitivo coordenam-se às dos estágios inferiores, organizando-as em um novo padrão hierarquicamente mais complexo. Segundo este modelo, surgiriam quatro novos estágios de desenvolvimento cognitivo além dos que Piaget definiu, todos pós-formais. Para Commons, a possibilidade de "inovação criativa" está vinculada à possibilidade de desenvolvimento cognitivo e de estruturas de organização dos estágios pós-formais. Os modos de pensar sistemáticos, metasistemáticos, paradigmáticos e cross-paradigmáticos (os quatros novos estágios por ele introduzidos) é que seriam os efetivamente criadores do novo e capazes de introduzir mudanças culturais e científicas na sociedade.

Desenvolvimento individual e desenvolvimento cultural guardam uma estreita relação um com o outro. As capacidades imaginativa, criativa e inventiva, dependem tanto do desenvolvimento cognitivo dos indivíduos, quanto da cultura, na medida em que novas invenções apenas podem nascer a partir das invenções precedentes e são limitadas por estas últimas.

As interações dos sujeitos com seus pares e com os objetos do mundo, embora não sejam condições suficientes para o desenvolvimento pleno dos mesmos, não deixam de se configurar como condições absolutamente necessárias para tanto.

O desenvolvimento da imaginação

A capacidade imaginativa e criadora é fato complexo e dependente de diversos fatores, entre eles a experiência anterior do sujeito e seus interesses, assim como a variedade de estímulos a que o mesmo está submetido. Sendo assim, a imaginação não pode se manifestar do mesmo modo na criança e no adulto. Mais do que isso, ela se manifesta e atua de modo peculiar em cada fase de desenvolvimento do indivíduo.

Imagina-se, via de regra, que a função imaginativa é mais rica e variada na criança do que no adulto. A criança parece ser mais espontânea (e talvez, de fato, o seja), mais livre para imaginar, mais integrada ao mundo da fantasia que da realidade. Mas isso não significa que sua capacidade imaginativa seja maior ou mais rica que a do adulto, porque sua experiência é muito menor e mais limitada que a do adulto.

A imaginação desenvolve-se com o indivíduo, cresce quase que paralelamente ao crescimento intelectual do mesmo. A relativa independência da imaginação infantil em relação à razão caracteriza, para Vygostky2, a pobreza de sua capacidade imaginativa e não o contrário. Na verdade, a própria ciência e toda a criação científica e cultural não são possíveis apenas com o uso da imaginação. Elas estão em dependência direta do conhecimento e da capacidade de domínio do mesmo.

"Se considerarmos que a criação consiste, em seu verdadeiro sentido psicológico, em fazer algo novo, é fácil chegar à conclusão que todos podemos criar em grau maior ou menor e que a criação é companheira normal e permanente do desenvolvimento infantil"2.

Mais uma vez fica claro a importância de se criar um ambiente adequado e estimulador do desenvolvimento cognitivo e sociocultural da criança. Um aluno apenas sentado em sala de aula, recebendo informações de maneira passiva, não está realizando uma atividade que o permita se desenvolver de modo pleno. Ao contrário, está apenas exercitando a cópia, a repetição e a memória. Quando em interação permanente com seus pares e estimulada a realizar atividades de pesquisa, a criança desenvolve-se de modo mais rico, utilizando ferramentas que são fundamentais na construção de sua inteligência: observação, questionamento, busca de informações, confrontação de dados, percepção da existência de diferentes fontes de pesquisa, elaboração de hipóteses, testagem de hipóteses, elaborações conclusivas, etc.

A construção da inteligência e da criatividade humanas está em relação direta à riqueza das atividades a que estamos submetidos ao longo da nossa vida. Isto inclui nossa vida escolar e o quanto ela pode alimentar o desenvolvimento das nossas capacidades cognitivas e imaginativas.

Neste sentido, está o conceito de letramento: a escrita inserida socialmente. Entender para que serve a escrita e participar de todos os seus usos na escola faz parte do exercício criativo de dar várias formas e de construir diversos conteúdos a partir de uma atividade que predominantemente é desenvolvida em contexto escolar.

Autonomia e criatividade: pressupostos comuns

Podemos dizer, a partir das construções teóricas anteriores, que há uma semelhança entre os pressupostos de desenvolvimento da autonomia e da criatividade nas crianças. Embora sejam conhecidas as diferentes concepções acerca do desenvolvimento da aprendizagem infantil dos autores adotados para esta análise (Piaget e Vygostky), podemos dizer que em relação a estes pressupostos teóricos há certa convergência de idéias.

Ambos os conceitos implicam a necessidade de experimentação do mundo. A ampliação da experiência da criança e da possibilidade de interação com os sujeitos e objetos ao seu redor permitem tanto a riqueza e diversidade de elementos que serão a base da atividade criadora, como ampliam as possibilidades de desenvolvimento cognitivo, na medida em que a ação sobre o mundo constitui o meio necessário para a construção das operações lógicas. Sem o desenvolvimento da lógica e das operações que se tornam reversíveis, não há possibilidade de desenvolvimento da autonomia. Embora não seja pressuposto suficiente para tanto, é absolutamente necessário.

Imaginação e criatividade pressupõem formas complexas de pensamento e fundamento para seu desenvolvimento. Tanto imaginação quanto criatividade supõem grande quantidade de experiência anterior, o que nos leva a frisar novamente a importância da ação e interação do sujeito com o mundo a sua volta. Mas, além disso, supõem um tipo de inteligência cognitivamente desenvolvida: o pensamento formal, hipotético e dedutivo é aquele que melhor nos habilita a essa capacidade imaginativa e criadora.

Tal desenvolvimento do pensamento pressupõe, como dito, a interação do sujeito com os sujeitos ao seu redor. Através da socialização e das atividades cooperativas, o sujeito é capaz de se deslocar de seu egocentrismo inicial, colocar-se na perspectiva dos outros, demonstrar, por meio da lógica, os produtos e processos de seu pensar e desenvolver seu pensamento no sentido do raciocínio lógico e formal, além de criar as bases para o desenvolvimento de si próprio como ser autônomo moral ou intelectualmente. Além disso, a escuta e o entendimento da experiência dos outros também possibilita o acúmulo de materiais que servirão de base para a criação.

Ao falar da atividade criadora na escola, Vygotsky2 critica a imposição de temas desvinculados da realidade da criança, assim como a não valorização do interesse das mesmas. Esta crítica é sempre presente nos estudos de Piaget3,4, nos quais ele frisa que enquanto não forem valorizados os interesses das crianças e enquanto as atividades desenvolvidas na escola partirem apenas do professor, estará se tendo como ponto de partida o que é, na verdade, ponto de chegada e não se estará dando atenção e valor aos pressupostos do desenvolvimento infantil.

Na verdade, o desenvolvimento tanto da autonomia quanto da criatividade nas crianças são pressupostos desejáveis de uma educação de qualidade. Entretanto, para que se consiga atingir tal objetivo é preciso que os professores mudem sua visão de educação. A postura tradicional de cópia, de repetição e de atribuição dos conhecimentos ao professor ("o detentor do saber", aquele que vai "dar" o conhecimento para o passivo aluno que vai "receber" o que já está pronto e acabado) precisa ser substituída por uma atuação mais marcante do aluno na construção de seu próprio saber. A pesquisa necessita ganhar cada vez mais espaço na escola e o conhecimento deve ser visto com algo a ser construído por ambos: professor e aluno. Quando conseguirmos modificar a educação, substituindo a postura de passividade por uma educação ativa, rica e interativa, não será difícil construirmos as bases para o desenvolvimento de seres humanos mais criativos, conscientes, autônomos e críticos. A Metodologia de Projetos de Trabalho pode ser uma boa alternativa para começarmos a pensar a construção de uma "nova" educação.

 

REFERÊNCIAS

1. Alves R. Conversas com quem gosta de ensinar. São Paulo:Ars Poética;1995.         [ Links ]

2. Vygotsky LS. Imaginacion y el arte em la infancia. Mexico: Hispânicas;1987.         [ Links ]

3. Piaget J. Sobre a pedagogia. São Paulo: Casa do Psicólogo;1998.         [ Links ]

4. Piaget J. Psicologia e pedagogia. 9ª ed. Rio de Janeiro:Forense;1998.         [ Links ]

5. Piaget J. O raciocínio na criança. Rio de Janeiro: Record;1967.         [ Links ].

6. Piaget J. Estudos sociológicos. Rio de Janeiro:Forense;1973.         [ Links ]

7. Piaget J. O juízo moral na criança. 2ª ed. São Paulo:Summus;1994.         [ Links ]

8. Dicionário enciclopédico Luso-Brasileiro. Porto:Ed. Larousse.         [ Links ]

9. Chauí M. Convite à filosofia. São Paulo:Ática;2000.         [ Links ]

10. Piaget J. Epistemologia genética. São Paulo:Martins Fontes;1990.         [ Links ]

11. Piaget J. A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. 3ª ed. Rio de Janeiro: LTC;1990.         [ Links ]

12. Piaget J. A construção do real na criança. 3ª ed. São Paulo:Ática;1996.         [ Links ]

13. Piaget J O nascimento da inteligência na criança. 4ª ed. Rio de Janeiro:Guanabara; 1996.         [ Links ]

14. Vygotsky LS. A formação social da mente. 5ª ed. São Paulo:Martins Fontes;1996.         [ Links ]

15. Commons ML, Richards FA. A general model of stage theory. In. Commons ML, Richards FA, Armon C, eds. Beyond formal operations. vol 1. Late adolescent and adult cognitive development. New York:Praeger; 1984. p.120-40.         [ Links ]

16. Commons ML, Richards FA. Applying the general stage model. In: Commons ML, Richards FA, Armon C, eds. Beyond formal operations: vol 1. Late adolescent and adult cognitive development. New York:Praeger; 1984. p.141-57.         [ Links ]

 

 

Correspondência
Ana Luisa M. B. de Castro
Rua 15 de novembro, 2509
Uruguaiana - RS - Brasil
Fone: (55) 3414-4037 / 8403-7223
E-mail: analu@uol.com.br /analuisa@pucrs.br

Artigo recebido: 12/10/2005
Aprovado: 15/01/2006

 

 

Trabalho que integra Dissertação de Mestrado da autora, defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ.
i Termo usualmente atribuído a crianças com baixo desempenho escolar, seja no que se refere às notas atribuídas aos trabalhos por elas realizados na escola, seja em relação a comportamentos que geram distúrbios em sala de aula.
ii Esquemas, para Piaget10-13, são padrões de comportamento ou ações ordenadas e coerentes que descrevem um tipo regular de ação aplicada a vários objetos.
iii Termo usado por Piaget referente à defasagem entre a realização de uma ação e sua compreensão pelo indivíduo. Também se refere a disparidades encontradas num mesmo nível operatório.
iv A impressão externa é considerada um todo complexo. A dissociação consiste na separação deste todo em suas partes, comparando tais partes umas com as outras, conservando alguns elementos e descartando outros. É considerado pelo autor um processo de extraordinária importância no desenvolvimento mental, servindo de base para o pensamento abstrato e para a compreensão figurada.
v Combinações formadas entre os elementos dissociados do todo são chamadas associações. Tais combinações não são estanques, mas se modificam e se reelaboram continuamente.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons