Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista Psicopedagogia
versão impressa ISSN 0103-8486
Rev. psicopedag. vol.26 no.79 São Paulo 2009
ARTIGO DE REVISÃO
Caracterizando e correlacionando dislexia do desenvolvimento e processamento auditivo
Characterization and correlation of developmental dyslexia and auditory processing
Monique Antunes de Souza Chelminski Barreto
Fonoaudióloga do Hospital das Forças Armadas-HFA-DF; Especialização em Fonoaudiologia pela UFSM-RS (Universidade Federal de Santa Maria); Especialização em Psicopedagogia pela UFRJ/CEP (Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Centro de Estudos de Pessoal) e Especialização em Audiologia pela UFPE-PE (Universidade Federal de Pernambuco), Mestranda em Fonoaudiologia na Universidade Veiga de Almeida
RESUMO
Para um adequado diagnóstico e intervenção terapêutica, é fundamental que se conheçam as alterações de comunicação e suas correlações. Desta forma, o psicopedagogo pode se utilizar de instrumentos para uma intervenção adequada no que diz respeito ao desenvolvimento da linguagem oral e escrita. Pode-se considerar que, no que diz respeito às características, a dislexia emerge normalmente nos momentos iniciais da aprendizagem da leitura e da escrita, usualmente não antes do final da primeira ou segunda série. Contudo, pesquisadores como Estill (2005) e Pennington (1997) referem que precursores da dislexia estão presentes antes da idade escolar. Quanto às alterações do processamento auditivo, estas podem estar contidas em quadros de distúrbios de linguagem, piorando o desempenho de indivíduos em tarefas de compreensão do som que requeiram habilidades auditivas. Tais alterações podem atuar como causa das dificuldades de linguagem que ocorrem quando o indivíduo falha ao receber ou resgatar, pela via da audição, o que foi ouvido (Pereira, 1996). A presente pesquisa pretendeu oferecer a definição de dislexia de desenvolvimento, sua etiologia, incidência, características e intervenção, bem como a definição de processamento auditivo, seus métodos de avaliação, características e correlação com a dislexia do desenvolvimento. A partir dessa revisão da literatura, pretende-se oferecer suporte teórico para o psicopedagogo e profissionais de áreas afins intervirem de forma eficaz ao se depararem com um indivíduo que apresenta de forma associada a dislexia do desenvolvimento e a desordem do processamento auditivo.
Unitermos: Dislexia. Transtornos da percepção auditiva. Linguagem. Redação. Transtornos do desenvolvimento da linguagem.
SUMMARY
For an appropriate diagnosis and therapeutic intervention, is fundamental to know the communication impairments and its relations. Therefore, the psychopedagoge may employ some tools for an appropriate intervention in developing the oral and written language. It may be considered that, about its characteristics, the dyslexia arises usually at the beginning of reading and written learning, but not before the first or second degrees. Besides, researchers as Estill (2005); Pennington (1997) say that dyslexia forerunners are present before school age. About the hearing process impairments, these may happen in language disturb, getting worse the performance of individuals, in sound comprehension tasks, which demands hearing skills. Such impairments may act as a cause to language difficulties that occur when an individual fails in receiving or recover, by hearing way, what was heard (Pereira, 1996). The aim of this research is to offer a definition for developmental dyslexia, its etiology, incidence, characteristics and intervention as well as a definition for auditory processing, its evaluation methods, characteristics and correlation whith developmental dyslexia. Since this research, it is intended to offer tools to the psycopedagoge in order to interpose efficiently when facing a learner who shows associated developmental dyslexia and auditory processing impairment.
Key words: Dyslexia. Auditory perceptual disorders. Language. Writing. Language development disorders.
INTRODUÇÃO
A dislexia, conforme Zorzi1; é definida como um transtorno de aprendizagem na área de leitura, escrita e soletração e é apontada como o distúrbio de maior incidência na sala de aula. Para o autor, a dislexia é um distúrbio dos processos de linguagem onde o problema principal é a dificuldade de decodificação na leitura e na expressão escrita.
Katz2 refere que crianças com distúrbios de aprendizagem podem ter concomitantemente distúrbios neuroauditivos que envolvem o sistema nervoso auditivo central e que estes podem ser identificados, analisados e quantificados por meio da avaliação do processamento auditivo.
Conforme a American Speech-Hearing and Language Association (ASHA)3; o processamento auditivo consiste de mecanismos e processos do sistema auditivo que são responsáveis por diversos fenômenos comportamentais, incluindo fala e linguagem, tendo correspondência neurofisiológica, assim como funcional.
Pereira e Cavadas4 (1998) descrevem manifestações comportamentais e clínicas observadas em indivíduos com desordem do processamento auditivo, como: atenção ao som prejudicada; dificuldade de escutar e compreender em ambiente ruidoso; problemas de produção de fala envolvendo principalmente os fonemas /r/ e /l/; problemas de linguagem expressiva envolvendo as regras da língua (estrutura gramatical); dificuldades de compreender palavras de duplo sentido; problemas de escrita como inversões de letras, orientação direita/esquerda; disgrafias; dificuldade de compreender o que lê; distração; agitação hiperatividade, tendência ao isolamento; desempenho escolar inferior em leitura, gramática, ortografia e matemática.
Nos últimos anos, os estudos visando à elucidação do processamento central da informação auditiva e sua correlação com a dislexia tem se intensificado, o que despertou o interesse e a realização desta pesquisa de cunho bibliográfico.
Assim, ciente da importância de correlacionar as habilidades de processamento auditivo e a dislexia, este estudo se propõe a caracterizar e correlacionar tais alterações de comunicação.
REVISÃO DE LITERATURA
Dislexia
Quanto à definição, Critchley5 refere que dislexia é um transtorno de aprendizagem da leitura que ocorre apesar da inteligência normal, da ausência de problemas sensoriais ou neurológicos, da instrução escolar adequada e de oportunidades socioculturais suficientes, o que é corroborado por Alvarez6; ao referir que a dislexia é uma disfunção neurológica em que as pessoas não conseguem traduzir a linguagem ouvida ou lida para o pensamento, não sendo indicativo de pouca inteligência, e ainda por Bradley & Bryant7; que afirmaram que crianças com dislexia são aquelas que apresentam problemas quando tentam aprender a ler e a escrever, embora sejam inteligentes, rápidas e alertas.
Para Estill8; a dislexia é uma dificuldade específica nos processamentos da linguagem para reconhecer, reproduzir, identificar, associar e ordenar os sons e as formas das letras, organizando-os corretamente.
Zorzi1 entende que a dislexia é um transtorno de aprendizagem na área de leitura, escrita e soletração e é apontada como o distúrbio de maior incidência na sala de aula, sendo que o problema principal é a dificuldade de decodificação na leitura e na expressão escrita, apresentando um caráter permanente e duradouro, mas que não impede a aprendizagem da leitura e escrita apesar das dificuldades.
No que diz respeito à etiologia e incidência, a dislexia do desenvolvimento tem sido descrita como de natureza genética-neurológica.
Quanto às questões referentes à anatomia neurológica, Galaburda & Kemper9 e Galaburda & Cestnick10 apontam anomalias de migração celular que afetam a região perisilviana - hemisfério esquerdo entre a 16ª e 24ª semana gestacional; diferenças anatômicas nos cérebros de indivíduos do sexo masculino e feminino quanto a: simetria do plano temporal; anomalias de desenvolvimento do córtex cerebral e do corpo geniculado lateral e medial; ectopias; microgiria (região pré-frontal inferior), região subcentral, região parietal, giro angular e supramarginal, giro temporal posterior e superior e região têmporo-occipital.
Já em relação às questões referentes à genética: estudos como os de Vogleret al.11 e Nopola-Hemmi et al.12 apontam a relação entre o padrão de herança e a dislexia do desenvolvimento, ou seja, crianças filhas de pais com problemas de leitura teriam maior probabilidade de apresentarem este transtorno, como apontam também a participação de alguns genes localizados no braço curto do cromossomo 15, no braço curto do cromossomo 2 e no cromossomo 6, como responsáveis pela dificuldade da leitura.
Pennington13 refere que as causas da dislexia são neurobiológicas e genéticas, podendo ser ainda causada por fatores ambientais e que as evidências atuais apóiam a perspectiva de que a dislexia é familial (cerca de 35% a 40% dos parentes de primeiro grau são afetados), herdada (com uma hereditariedade de cerca de 50%), heterogênea em seu modo de transmissão (como evidencia tanto a forma poligênica como a de gene predominante responsável pelo distúrbio) e ligada em algumas famílias a marcadores genéticos no cromossomo 15 e possivelmente para outras famílias a marcadores genéticos do cromossomo 6.
Nos últimos 40 anos, pesquisadores como Bradley & Bryant7; e Olson et al.14 têm defendido a hipótese do déficit fonológico como sendo um dos fatores causais da dislexia do desenvolvimento. Para estes pesquisadores, as crianças com este diagnóstico apresentam dificuldades no uso da rota sublexical para a leitura, ou seja, no uso do mecanismo de conversão grafema-fonema em atividades que exigem habilidades fonológicas, como em leitura de palavras inventadas ou na categorização de palavras quanto aos sons.
Na Inglaterra, estima-se a dificuldade na aprendizagem da leitura em 14,4% dos meninos e em 5,1% das meninas (Berger et al.15). Bradley & Bryant7 referiram que a dislexia afeta de 3% a 5% das crianças nas escolas e Alvarez6 descreve dados da Associação Britânica onde ocorre um porcentual de 6% a 10% de crianças com dislexia na idade escolar, na Associação Americana entre 8% e 10% e na Associação Brasileira em torno de 10%.
Quanto à classificação, Ellis16 e Boder17 classificam a dislexia como:
Dislexia Disfonética ou Fonológica (predominantemente fonológica) - caracterizada por dificuldade na leitura oral de palavras pouco familiares, onde a dificuldade encontra-se na conversão letra-som. É normalmente associada a disfunção do lóbulo temporal;
Dislexia Diseidética ou Superficial ou Visuoespacial (predominantemente Visual) - caracterizada por dificuldade na leitura em decorrência de problema de ordem visual, ou seja, o processo visual é deficiente. O leitor lê por meio de um processo extremamente elaborado de análise e síntese fonética. Esta associada a disfunções do lóbulo occipital;
Dislexia Mista - caracterizada por leitores que apresentam problemas dos dois subtipos disfonéticos e diseidéticos, sendo associadas as disfunções dos lóbulos pré-frontal, frontal, occipital e temporal.
Para Caldeira & Cumiotto18 existe a Dislexia Acústica, que se manifesta na insuficiência para diferenciar os sons, ocorrendo omissões, distorções, transposições ou substituições dos fonemas; Dislexia Visual, que se manifesta na confusão de letras com semelhança gráfica e a Dislexia Motriz, que é manifestada no campo visual, provocando retrocessos e principalmente intervalos mudos ao ler.
Conforme Alvarez6; as características apresentadas pelas crianças antes da alfabetização são: atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem; dificuldade de decorar versinhos, aprender canções e contar histórias, fazer rimas e narrativas; problemas na motricidade fina (recortes com tesoura, desenhos) e na grossa (caminha desengonçadamente, tropeça com facilidade); falta de interesse em livros, mesmo os infantis (só se interessa por livros que tenham muitas figuras); dificuldade com quebra-cabeças; confunde conceito de ontem/hoje/amanhã (orientação temporal); sabe separar fichas por cores, mas não decora o nome da cor; incidência maior em canhotos e ambidestros.
Na idade escolar, conforme Alvarez6; as características apresentadas são: letra feia ou com muita incidência de inversão (b virado, por exemplo); trocas ortográficas ocorrem, mas dependem do tipo de dislexia; problemas para reconhecer rimas e aliterações (fonemas repetidos em uma frase); desatenção e dispersão; desempenho escolar abaixo da média em matérias específicas que dependem da linguagem escrita; dificuldade de coordenação motora fina (para escrever, desenhar e pintar) e grossa (sem coordenação); dificuldade de copiar as lições do quadro ou de um livro; problemas de lateralidade (confusão entre esquerda e direita, observáveis na ginástica e no trabalho com mapas); dificuldade de expressão: vocabulário pobre, frases curtas, estrutura simples, sentenças vagas; esquecimento de palavras; problemas de conduta; desinteresse ou negação da necessidade de ler; leitura demorada, silabada; esquecimento de tudo o que lê, obstáculo a uma aprendizagem acumulativa; desnível entre o que ouve e o que lê (aproveita o que ouve, mas não o que lê).
Conforme Estill8; há muitos sinais visíveis nos comportamentos e nos cadernos das crianças, que podem auxiliar aos pais e educadores a identificar precocemente alguns dos sinais preditivos de dislexia como: demora nas aquisições e no desenvolvimento da linguagem oral; dificuldades de expressão e compreensão; alterações persistentes na fala; copiar e escrever números e letras inadequadamente; dificuldade para organizar-se no tempo, reconhecer as horas, dias da semana e meses do ano; dificuldades para organizar sequências espaciais e temporais, ordenar as letras do alfabeto, sílabas em palavras longas, sequências de fatos; pouco tempo de atenção nas atividades, ainda que sejam muito interessantes; dificuldade em memorizar fatos recentes (números de telefones e recados, por exemplo); graves dificuldades para organizar a agenda escolar ou a rotina diária; dificuldade em participar de brincadeiras coletivas; pouco interesse em livros impressos e escutar histórias.
Ardila19 referiu que, apesar das diferentes classificações para a dislexia, as crianças geralmente apresentam alterações na leitura resultantes de dificuldades no processamento da linguagem, ou seja, na segmentação fonológica e na habilidade para relacionar os símbolos gráficos com os sons correspondentes; essas alterações surgem em decorrência de dificuldades no processamento visoperceptual, ou seja, na habilidade para explorar ordenadamente o material escrito e em realizar um reconhecimento simultâneo dos grafemas que constituem a palavra (análise e síntese visual). Desta forma, existem dois tipos diferentes de alterações cognitivas, o linguístico e o visoespacial, que eventualmente podem resultar na dificuldade ou atraso na aquisição normal das habilidades de leitura.
Para Rabinovitch20; o problema em diagnosticar a criança disléxica fundamenta-se na determinação da qualidade da leitura, das capacidades fundamentais para a leitura que estão em falta ou subdesenvolvidas e na extensão em que se apresentam os comportamentos de leitura relacionados à disfunção neuropsicológica, sendo que, no processo diagnóstico, os profissionais devem utilizar procedimentos que possibilitassem determinar o nível funcional da leitura, o potencial e a capacidade de leitura, a extensão da deficiência em leitura, as deficiências específicas na habilidade de leitura, a disfunção neuropsicológica, os fatores associados e as estratégias de desenvolvimento e recuperação para melhoria do processamento.
Para tanto, é fundamental que sejam utilizados procedimentos que investiguem:
o desempenho da criança em atividades de leitura, escrita e raciocínio lógico-matemático, comparando-o com a idade e a escolaridade do seu grupo-classe e;
o processo cognitivo e o processamento da linguagem/aprendizagem por meio de testes com normas de referência que permitam a análise do padrão do erro apresentado pela criança.
Na intervenção, Alvarez6 refere que qualificar o tipo de dislexia é fundamental porque a aplicação das técnicas terapêuticas vai depender do correto enfoque nas alterações observadas. A autora descreve a importância dos pais no processo terapêutico e que este inclui dinâmicas com exercícios auditivos, visuais e de memória, utilizando-se inclusive programas de computador desenvolvidos com tal objetivo. Para tanto, deve-se contar com um diagnóstico exato, bem cuidado e multidisciplinar, por meio de uma equipe formada por psicólogos, psicopedagogos, neurologistas e fonaudiólogos.
Salles et al.21 referem que a orientação aos pais e professores é parte imprescindível do programa de intervenção, bem como um conhecimento mais aprofundado sobre as necessidades da criança/adolescente resulta em programas de ensino mais condizentes com suas peculiaridades. As autoras salientam ainda que a escola, os profissionais envolvidos no caso e a família devem estar integrados para favorecer o processo de aprendizagem da criança e minimizar seus déficits.
Nastas sugere abordagem multissensorial dirigida e estimulando ambos os hemisférios cerebrais. Podendo utilizar o computador com recursos de autocorreção, sempre que seja de interesse e relevância. A autora salienta que, em um programa de reabilitação devem estar presentes tarefas que desenvolvam:
consciência fonológica - sons e suas características de combinação;
ortografia - uso de palavras chave, distinção entre vogais e consoantes, dígrafos, e demais regras de grafia;
vocabulário - pré-requisito para compreensão, palavras derivadas, sinônimos e antônimos;
gramática - prefixos, sufixos, conjugação verbal;
sintaxe;
compreensão - estratégias de reconhecimento prévio do texto, como leitura de títulos e subtítulos, palavras em destaque, observação de gráficos e figura, enfim, indicadores do conteúdo e contexto do texto a ser lido;
produção de textos - geração de palavras-chave, organização de idéias, coerência, abertura e fechamento;
pontuação - entonação na leitura e escrita.
Caldeira & Cumiotto18 sugerem que a terapia deve ser multissensorial combinando sempre a visão, a audição e o tato, além de se fazer uso de estratégias como: relógio digital, calculadora, gravador, confecção do próprio material de alfabetização, uso de gravuras e fotografias, folhas quadriculadas para a matemática e letras com várias texturas.
Processamento auditivo
Processamento auditivo central se refere aos mecanismos e processos do sistema auditivo responsáveis pelos seguintes fenômenos comportamentais: localização e lateralização sonora; discriminação auditiva; reconhecimento de padrões auditivos; aspectos temporais da audição (resolução temporal, mascaramento temporal, integração temporal e ordenação temporal); desempenho auditivo na presença de sinais acústicos competitivos e desempenho auditivo para sinais acústicos degradados (American Speech Hearing and Language Association3).
Sendo o processamento auditivo um conjunto de habilidades específicas das quais o indivíduo depende para interpretar o que ouve, cabe salientar que tais habilidades são mediadas por centros auditivos localizados no tronco encefálico e no cérebro. Podem ser subdivididas nas seguintes áreas gerais: atenção, envolvendo habilidades relacionadas à maneira pela qual o indivíduo atenta à fala e aos sons do seu próprio ambiente; discriminação, envolvendo habilidades relacionadas à capacidade de distinguir características diferenciais entre os sons; associação, envolvendo habilidades relacionadas à capacidade de estabelecer correspondência entre o estímulo sonoro a outras informações
já armazenadas de acordo com as regras da língua; integração, envolvendo habilidades relacionadas à união de informações auditivas com informações de diferentes modalidades sensoriais; prosódia, envolvendo habilidades relacionadas à associação e à interpretação dos padrões suprasegmentais, não-verbais, da mensagem recebida, como ritmo, entonação, expressão facial, ênfase e contexto; e organização de saída, envolvendo um conjunto de habili-dades de seriação, organização e evocação de informações auditivas para o planejamento e emissão de respostas6.
Para uma adequada intervenção é fundamental que sejam avaliadas as habilidades de processamento auditivo permitindo o diagnóstico do processo gnósico auditivo do indivíduo23. A avaliação auxilia na evolução de um indivíduo em um programa de reabilitação, identificando uma desordem do processamento auditivo e propiciando o treinamento auditivo verbal24.
Na avaliação podem ser utilizados testes dióticos, testes monóticos e testes dicóticos, sendo que os testes dióticos não avaliam as orelhas separadamente; não utilizam fones e os estímulos utilizados podem ser a própria voz do avaliador ou objetos sonoros e são apresentados simultaneamente para ambas as orelhas25.
Em relação aos testes monóticos, estes são realizados com uma mensagem-alvo e uma mensagem competitiva na mesma orelha simultaneamente, por meio de um fone com apresentação monoaural dos estímulos sonoros e podem ser citados: teste de frases com mensagem competitiva ipsilateral: SSI em português; teste de fala filtrada e teste de fala com ruído branco26.
Os testes dicóticos são os que utilizam o estímulo principal em uma orelha e a mensagem competitiva na orelha contralateral simultaneamente, por meio de fones. Entre estes cita-se o Teste Random GAP Detection Test-RGDT27.
As alterações da percepção auditiva podem ser classificadas quanto ao grau e ao tipo. Quanto ao grau, estas podem ser classificadas em normal, leve, moderada ou grave. Quanto ao tipo, podem ser classificadas como: problema de decodificação; codificação e organização, sendo que um mesmo indivíduo pode ser classificado em mais de uma das categorias de alterações28.
Entre as manifestações comportamentais indicativas da presença de um distúrbio do processamento auditivo podem-se citar os distúrbios articulatórios; vocabulário inespecífico e ambíguo; sintaxe simplificada, erros e concordância; dificuldade na aprendizagem da leitura e escrita; distúrbios na aquisição de linguagem; dificuldade em manter a atenção a estímulos puramente auditivos, pedindo constantes repetições; tempo de latência aumentado para emissão de respostas e/ou emissão de respostas inconsistentes aos estímulos auditivos recebidos; dificuldade em compreender conceitos verbais e relacioná-los a conceitos visuais e/ou idéias abstratas; discriminação dos sons de fala prejudicada na presença ou não de estímulos simultâneos ou competitivos; falha na memorização das mensagens ouvidas; dificuldades na organização e sequencialização de estímulos verbais e não-verbais e aprendizagem insuficiente quando restrita ao canal auditivo29.
Relação entre processamento auditivo e alterações de linguagem oral e escrita-dislexia
O desenvolvimento do processamento auditivo depende da integridade do sistema auditivo ao nascimento e da experienciação acústica no meio ambiente. O indivíduo ao vivenciar sons verbais e não-verbais no seu meio ambiente vai organizando estas informações auditivas que se manifestam como diferentes habilidades auditivas. Desta forma, salienta-se a importância do processamento auditivo no aprendizado da comunicação humana e, quando ocorre prejuízo na habilidade de ouvir, também podem ocorrer dificuldades com a linguagem receptiva e expressiva4.
Conforme Alvarez & Zaidan29; a leitura e a escrita são as formas mais elevadas da linguagem, que exigem um processo linguístico anatômico e neuropsicológico altamente complexo, sendo a dificuldade de aprendizagem para as habilidades de leitura e escrita denominadas de dislexia do desenvolvimento que também pode coexistir com dificuldades na linguagem oral, cálculo, atenção, memória e integração perceptivo-motora.
Há a possibilidade de presença de mudanças significantes nas habilidades de processamento auditivo binaural à medida que a criança normal amadurece. Indivíduos com distúrbios específicos de linguagem podem apresentar atraso em sua habilidade para utilizar a informação acústica binaural de modo dinâmico30.
Sauer et al.31 aplicaram os testes dicóticos de dígitos, dicóticos de dissílabos alternados e dicótico não verbal em 36 crianças, sendo 18 com dislexia e 18 do grupo controle, bem como realizaram avaliação por neuroimagem através de SPECT (Single Photon Emission Computed Tomography) e chegaram a conclusão que as crianças com dislexia apresentaram alterações do processamento neurológico central e que estas podem ser detectadas tanto em testes específicos do processamento auditivo quanto em exames funcionais de imagem como o SPECT.
Pestun32 afirma que a memória sequencial íntegra é imprescindível para o êxito da integração fonema-grafema e, conseqüentemente, interfere com a leitura que depende da lembrança da ordem temporal dos fonemas e da ordem espacial dos grafemas. A autora refere, ainda,
que para a realização de uma leitura com compreensão adequada é necessária a integridade do sistema nervoso periférico e central, bem como certos pré-requisitos fundamentais, como atenção seletiva e sustentada, discriminação e percepção auditiva, memória de curto e longo prazo e consciência fonológica, habilidades essas avaliadas no conjunto de testes especiais do PA.
Garcia et al.33; ao verificarem possíveis associações entre as habilidades de consciência fonológica e de processamento auditivo em crianças com e sem distúrbios de aprendizagem, com idades entre 9 e 11 anos, utilizando os testes de localização sonora, memória sequencial para sons verbais e não-verbais, teste de inteligibilidade de fala - PSI e provas de consciência fonológica, observaram que no grupo de crianças sem dificuldades na aprendizagem houve indícios que quanto melhor o desempenho nas provas citadas, melhor o desempenho na consciência fonológica. Já no grupo de crianças com dificuldade na aprendizagem houve associação predominante entre as provas de síntese fonêmica, rima, segmentação fonêmica, exclusão fonêmica e transposição fonêmica e PSI MCC e MCI em diferentes relações fala/ ruído, indicando que, pobre performance entre habilidades auditivas, refletiram pobre performance nas provas de consciência fonológica. Os autores concluíram que é de fundamental importância a avaliação de processos de consciência fonológica e de processamento auditivo neste tipo de população.
Tallal34 relacionou a dificuldade na coordenação temporal dos sons com os problemas na decodificação fonológica e observou que as crianças com dificuldades fonológicas mais graves reveladas pela leitura ruim das não palavras foram as que tiveram maiores dificuldades na tarefa auditiva.
Kozlowski et al.35; em estudo de caso de um menino com queixa de distúrbio de aprendizagem, realizaram avaliação audiológica básica e de processamento aAuditivo, bem como testes eletrofisiológicos (ABR-Audiometria de Tronco Encefálico e P300-Potencial Cognitivo). Encontraram P 300 com tempo de latência aumentada e desordem de PAC em grau grave (alterações nos processos de codificação, organização e memória, assim como dificuldade para atenção seletiva e fechamento auditivo). Após quatro meses de reabilitação, a desordem passou a ser de grau moderado, com prejuízo mais significativo no processo de organização, não tendo apresentado mais dificuldade para o fechamento auditivo. As autoras concluíram pela efetividade da terapia fonoaudiológica para o desenvolvimento das habilidades auditivas, podendo ser verificada através da avaliação objetiva e comportamental.
CONCLUSÃO
A leitura e escrita são as formas mais elevadas da linguagem e exigem condições linguísticas, anatômicas e neuropsicológicas complexas. Quando ocorre uma dificuldade de aprendizagem para as habilidades de leitura e escrita, estas são denominadas de dislexia do desenvolvimento ou, segundo o DMS-IV, transtorno de leitura, que pode também coexistir com dificuldades na linguagem oral, cálculo, atenção, memória e integração perceptivo-motora.
Assim, o bom desempenho na leitura advém de um adequado equilíbrio entre o desenvolvimento das operações da leitura, decodificação e compreensão e interage com os estágios de desenvolvimento do pensamento e da linguagem.
Para que ocorra sucesso na operação inicial de leitura, na decodificação deverá haver habilidade linguística para transformar um sinal escrito, a letra, em um sinal sonoro, o som, e vice-versa. Associar letras e sons correspondentes, organizar, sequencializar e encadear esta corrente sonora é o caminho percorrido para se apreender a palavra escrita. O disléxico tem dificuldade para associar o símbolo gráfico, as letras, com o som que elas representam, e organizá-los, mentalmente, numa sequência temporal.
Para que as crianças consigam realizar tais tarefas, é fundamental que haja adequado processamento auditivo. Inúmeras alterações encontradas nos testes de processamento auditivo podem indicar dificuldades na organização de eventos sonoros no tempo, dificuldade na memória auditiva de curto prazo e dificuldade em bloquear sons competitivos, sendo que as dificuldades quanto à memória verbal costumam ser outra área de impacto na dislexia, gerando confusões entre nomes semelhantes, muitas vezes provocando situações embaraçosas.
Existem consideráveis evidências correlacionando os distúrbios de aprendizagem, como a dislexia, e o fraco desempenho em vários testes auditivos centrais, assim, a percepção auditiva precisa ser estimulada, pois o desenvolvimento auditivo depende de estímulos constantes e progressivos, favorecendo a compreensão de sons verbais, não-verbais e das informações supra-segmentares presentes na fala.
Qualquer que seja a escolha da intervenção, o que tem que ser enfatizado é que estas crianças merecem e necessitam de um investimento pedagógico para a estimulação de habilidades de linguagem/aprendizagem e processamento auditivo e, para que isto ocorra, os profissionais envolvidos devem conhecer as habilidades e as dificuldades apresentadas pela criança no processo diagnóstico para poder traçar o plano terapêutico e orientar pais e professores, visando à melhora no uso das habilidades e funções da linguagem e o desenvolvimento de estratégias que possibilitem a melhora no desempenho desta criança nas tarefas escolares que exigem leitura e escrita.
Para tanto, o trabalho deve ocorrer com enfoque interdisciplinar, envolvendo os profissionais, a criança, a família e a escola.
REFERÊNCIAS
1. Zorzi J. Crianças disléxicas: tratamento com fono ajuda na escola. Revista da Fonoaudiologia. Conselho Regional de Fonoaudiologia 2ª Região 2006;68(jul/ago). [ Links ]
2. Katz J, Ivey RG. Tratado de audiologia clínica. São Paulo:Manole;1999. [ Links ]
3. American Speech Hearing and Language Association. Task Force on Central Auditory Processing Consensus Development. Central auditory processing: current status of research and implications for clinical practice. Am J Audiol. 1996;5:41-54. [ Links ]
4. Pereira LD, Cavadas M. Processamento auditivo central. In: Frota S, editor. Fundamentos em fonoaudiologia-audiologia. Rio de Janeiro:Guanabara Koogan; 1998. p.135-46. [ Links ]
6. Alvarez AMM. Dislexia. Que palavra é essa? In: Jornal Zero Hora-ZH Escola. 2002;39(edição: 13.507):1. [ Links ]
7. Bradley L, Bryant PE. Categorising sounds and learning to read a causal connection. Nature. 1983;301:419-21. [ Links ]
8. Estill CA. Dislexia, as muitas faces de um problema de linguagem. Disponível emm: http://www.andislexia.org.br/hdl12_1.asp Acesso em: 13/09/2005. [ Links ]
9. Galaburda AM, Kemper TL. Cytoarchitectonic abnormalities in developmental dyslexia: a case study. Ann Neurol. 1979;6:94-100. [ Links ]
10. Galaburda AM, Cestnick L. Dislexia del desarollo. Rev Neurol. 2003;36 (supl.1):13-23. [ Links ]
11. Vogler GP, Defries JC, Decker SN. Family history as an indicator of risk for reading disability. J Learn Disab. 1985;18:419-21. [ Links ]
12. Nopola-Hemmi J, Myllyluoma B, Voutilainen A, Leinonens S, Kere J, Ahonen T. Familial dyslexia: neurocognitive and genetic correlation in a large Finnish family. Rev Med Child Neurol. 2002;44(9):580-6. [ Links ]
13. Pennington BF. Diagnósticos de distúrbios de aprendizagem: um referencial neuropsicológico. São Paulo:Editora Pioneira; 1997. [ Links ]
14. Olson RW, Wilse B, Conners FA, Rack JP. Specific deficit in component reading and language skills: genetic and environmental influences. J Learn Disab. 1990;22:339-48. [ Links ]
15. Berger M, Yule W, Rutter M. Attainment and adjustment in two geographical areas: the prevalence of specific reading retardation. Br Psychiatr. 1975;126:510-9. [ Links ]
16. Ellis AW. Leitura, escrita e dislexia: uma análise cognitiva. Porto Alegre:Artes Médicas;1995. [ Links ]
17. Boder E. Developmental dyslexia: a diagnostic approach based on three atypical reading-spelling patterns. Rev Med Child Neurol. 1973;15(5):663-87. [ Links ]
18. Caldeira E, Cumiotto DMLO. Dislexia e disgrafia: dificuldades na linguagem. Rev Psicopedagogia. 2004;21(65):127-34. [ Links ]
19. Ardila A. Transtornos específicos del aprendizaje. In: Rosselli M, Ardila A, Pineda D, Lopera F. Neuropsicología infantil: avances en investigación, teoría y práctica. 2nd ed. Medellín:Prensa Creativa;1997. p.155-72. [ Links ]
20. Rabinovitch RD. Reading and learning disabilities. New York:Basic Book;1959. [ Links ]
21. Salles JF, Parente MAM, Machado SS. As dislexias de desenvolvimento: aspectos neuropsicológicos e cognitivos. Interações. 2004;9(17). [ Links ]
22. Nastas SS. Dislexia em adultos. Disponível em: http://www.andislexia.org.br/artigo-AND-4.doc 2006. [ Links ]
23. Pereira LD. Avaliação do processamento auditivo central. In: Lopes Filho OC, editor. Tratado de fonoaudiologia. São Paulo: Roca;1997. p.109-26. [ Links ]
24. Carvallo RMM. Processamento auditivo: avaliação audiológica básica. In: Pereira LD, Schochat E. Processamento auditivo central: manual de avaliação. São Paulo:Lovise;1997. p.27-35. [ Links ]
25. Pereira LD. Processamento auditivo central: abordagem passo a passo. In: Pereira LD, Schochat E, editores. Processamento auditivo central: manual de avaliação. São Paulo:Lovise;1997. p.49-59. [ Links ]
26. Pen MG, Mangabeira-Albernaz PL. Desenvolvimento de testes para logoaudiometria: discriminação vocal. Lima: Congresso Pan Americano de Otorrinolaringologia y Broncoesofasologia. Anales; 1973. p.223-6. [ Links ]
27. Keith RW. Random gap detection test. St. Louis:Auditec;2000. [ Links ]
28. Pereira LD. Identificação de desordem do processamento auditivo central através de observação comportamental: organização de procedimentos padronizados. In: Schochat L, editor. Processamento auditivo. São Paulo:Lovise;1996. p.43-56. [ Links ]
29. Alvarez A, Zaidan E. Processamento auditivo central: novas abordagens em habilitação. In: Dislexia, cérebro, cognição e aprendizagem. São Paulo:Frontis Editorial;2000. [ Links ]
30. Musiek FE. Avaliação comportamental do sistema nervoso auditivo central. In: Musiek FE, Rintelmann WF, editores. Perspectivas atuais em avaliação auditiva. São Paulo:Manole;2001. p.377-9. [ Links ]
31. Sauer L, Pereira LD, Ciasca SM, Pestun M, Guerreiro MM. Processamento auditivo e SPECT em crianças com dislexia. Arq Neuro Psiquiatr. 2006;64(1). [ Links ]
32. Pestun MSV. Análise funcional discriminativa em dislexia do desenvolvimento [Dissertação de Mestrado]. Campinas: Universidade Estadual de Campinas;2002. [ Links ]
33. Garcia VL, Campos DBKP, Padovani CR. Associação entre a avaliação de habilidades de consciência fonológica e de processamento auditivo em crianças com e sem distúrbio de aprendizagem. Rev Fono Atual. 2005;31(8):4-11. [ Links ]
34. Tallal P. Auditory temporal perception, phonics and reading disabilities in children. Brain and Language. 1980;9:182-98. [ Links ]
35. Kozlowski L, Wiemes GMR, Magni C, Silva ALG. A efetividade do treinamento auditivo na desordem do processamento auditivo central: estudo de caso. Rev Bras Otorrinolaringol. 2004;70(3). [ Links ]
Correspondência:
Monique Antunes de Souza Chelminski Barreto
SQSW, 304, Bl I, apt 208
Brasília, DF - CEP 70673-409
E-mail:nikebarr@hotmail.com
Artigo recebido: 12/12/2008
Aprovado: 2/3/2009
Trabalho realizado no Consultório particular da autora, Brasília, DF.