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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641Xversão On-line ISSN 2175-3601

Rev. bras. psicanál v.41 n.3 São Paulo set. 2007

 

RESENHAS DE LIVROS

 

 

Belinda Mandelbaum*

Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 

Transmissão transgeracional e a clínica vincular. Angela Piva (org.). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, 288 p.

Colaboradores: Angela Piva, Ana Cristina Salaverry Chemin, Juliano Fontanari, Maria Luisa Dalanhol da Silva, Patrícia Simone Hellfeldt Becker, Ariane de Freitas Severo, Viviane Thomazi, Lucy Ghiardini Bonazzi, Jussara Neves Dariano e Karla Moraes Ferraro

A vida são deveres, que nós trouxemos para fazer em casa.
Mário Quintana

O livro reúne artigos de psicanalistas que, em Porto Alegre, organizam-se como um grupo de estudo e ensino no Instituto Contemporâneo de Psicanálise e Transdisciplinaridade (ICPT). Seus estudos orientam-se para o campo da clínica vincular, cujos aportes teóricos desenvolveram-se a partir dos anos 1980, principalmente na França, com René Kaës, Abraham e Torok e Olga Corrêa, entre outros, e na Argentina, com Isidoro Berenstein, Janine Puget e Silvia Gomel, para também citar alguns expoentes. Angela Piva, presidente do ICPT, situa na Introdução a clínica vincular como um desenvolvimento da psicanálise ante as limitações colocadas pelas teorias e técnicas cujo objeto de atenção e intervenção é a vida intrapsíquica dos pacientes. Diz ela: “Inúmeras vezes me via limitada teórica e tecnicamente para abordar diversas problemáticas que remetiam ao contexto no qual esses pacientes estavam inseridos e do qual eram reféns. Necessitava de algo mais” (p. 17).

As reflexões desenvolvidas no campo da clínica vincular enfatizam o caráter multidimensional de constituição do sujeito: não apenas sujeito do inconsciente, mas também sujeito social, sujeito da história e sujeito do vínculo. O foco de atenção recai sobre o sujeito que ganha existência e se dá a conhecer na presença de outro sujeito, com quem estabelece um vínculo que não se reduz à repetição das formas de relação de objeto existentes em seu mundo interno, constituídas ao longo de sua história singular.

De acordo com a clínica vincular, quando os sujeitos entram em relação, o vínculo que se estabelece, ainda que contenha elementos de repetição, é um acontecimento novo, com características inéditas e irredutíveis às subjetividades individuais, e modifica os sujeitos implicados. Mais do que isso, o vínculo os constitui. Cria os seus sujeitos e cria o seu próprio inconsciente, que só podemos examinar quando os sujeitos estão na presença do outro. Por isso esses aportes se desenvolveram a partir da observação de casais, famílias e grupos; para dar conta de fenômenos não acessíveis a uma psicanálise mais afeita ao campo do individual.

Contribuíram para o desenvolvimento dessas novas formas de trabalho não apenas todo o desenvolvimento psicanalítico anterior, mas também os aportes da etnologia, da teoria da comunicação humana e dos estudos de grupos. Cabe não esquecer que é o próprio Freud quem inicia Psicologia de grupo e análise do ego dizendo que toda psicologia individual é a um só tempo psicologia social, e que não é possível pensar o ser humano fora das relações com outros seres humanos. Assim, talvez sejamos mais exatos se situarmos a clínica vincular como um desdobramento no interior do campo da psicanálise, herdeira de idéias freudianas que seus autores souberam articular com outros campos do saber e em outros enquadres terapêuticos. A própria clínica vincular contém elementos de repetição e criação. Ela nasceu numa rede de saberes e teorizações que enlaça de formas novas e criativas, a partir de novas demandas apresentadas pela clínica psicanalítica de crianças, adolescentes, casais, famílias e grupos.

Na rede de relações nas quais nos constituímos como sujeitos, transmitimos e recebemos continuamente mensagens conscientes e inconscientes. As redes são vias de transmissão e os sujeitos são a um só tempo ativos e passivos no que transmitem e no que recebem. Transmitimos mensagens que criamos e também as que nos atravessam, das quais somos mensageiros, em geral sem saber. Somos depositários de mensagens alheias, que recebemos a partir de nossas formas singulares de compreensão. A clínica vincular, ao observar os processos em operação nos vínculos familiares, pôde descrever formas de transmissão psíquica que se dão entre as gerações e são constituintes dos sujeitos implicados. Nessa perspectiva, cada sujeito é herdeiro de experiências anteriores, que tanto podem enriquecê-lo, contribuindo para o seu desenvolvimento, como podem atá-lo a histórias e demandas de outros, das quais se torna prisioneiro.

Todos esses processos se dão como obrigação e como urgência. As gerações têm urgência de transmitir principalmente aquilo que não puderam elaborar, representar ou pensar. O que urge transmitir é da ordem do traumático, do que foi excessivo, com a esperança de que as gerações seguintes possam transformar em linguagem simbólica, em representações passíveis de serem pensadas. Diz Angela Piva, na Introdução:

O processo da transmissão constitui-se numa obrigação de trabalho psíquico, tanto para o indivíduo quanto para o grupo, e se pode dar através de um trabalho de elaboração, de ligação, quando uma geração consegue transformar aquilo que recebe, apropriando-se do herdado, desde sua própria vivência e perspectiva. Tal forma de trabalho possibilita que cada geração possa situar-se em relação às outras; permite inscrever cada sujeito em uma cadeia, como pertencente a um grupo, dono de uma história e de um lugar. Num outro extremo, quando o herdado é apenas acatado, sem elaboração, sem ligação, estamos no território da compulsão à repetição, da alienação. O herdado passa a ser, então, como um destino a cumprir (p. 23-24).

O livro está organizado como uma rede de trabalhos que dialogam entre si sobre a temática da transmissão transgeracional, cada um se debruçando sobre uma parte em meio à complexidade do todo. Os capítulos estão distribuídos em três blocos: “O que se transmite?”, “As vias de transmissão” e “A transmissão transgeracional e a clínica vincular”,ainda que cada uma não se desenrede em nenhum momento das outras. Se o olhar da clínica vincular foca em especial a transmissão de conteúdos que não puderam alcançar o estatuto da representação, as vias de transmissão serão aquelas dos significantes brutos, inscritos nos sintomas, na linguagem corporal, no não-dito, nas formas da trama fantasmática e das identificações.

A clínica dos autores permeia todo o livro, em um rico conjunto de vinhetas de material extraído principalmente de sessões com famílias. Aprendemos muito ao determo-nos em cada uma das partes. O que se transmite?Transmitem-se informações de como devemos ver o mundo, a linguagem, teorias sobre os problemas e sobre as soluções, e também as culpas – na forma de dívidas impagáveis e identificações melancólicas –, os ideais – convertidos em mandatos –, os mecanismos de defesa e as formas de subjetivação, modos operativos que funcionam, nas palavras de Juliano Fontanari, como “depósitos mnêmicos de eventos ou identificações com figuras primevas que, em algum momento, sofreram esses eventos […] Descrevemos eventos que constroem subjetividades, assim como o parricídio mergulhou nossa mente no Édipo e na culpa” (p.68-69). Somos feitos dessas transmissões. Ana Cristina Salaverry Chemin nos lembra que é

o desejo materno o que funda a atividade do psiquismo […] [Piera Aulagnier] dá o nome de violência primária a essa necessária intrusão narcísica materna, na qual a mãe impõe e transmite à psique de seu frágil bebê seus desejos e histórias, como porta-voz e tradutora das experiências vividas pelo infans. Contudo, […] apenas durante uma fase da existência essa violência é legítima, necessária, fundamental para a constituição do psiquismo. Quando excede, deixa de ser constitutiva para ser algo que invade e impede o desenvolvimento, aprisionando o indivíduo (p. 37-38).

Os trabalhos contemporâneos sobre a transmissão transgeracional mostram que o excessivo, o invasivo e o impeditivo aprisionador são o não-dito, o não-pensado, o negativo, o que foi excluído do pensamento nas gerações anteriores e aparece no sujeito atual sob a forma de atuações, sintomas, perturbações psíquicas. O sujeito, em cada geração, é convocado, sob essas várias formas, a participar de pactos que perpetuam a negação.

Conforme Mara Luiza D. da Silva e Patrícia Simone H. Becker: “Para que os vínculos possam se manter, elementos que não puderam ser reprimidos precisam ser negados, realizando-se então pactos denegativos”.E ilustram a idéia com uma bela citação de Kaës: “De fato, não há apenas cadáveres nas masmorras dos grupos e das instituições. Devemos, além disso, colocar-nos de acordo para esquecer que temos masmorras, a fim de não nos vermos precisando pensar que contêm dejetos e cadáveres”(p. 111).O tratamento vincular viabilizaria, segundo essas autoras, “a representação dos afetos que, não encontrando lugar no espaço intersubjetivo, eram transmitidos transgeracionalmente pelo negativo. A transferência no tratamento permite a criação de um lugar para a expressão desses vazios de representação, desses bolsões de intoxicação” (p. 116). É o que ilustram as palavras de Juliano Fontanari a propósito do trabalho clínico com uma mãe e uma filha com vários familiares mortos: o pai, um tio, uma filha que morreu pequena.

Os cadáveres, com titubeio e relutância estavam se dissolvendo em palavras… Quem é o homem que não enterra os mortos, não carrega o esquife? Essa é a figura paterna da família… Não sei para onde vamos, mas percebo que carrego um esquife. Digamos que não sei se chegarei ao cemitério. E quem é [a filha]? Ela é a menina dentro do baú, é o desejo da avó de ter a filha viva… É o pai morto presente para o olhar da mãe… É a mãe irritada e depressiva com a enormidade de mortos e partos a cada ano. Mas também é o esforço para ter uma voz (p. 87-88).

Com isso entramos na segunda parte do livro, sobre as vias da transmissão transgeracional. No primeiro texto, Ariane de Freitas Severo alça a identificação ao estatuto de via régia da transmissão psíquica. Identificados com o outro ou com o desejo do outro, cada um de nós é um condensado de interiorizações, estabelecidas primordialmente dentro de nossa vida em família. Ariane ressalta em seu trabalho a identificação com os mortos da família e a expectativa do grupo familiar de que a voz do sujeito, nas palavras de Piera Aulagnier, “retome o que enunciava uma voz que se extinguiu e que ela substitua um elemento morto e assegure a imutabilidade do conjunto […] O recém-chegado se engaja […] a repetir o mesmo fragmento de discurso” (p. 133).

O artigo seguinte, de Viviane Thomazi, distingue nos processos de transmissão psíquica o que pode ser introjetado pelo sujeito – que busca manejar o conteúdo recebido através do jogo, da fantasia e de vários outros recursos inconscientes ou pré-conscientes, promovendo um encontro progressivo em direção à consciência – do que é incorporado como coisa, no lugar do objeto perdido. Nesse processo, evidencia-se a desmetaforização, e, ao contrário do que ocorre na introjeção, o sujeito toma ao pé da letra, concretamente, o que deveria ser entendido no sentido figurado. O resultado é a ausência de representações, ou melhor, a presença de representações incomuns, incongruentes, estranhas ao sujeito, patológicas. Diz a autora:

Todas as manifestações dessas fantasias de incorporação obedecem ao princípio do prazer, são dissimuladas, secretas para o sujeito. Elas ora tendem a manter a vida do objeto de amor perdido em um estado de morto-vivo no interior do sujeito, ora correspondem ao objeto em estado de moribundo ou de morto, enquanto as recordações vividas anteriormente com ele não estão disponíveis, e o sujeito nem pensa nisso… Em alguns casos, as fantasias de incorporação não conseguem manter as perturbações dentro da esfera psíquica e psicomotora e então podem aparecer numa catástrofe fisiológica, que denominamos de transtornos psicossomáticos (p. 154).

Outra via de transmissão do psiquismo entre as gerações é o discurso familiar, entendido, segundo Jussara Neves Dariano, como

recurso de transmissão transgeracional que se oferece à escuta psicanalítica, com configurações significativas e sentidos particulares, dependentes da cultura e do grupo representado; no caso em questão, do grupo familiar. Assim, ao pensarmos a família como estrutura de denominação de parentesco, estaremos pensando em conexões estabelecidas entre as psiques que, pelo relato, expressarão sentidos e significados partilhados no grupo (p. 187).

Será a ordem das relações entre os falantes e suas posições no grupo, perpassando as gerações, que determinarão o conteúdo das mensagens. Como manifestações da língua e da estrutura familiar, e como formas capitais de transmiti-las, ressaltam as diversas modalidades do discurso: o paradoxal, o sagrado, o autoritário da verdade única, o discurso vazio. No discurso familiar está a “história vincular ancestral, em busca do sentido que institui as subjetividades” (p. 210). Angela Piva, ao tratar dos fundamentos teórico-técnicos para uma psicanálise vincular, cita Kaës a propósito do discurso familiar sob a égide de pactos denegativos:

quando em um vínculo prevalece o pacto denegativo, o discurso é “monofônico”, tende a escutar somente uma voz, que repete sempre o mesmo, só autoriza as mesmas representações e só reconhece o mesmo sentido. Exige que cada um fale e experimente como uma só voz (p. 218).

A terceira parte, “A transmissão transgeracional e a clínica vincular”,apresenta os fundamentos teórico-técnicos da psicanálise vincular. Nesse enquadre específico, o outro em presença configura um campo no qual os vínculos se impõem como material privilegiado da intervenção terapêutica. Cada encontro com o outro, segundo Berenstein, mobiliza transferências e contratransferências, mas não só: também são produzidas interferências, que dizem respeito ao efeito produzido pela presença do outro e que não podem ser reduzidos ao previamente inscrito.

Angela Piva, citando Silvia Gomel, aponta três destinos possíveis para essa presentificação: o golpe catastrófico (excesso), a repetição ou o inédito. A análise agilizará essas possibilidades, através da escuta dos sentidos da repetição, em busca da criação. O objeto da clínica vincular é o negativo, o não-representado, o recusado, aquilo da transmissão transgeracional que retorna na forma do sintoma, visto aqui como produção intersubjetiva. O enquadre vincular promove “a aparição e a mobilização de formações e processos que têm sua origem no laço familiar, justamente o que em um enquadre individual não adquire nitidez” (p. 224). O inconsciente aqui se manifesta através dos processos associativos grupais, que promovem não uma pluralidade de discursos, mas um trabalho de interdiscursividade que fornece aos sujeitos alguns enunciados para reflexão que muitas vezes não estavam disponíveis em sua capacidade figurativa. Essa

polifonia […] à medida que faz frente aos pensamentos simplificadores (pensamento único), acaba também por introduzir o sujeito em uma experiência de incerteza: afinal, “quem fala?”, “quem sonha?”, “quem eu carrego?”, “para quem dirijo o meu discurso?”, “que lugar ocupo nas fantasias do outro?”, “que lugar eu designo para o outro?”, “possuo esses ‘outros’ ou sou – eu mesmo – uma possessão deles? (p. 226)

A consciência que assim se amplia diz respeito ao contato de cada um com sua pertinência a um conjunto, elo numa cadeia que o atravessa de geração a geração.

A clínica vincular, como dissemos no início, é parte do campo psicanalítico. Herdeira de suas concepções, ampliou-as para dar lugar a novas dimensões, em particular aquelas que dizem respeito ao campo da intersubjetividade. Gerações de psicanalistas são depositários de saberes e trabalhos psíquicos ainda por realizar. Cabe às instituições psicanalíticas não aprisionar as novas gerações no repetido, e permitir que a transmissão se faça com abertura para a novidade. Este livro, produzido em conjunto por psicanalistas brasileiros, é sinal de que temos entre nós espaços para a criação de pensamentos novos que consideram seriamente o que foi produzido pelos antecessores e abre novas portas de experiência e pensamento às novas gerações.

 

 

* Psicanalista, professora do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho no Instituto de Psicologia da USP, onde coordena o Laboratório de Estudos da Família.

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