SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.42 número3ConstruçõesProfessor e artista plástico: comentário à entrevista índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál v.42 n.3 São Paulo set. 2008

 

DIÁLOGO

 

Carlos Fajardo: entrevista*

 

 

Carlos Fajardo, nome de referência da arte brasileira, nasceu em 1941, em São Paulo. Leciona desde 1996 no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da usp. Sobre o trabalho que ele realiza, o crítico Aguinaldo Farias escreveu: “Embora plural, a obra de Fajardo está crivada por uma coerência interna notável no modo como os trabalhos que a constituem tensionam-se mutuamente, bem como ao ambiente em torno. Dispostos a partir de eixos relacionais distendidos entre si até o extremo, cada um dos trabalhos abre-se como uma clareira em meio ao vácuo circundante. A solidão que os alimenta acentua sua autonomia, e eles despontam como corpos [cujas] propriedades intrínsecas, [cujas] qualidades físicas imantam o olhar, despertando-lhe o desejo do tateio e do hábito”.

 

RBP Gostaríamos de ter com você uma conversa como as que já tivemos com vários profissionais de outras áreas uma conversa em que falássemos da sua carreira, da sua visão sobre as artes do mundo de hoje, dos pontos de aproximação ou de afastamento entre arte e psicanálise.

CARLOS FAJARDO Bem, eu sou uma espécie de anfíbio, navego em duas áreas: sou professor e artista plástico. Falaremos das duas?

RBP Claro. Você começou como professor na Escola Brasil, não foi?

FAJARDO Penso que talvez tenha sido até antes. Eu participei de um grupo de arte, o Grupo Rex, em 1966. O meio das artes em São Paulo era muito conservador e o Rex foi uma novidade bem interessante. A Escola Brasil existiu de 1969 a 1970. No Rex, além de mim, estavam Nelson Leirner, José Resende, Geraldo de Barros, Wesley Duke Lee e Frederico Nasser. Três de nós eram artistas mais experientes, mais ou menos com a diferença de uma geração. Um deles era o Geraldo de Barros, um artista que tinha uma história curiosa. Vinha do concretismo paulista, que, em certo sentido, foi o momento em que a arte brasileira começou a ter alguma autonomia. Já o Nelson Leirner tem uma origem ligada ao surrealismo e a Marcel Duchamp, e, finalmente, o Wesley Duke Lee, que foi meu professor, assim como de outros artistas, e trazia o lugar contemporâneo, já que havia feito parte de sua formação nos Estados Unidos, num momento em que Nova York era o pólo das transformações que ocorriam na arte.

RBP Você teve uma grande proximidade com o Wesley Duke Lee.

FAJARDO Enorme. Fui inclusive assistente dele, e foi com ele que comecei a dar aulas na verdade. Bem, vou abrir um parêntese aqui. Estou fazendo um painel para vocês do que era a arte dos anos 60, começando com artistas que divergiam do que acontecia no meio cultural paulistano. Se pensarmos na São Paulo daquela época, veremos que as artes plásticas eram muito dominadas por uma forma de pintura abstrata, por um pensamento europeu que tinha a ver com o tachismo, com o surrealismo e com uma certa forma de abstracionismo cromático e onírico, por um tipo de artista que não tinha nada a ver com o que estava acontecendo no mundo.

No final dos anos 50 e início dos anos 60, houve aqui no Brasil uma transformação na arte que foi importantíssima e que tem a ver com o concretismo, e que foi ainda mais importante no Rio de Janeiro, com o neoconcretismo. Como pano de fundo, surgiram as Bienais em São Paulo. Fator fundamental, pois permitiu cotejar a arte produzida aqui com a arte feita fora daqui.

Para ter uma idéia dessa importância: o Guernica de Picasso estava em exposição. (Não lembro se na primeira ou na segunda Bienal, eu era muito menino.) Foi um contato inacreditável, uma coisa fantástica. Em outra Bienal veio o Max Bill, professor da Escola de Ulm, ligado ao design e à pintura geométrica abstrata européia, que tiveram uma grande influência no Brasil, nos artistas concretistas de São Paulo e mesmo nos neoconcretistas do Rio de Janeiro. É aí que a arte brasileira começa a ter uma autonomia.

Acontece mais ou menos o seguinte: com essa influência, a arte paulista vai ficar muito direcionada por uma certa relação com o design, por uma certa maneira de pensar a arte de uma forma muito mais pública e também mais simplificada , por um certo sentido geometrizante. A arte carioca neoconcretista se volta contra essa utilização, essa transformação da arte em algo pragmático. Eles achavam que havia uma área expressiva importantíssima, negligenciada, e o neoconcretismo vai ser então uma ação, uma reação ao concretismo. Uma reação extremamente benéfica. Dois artistas serão vitais no movimento neoconcreto: Hélio Oiticica e Lygia Clark. Posso dizer que eles iniciaram um tipo de arte reflexiva que vai dar na produção da música popular brasileira, por exemplo, e num tipo de arte que tem muito a ver com a minha geração e com o desenvolvimento posterior das artes plásticas nos anos 1970.

RBP Você teve muito contato com o Hélio Oiticica?

FAJARDO Não tanto, não pessoalmente, mais com a produção dele. Quando entrei na Faculdade de Arquitetura Mackenzie, em 1973 entramos eu e o José Resende , não havia faculdades de artes plásticas. Meu interesse não era em arquitetura, mas em arte. Então fui estudar desenho fora do âmbito da faculdade. Procurei o Wesley, que eu já conhecia; fui ver uma exposição dele. Fiquei interessadíssimo e perguntei se ele poderia me dar aula. Ele disse: “Só dou aula para grupo. Faça um”. E assim foi. Com a proposta dele, criamos o grupo que depois seria o da Escola Brasil, formado por Frederico Nasser, José Resende e Luiz Baravelli. As aulas do Wesley eram uma maravilha, com uma estrutura aberta fantástica. Devo dizer que o meu prazer pelo ensino começou com aquela coisa extremamente estimulante que eram essas aulas. Quando chegou o final do ano, ele disse (o Wesley tem um jeito muito pontual, muito afirmativo de falar): “Agora vocês estão formados, agora acabou. Vão para a vida!”

Depois ele me convidou para ser seu assistente num curso em Ribeirão Preto e eu aceitei. O Wesley levou um plano do curso, deu a aula e aí viajou para uma Bienal no Japão, onde, por sinal, ganhou um prêmio. Eu tive de encarar, sem nenhuma experiência, um curso em que havia pessoas em geral mais experientes do que eu. Acho que aprendi a dar aula foi ali, porque eu não tinha alternativa. Lembro que, quando entrei na sala de aula, eu era a pessoa mais jovem ali dentro. Entrei, sentei e fiquei conversando com as pessoas que estavam em volta de mim. Só no meio do caminho eles perceberam que estavam tendo uma aula.

Faço isso desde então. Meu pensamento de ensino é enfatizar o aprendizado. Eu aprendo, não ensino: esse é o fulcro da Escola Brasil: dar ao aluno a condição de desenvolver seu próprio discurso. Há uma dialética na relação discurso/repertório. Quanto mais você estimula o surgimento de um discurso no aluno, mais ele vai desenvolver seu repertório. O inverso nunca acontece.

Nessa primeira aula, acho que o que eu fiz foi incentivar um discurso espontâneo entre mim e as pessoas, antes de qualquer tipo de pensamento-repertório. Não sei se isso ficou claro, mas, se eu for ensinar alguém, estou passando o meu repertório e não o meu discurso. Estou passando insidiosamente o repertório. Aquilo que eu sei é só repertório; aquilo que eu faço, não. Então, desenvolver o que eu faço no outro, acho que é a base do ensino da arte.

E aí vem uma pergunta óbvia: arte se ensina? Essa é uma questão complexa e dividida em duas partes: primeiro, as palavras se ensina e, segundo, a palavra arte. Afinal de contas, o que é arte? Como ela se transformou? Qual o seu estatuto hoje? Vou guardar essa guardar essa questão porque é complicada, e vou pensar com vocês se a arte se ensina ou não.

Já disse que não estou envolvido em aprendizado, e, portanto, vou mudar a formulação imediatamente: se você consegue aprender arte, isso é como desenvolver um discurso visual sem se impor como modelo. Se formos pensar onde se inscreve essa atividade, veremos que não é na ciência. É claramente na cultura, que se transforma o tempo todo. Fazendo uma projeção lá para trás, quando começou esse tipo de discurso dentro de um campo cultural, chegaremos à Renascença. Segundo o historiador alemão Hans Belting, a arte começou no Quattrocento italiano e terminou nos anos 1960. O início no Quattrocento se deve simplesmente ao desenvolvimento uma nova forma simbólica de discurso: a perspectiva. Quando surgiu a perspectiva, surgiu algo que é realmente um instrumento de discurso inacreditável: a profundidade.

A profundidade é uma superfície plana em que você coloca uma ilusão, coloca alguma coisa que não está lá, coloca uma ausência. O universo simbólico é um universo de substituição, isto é, superfície por profundidade. Mostra-se algo que está no lugar de outra coisa, e é nesse sentido que falo em ausência. Até a Renascença, a linguagem visual era transmitida através de ícones. A partir dali, a arte visual se apresenta com a mesma clareza do discurso verbal, isto é, com o sujeito no primeiro plano, um predicado no segundo e, no fundo, o complemento. Pense na Monalisa, por exemplo: a fantástica mulher com as mãos juntas olhando para a frente com um sorriso enigmático. Ela é sujeito e tem um predicado, que é a cidade atrás, o caminho para a cidade, o rio, e no fundo está o complemento, que é a paisagem, uma montanha. Por isso usei a palavra discurso: porque, se tenho a relação sujeito, predicado e complemento, tenho um sintagma, ou seja, a estrutura básica de uma linguagem.

Ocorre que durante muito tempo as artes visuais ficaram sujeitas a esse discurso da profundidade. Não vou contar a história de sua derrocada, de sua transformação, mas vocês podem imaginar que de alguma forma o cubismo elimina a profundidade. Digo isso porque esse discurso formado na Renascença é o que nos permite dizer que estamos presentes num discurso abstrato e que, portanto, estamos dentro da cultura. Delacroix costumava dizer, em relação à fotografia, que ela nos permitia ter um dicionário visual do mundo: dicionários são coisas da cultura e não da natureza. Se você pensar no que prevaleceu na arte, dá para chamar de arte até hoje. É uma reflexão sobre os procedimentos culturais o que nós fazemos a cada instante.

Então, voltando à experiência da Escola Brasil, havia a consciência de que esse aprendizado está na troca de experiências efetivas com o mundo, no aqui-e-agora. A Escola Brasil tinha consciência de que esse aprendizado está no fato de a troca se dar entre iguais. Então, eu não tenho nada para ensinar; tenho é para aprender e para trocar. Esse é o pensamento que foi realmente conseqüente eu até diria: um pensamento incrível! no final dos anos 60. E é preciso levar em conta que o mais velho de nós tinha 27 anos. Já no Grupo Rex, anterior à Escola Brasil, nós duvidávamos da relação comercial que uma galeria mantém com o comprador, através de intermediários. No Rex nós não tínhamos intermediários, os contatos eram diretos. O Rex acreditava firmemente que tínhamos um papel cultural a desempenhar. Nós convidamos o Flávio de Carvalho para fazer conferências e outras pessoas também, e havia um grande aquecimento em termos de procedimento cultural.

Só para fixar a idéia de discurso, isto é, em que momento se formou um discurso através da profundidade: ela permite traçar um paralelo entre o discurso escrito e o visual. Vou falar um pouco de quando começou a haver “fissuras fenomenológicas”, para brincar com a expressão da Rosalind Krauss nesse procedimento.

Há um problema grave que vai surgir aí com um teórico do ilusionismo na época do Kant, o Gotthold Lessing [1729-1781], que escreveu um texto chamado Laocoonte: Um ensaio sobre os limites da pintura e da poesia. Ele tem uma idéia inacreditável é brilhante, maravilhoso. Existe uma escultura romana do mito que representa Laocoonte. Vou contá-lo porque a descoberta disso é muito curiosae engraçada. Em Florença, havia um agricultor que estava cavando um buraco para plantar e bateu em alguma coisa. Viu que era uma escultura de mármore que estava ali. Ele foi até a cidade, contar ao prefeito o que tinha descoberto, e o encontrou almoçando com Michelangelo. Michelangelo disse: “Opa! Uma escultura de mármore! Quero ver!”Era o Laocoonte. Mas faltava uma mão, um braço, e então resolveram fazer um concurso entre os artistas e arquitetos da época para desenhar o braço que faltava. Cada um tinha uma opinião sobre a posição do braço, e eles discutiram até decidir por uma delas. O braço verdadeiro foi encontrado em 1905, num antiquário em Roma, e quem tinha razão sobre a posição da mão era Michelangelo.

Bem, isso não tem nada a ver com a história. O que tem a ver é o Lessing. Ele vai pegar do Virgílio sobre o mito do Laocoonte, que trata da invasão de Tróia. Laocoonte vê os invasores construírem um cavalo de madeira e resolve levá-lo para Helena de Tróia. Acontece que a deusa Hera percebe isso e pede a Poseidon, o deus do mar, que mande uma serpente gigante para acabar com Laocoonte e seus filhos. Mas vamos voltar ao Lessing. Ele diz no seu livro: “Puxa vida, esta escultura não tem como contar esta história”. Quer dizer, a idéia de que a profundidade pode contar uma história vai para o brejo.

Como seria possível contar a história? Porque a escultura é só espacial, enquanto o texto é temporal. O texto conta uma história e a escultura, não. O Lessing vai dizer: a escultura e a pintura têm de tratar de um momento mais importante, idéia que sobreviverá até, por exemplo, aquele fotógrafo francês maravilhoso, o Cartier-Bresson, autor de um livro que é também o instante mais importante. Então, a escultura, a cultura, o desenho, a gravura etc. ficaram sujeitas antes à questão da expressividade. A música, o teatro etc. estão em outro campo. Esse preconceito deixou de existir nos anos 60, quando a temporalidade voltou a operar dentro do universo da arte. Eu sou um artista que mexe com a temporalidade. Não faço pintura, escultura nem gravura. Se bem que posso fazer qualquer uma dessas coisas, mas não é exatamente o que me interessa.

Agora posso falar um pouco mais dos anos 60 e explicar por que o Arthur Danto disse… O Danto é um historiador e filósofo americano que disse que a arte terminou no momento em que Andy Warhol, em 1963, fez uma exposição que era uma encenação. Ele colocou numa exposição uma caixa de um tipo de Bombril que existe nos Estados Unidos, vendido no supermercado. A grande questão é: aquilo é arte ou aquilo não é arte? Se é, aquilo expande o universo da arte, e se não é, como é que aquilo me impressiona tanto? Essa pergunta do Arthur Danto levou as pessoas a considerarem que aquilo não era arte. Ou que era arte, mas de outro tipo.

Esse é o ponto que estamos vivendo atualmente: é arte, mas é outra arte, não essa do Lessing e muito menos a do Brunelesco. O que se pratica hoje não é arte. Então, vamos ter de arrumar um outro nome para dizer aquilo que fazemos hoje, e o melhor que eu posso dizer é que é arte, mas é outra. Aí podemos discutir que arte é essa que estamos fazendo. Mas o mais importante é que o Lessing não estava certo: ela é arte da temporalidade e da expressividade.

RBP Como é para você a questão da representação?

FAJARDO O signo é o elemento inicial de linguagem, e aqui podemos nos lembrar de Pierce. Os signos são de vários tipos e se manifestam de diferentes formas. O primeiro signo que existe é o icônico. Só que, antes de falar do signo icônico, vou lembrar outra coisa interessante, para estabelecermos nossa base de entendimento. Estamos nós dois aqui, um olhando para o outro, e estamos nos vendo em termos de fenômenos do mundo. Quando eu vejo você entrar no meu cérebro, vejo uma outra coisa. Não é apenas um fenômeno: eu vejo um complexo que é um referente. Você dentro, referente para o meu cérebro, e dentro de uma informação ou de um universo que tenho no meu cérebro. Esse referente vai se transformar num significante, e eu vou colocar você dentro de uma moldura de relações visuais ou intelectivas que tenho. Mas o significante não me garante nada ainda. Vou ter de pegar uma motocicleta, um Hermes, um carteiro dentro de mim, e ir em busca de um significado.

Os significados são independentes. Existem os meus, os seus. São um conjunto, uma rede ou uma série de anéis. Veja que interessante: esses significados me dão a idéia referente do que eu vi. É apenas uma idéia, só que vai se juntar a outros significados e outros significantes aqui dentro. Então, de repente, dessa idéia eu tenho um conceito: é neste lugar que estamos, um lugar de conceitos. Como eu chego a ele? O conceito pode ser simbólico e, ao mesmo tempo, inicial ou icônico. E agora voltando: eu tenho o signo que é o referente e traz o signo que dá esse conjunto ao significado e significante.

Esse signo que está aqui pode ser de três ordens. Ordens que podem estar juntas, separadas ou misturadas. Primeiro você tem o ícone, que é tudo o que é a semelhança com algum outro. Não é necessariamente uma forma, um contorno do seu corpo; uma metáfora é um ícone também, é um todo que representa o outro. Depois você tem o índice. O índice dos signos, o mais interessante, é o que hoje tem maior atuação na área de artes plásticas, porque está ligado ao real. Ele leva a uma relação indicial que finalmente se torna simbólica. A relação simbólica é aquela que se dá por código, é algo que nos leva a aceitar a mim e a vocês que isso aqui no meu nariz sejam óculos.

Então, o simbólico é totalmente abstrato, o indicial é totalmente real e o ícone é a semelhança entre eles. Há essas três diferenças, percebe? Quando Freud fala de símbolo, está falando de algo que não é só símbolo; é índice também. São relações complexas. Pegue o Freud, por exemplo, e agora o princípio do espelho do Lacan, que é completamente diferente. Porque enquanto o Freud, na história do Fort-Da, atribui valor à linguagem e, portanto, ao simbólico no sentido que estou usando, o Lacan, não. No caso do Lacan, dá para imaginar, e pela imaginação ele vê uma imagem, vê um ícone, um signo, um símbolo ali no espelho. Na criança de sete meses, acho (não me lembro muito bem), ele vê a idéia de tirar a imagem e aparecer uma substância completamente outra. Uma substância que inclusive interessa muito! Não é pela imagem nem pelo espelho. É como artista.

O desenho é uma das várias linguagens em que o visual opera. É a mais simples, a mais básica, a mais elementar de todas, e talvez a mais interessante por isso. O que é o desenho? Imagine que eu tenho aqui uma folha de papel e um lápis e que nessa folha produzo um traço com o lápis. Fisicamente, é o resultado de um atrito, de um mole em atrito com um duro. Vejam vocês: quando eu usei o lápis, este papel, que era branco, passou a ter um traço, e essa diferença me permite dizer que eu estou num terreno de linguagem, um terreno que existe toda vez que você percebe a diferença. E esse traço que eu fiz tem uma coisa muito curiosa: antes de qualquer outra coisa, ele já é memória e registro da minha ação. Antes de dizer qualquer coisa, já é uma linguagem. Como é que esse traço se dá? Neste instante, ele é o indício da ação. O desenho é curioso: antes de ser simbólico e icônico, ele é indicial. É indício físico, atual, de uma ação que eu pratiquei. Posso dizer então que o desenho é a memória de uma ação. Sempre pensamos que ele é a memória de um significado, mas não é assim. Ele é memória de uma ação e está num patamar anterior.

Já com a pintura é diferente. Não se trata de linhas, trata-se de superfícies, e existe uma diferença brutal entre uma coisa e outra. Quando você faz um traço no papel, você não faz uma coisa só: faz três coisas. É incrível, isso. Você fez a ação do traço e dividiu um espaço visual em dois, que é o mais importante é o mais interessante do desenho! É que o desenho não busca representação no mundo, porque para ele isso é impossível. Ele é o limite de duas coisas. Ele é aquela linha impossível, imponderável e inimaginável que as coisas têm no mundo. Nós não temos linhas, temos apenas superfícies. Então, a pintura se adéqua melhor ao mundo do que o desenho, porque o desenho recorta diferenças. É só o que ele faz. Antes de ser qualquer coisa, o desenho é um indício. Como linguagem básica, ele é quase tudo. Por exemplo, aquela marca ali na parede é um indício de que este móvel foi ou veio de lá para cá. Esse indício é desenho, é indicial. O desenho está muito próximo de uma atuação no mundo, porque o papel, antes de ser representação, é um papel.

Existe um texto maravilhoso do Merleau-Ponty, um texto fantástico, excepcional, chamado O olho e o espírito. O Merleau-Ponty teve uma idéia incrível sobre a arte, que é uma espécie de sistema de equivalências. Ele dizia assim: se você está numa caverna, por exemplo, e ali tem um bisão pintado e, do lado do bisão, uma fenda na parede, na fenda você vê o que vê apenas a fenda , mas no bisão você vê o que vê e vê o que não vê, pois há um sistema de equivalências. Isto é: simplesmente, o bisão está apontando para você o que você não vê. É uma forma de diálogo, de relação, de reciprocidade de equivalências, portanto.

Então eu diria a você, puxando para a arte contemporânea, que essa não é uma arte de representação e sim de equivalências e relações: nós vemos o que vemos e vemos o que não vemos. E você não vê o mais importante, porque é uma forma de equivalência: você está me dizendo coisas que não estão no discurso simbólico. Acho que isso tem muito a ver com a atividade profissional dos psicanalistas: você vê o que você não vê. Mas não falo no sentido metafísico. Falo no sentido real, no sentido de que aquilo está me indicando coisas para além do bisão pintado. Aquelas indicações… Não é que eu precise ser esperto para vê-las. Aquilo está conversando comigo… e esse sistema de equivalências eu acho uma maravilha!

Acho que a arte contemporânea trata de equivalências. Então vamos pensar numa instalação, que é uma organização espacial em que as coisas acontecem apenas e definitivamente quando se entra nela. Ou você faz dela ou não faz. Dentro de uma instalação, é muito difícil ter um juízo crítico, porque você tem tudo a ver com ela, certo? O juízo crítico fica em estado de suspensão ali, por haver um sistema muito poderoso de equivalências de relações.

Acho que às vezes nós vamos ver uma obra de arte para saber, em termos tradicionais, o que ela tem a nos dizer no sentido de nos oferecer uma chave simbólica que vai explicar coisas. Mas não, acho que não é assim. Acho que a arte contemporânea não me diz nada e que eu também não preciso dizer nada a ela. Eu tenho de conviver com ela numa relação de fisicalidade, como numa relação de amor. Essa é a grande transformação, a meu ver: aquela em que a arte deixou de ser arte porque passou a ser alguma coisa que tem esse sistema de equivalências, que é uma relação e, se eu não tiver consciência de que estou numa relação, eu não vou ter nada. Definitivamente nada.

O discurso narrativo tem o seu oposto muito forte naquilo que o Walter Benjamin chamou de discurso alegórico. Esse tipo de arte que estou defendendo aqui, pela qual estou advogando, não é uma arte em que você é apenas receptivo. Ela fala com você, tal como você fala com ela. Existe uma relação entre sujeitos e não entre objetos. O Merleau-Ponty tem uma imagem maravilhosa para isso: eu dando a mão a você. Quem é que está dando a mão? É uma relação de reciprocidade, de troca, a tal ponto que você não sabe qual mão está segurando qual. Gosto de pensar que você tem não um objeto, mas um sujeito. Neste momento eu estou sentado aqui e sei que há uma parede atrás de mim, uma quina atrás de mim, a maciez do sofá, sei como é que os meus pés estão assentados no chão, e todas essas relações são efetivas de outros, de alteridades. Você pode pensar que, ao ficar de pé, está solidamente penetrando no chão como se fosse uma escultura , e está também saindo dele como pássaro. Sei que a atração da gravidade é a base da escultura, mas não é de escultura que eu estou falando, não. Falo de uma relação de aceitação e oposição, de tensão.

RBP Seu trabalho atual tem a cara do que você está dizendo, não? É muito atual, é uma transparência, uma convivência…

FAJARDO Sem dúvida nenhuma. Mas ele mudou muito. Eu estava dando um seminário sobre um texto do All Foster, um crítico e historiador americano muito importante, e havia um diálogo sobre o princípio do espelho do Lacan, que eu nunca tinha visto. Me dei conta do que era aquilo, fui à luta e isso realmente mudou o meu trabalho. A idéia do espelho, do espelhamento, do reflexo de um no outro… Comecei então a trabalhar com esse lugar em que você se vê e não se vê muito bem. Não é um reflexo que se afirma por reflexo, é uma relação. Percebi que esses trabalhos têm coisas muito curiosas. Eles funcionam em abismos, são labirínticos, tratam do espelhamento e do reflexo. Uma coisa que hoje está me atraindo muito é a idéia de labirinto, mas eu ainda não sei fazer um discurso desenvolto sobre isso. Ainda tenho de ler muito Borges!

Eu fiz no artecidade um trabalho que era um conjunto de espelhos. Esse trabalho ganhou depois uma outra versão na Pinacoteca do Estado. Era composto por uma plataforma com vidros de 1 x 3 metros. Juntos, esses vidros ficavam com 6 x 24 metros e iam profundamente num plano que seria uma mesa de mais ou menos 60, 70 centímetros de altura. Havia ali um buraco, um espaço por onde podia passar uma cadeira de rodas, algo com mais ou menos 1,20 metro de um lado a outro. Então você tinha um corredor comprido com duas passagens a 3 metros de altura, e isso estava dentro de um galpão enorme. Quando fui convidado para participar dessa exposição, encontrei lá um galpão cujo teto já estava meio destruído; dava para ver o telhado. Havia chovido e tinha caído água do telhado no chão. Eu olhei e vi o telhado refletido no chão. E aí eu vi o que queria fazer.

Pedi ao organizador para tirar todas as telhas do telhado central e deixar só as dos outros. De maneira que, quando posicionei o espelho embaixo, ele refletia o céu havia uma inversão do céu. Quando você entrava por esse corredor duplo, tudo se multiplicava infinitamente, menos você. Como havia um espelho aqui e outro lá, absolutamente opostos, você via a sua imagem e, quando olhava para o outro lado, via todo mundo multiplicado. Era uma multiplicação da multiplicação.

Esse foi um trabalho “infotografável”, porque quando se fotografa, não se sabe onde está o real e onde não está. É um abismo. Quando apresentei esse trabalho no artecidade, lá no sesc Belenzinho, lembro que um dia eu estava conversando com um amigo arquiteto, que havia trazido seus dois filhinhos, um menino e uma menina por volta de 4 ou 5 anos. A menina estava ao lado do pai e olhou para o espelho que estava embaixo. Sabe o que fez o irmão? Ele a segurou e disse: “Cuidado, você pode cair!” Ou seja, cair no infinito, para baixo, que era cair no céu, para o outro lado. Que maravilha.

E eu estava dando uma entrevista sobre esse trabalho a um programa do sesc e caiu um toró interminável. Vocês lembram daquele filme que começa na Amazônia com aquele… A impressão era incrível. O que acontecia com a chuva era que ela se multiplicava. O Borges disse que os espelhos e os homens são terríveis porque ambos se multiplicam. Havia essa coisa da multiplicação, eu brincava com ela. Estou pensando agora que era uma idéia muito boa para mim: aquilo era o único labirinto em linha reta que eu conhecia. E, realmente, a coisa me agradou muito.

RBP Com isso você está entrando no simbólico.

FAJARDO Eu estou o tempo todo nele. Eu falo! O problema do meu discurso é que ele elimina muito para ser sintético. Eu não sou “contra” o simbólico, que é necessário, que é obrigatório. O que eu disse é que na arte contemporânea o caráter simbólico mudou de pólo. Podemos até falar em alegórico no lugar de simbólico. O meu trabalho é uma alegoria, não um símbolo. Quando falamos em alegoria, pensamos necessariamente no carnaval carioca, mas não se trata só disso. É um trabalho alegórico, mas no melhor sentido da palavra. Alegoria, para o Walter Benjamin, é um tipo de discurso que basicamente é fragmentado e que começa no cubismo. Mas o cubismo é uma falsa fragmentação, porque busca sempre uma totalidade, e o fragmentário é fragmentado.

Não sei se conhecem um artista chamado Court Withars. Ele é fragmentário porque sua colagem não forma um todo com as partes: elas continuam sempre partes. Quando se tem um discurso sempre em partes, a completude é, primeiro, enigmática. Se é um enigma, você não está lá apenas para entender o discurso e sim para compor as relações faltantes, porque faltam peças nele. Então, na alegoria você é participante. Existe um discurso simbólico, inevitavelmente fragmentado, que nunca vai ter completude, e você necessariamente vira partícipe e crítico. Nesse fragmentário, não há estrutura narrativa que resista. O simbólico quer ser intérprete por você, e é aí que contam as coisas, porque você participar não só como intérprete externo, mas como parte desse discurso complexo que é o alegórico, o da arte contemporânea que substitui a narrativa, que te coloca apenas como receptivo. Na narrativa é preciso entender o que está sendo falado. No alegórico, não adianta: você é obrigado a participar e a compor as peças que, no seu entender, estão faltando. No seu mas também no entender dela e de cada um de nós nesta sala.

RBP É o infinito?

FAJARDO É. E por isso estamos falando aqui de labirintos. Há essa qualidade incrível que, quando chega no final, não adianta nada: você chega num beco sem saída, e está só no início do problema.

RBP Em relação àquela instalação com vidros, é de fato muito interessante, porque você acaba criando um mundo, não é? A ponto de uma criança segurar a outra para que ela não caísse lá dentro. Aquele ali, naquele momento, era o mundo real dela.

FAJARDO Mas quem criou esse mundo não fui eu, foi a criança. Lembrem-se de que ela era participante. O mundo de que ela falou não foi o mundo que eu pensei: foi o que ela construiu. Eu não tinha a menor idéia de que se podia perceber aquilo como abismo. Foi a criança que me ensinou.

RBP Voltando um pouco à sua evolução: como as coisas aconteceram a partir da Escola Brasil?

FAJARDO A Escola Brasil durou cerca de quatro anos, com cerca de quinhentos alunos. Terminou por várias razões, e uma delas é que as coisas começam e acabam e ela acabou. Também mudou o panorama econômico da época, e o aluguel que pagávamos se tornou impossível. E finalmente cada um de nós teve um destino muito diverso, uma trajetória muito diferente a partir daquele momento. Tanto que o único que dá aula até hoje sou eu. Acho que o final da Escola foi fruto da diversidade, das diferenças e transformações por que passamos durante a nossa experiência comum, que foi maravilhosa e muito rica. A própria experiência gerou diferenças e acho que fomos capazes de perceber que elas eram interessantes. Interessantíssimas.

A importância da Escola Brasil para a minha atividade como um profissional do ensino foi grande. Falei de 500 alunos. Na época do meu doutoramento, há uns quinze anos, fiz um levantamento de quantos alunos eu tive ao todo: foram 16 mil alunos. Hoje, o número de pessoas com as quais tive a honra de fazer essa troca de aprendizagem chega a 20 mil. A Escola Brasil foi um pequeno momento (ao menos da minha perspectiva) da prática do aprendizado de ensino. Mas foi um pequeno momento extremamente importante para mim, porque foi formativo e permitiu uma troca incrível com os meus pares. Éramos os quatro muito diferentes. Essa foi a nossa riqueza.

A diferença tem tudo a ver. Você percebe uma linguagem quando percebe uma diferença. Era interessante porque, como não estávamos baseando o ensino em técnicas, em repertório, a atividade era muito livre, muito solta, muito diversificada, se relacionava com o interesse de cada um de nós pelo desenrolar das experiências que estávamos vivendo.

Até hoje gosto muito de pensar que a minha aula de amanhã vai acontecer em função da aula que eu dei hoje. O meu curso não tem programa. Programa, só na universidade. Dou aula no curso de artes plásticas da Escola de Comunicação e Artes da usp. A primeira matéria que é fundante é a que o aluno tem quando entra na faculdade aos 17 anos: dou desenho de observação. Ficou mais ou menos claro, acho, que eu não ensino a pessoa a desenhar. A questão é aprender a raciocinar visualmente, coisa completamente diferente. A questão é o discurso, a capacidade de se relacionar em termos visuais, em termos de desenho de observação. Desenhar não o mundo, mas aquilo que eu penso ou como se passam as coisas na minha cabeça. As reflexões ocorrem a partir do que eu vejo no desenho de observação. Mas a observação está comigo. Não é, portanto, desenho de representação. O desenho de observação que eu dou representa o que eu penso, mas você só pode representar pensamentos se estiver em algum tipo de discurso, de linguagem. Aliás, o Freud fez isso de uma forma maravilhosa, não é?

RBP Como você vê dois grandes artistas da sua época: Francis Bacon e Lucien Freud?

FAJARDO Nós falamos sobre a pintura, a arte, a história da arte, a morte da história da arte e sobre essa outra coisa que veio depois e que chamei também de arte. Esses dois estão num momento anterior à morte da arte. São trágicos e tratam de uma condição do humano numa tragédia sem fim. São fruto de duas grandes guerras e estão muito próximos delas. Não têm piedade, só têm sofrimento, drama e falta de destino. São terríveis, esses dois grandes artistas, nem sei qual é o mais terrível deles… Mas a minha escolha, na escala do terrível, seria o Freud. Ele tem tradição na família, digamos assim… O Bacon é um artista maravilhoso, mas acho que o Lucien Freud trata da condição humana mesmo, profundamente. Trata do grande discurso do século xx, que passa pela literatura e vai para vários lugares. A história dele é a história da pintura, passa de uma maneira muito violenta e forte pelo El Greco, outro artista incrível. O espaço, a consciência espacial do Bacon é inacreditável. Seus trípticos são uma maravilha. São dois artistas que têm muito a ver com a defesa de um suporte simbólico para o discurso abstrato. Esse aspecto terrível e dramático a perda sem fim que foi a Segunda Guerra, o Holocausto , tudo isso está no trabalho dos dois.

RBP Essa outra arte de que você fala está sempre aberta para muitos significados, para muitas representações.

FAJARDO Com certeza. Um problema é que ela pratica muitas representações ao mesmo tempo. Penso que a arte contemporânea tem um traço heróico, por um lado, e trágico, por outro, mas nos dois lados existe a uma promessa de um entendimento positivo da cultura. Acho que isso se encerra com o que chamei de “outra arte”, com o modernismo ali por volta dos anos 60. Você tem ali um tipo de discurso em que as relações de fato são outras tantas relações que se abrem para outras relações… Quando se pensa no parangolé do Hélio Oiticica, isso pode ter a ver e tem mesmo com o Mondrian, mas é outra coisa. O Caminhando da Lygia Clark é um dos trabalhos mais importantes produzidos nos anos 60. A Lygia estava fazendo algo próximo à fita de Moebius. Fez os trepantes, por exemplo, que são aqueles objetos que ela ia recortando e enroscando em árvores. Só que no meio do caminho ela percebeu que o trabalho, a expressão e o caráter da fisicalidade e da corporalidade que ela queria já estava acontecendo: era o ato, a ação e o trabalho. Um pequeno passo para a humanidade e um grande passo para o homem. Quando percebeu isso, ela viu que o seu trabalho enfrentava o outro e a si próprio em termos do meu corpo atual, no aqui-e-agora, no presente era tudo o que ela tinha, e só o que tinha era isso.

Esse tipo de pensamento da arte faz com que uma pintura pendurada na parede, uma tela do Francis Bacon, por exemplo , por mais maravilhosa e magnífica que ela seja, não será nem melhor nem pior: será outra coisa.

RBP Como você vê a arte brasileira atualmente?

FAJARDO A arte brasileira é muito curiosa, se você considerar os artistas que estão operando hoje os que estão fazendo um enorme sucesso e mesmo os que não estão. Eu diria que a cultura brasileira está produzindo um tipo de arte de altíssima qualidade. Não vou citar artistas aqui, mas posso dizer que ela tem um viço incrível, que é variada, diversificada. Mas vou falar de um artista, o Iran do Espírito Santo. Dele eu posso falar com liberdade porque não temos muita relação. O Iran é muito rico e variado, um artista excepcional. Acho que produzir um artista excepcional depende de certos momentos, de um caldo cultural, de diferenças, de riquezas que fomos tirar não sei de onde, mas tiramos. Especialmente considerando os vinte anos de uma ditadura do diabo, não sei de onde veio essa qualidade que a arte brasileira tem até hoje.

RBP E como você vê o mercado de arte?

FAJARDO Não se pode dizer do mercado brasileiro a mesma coisa que eu disse da arte brasileira. Há um tripé formado pela produção artística, a produção crítica e o mercado. Esses três elementos devem estar articulados, juntos, na minha visão. Mas é um eterno mistério que o nosso tripé tenha um pé mais comprido que os outros dois… Isto é, que haja uma arte tão poderosa no Brasil sem haver mercado ou uma reflexão crítica em extensão e qualidade. Agora parece que está havendo alguma modificação nesse quadro. Estão se formando historiadores e críticos de alto nível e a academia anda participando disso de maneira muito positiva.

Acho que nos últimos dez anos aumentou muito o número de pessoas envolvidas com a crítica e a reflexão sobre a produção artística brasileira. Então, poderíamos pensar que os outros dois pés estão sendo resolvidos e que talvez o que continua faltando seja o palco adequado para esse tipo de reflexão, para que isso se expresse (por exemplo, através de livros especializados). Penso inclusive que o convite de vocês para esta entrevista está suprindo um pouco a falta desse lugar. A RBP tem essa idéia cultural que acho maravilhosa.

Eu diria que a arte brasileira está num excelente momento. Por exemplo: se pensarmos nos anos 60, nós tivemos uma música popular brasileira de grande diversidade, variedade e riqueza. Ninguém sabe de onde é que saiu o Tom Jobim… Fica até meio esquisito quando pensamos o que é aquilo, como é que aquela qualidade foi produzida naquele momento.

Não sei até onde podemos imaginar que o público brasileiro que vai às exposições esteja acompanhando a coisa toda. O público de dez anos atrás é bem diferente do de hoje, com essa quantidade brutal de informação que nós temos. Enfim, acho que hoje a distância entre a arte e o seu público é muito menor, mas ela existe, inevitavelmente. Existe porque é tudo uma questão de acerto e de acordos e desacordos. Sou muito favorável à tensão, à situação dialética em que esses acordos de repente encontram uma solução e de repente você simplesmente se descobre ali.

RBP E a educação, como contribui?

FAJARDO Acho que aos trancos e barrancos. No Brasil, é como se diz: você vai de 2 mil a 4 mil metros numa enorme velocidade e aí cai de novo. É como se vivêssemos em La Paz: o nosso organismo sofre um pouco com essas oscilações, mas no final acaba virando um Aconcágua. O caldo cultural brasileiro é muito rico, até mesmo na sua pobreza. A América Latina de língua espanhola é muito diferente de nós. Fomos deixados ao relento, porque os portugueses vieram aqui para fazer e extrair, enquanto os espanhóis foram aos outros países para colonizar. É uma diferença brutal. De onde tiramos essa diversidade, essa riqueza, esse interesse tão grande que temos aqui?

RBP Falando dessa arte contemporânea, vale lembrar o Instituto de Arte Contem­porânea de Inhotim, em Minas Gerais. É um lugar impressionante, inacreditável, com uma grande coleção de artistas importantes, como o Iran do Espírito Santo. E é freqüentado também pela população rural, que vai ali ver uma arte sofisticadíssima.

FAJARDO Ao contrário do que se pensa, a arte contemporânea favorece a relação com as pessoas, porque ela só existe na fisicalidade, na presença efetiva. É atual, e não virtual. Não tem virtualidade, tem atualidade. Então, as pessoas acabam tendo uma relação quase inevitável com esses trabalhos. Diferente de quando você vai ler um trabalho sobre a pintura, em que primeiro é preciso entender as chaves do discurso para entender o que o discurso é.

A arte anterior a esta que defendo vive um certo divórcio, um certo distanciamento do público. Por uma razão muito simples: esse tipo de obra de arte é vivenciado nas suas prisões, nos museus, enquanto a outra arte pode estar em qualquer lugar. Você precisa apenas de um espaço qualquer para produzir uma instalação. Não precisa ser um museu. O que precisa é de público. Há um historiador da arte que diz que as obras de arte foram para essas prisões quando houve uma distribuição muito farta e democrática dos livros. Quando se pensa que no século xix, em Paris, em 1875, uma exposição de arte de pintura era visitada por 1.200.000 pessoas, isso numa cidade de 1 milhão de habitantes, simplesmente não dá para entender. A coisa mais popular que havia no mundo eram artes visuais. A partir daí, começou de fato a existir um certo distanciamento na relação com o público. Hoje esse casamento, essa relação de troca está se dando de novo, porque você não precisa mais do que estar presente ali, diante da obra de arte. A arte da instalação diz o seguinte: “A sua presença é obrigatória, senão ela não acontece”.

RBP Ela é feita para quem?

FAJARDO Sempre para o outro,para todos, nunca para fulano, sicrano ou beltrano.

RBP Quando será sua próxima exposição?

FAJARDO Pois é, vocês levantaram um grande problema… Tenho uma exposição que vou fazer agora em Ouro Preto, uma participação no festival de inverno da cidade. Não sei em que local será. O bom das instalações é que você vai lá e pronto. Não tem desenho, não tem nada. Você tem que fazer na hora. É ótimo, porque com isso você conhece o mundo. Minha última exposição individual foi no Gabinete de Arte, da Raquel Arnaud, há uns três, quatro anos. Não é muito. Minhas últimas instalações importantes foram uma grande exposição na Pinacoteca, o trabalho no artecidade que descrevi e um trabalho na Bienal do Mercosul que achei muito interessante.

Estou trabalhando com espelhos, como disse. Na Bienal do Mercosul eu fiquei num galpão imenso, me deram uma área descomunal para trabalhar. Então, fiz uma plataforma a cerca de 10 centímetros do chão, cobrindo uma área gigantesca, e em cima dessa plataforma colei espelhos feitos de poliuretano maleáveis, portanto. Você pode pisar que eles não quebram, dá para andar à vontade sobre eles. No primeiro dia, no grau zero do trabalho, você via tudo refletido ali: o teto, as pessoas, a parte de baixo da saia, tudo se refletia. No decorrer do tempo, as marcas, os rastros deixados pelas pessoas que andavam pela plataforma foram deixando aquilo totalmente fosco… e o que era puro espelhamento se tornou não-reflexivo. O que ficou lá, o que restou, foi esse registro da temporalidade. Esse trabalho, com perdão da palavra, é bem si mbólico.

RBP E tão efêmero…

FAJARDO Totalmente. Nós podemos pensar o seguinte: a obra de arte contemporânea deixou de ter unicidade. Ninguém faz mais um trabalho em mármore que se torna único. Então, ao perder a unicidade, a obra perdeu também a contingência do determinado. Na arte contemporânea, nada te impede de fazer de novo o mesmo trabalho. É uma idéia meio horripilante, mas é assim. A obra deixou de ter aquela qualidade da arte tradicional de ser única, assinada, especial, de ter o que o Walter Benjamin chamou de aura. Esse tipo de trabalho não tem aura nenhuma. Se quiser, eu faço de novo, sem problema. Mas a experiência vivida, essa fica sempre com cada um.

 

 

* Entrevista realizada na sede da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 5 de junho de 2008, com a participação de Alan Victor Meyer, Chulamit Terepins, Inês Sucar, Maria Angela Moretzsohn, Maria Aparecida Quesado Nicoletti, Maria Elisa F. Pirozzi, Oswaldo Ferreira Leite Netto, Sonia Soicher Terepins, Thaís Blucher.

Creative Commons License