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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. v.1 n.1 Ribeirão Preto abr. 1993
Significação e mediação por signo e instrumento
Afira V. Ripper
Universidade Estadual de Campinas
O estudo do processo ensino-aprendizagem numa perspectiva sócio-histórica tem salientado a relevância da atividade mediada na internalização das funções psicológicas, dando origem ao chamado comportamento superior Vygotsky (1978) caracteriza o uso de signos e de instrumentos como atividade mediada, que irá orientar o comportamento humano, na internalização dessas funções. Mas, a mediação por signo e instrumento são de natureza diversa, enquanto o signo constitui uma atividade interna dirigida para o controle do próprio sujeito, o instrumento é orientado externamente, para o controle da natureza. Tanto o controle do comportamento como o da natureza acarretam mudanças no funcionamento cognitivo, o primeiro ocasionando a emergência das funções superiores e o segundo a relação do homem com o seu ambiente: o homem muda a natureza e essa mudança altera a sua própria natureza. É esse movimento dialético, entre o homem e seu artefato, que se deseja esclarecer.
O objetivo deste trabalho é, a partir da discussão da função mediadora e das relações entre signo e instrumento, estudar as relações entre linguagem escrita e o computador no contexto de sala de aula. O nosso foco de estudo é um Ambiente Logo de Aprendizagem (baseado na linguagem computacional Logo), enquanto instrumento de mediação no processo de aprendizagem de crianças pré-escolares, em particular o processo de aquisição da linguagem escrita. Nesse ambiente, quando a criança está "ensinando a tartaruga a fazer um desenho" ela está ao mesmo tempo lidando com uma linguagem escrita e conceitos matemáticos.
A Mediação por Signo
Dentre os signos, á linguagem escrita tem um importante papel de mediação na internalização das funções mentais superiores como observou Luria (1988) em seus experimentos com camponeses analfabetos e alfabetizados.
O ensino da linguagem escrita na pré-escola foi sugerido por Vygotsky (1978) baseado nos estudos psicológicos de Luria sobre o desenvolvimento da linguagem escrita, que o levou à conclusão de que crianças pequenas são capazes de descobrir a função simbólica da escrita, a grande maioria sendo capaz de ler aos quatro anos e meio. Do ponto de vista pedagógico, Maria Montessori mostrou ser isto possível, embora muitas vezes o desempenho fosse mais resultado de treinamento do que uma atividade cultural complexa.
Vygotsky também salientou que a escrita deve ter significado para as crianças, que uma necessidade intrínseca deve ser despertada nelas: a escrita e a matemática devem ser incorporadas a uma tarefa vista como necessária e relevante para a vida. Ele também aponta para a necessidade de a escrita ser ensinada de um modo "natural", ou seja, da mesma forma que a criança aprende a falar ela pode aprender a ler e a escrever.
De que maneiras o Ambiente Logo pode contribuir para a aprendizagem da escrita?
Mediação Instrumental
O "Ambiente Logo", baseado tanto na linguagem Logo de computação quanto na "filosofia Logo", é um instrumento de mediação para o processo de significação. A "tartaruga" do Logo é um animal cibernético, habitando a tela do computador e obedecendo a comandos expressos em uma linguagem peculiar, o "tartaruguês". Ela se constitui num objeto quase-concreto, elemento mediador entre o concreto e o abstrato, pois ao mesmo tempo que pode ser manipulada na tela (deslocada, virada etc.) essa manipulação não é física mas através de signos.*
Esse ambiente, carregado de significado lúdico, proporciona à criança uma situação de brinquedo. A essência do brinquedo é a criação de uma nova relação entre o campo do significado e o campo da percepção visual - ou seja, entre situações de pensamento e situações reais. O "brincar de tartaruga" permite ações baseadas na própria experiência de deslocamento no espaço da criança (e do adulto também) as quais são similares às da tartaruga da tela. Há uma transferência de significados da ação da tartaruga-criança para a tartaruga da tela.
Mas essa transferência se dá mediada pela linguagem: "ensinar a Tartaruga" implica fa^er uma descrição para o "outro", levar em conta o esquema corporal desse "outro" e a linguagem que esse "outro" entende. Mas, ao contrário do outro humano, a "Tartaruga" apresenta um referencial que precisa ser lidado sem ambiguidade. A necessidade de uma descrição apropriada, inteligível em termos de linguagem de computação, fornece uma oportunidade ao aprendiz para confrontar sua idéia com a descrição que ele exterioriza, dependente das restrições da linguagem computacional e da própria lógica de preposições em que se baseia.
Luria (1988) observou nos seus experimentos com silogismo que esta forma de raciocínio é culturalmente dependente e apontou o papel mediacional da linguagem escrita para o seu desenvolvimento. O "tartaruguês", embora se apresente como fala coloquial, é baseado na lógica formal, oferecendo a possibilidade de organizar o pensamento formal num processo similar ao representado pela aquisição da linguagem escrita.
Mas, a atividade no "Ambiente Logo" permite mais, ensinar a Tartaruga implica dar nome ao desenho ou ação para que ela possa "aprender". Anomeação proporciona um movimento entre flexibilidade e rigidez: ao mesmo tempo que possibilita inventar qualquer nome; uma vez escolhido, esse nome passa a ter o mesmo caráter dos comandos primitivos, só pode ser acessado se escrito exatamente da mesma forma. Nesse contexto, a exigência de padrão aparece como uma condição necessária "para a Tartaruga poder ler e entender" e pode facilitar a compreensão da exigência de padrão ortográfico para a língua escrita.
O fato da comunicação com o computador se dar através da linguagem escrita leva a criança a se relacionar com essa forma de expressão de um modo semelhante à aprendizagem da fala: num primeiro momento ela escreve para obter um resultado imediato, ou seja, ela usa os comandos que acionam a tartaruga a fim de obter um resultado na tela. Mas o computador também dá a ela um esquema de referência em que se apoiar, o computador exige obediência a certas regras evidenciando a necessidade de seguir regras para obter a comunicação desejada.
A introdução da linguagem Logo para crianças da pré-escola (4 a 6 anos) em situação de sala de aula tem sido feita através da utilização do chamado "Easy Logo" - "Logo Fácil"**, baseada no pressuposto de ser necessário primeiro a criança dominar a linguagem escrita e a noção de número para poder trabalhar com o computador e a linguagem Logo. Outro pressuposto implícito no uso do "Logo Fácil" é facilitar às crianças a elaboração de desenhos, o que aponta para uma ênfase no produto, em obter um resultado reconhecível como tal pelo adulto, ao invés de privilegiar o processo de construção de significados, geralmente lento. A questão que se levanta é se a inversão dessa proposta, ou seja, trabalhar com o computador como instrumento mediador da construção da linguagem escrita e da noção de número, não levaria mais cedo à emergência dessas noções.
Contexto da Pesquisa
Selecionando como unidade de análise a tríade criança, mediador e computador, pretendemos verificar se o Ambiente Logo altera modos de aprender a linguagem escrita e o conceito de número. A abordagem da pesquisa é de natureza qualitativa, baseada em observação participante, procurando clarear as relações apontadas nos objetivos acima, através da micro-análise de atividades em sala de aula. A documentação é feita através de fitas de vídeo e diários de campo.
O estudo, de natureza longitudinal, compreende uma classe de crianças dos quatro aos seis anos de idade, estudando com a mesma professora ao longo de três anos. A rotina diária inclui três refeições, brincar no parque, dois períodos na sala de aula, incluindo uma sesta depois do almoço. As atividades na sala de aula são organizadas em torno de "cantos de interesse" como pesquisa, casinha, leitura, artes plásticas e o computador com a linguagem Logo. As crianças escolhem os cantos ao início de cada período numa atividade de grupo chamada "roda".
Os sujeitos estão matriculados numa escola maternal da rede pública municipal da cidade de Campinas (São Paulo), Brasil. A classe estudada é composta por crianças que permanecem na escola por período integral devido às mães trabalharem o dia todo. São em geral de famílias de baixa renda, com profissões sem qualificação.
Espera-se ao longo dos três anos de estudo observar o efeito da mediação do ambiente Logo no desenvolvimento das funções superiores e na apropriação da linguagem escrita e da noção de número.
Discussão
Os sujeitos ao início do ano letivo apresentavam leitura contextualizada (ex: rótulos como Coca-Cola) mas não conheciam a escrita de seus nomes. Ao trabalhar com os comandos do Logo a professora evocava a letra inicial do nome de uma criança ou palavra conhecida - P de papai, F de Fernando.
A análise preliminar do material coletado aponta para diversos aspectos:
a) Uma fase inicial de exploração do teclado sem diferenciação entre as teclas (letras e outros sinais), muitas vezes sem prestar atenção na tela; mas logo estabelecem uma relação de causa/efeito quando uma tecla é apertada/algo aparece na tela. A segunda fase envolve uma exploração mais sistemática, tentando dar significado ao que aparece na tela. Isto foi evidenciado por diversas discussões entre crianças sobre o que estava aparecendo na tela, inclusive a diferença de representação da letra - maiúscula na tecla, minúscula na tela. Ao mesmo tempo em que identifica as letras como marcas da fala, a criança passa a explorar o teclado de forma a revelar o sentido que ela faz da escrita, pois dificilmente explora as teclas com símbolos diferentes dos alfa-numéricos. Portanto, embora pareça ao observador desatento que ela esteja apenas acionando as teclas erráticamente, mimetizando o comportamento do adulto, esse acionar revela o sentido que ela faz das teclas. Após essa exploração inicial, a função do teclado como meio de comunicação com a "tartaruga" se impõe e a interação criança-computador ocorre em torno do Logo: a criança escreve comandos para fazer desenhos e atribui significado às mensagens de erro. s teclas especiais são atribuídas funções muitas vezes diferentes do uso pelo adulto, com a extensão da função de "limpadoras de caracteres" da tecla BS para a tecla ENTER.
b) A metáfora usada pela professora de "mandar a Tartaruga ler" pois "ela só entende ordens escritas" (comandos do Logo) foi apropriada por todas as crianças. "Manda ela ler" diz uma criança para outra apontando a tecla ENTER. A esta tecla so portanto atribuídas duas funções: ordena a "tartaruga ler" e limpa o texto se acionada várias vezes.
c) As crianças adquiriram a noção de que psrru movimentar "tartaruga" é preciso usar numerais. Eles usam os numerais em grupos (ex. PF 789) porque o efeito do deslocamento ou giro na tela com um único numeral é considerado muito pouco. Mas cada numerai conserva seu valor como unidade: sete, oito e nove em vez de setecentos e oitenta e nove. Observa-se a emergência da noção de número: eles adquiriram a noção de que usar vários numerais faz a "tartaruga" andar muito e com poucos numerais o resultado é muito pouco.
d) Os projetos elaborados foram desenhos com formatos muito irregulares. Um projeto muito comum era desenhar uma casa. Embora o resultado final frequentemente fosse uma forma irregular, era considerado satisfatório pela criança se conseguisse formar uma figura fechada. Havia por parte da criança uma exigência de que a figura se fechasse para considerá-la completa, evidência do desenvolvimento de noções topológicas.
e) Ao começar a usar os comandos para desenhar com a "tartaruga" as crianças descobrem as regras sintáticas do Logo. A leitura das mensagens de erro é contextual, ligada à ação que a criança estava fazendo; ela aponta a mensagem lendo o seu conteúdo sem identificar as palavras. A maioria das crianças mostrou baixa resistência aos erros sintáticos: confrontadas com uma mensagem de erro a primeira reação era limpar a tela sem tentar identificar o erro. Vemos, portanto, que o significado global do erro é entendido, mas o desconforto impede uma ação mais construtiva. A visão do erro como engano na comunicação com a "tartaruga" aparece após algumas sessões, geralmente através da mediação da professora ou de outra criança: confrontada com a mensagem "Ainda não aprendi pf50'\ outra criança diz - "Ela (a "tartaruga") não entende sem espaço, precisa de espaço!", querendo dizer que a forma correta de escrever o comando é pf 50.
Concluindo, o papel da mediação por instrumento, um tema pouco explorado na literatura sócio-cultural, geralmente se refere a instrumentos que objetivam o controle da natureza. O papel do computador, utilizado com a linguagem Logo, tem sido geralmente estudado dentro da abordagem psico-genética, em situações clinicas onde a ação de programar é estudada como uma psico-gênese semelhante à psico-gênese da escrita. A ênfase é em detectar mecanismos e estádios dessa psico-gênese. Nossa perspectiva é captar o papel mediador desse instrumento na interação que ocorre na sala de aula entre a tríade criança/Logo/mediador e como essa interação altera/introduz modos de aprender. Nesse sentido, esses resultados, embora preliminares, mostram algumas instâncias do papel mediador do Ambiente Logo na construção das funções mentais superiores, e da linguagem escrita.
Referências Bibliográfica:
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* Os comandos básicos do Logo gráfico (micromundo da Tartaruga) são de deslocamento (para frente - PF, para trás - PT) e giro (para direita - PD, para esquerda - PE), que requerem um número como parâmetro. Ex: PF 20 faz a Tartaruga deslocar 20 unidades; PD 90 faz ela girar 90 graus. A linguagem Logo possui mais de cem procedimentos.
** "Easy Logo" (Logo Fácil): os comandos primitivos de giro (PD, PE) c deslocamentos (PF, PT) são substituídos por procedimentos que executam deslocamento ou giro com parâmetro fixo e nomeados por uma letra - F, T, D e E; ex: F a Tartaruga desloca 10, E gira 15 graus à esquerda.