Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. v.1 n.3 Ribeirão Preto dez. 1993
Interação social: o social, o cultural e o psicológico
Álvaro Pacheco Duran1
Universidade Estadual de Campinas
A interação social vem atraindo cada vez mais interesse no interior da Psicologia.
Considerando o uso crescente da expressão, o objetivo deste trabalho é fazer algumas reflexões que supomos deverem estar na base da utilização do termo.
Para tanto, iniciar com uma imagem pode ser útil.
Pensemos em um garoto que se imagina como o gigante de um livro de estórias, andando com imensas botas sobre a Terra, pisando nas árvores, esparrinhando o rio e que, quando coloca a mão no cume da montanha e olha para o vale, vê dois exércitos em luta. Acompanha o combate e vê, claramente, um deles avançar em cunha sobre o outro e, em seguida, expandir-se pelas laterais e cercar, pelos flancos, o segundo, deixando apenas uma fenda na retarguarda por onde o outro começa a refluir e, depois, se espalha e se dilui, desaparecendo na floresta próxima e deixando inúmeros pontos marcando o solo.
Num momento, o gigante saca uma lente do bolso, examina o combate e vê, efetivamente, a luta acontecendo. Na sua lente estão dois soldados com divisas de general, músculos tensos, semialçados nas montadas que controlam com a mão esquerda, enquanto com a direita desfecham golpes de espada em direção ao outro e aparam os golpes que o outro desfecha. Cavalos e cavaleiros se movimentam, articuladamente, um avançando, outro recuando, até que a espada do que avança trespassa o peito do que recua. Este perde o controle da montaria que se desgarra da massa e pára adiante, quando o cavaleiro cai ao chão.
Enquanto isso, o vencedor, brandindo a espada, faz o cavalo girar e olha para seus subordinados mais próximos que, brandindo também a espada, voltam-se para suas próprias fileiras e entoam um grito, um canto que logo se reproduz por todo o exército. A lente do gigante passeia pela massa de soldados e capta o instante em que um soldado grisalho, espada no ar, incentiva um jovem imberbe, olhos arregalados, a repetir-lhe o gesto.
Em meio ao canto de vitória, a atenção do gigante retorna ao general vencido. Rápido, passa a perna por cima da montanha, se agacha e examina o cavaleiro cujo rosto está contraído entre dor e raiva. Vê se aproximar a figura de um soldado que ampara o ferido. No diálogo que se segue, o general faz seu último pedido: que sua espada seja entregue à filha do rei, como prova de um acalentado amor que se consumaria após essa batalha.
Na nossa estória, quando o garoto vê o movimento dos exércitos, está frente a um fato social. Social no sentido do coletivo e de seu funcionamento enquanto uma unidade visível/concebível a partir de uma certa distância (o garoto precisou agigantar-se, olhar de cima, para ver).
Quando, no entanto, o gigante teve que se abaixar, para ver o rosto contraído do general, estava frente ao fato individual. Desse posto de observação, o garoto podia, então, defrontar-se com o psicológico, enquanto funcionamento do indivíduo. Esse psicológico se apresentava tanto numa face objetiva, que se revelava diretamente, como numa face subjetiva, que podia ser inferida da objetiva e que, juntamente com ela, constituía a ação do general.
Na face objetiva estava, por exemplo, o pedido, claramente ouvido pelo garoto, em que o general obteve a mediação do soldado. Na face subjetiva estavam o conhecimento do general sobre o que estava prestes a lhe acontecer a que chamaríamos de componente cognitivo da ação - e o desejo de um último contato com a princesa - a que chamaríamos de componente afetivo da ação, na linha dos teóricos da ação (Ginsburg, Brenner e von Cranach, 1985).
Quando o garoto passeou sua lente e viu compor-se um ritual de vitória, os soldados cantando em uníssono, esse canto configurava um fato cultural. Ao longo de séculos tinha se criado e reproduzido nas guerras daquele reino. Era uma marca de cada um e de todos os soldados. O canto, enquanto produto individual, mas coletivizado e emblemático, constituía um fato cultural, detectavel através da recorrência e da significação compartilhada que uma observação em varredura revelava (o garoto precisou passear sua lente e apurar seu ouvido, captando muitas ocorrências individuais, diferentes entre si, mas sempre reconhecíveis como aquele mesmo canto; a ocasião, as expressões faciais, permitiram-lhe interpretar o significado).
Numa tradução simplificada, pode-se dizer que o nível do social, que o gigante olhou por detrás da montanha, corresponde ao nível de análise da Sociologia. O nível do cultural que captou ao perpassar a lente sobre os soldados corresponde ao nível de análise da Antropologia. E à Psicologia corresponde o nível de análise do individual, quando o gigante aproximou ainda mais o seu foco.
O social-sociológico só faz sentido quando sei que se constitui a partir do individual-psicológico (a guerra se faz de ações individuais). Do mesmo modo, o cultural-antropológico, evidentemente, também se constitui do individual-psicológico (são as vozes individuais que cantam o canto da vitória). Por outro lado, como conceberíamos o individual-psicológico se não o pensássemos no interior do social e do cultural? É possível pensar a ação do Homem sem referência ao coletivo e aos significados compartilhados? O guerreiro lutaria sem guerra e, depois de uma vitória que não houve, cantaria um canto de vitória que ninguém reconheceria como tal? Do mesmo modo, o cultural-antropológico só se viabiliza ao se realizar o social-sociológico, e vice-versa, ou, dizendo de outra forma, não há cultura sem uma sociedade que a possua nem sociedade sem uma cultura que congregue os significados de seu funcionamento.
Assim, se é possível olhar a nossa cena de diferentes perspectivas, elas sempre se exigem uma à outra pois são insuficientes para apreendê-la na totalidade.
A passagem de um nível a outro representa uma necessidade e um desafio. A articulação do conhecimento que se obtém a partir de cada um desses níveis de análise configura uma questão teórico-metodológica importante. Por quais vias o que ocorre em um dos níveis, por exemplo o individual-psicológico, vem a afetar ou constituir o nível social-sociológico ou o cultural-antropológico? Ou, como o que ocorre nestes últimos vem a afetar o psicológico?
As tentativas de estabelecer relações diretas entre esses níveis não serão bem sucedidas. Não se pode, simplesmente, tomar conceitos em um dos níveis para relacioná-los a outro nível (Le Ny, 1967).
Assim, se em nossa ilustração os guerreiros eram todos filhos da nobreza, não é apropriado dizer que a casta, diretamente, explica a ação bélica de um soldado. Nem será apropriado querer entender o canto de vitória como expressão direta da alegria individual.
Será preciso atentar para processos mediadores entre esses níveis que acabam configurando novos níveis de análise e que comportam/exigem conceitos peculiares.
Alguns dos momentos de nossa ilustração exemplificam esse nível mediador. Por exemplo, o momento em que o observador focaliza o combate entre os dois generais. Nesse combate, em que dois indivíduos estão envolvidos, a ação de cada um exige a presença e a ação do outro, depende do outro. Cada contendor age articuladamente com seu inimigo e também regulando e sendo regulado por alguns companheiros, possivelmente os mais próximos, de modo que se produz, através de inúmeras cenas como essa, o movimento de massa que o gigante observou à distância, bem como a vitória/derrota com todos os seus significados culturais.
Aqui se tem uma rede de interações entre indivíduos. A interação aparece como um momento mediador entre o nível social-sociológico e cultural-antropológico, de um lado, e o nível individual-psicológico de outro. Por via da interação se constituem os níveis mais abrangentes, social e cultural, e nela se viabiliza o nível individual. Sem esse momento da interação não podemos compreender totalmente os níveis mais e menos abrangentes.
A essa interação nos referimos como interação social o que nos leva a reanalisar o uso do termo social. Social, aqui, não serve à designação da unidade coletiva, macroscópica, que perde de vista o indivíduo, tal como a usamos anteriormente, com certo abuso, na expressão social-sociológico. Constitui uma referência ao outro humano, ao indivíduo que não sou eu e que, comigo, divide a cena que me permite, a mim e a ele, agir, e que permite a emergência de realidades às quais o social-sociológico se aplica. Ou seja, o social se configura já a partir da interação social, no mesmo ponto onde o individual se configura e de onde às vezes é recortado para consideração em separado. Do mesmo modo, o cultural também se configura no nível da interação social na medida em que as ações em interdependência são carregadas dos significados cujo compartilhamento, pelos membros da interação, permite-lhes ação articulada e cujo compartilhamento, em nível coletivo, irá constituir o que anteriormente chamamos de cultural-antropológico.
Outro aspecto a ser considerado é a função genética da interação social: as transformações que acontecem no indivíduo, na sociedade e na cultura, ao longo do tempo, passam pela interação social.
A interação pode ser vista como, num dado momento do percurso de vida de dois sujeitos, a influência de um sobre o outro que, de alguma forma elaborada por esse outro, a partir de estruturas previamente organizadas, se constitui em momento de transformação/desenvolvimento dessas estruturas. Trata-se de um encontro do qual cada um dos membros pode sair diferente de quando entrou, em algum aspecto e/ou em algum grau.
Nesse sentido, a interação é a condição de construção do indivíduo. Os resultados individuais da interação, que só abstratamente podemos conceber e que às vezes são teoricamente referidos como a personalidade, são importantes nos encontros posteriores entre os mesmos indivíduos e desses com outros, de tal modo que se propagam no tempo, no interior dessa relação entre os mesmos indivíduos e no espaço, participando da interação desses com outros. A dimensão coletiva dessas mudanças permitirá novas configurações sociais e culturais. As interações se revelam, então, também como condição de construção do social e do cultural, viabilizada pela participação individual em uma multiplicidade de interações.
Na nossa estória, o momento em que o soldado mais velho incentiva o jovem a repetir o gesto com a espada constitui uma dessas oportunidades de transformação. Quando o jovem o fizer estará agindo como seus maiores, será um entre eles e saberá disso. Terá se transformado, constituído, ao mesmo tempo em que estará constituindo seu mundo social e cultural.
Talvez se possa dizer que nem todo momento de transformação por que passa o indivíduo ocorre no âmbito da interação social e essa ressalva é plausível. As experiências iniciais da criança com o espaço (Ostrower, 1988), por exemplo, ocorrem, em parte pelo menos, fora desse âmbito.
No entanto, a grande parte das experiências fundamentais para o desenvolvimento estão vinculadas ao outro e dependem dele. O mundo em que o Homem vive é um mundo de pessoas, coisas, lugares, ações que têm significados construídos historicamente e cuja apropriação se dá no contato social. Nesse sentido, se pode dizer que o indivíduo aí se constitui.
Uma outra ressalva aqui conveniente, embora não seja o foco de nossa análise: o indivíduo é também um ser biológico que evoluiu num mundo sócio-cultural que ele ia criando enquanto evoluía e que, ao mesmo tempo o criava, modulando essa evolução (Carvalho, 1989).
As considerações feitas até aqui enfatizam o papel do nível interativo (obviamente já designado por sócio-cultural) como constitutivo dos níveis social-sociológico e cultural-antropológico e como condição do individual-psicológico, tomado como um recorte do nível interativo, mas legitimamente tratável como unidade em si mesmo. Além disso e ao mesmo tempo, enfatiza-se o nível interativo como locus de construção tanto do individual como do social e do cultural.
Nesses termos, é conveniente ressaltar a importância da multiplicidade, variabilidade e contraditoriedade das interações para dar conta tanto do movimento reprodutivo como transformador que se pode observar em qualquer dos níveis de análise, como resultado da dinâmica dos processos envolvidos.
Tendo presente a discussão anterior, fica clara a importância da investigação do nível interativo. Tem sido um nível visitado por várias disciplinas em interface como Lingüística, Sociologia, Etnografia, Psiquiatria, Psicologia etc Provavelmente não se constituirá em objeto de uma ciência particular como sugeriu Hinde (1981). Com seu valor mediador e integrador provavelmente continuará como campo comum de interesse.
No caso da Psicologia, se há algum tempo a interação social estava quase restrita a um capítulo da Psicologia Social, hoje se integra ao universo de preocupações prioritárias, especialmente sob a perspectiva do estudo do desenvolvimento.
É importante ressaltar que o termo interação social está sendo usado, até aqui, no sentido mais abrangente possível.
Em primeiro lugar, está sendo usado no sentido que parece mais próprio, em que duas ou mais pessoas agem uma em relação à outra, tanto no sentido de que a ação de cada uma é dirigida para a outra, como no sentido de que a ação de cada uma decorre da outra. As ações são reciprocamente orientadas e dependentes.
Em segundo lugar, está se referindo, também, a casos onde não ocorre reciprocidade de orientação ou dependência.
Por exemplo, uma ação de alguém é dirigida a outro e/ou depende da ação presente do outro mas o outro não se dá conta dessa ação e não reage a ela. A imitação do personagem da TV ilustra este caso. Aqui ocorre uma ação social que não se articula com outra no sentido de compor uma interação propriamente dita.
Ou, por exemplo, o outro se dá conta da ação do primeiro e reage a ela mas a ação adequada, no caso, é dirigida a um terceiro objeto. Seguir uma instrução, freqüentemente se encontra neste caso. Ocorrem ações sociais reciprocamente dependentes mas não reciprocamente orientadas.
Em terceiro lugar está se referindo a relações sociais que se constituem de seqüências temporais de eventos de interação social em que cada evento é afetado pelos anteriores e afeta os posteriores. As seqüências de interação entre mãe e filho, usualmente longas, estão neste caso.
Todas essas instâncias que poderiam, talvez, ser designadas pelo rótulo de encontros sociais, participam do nível interativo ao qual vínhamos nos referindo. Em termos paradigmáticos, a interação social (propriamente dita) representa esse nível.
Sendo as ações constituídas de uma face objetiva, cujo recorte é o comportamento, e de uma face subjetiva composta por processos afetivos e cognitivos subjacentes, a interação é um momento de contato inter-objetivo que abre espaço para a comunicação inter-subjetiva. A elucidação do que está aí envolvido constitui um dos problemas fundamentais para a compreensão do humano em suas dimensões psicológica, social e cultural.
Entre os modelos de interpretação possíveis, destacam-se aqueles que chamaríamos, sem muito apuro na denominação, de modelo de transmissão, modelo co-construtivista, modelo sócio-genético e modelo funcional.
O modelo de transmissão, vinculado à teoria da informação (Shannon e Weaver, 1949) eqüivaleria ao que Valsiner (1989) chama de modelo de transmissão unidirecional em que, a partir de um código, um emissor emite uma mensagem a um receptor que a decodifica. O significado presente no emissor se transfere e é incorporado no receptor.
O modelo co-construtivista eqüivaleria ao que Valsiner (1989) chama de modelo de transmissão bidirecional em que, a partir de um código, um emissor emite uma mensagem a um receptor que ativamente a reconstrói no processo receptivo e a internaliza, reconstruída.
O modelo sócio-genético, vinculado principalmente a Vygotsky (1988), desloca o interesse para as relações entre o subjetivo, comumente referido como intra-subjetivo, e o inter-subjetivo que, como Góes (1991) enfatiza "não é o plano 'do outro' mas o da relação do sujeito com o outro" (p. 19). Nesse modelo, é de grande importância o conceito de internalização que faz a ponte entre o subjetivo e o inter-subjetivo. Como diz a autora "as funções psicológicas que surgem e se consolidam no plano da ação entre sujeitos, tornam-se internalizadas, isto é, transformam-se para constituir o funcionamento interno " (p. 18).
O modelo funcional não inclui nenhum tipo de conceito referente à internalização. As correspondências que podem ser estabelecidas entre as ações dos membros envolvidos não são teorizadas em termos de alguma forma de interpenetração. A interação é concebida como composta por desenvolvimentos paralelos que são mutuamente afetados (e assim articulados) de acordo com princípios identificáveis. Uma visão desse tipo, bastante difundida na Psicologia, pode ser encontrada, por exemplo, em Ferster et al (1977), de orientação behaviorista, ou em Le Ny (1967) da Psicologia Social francesa de orientação marxista.
O objetivo desta comunicação foi o de alinhavar argumentos a favor de uma perspectiva que olhe o Homem no interior de seu mundo sócio-cultural. Do ponto de vista da Psicologia, parece que o estudo da interação é o caminho para isso.
Referencias Bibliográficas
Carvalho, A.M.A. (1989) O lugar do biológico na Psicologia. Biotemas, 2, 81-92. [ Links ]
Ferster, C.B., Culbertson, S. e Boren, M.C.P. (1977) Princípios do Comportamento. São Paulo: HUCITEC-EDUSP. [ Links ]
Ginsburg, G.P., Brenner, M. e von Cranach, M. (1985) Discovery Strategies in lhe Psychology of Action. London: Academic Press Inc. [ Links ]
Góes, M.C. (1991) A natureza social do desenvolvimento psicológico. Cadernos Sedes, 24, 17-24. [ Links ]
Hinde, R.A. (1981) The bases of a science of interpersonal relationships. Em: S. Duck e R. Gilmour (Orgs.). Personal Relationships 1: Studying Personal Relationships. New York: Academic Press. [ Links ]
Le Ny, J.R (1967) Materialismo e Psicologia social. Em: L. Althusser, S. Ossowsky, J. Joja e J.F. Le Ny (Orgs.). Dialética e Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Zahar Editores. [ Links ]
Ostrower, E (1988) A construção do olliar. Em: A. Novaes et al (Orgs.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Shannon, CE. e Weaver, W. (1949) The Mathematical Teory of Communication. Urbana III: University of Illinois Press. [ Links ]
Valsiner, J. (1989) Human Development and Culture. Lexington, Massachusetts: Lexington Books. [ Links ]
Vygotsky, L.S. (1988) A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
(1) Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação.