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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.5 n.1 Brasília  1985

 

ARTIGO

 

O psicólogo e sua ideologia*

 

 

Antonio Carlos Gil

Professor do Instituto Metodista de Ensino Superior e do Instituto Municipal de Ensino Superior de São Caetano do Sul - São Paulo

 

 

Tanto em virtude das características de sua formação acadêmica, quanto das formas de que se reveste sua atuação profissional, o psicólogo tende a ser visto como alguém profundamente vinculado com as mais caras aspirações humanas. Reforça esta tendência a percepção que não poucos psicólogos manifestam acerca de sua atuação profissional. Não é raro encontrar psicólogos que vêem em sua atividade um dos mais válidos esforços em favor da humanização das relações interpessoais e da libertação dos indivíduos.

Quando, porém, se considera que a prática profissional do psicólogo tem sua origem no âmbito das contradições da sociedade industrial e que muitos de seus instrumentos foram consolidados graças ao apoio de aparelhos repressivos, como o militar, essa imagem deve necessariamente ser questionada.

Muito se pode especular acerca da participação e da responsabilidade social do psicólogo. Entretanto, a abordagem concreta e significativa, desse problema exige o concurso de investigação empírica e sistemática, apoiada por um quadro de referência teórica suficientemente explicativo e abrangente.

O interesse na busca de respostas significativas a esse problema motivou a realização de uma pesquisa, que esclarecesse alguns pontos referentes ao trabalho e à ideologia do psicólogo. Esta pesquisa, tomando como marco teórico fundamental a idéia de Gramsci de que a burguesia, para exercer a coerção sobre outras classes sociais, necessita do apoio de grupos "auxiliares", procurou verificar em que medida o psicológo pode ser identificado como participante desse grupo. Em outras palavras, procurou verificar se o psicólogo pode ser considerado um intelectual "orgânico", ou seja, um elemento que, mediante o desempenho de atividades intelectuais, ajuda a reforçar o poder da classe dominante.

O estudo deixa claro que o psicólogo favorável à aplicação da psicologia ao trabalho manifesta igualmente atitudes favoráveis em relação ao sistema capitalista. Com menor grau de significância, observa-se também que os psicólogos que manifestam atitudes mais favoráveis aos procedimentos clínicos apresentam menor grau de adesão à ideologia capitalista. Todavia, a fraqueza desta relação leva a considerar que a maioria dos adeptos da psicologia clínica — geralmente mais críticos em relação a muitos aspectos que envolvem relações sociais — não associam as condições desumanizadoras da sociedade ao sistema político dominante. Esta constatação guarda correspondência com recente manifestação de Madre Cristina Sodré Dória, em que afirma que apenas 25% dos psicólogos estão conscientes dos graves problemas sociais do País. Acredita a Madre que a média estatística dos psicólogos "não é nem reacionária, é alienda" e "faz o jogo do sistema sem saber" (Jornal do Psicólogo, 1981).

Para testar essa hipótese, foi desenvolvido levantamento bibliográfico e documental, com vistas a reconstruir a história da formação e da prática psicológica no Brasil. Esta pesquisa envolveu também consulta por questionário a 103 psicólogos que exercem atividades profissionais na Grande São Paulo, com o objetivo de levantar sua ideologia política e ocupacional.

 

A FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO

O início do ensino de psicologia no Brasil dá-se logo após a Proclamação da República, com a introdução da disciplina no currículo das escolas normais. A inclusão da psicologia nas escolas superiores, por sua vez, pode ser relacionada diretamente às mudanças educacionais ocorridas após o movimento revolucionário de 1930. Na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo e na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo é que o ensino de psicologia é introduzido em caráter pioneiro, dando origem à era universitária do ensino de psicologia.

As circunstâncias que envolvem a criação dessas escolas e a definição dos currículos de seus cursos deixam claro que a ênfase dada à psicologia, assim como às demais ciências humanas, relaciona-se à necessidade detectada pelas elites da época de serem estudadas concepções racionais acerca do comportamento humano, bem como de serem explorados os conhecimentos e as técnicas científicas, com vistas à solução dos problemas sociais que já não podem mais ser tratados como "casos de política".

Paralelamente à introdução da psicologia nos cursos universitários, o IDORT, órgão criado em 1930, sob a influência da mesma burguesia responsável pela criação da Escola Livre de Sociologia e Política e em parte pela própria Universidade de São Paulo, passa a difundir as idéias de racionalização do trabalho. Logo o IDORT se torna um grande centro divulgador da psicologia aplicada ao trabalho. Beneficiando-se de estreitos contatos com entidades e especialistas estrangeiros, esse instituto passa a desempenhar importante papel na formação de profissionais para a área de psicologia aplicada ao trabalho.

Na década de 40, a psicologia já é reconhecida no Brasil tanto como disciplina científica quanto instrumento para a solução de problemas humanos. A segunda guerra mundial e suas consequências no plano interno, tais como o desenvolvimento da indústria, as migrações para as grandes cidades e as mudanças políticas determinam importantes alterações na estrutura social e na organização da cultura. Em decorrência, observam-se mudanças na percepção acerca das funções sociais da educação. As ciências humanas passam a ser vistas como capazes de proporcionar explicações mais satisfatórias acerca das atividades econômicas, políticas e administrativas, bem como técnicas para garantir seu aperfeiçoamento.

Como consequência dessa nova percepção acerca das possibilidades das ciências humanas, observa-se o incentivo à sua difusão. A criação da Fundação Getúlio Vargas, em 1944, constitui um dos mais eloquentes exemplos da preocupação com a preparação de técnicos habilitados para o tratamento racional dos problemas administrativos e sociais. Nessa instituição é criado, em 1947, o Instituto de Seleção e Orientação Profissional, que passa a desenvolver importantes pesquisas e cursos na área de psicologia aplicada ao trabalho. Na Universidade de São Paulo, em 1953, é proposta a criação do primeiro curso de formação de psicólogos, o qual será efetivamente implantado em 1957. Logo a seguir outros cursos são criados e, em 1962, graças à Lei Federal número 4.119, é regulamentada a formação do psicólogo e o seu exercício profissional.

Embora a tradição de atuação profissional do psicólogo fosse mais evidente nas áreas escolar e industrial, o currículo definido para os cursos de formação de psicólogos volta-se fundamentalmente para a área clínica. Nesta, o número de psicólogos atuantes é bastante reduzido, trabalhando geralmente em equipe com outros profissionais, sob a supervisão de médicos; a afinidade predominantemente exercida é a didática.

Fica claro que os cursos de psicologia implantados com base na legislação específica, habilitando profissionais para uma área até então tida como monopólio dos médicos, e menos voltados para a indústria e a escola, logo hão de se mostrar bastante distanciados da realidade do mercado.

A inadequação dos cursos de psicologia à realidade do mercado de trabalho torna-se ainda evidente com o crescimento quantitativo do número de psicólogos. O baixo nível de absorção de psicólogos pelas empresas e entidades educacionais constitui bons indicadores dessa situação, embora se possa alegar que para isso contribua também a percepção deformada dos empregadores em relação ao psicólogo.

Este quadro passa a preocupar as autoridades educacionais. Tanto é que em 1978 o Ministério da Educação e Cultura, por intermédio do Departamento de Assuntos Universitários, elabora um documento propondo mudanças no currículo do curso de psicologia. Desenvolvido a partir de procedimentos metodológicos bastante discutíveis e evidenciando nítido conteúdo ideológico, o documento é enviado a todas as escolas de psicologia do País para apreciação. Tão logo, porém, professores e alunos tomam conhecimento de seu teor, inicia-se intensa controvérsia em torno das propostas apresentadas.

Na maioria das escolas de psicologia o documento é amplamente debatido. Entidades constituídas por psicólogos e mesmo por intelectuais ligados a outras áreas repudiam suas propostas. O tópico mais criticado é o que propõe a ação preventiva da psicologia em domínios tais como terrorismo, desvios sexuais e desvios ideológicos.

As manifestações tornam-se tão intensas que o próprio Conselho Federal de Educação desmente a iminência de mudanças no currículo de psicologia, define o documento como simples estudo e suspende as atividades dirigidas a esse fim. E até hoje o currículo, com ligeiras alterações, permanece o mesmo definido em 1962.

 

O TRABALHO PROFISSIONAL DO PSICÓLOGO

Não se pode falar na existência de psicólogos no Brasil pelo menos nas três primeiras décadas do século. As únicas atividades que podem ser classificadas como psicológicas nesse período aparecem intimamente vinculadas à medicina, mais especificamente à psiquiatria e à neuriatria. A presença de educadores no campo da psicologia é muito restrita nesse período. O prestígio dos médicos é tão grande e a identificação da psicologia com a medicina tão notória que os educadores se sentem pouco motivados a atuar nessa área.

A ação dos educadores no campo da psicologia começa a se evidenciar somente a partir de 1930. São fatores importantes na determinação dessa ação a difusão dos testes psicológicos e as alterações políticas provocadas pelo movimento revolucionário. A revolução de 30 encontra alguns pedagogos preparados para proceder à reforma educacional. Assim é que, em 1931, Lourenço Filho reorganiza o ensino em São Paulo e faz o primeiro largo ensaio de homogeneização de classes por meio de testes. Outra categoria profissional que passa a ter atuação significativa na prática psicológica nesse período é o engenheiro. Esse profissional, cuja atuação até então se configurava no âmbito da infra-estrutura social, vê sua posição significativamente alterada em decorrência da articulação econômica, social e política observada a partir de 1930.

A incursão do engenheiro no campo psicológico evidencia-se com a criação do IDORT, em 1930. Esta entidade, animada pelo movimento de racionalização do trabalho, de Taylor e Fayol, com ampla participação de engenheiros entre seus sócios e dirigentes, apresenta, entre outros objetivos, o de divulgação das técnicas psicológicas aplicadas ao trabalho industrial. Tão significativa se torna a atuação do IDORT, e conseqüentemente dos engenheiros no campo psicológico, que a esse instituto passa a se associar a maioria dos profissionais que se dedicam à psicologia aplicada ao trabalho industrial, até fins da década.

A vinculação desses profissionais ao IDORT implica, de certa forma, a vinculação do próprio trabalho de psicologia aplicada à ideologia assumida pela burguesia. Isto porque o IDORT, organizado por grupos urbanos economicamente dominantes, procura difundir no seio da sociedade civil uma ideologia favorável à organização econômica e social compatível com a hegemonia da burguesia paulista.

Com o advento do Estado Novo, em 1937, animado por forte espírito centralizador, o IDORT sofre inúmeros golpes e passa a perder sua hegemonia no campo da psicologia aplicada. Outros órgãos, criados sob a influência do IDORT, são também desativados, como é o caso do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional da Estrada de Ferro Sorocabana, que chegara a prestar orientação direta a setenta e cinco por cento das ferrovias brasileiras.

A hegemonia dos trabalhos nesse campo passa a ser do Governo Federal. Constitui exemplo significativo dessa nova situação a criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), em 1938, que passa a influir decisivamente na seleção de pessoal de vários estados. A Fundação Getúlio Vargas, cuja criação foi também animada pelo Governo Federal, torna-se a mais importante entidade dedicada à aplicação profissional da psicologia, sobretudo a partir da implantação do Instituto de Seleção e Orientação Profissional, que teve como primeiro diretor o professor Emilio Mira y Lopes.

Na década de 50 a presença do psicólogo (ou do psicotécnico, como também é chamado) já é bastante significativa no âmbito dos serviços estatais e paraestatais. Nas escolas, embora já exista a função de orientação educacional, a presença de um profissional especialmente voltado para atividades psicológicas não é ainda requerida. Nas clínicas observa-se a presença de psicólogos aplicando testes e outras técnicas psicológicas, sobretudo em crianças e adolescentes. Entretanto, a falta de base legal para o exercício autônomo da psicologia e a identificação da atividde clínica como privativa do médico tornam praticamente inexistente essa atividade em consultório particular.

A luta desses profissionais pela regulamentação da profissão se efetiva em fins da década de 50 e, finalmente, em 1962, é regulamentada a profissão. Com sua consolidação, a atuação do psicólogo se manifesta basicamente em quatro áreas: clínica, industrial, escolar e magistério.

A área clínica vem sendo a preferida pelos psicólogos, desde a regulamentação da profissão: possivelmente pelo fato de ser a que mais possibilita a realização profissional, em termos de autonomia, ou ainda por evocar similaridade com a profissão do médico — símbolo de profissão liberal socialmente prestigiada.

Essa inequívoca preferência pela atuação na área clínica tem sido responsável por várias distorções. Embora sendo a área que por sua natureza deveria exigir maior responsabilidade, treinamento e amadurecimento profissional, representa para boa parte dos psicólogos a área de ingresso na profissão. Outra distorção pode ser identificada no referente ao mercado de trabalho, visto que a maior preferência pela área clínica provoca o desequilíbrio em relação à área de absorção de trabalho. Por fim, há o problema do elitismo da profissão, porque sendo a aspiração da maioria dos psicólogos a prática da psicoterapia em consultório particular, sua atuação tende a restringir-se às camadas economicamente mas favorecidas.

Dado que até o advento da lei que regulamentou a profissão de psicólogo, a atividade psicoterapêutica era exercida exclusivamente pelos médicos, em várias ocasiões surgem conflitos entre as duas categorias profissionais. Durante a própria tramitação do projeto de lei no Congresso, são notadas pressões de grupos ligados à área médica no sentido de ser retirado o item referente à competência do psicólogo para atuar na solução de problemas de ajustamento. O conflito mais significativo ocorrido desde a regulamentação da profissão foi, entretanto, o decorrente da apresentação, em 1980, de um projeto de lei de autoria do deputado Salvador Julianellí à Câmara Federal. Esse projeto, se aprovado, tornaria privativa do médico a utilização de procedimentos psicoterápicos em psicopatologia, bem como toda atuação classificada como psicanálise. Determinaria, ainda, que o atendimento individual em psicologia ocorresse sempre mediante prescrição ou indicação médica. Tão intensas foram, porém, as manifestações dos psicólogos e de outras categorias que seriam prejudicadas com a aprovação do projeto, que, antes mesmo de ser votado, o deputado Salvador Julianelli decidiu pela sua retirada.

A área industrial, apesar de ter sido uma das primeiras em que a psicologia passou a ser aplicada no Brasil, não vem apresentando expansão compatível com o crescimento da indústria e a difusão da ciência psicológica no País. Entretanto, percentagem significativa dos psicológos, que efetivamente exercem a profissão, encontra-se nesta área. O próprio currículo de psicologia responde em parte por essa situação, visto estar dirigido fundamentalmente para a área clínica, proporcionando, conseqüentemente, pouca informação referente à área industrial. O setor da empresa que mais absorve psicólogos é o de seleção de pessoal, seguido pelo de treinamento e de avaliação de desempenho. Poucos são, entretanto, os psicólogos que ocupam cargos de assessoramento ou de gerência de recursos humanos.

Na área industrial também são observados conflitos com outros profissionais, sobretudo com os administradores de empresa. Embora a regulamentação da profissão de técnico de administração tenha ocorrido posteriormente à de psicólogo, aquela define como campo de atuação do administrador uma série de atividades, dentre as quais seleção de pessoal e relações industriais. Durante muito tempo os psicólogos manifestaram profunda apatia perante essa situação. Todavia, nos últimos anos vêm sendo observadas significativas reações. É significativo lembrar que, no ano de 1982, um projeto de lei aprovado na Câmara Federal, que tornaria privativas do técnico de administração atividades tradicionalmente desenvolvidas por psicólogos, pôde ser obstruído no Senado graças ao empenho do Conselho Federal de Psicologia e de outras entidades formadas por psicólogos. A área de aplicação da psicologia que reúne o menor número de profissionais atuantes é a escolar. Isto em parte ocorre porque os cursos de formação de psicólogos oferecem poucos subsídios para a eficiente atuação nesta área. Também porque as atividades de orientação escolar são confiadas não ao psicólogo, mas sim ao pedagogo, por força da legislação.

A maior presença de psicólogos escolares é verificada nas escolas particulares de primeiro e segundo graus, o que, de certa forma, reforça a percepção acerca do caráter elitista da profissão. É indiscutível que o psicólogo se sente pouco atraído pela atuação na área escolar. Um dado significativo está na regulamentação da profissão de orientador educacional, ocorrida em 1973. Esta torna bastante limitada a competência do psicólogo para atuar na área educacional, já que declara privativo daquele profissional o desempenho de inúmeras atividades, inclusive a de coordenar os trabalhos de orientação vocacional. O ensino da psicologia não se torna privativo do psicólogo com a regulamentação da profissão. Por essa razão, apesar de a psicologia ser hoje disciplina obrigatória em vários cursos superiores e de 2° grau, o magistério não representa área de grande absorção de psicólogos. A própria disciplina Psicologia Educacional, obrigatória em todos os cursos de formação de professores, tem sido atribuída com muito mais freqüência a pedagogos que a psicólogos. É já têm sido registrados casos em que psicólogos só puderam fazer valer seu direito de lecionar psicologia Educacional no segundo grau mediante medida judicial.

 

COMO O PSICÓLOGO VÊ SUA PROFISSÃO

Para se conhecer o que pensam os psicólogos acerca de sua profissão e de suas implicações ideológicas foram consultados, mediante questionários, 103 profissionais atuantes na Grande São Paulo.

Com vistas à obtenção de resultados comparativos, procurou-se selecionar uma amostra que envolvesse um número significativo de psicólogos atuantes tanto na área clínica quanto na industrial. Como conseqüência, essa amostra ficou assim distribuída quanto à área de atuação.

 

 

Com relação ao local de atuação dos psicólogos, foram obtidos os seguintes dados:

 

 

Também foram obtidos outros dados sócio-econômicos acerca da amostra considerada. Assim, verificou-se que 70% pertencem ao sexo feminino e igual percentagem exerce a profissão no máximo há cinco anos. Os níveis salariais mostraram-se bastante diferenciados, sendo que cerca de 30% recebe até três salários mínimos por mês e cerca de outros 30%, mais de dez.

Pôde-se verificar que o nível de vencimentos dos psicólogos está significativamente associado a três variáveis: sexo, idade e área de atuação. Assim, os maiores salários estão com os homens, com os que apresentam mais tempo de atuação e com os que atuam na área industrial. Com relação à área industrial — que é a mais bem remunerada, fica claro também que os que aí atuam apresentam de modo geral muito maior experiência profissional anterior à formação em psicologia.

A maioria dos psicólogos mostra-se de alguma forma satisfeita com a profissão, embora, em bem menor número, com os vencimentos. Os dados deixam bem claro, ainda, que os psicólogos da área industrial são menos satisfeitos profissionalmente, mas, por outro lado, são os mais satisfeitos com os vencimentos. Psicoterapia aparece nitidamente como a atividade preferida dos psicólogos. Mais de 40% indicam-na como uma das duas em que preferem atuar. E embora poucos atuem em pesquisa, cerca de 15% indica preferência por esta área.

Com relação à orientação teórica com que mais se identificam, foram obtidas 30 respostas diferentes e 12 dos pesquisados nada responderam. A categoria com maior número de respondentes é a que indica a orientação psicanalítica. Seguem-se a orientação rogeriana, a comportamentalista e a analítica. Aparecem também respostas indicando orientação do tipo "eclética" e "variável", e outras como "comportamental e "rogeriana" e "marxista, dialética, fenomenológica". As respostas indicam confusão de percepção quanto à orientação seguida, mostrando um conhecimento falho quanto a teorias e sistemas em psicologia, aparecendo juntas orientações bastante distintas, daí resultando combinações estanhas como as acima apresentadas.

Os procedimentos clínicos em psicologia são bem vistos pela maioria dos pesquisados, apesar de cerca de 40% admitirem que a atividade clínica, voltando-se para problemas de ajustamento individual, pode de alguma forma impedir que se considerem as forças desumanizadoras da sociedade que agem sobre o indivíduo. Já com relação à atuação na área industrial, não se observa a mesma favorabilidade. A grande maioria dos psicólogos tem algum tipo de restrição a essa área. O que é mais interessante, porém, é que essas atitudes não se relacionam significativamente com a área em que os psicólogos atuam.

Com relação aos sistemas políticos, a maioria dos psicólogos mostra alguma simpatia pelo socialismo e faz críticas ao capitalismo. Entretanto, cerca de um terço dos pesquisados vê no capitalismo o regime que melhor garante as liberdades humanas e o socialismo como indesejável ou inviável.

Os dados referentes à ideologia ocupacional dos psicólogos expressam bastante distanciamento em relação ao pretendido quando da regulamentação da profissão. Isto porque a maioria dos psicólogos aceita o assalariamento como a forma de atuação mais coerente com o mundo contemporâneo e número significativo veria com bons olhos a "estatização" dos serviços psicológicos. Os psicólogos que atuam na área industrial são os mais favoráveis ao assalariamento, como seria esperado. Entretanto, estes não se identificam mais com o capitalismo que os psicólogos que atuam em outros áreas. Não deixa de ser interessante notar também que os que manifestam opiniões mais favoráveis à psicologia industrial são os mais críticos em relação ao capitalismo. Estes dados conduzem, portanto, à invalidação da hipótese que associa o trabalho profissional do psicólogo ao papel de intelectual orgânico.

 

CONCLUSÕES

Da análise do material coletado ao longo do trabalho de pesquisa, podem ser extraídas algumas conclusões acerca do trabalho profissional e da ideologia manifestada pelos psicólogos. Entretanto, essa mesma análise dos dados sugere que outros aspectos do problema devam ser investigados. E também que o papel social do psicólogo deva ser estudado não apenas a partir das percepções e atitudes desses profissionais, mas sobretudo a partir do significado de sua ação concreta em relação às superestruturas sociais.

As análises desenvolvidas nos níveis da formação e do trabalho profissional do psicólogo possibilitam identificar inadequações dessa categoria, tanto em relação ao atendimento das coletividades sociais, como também no referente aos interesses das classes fundamentais.

As reivindicações dos profissionais que atuavam na área na década de 50 visavam basicamente a regulamentação de uma atividade desenvolvida então no âmbito das escolas e das empresas. A regulamentação da profissão e dos cursos de Psicologia, no entanto, enfatizou a atividade clínica, muito pouco exercida até então fora dos círculos médicos. Criada essa situação, tornou-se inevitável o interesse preferencial por clínica, manifestado já pelos próprios candidatos aos cursos de Psicologia. As próprias entidades psicológicas e os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia voltaram-se preferencialmente para a defesa das prerrogativas dos psicólogos nessa área.

A defesa da atuação nas áreas industrial, escolar e mesmo no magistério foi descuidada, sendo esses espaços gradativamente ocupados por outros profissionais. Tal situação implicou não apenas a perda de considerável parte do mercado de trabalho, mas também o esbanjamento das possibilidades de atuação na superestrutura econômica.

Não se pode, pois, identificar a atuação do psicólogo como a de "intelectual orgânico", no sentido dado por Gramsci. Em âmbito empresarial, a atuação do psicólogo é fundamentalmente operacional. O empresário não vê no psicólogo um elemento que a ele possa se vincular organicamente a fim de dar consistência à sua posição hegemônica, tal como ocorre com o engenheiro, o economista e o técnico de administração.

A atuação do psicólogo na área clínica, tornada a mais nobre opção para a categoria, não representa também uma opção satisfatória. Concorrendo com o psiquiatra — categoria que já obteve significativa aceitação social, mercê de sua inclusão no setor médico —, o psicólogo tem encontrado ambas dificuldades para se firmar profissionalmente. Embora possa trazer maior satisfação que outras áreas, a clínica não vem possibilitando nem os rendimentos nem a estabilidade desejada para o psicólogo que nela atua. Além do mais, o trabalho clínico do psicólogo não apresenta grande significado social, sendo freqüentemente visto como "atividade de luxo".

A ausência de experiências clínicas revestidas de preocupação com as verdadeiras forças que atuam contra o indivíduo no seio da sociedade concorre para a aceitação de que os serviços psicológicos desempenham funções latentes (Kas Wan, 1981). Estes serviços, enquanto destinados à solução de problemas íntimos de uma parcela insignificante da população, deixam transparecer funções compensatórias exercidas em benefício de minorias sociais.

Essa atuação do psicólogo na área clínica deixa traduzir um forte conteúdo ideológico invidualista e despreocupado com as instituições sociais. E o currículo dos cursos de formação de psicólogos contribuem para reforçar essa tendência.

A recente proposta de reforma de currículo, por outro lado, reflete uma preocupação de ordem pragmática e também ideológica, já que envolve a idéia básica de "psicologização" dos problemas sociais. É provável mesmo que essa proposta represente apenas uma manifestação de tendências dirigidas à alteração do perfil profissional dos psicólogos e que procuram vinculá-los às classes dominantes. Não representaria isto mais que um impulso em direção à cooptação desse profissional com vistas a transformá-lo em auxiliar ou aliado daquelas classes ou, em outras palavras, transformá-lo em intelectual do tipo "orgânico"?

A análise das respostas fornecidas pelos próprios psicólogos, por sua vez, proporciona sustentação empírica para várias hipóteses. Assim, ficou evidente a relação positiva entre a satisfação profissional e a idade, a área e o tempo de atuação do psicólogo.

O psicólogo que atua em clínica é o mais satisfeito profissionalmente. Estes dados reforçam as proposições já estabelecidas de que a área clínica é a preferida pelos psicólogos. No entanto, o psicólogo que atua nesta área não manifesta muita satisfação com os vencimentos. Esta situação constitui importante fator na determinação da "angústia" por que passam muitos psicólogos: optar entre a satisfação profissional que pode ser proporcionada pela atuação em clínica e a estabilidade profissional, mais facilmente identificada com a área industrial.

Os psicólogos mais idosos e os que têm maior tempo de atuação são os mais satisfeitos profissionalmente. Os mais idosos são também os mais satisfeitos com os vencimentos. Não há, porém, relação significativa entre tempo de atuação e satisfação com os vencimentos. As outras variáveis, além da idade, que respondem com mais intensidade pela satisfação com os vencimentos são o sexo e área de atuação. Pode-se, assim, estabelecer que o psicólogo mais satisfeito com os vencimentos é o homem que atua na área industrial e situado nas faixas etárias superiores. Estes dados não serão, certamente, muito estimulantes para a maioria dos psicólogos que se vêm formando nos últimos anos, visto que pertencem, em sua grande maioria, ao sexo feminino e almejam, principalmente, o trabalho clínico.

Os dados aqui obtidos também fazem crer que a opção pela área industrial não é produto apenas de uma análise feita pelo psicólogo recém-formado em face do mercado de trabalho. Há relação bastante significativa entre essa opção e o "back-ground" empresarial dos psicólogos. Aqueles que apresentam maior experiência de trabalho em empresas já desenvolveram, certamente, atitudes mais favoráveis à atuação nessa área, o que veio a facilitar a opção profissional.

Com relação à ideologia, que constitui o ponto central do planejamento da pesquisa, não foi possível a obtenção de muitos resultados significativos. Uma importante hipótese que foi comprovada é a que relaciona a atitude perante a psicologia industrial e a ideologia política. Também mostrou-se significativa a relação entre atitude perante a psicologia industrial e a atitude perante o assalariamento. As variáveis sócio-econômicas não mostraram grande poder de explicação no que se refere à ideologia tanto política quanto ocupacional.

 

 

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* Resumo de tese, apresentada à Escola Pós-Graduada de Ciências Sociais da Fundação Escola de Sociologia Política de São Paulo, como requisito para obtenção do grau de Doutor em Ciência.