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Psychê

versão impressa ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) v.11 n.20 São Paulo jun. 2007

 

ARTIGOS

 

O sentimento de culpa e a ética em psicanálise

 

Guilt feeling and ethics in psychoanalysis

 

 

Taís Ribeiro GasparI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo analisa o modo como a psicanálise entende a relação entre sentimento de culpa e ética. Inicialmente associamos o mal-estar no humano à falta de orientação para seu agir no mundo; a partir daí caracterizamos o projeto ético como a busca por esta orientação, e conseqüentemente, como uma tentativa de superação do mal-estar. A análise freudiana sobre o sentimento de culpa revela que a forma como este projeto se articula em nossa civilização termina por engendrar o mal-estar. Nesta perspectiva, o sentimento de culpa pode ser entendido como fruto de uma determinada forma de articulação do problema ético.

Palavras-chave: Sentimento de culpa, Mal-estar, Desorientação, Ética, Psicanálise.


ABSTRACT

This paper analyses how psychoanalysis understands the relation between guilt feeling and ethics. We associate the human malaise to the lack of orientation of man action in the world. Thus, we characterize the ethical project as a search for such orientation, and therefore as an attempt to overcome the referred malaise. Freudian analysis of guilt feelings reveals that the way the ethical project is articulated in our civilization gives rise to this malaise. In this view, guilt feeling can be understood as a determined way of the articulation of an ethical problem.

Keywords: Guilt feeling, Malaise, Misguidance, Ethics, Psychoanalysis.


 

 

O tema abordado neste artigo é o sentimento de culpa em sua relação com o campo das questões éticas, pretendendo elucidar o modo como a psicanálise analisa esta relação. Buscaremos caracterizar o sentimento de culpa como um mal-estar que surge em razão da falta de orientação do sujeito para seu agir no mundo. Esta caracterização permitirá situar o sentimento de culpa como um problema ético, ou seja, como um problema que diz respeito ao modo como a busca pela orientação está articulada no humano.

Freud (1930) define o mal-estar como sendo essencialmente sensação de culpa e o caracteriza como o maior entrave ao projeto civilizatório. O que se delineia sob a análise freudiana do mal-estar é o impasse do sujeito – sua impossível adequação ao ideal de universalidade que lhe é imposto pelo Outro. Esse ideal seria o articulador do sentimento de culpa, na medida em que estabeleceria um determinado critério para a satisfação do sujeito. Ora, o estabelecimento de um critério, ou ainda de um princípio, sempre gera a exclusão daquilo que não se submete a ele (Calazans, 2004). O ideal de universalidade pretenderia englobar tudo, nada excluir. Contudo, esta pretensão esbarra em um empecilho – a violência, que se mostra irredutível à razão (Perine, 1987). Nesse sentido, a violência – expressão daquilo que resiste a ser incluído no princípio de universalidade – pode ser caracterizada como a fonte do mal-estar na civilização; por não se submeter aos ideais razoáveis ela é condenada a se manifestar como sentimento de culpa.

A fim de evitar confusões quanto ao uso que faremos do termo “ética”, cabe ressaltar que o utilizaremos em duas acepções: na primeira, ele poderá ser equiparado ao termo “moral”, pois colocará em evidência uma vertente normalizadora da ética. Na segunda, o termo “ética” estaria mais ao lado das formulações lacanianas sobre uma ética própria à práxis psicanalítica – ética que não se aliaria a uma função normalizadora, mas tenderia para a singularidade, para a posição que cada sujeito assume frente à falta de uma norma universal, uma verdade absoluta ou um Bem Supremo.

Contudo, acreditamos que definir o termo “ética”, e além disso diferenciá-lo do termo “moral”, não é tarefa simples, pois existem várias concepções de ética e de moral, inclusive dentro do próprio campo psicanalítico, como demonstram Junqueira e Coelho Jr. (2005). Quando tentamos incluir nessas definições uma concepção também filosófica do problema, como exige nossa análise (que parte da maneira como o problema ético é construído pela filosofia, para então criticá-lo à luz das teorizações freudianas), a questão da definição desses termos se complica ainda mais. Segundo Martins (1998), a ética se diferenciaria da moral (que seria caracterizada pelo postulado de uma verdade absoluta, ou de regras universalmente válidas, exteriores ao sujeito, mas que se imporiam a ele como dever) por meio do respeito à singularidade dos sujeitos, ou às diferenças que subsistem à revelia das tentativas de uniformização pretendidas pelas regras supostamente universais. Nesse sentido, a moral se colocaria contra a singularidade e ao lado da oposição entre o indivíduo e a sociedade, pois obrigaria o sujeito a se submeter a um critério externo, a ceder alguma coisa de sua singularidade em prol da normalização das condutas. Acreditamos que esta diferenciação entre ética e moral está de acordo com o que Lacan formula sobre esse tema no seminário sobre A ética da psicanálise (1959-60). Para ele, a moral estaria atrelada à crença em um Bem Supremo e terminaria sempre por engendrar um ideal de conduta para o sujeito. A moral incidiria, portanto, sobre o campo do ideal (o imaginário). No entanto, a elaboração do conceito de objeto a permite que Lacan situe a ética não no imaginário, como havia feito com a moral, mas no “real” – campo onde o objeto a, nomeado por ele de aCoisa (das Ding), surge como objeto de desejo para o sujeito, mas também como objeto perdido desde sempre. Desta forma, o campo da ética se descolaria do campo da moral, pois se não existe bem que possa preencher o campo vazio deixado pelo objeto a, é preciso que o sujeito o invente, mas esta invenção nunca será universal, já que o modo como o sujeito articula seu desejo em relação a coisa – objeto de desejo – será sempre única.

Embora consideremos esta distinção entre os conceitos de “moral” e de “ética” que se delineiam – principalmente a partir da obra de Lacan &–, optamos por não distingui-los em nosso estudo. Usaremos o termo ética tanto para falar de uma instância normalizante que se impõe ao sujeito (e cujos efeitos pretendemos analisar ao longo do trabalho), bem como para falar dessa ética singular, que escapa ao universal engendrado pela moral. Esta opção pela não distinção dos termos (embora consideremos a distinção de conceitos ou sentidos desses termos) deve-se ao fato de pretendermos destacar uma evolução no próprio conceito de ética, a partir das teorizações freudianas. O objetivo de nosso trabalho é justamente o de destacar os impasses engendrados por uma ética que chamamos de “superegóica” (para a qual talvez coubesse melhor o termo moral, no sentido lacaniano), e abrir caminhos para se pensar uma “ética do desejo”, que falaria justamente da posição do sujeito frente à falta de um bem supremo e da possibilidade de que ele se imponha como paradigma universal para a satisfação dos sujeitos.

 

O sentimento de culpa em uma perspectiva filosófica: uma satisfação não legitimada

A exigência de legitimação universal para toda ação humana é tradicionalmente veiculada pela filosofia1, e pode ser tomada como a expressão máxima de uma ética que encontra no ideal de universalidade o horizonte que serve para orientar, para legitimar as ações do sujeito. A busca pela orientação para o agir é o que caracterizaria um projeto ético2. O ser humano pode ser definido como um ser que, ao se diferenciar da animalidade, ao tomar consciência de si, perde a orientação natural para a satisfação. Ao perder a orientação, o homem não pode se furtar à tentativa de reencontrá-la; ele então, diferentemente dos outros seres, cria para si uma necessidade não natural: quer se compreender e quer viver em um mundo sensato, onde tudo possa ser compreendido.

Segundo a perspectiva filosófica, o que causaria sofrimento ao homem é o absurdo, a falta de sentido, cuja expressão maior seria a violência porque dispensa o discurso e o próprio sentido. O homem buscaria superar as contradições, os conflitos e a violência que deles decorrem. Ele desejaria viver em um mundo harmonioso e esta harmonia só seria possível em um mundo sensato onde tudo – atos, relações, desejos – seriam legitimados pela razão. O critério da veracidade de um sentido seria a universalidade, ou seja, aquilo que pode ser aceito por todos de modo irrefutável. Para a filosofia, o encontro deste sentido seria a única forma de superar o mal-estar. Nessa perspectiva, a satisfação humana encontra-se identificada à razão, e a insatisfação seria decorrente da distância do homem em relação à própria razão: tudo que não é razoável se configuraria como motivo de insatisfação, como mal-estar.

A filosofia configura-se, assim, como um caminho pelo qual o homem busca superar a violência, tentando justificar e desenvolver sua escolha pela razão. A justificação se faz necessária – pois é justamente na justificação, na atribuição de um sentido razoável para o existir humano, que consiste a satisfação que a filosofia se propõe a alcançar.

O desenvolvimento da razão, a construção do mundo sensato (civilizado), é tratado por um campo de estudo da filosofia que é denominado de ética – “a ética é o estudo da conduta ideal; o mais elevado dos conhecimentos, dizia Sócrates, é o conhecimento do bem e do mal, o conhecimento da sabedoria da vida” (Durant, 1926, p. 27). A ética pode ser entendida ainda como uma tentativa de evitar, diminuir ou controlar a violência (Chauí, 1996), com o objetivo de alcançar uma satisfação plena, ou seja, a felicidade. Ela visaria, portanto, superar o mal-estar, cuja principal causa seria a violência e seus efeitos (a falta de sentido). No entanto, a violência só se mostra como um empecilho à satisfação para o sujeito que a identificou com a razão, e por este motivo não aceita como satisfação àquelas não razoáveis. É em vista de um ideal – de um mundo civilizado e sensato – que a violência é condenada e destinada a causar problemas à satisfação.

O mal-estar na civilização pode então ser caracterizado como o resultado da violência, mas em que acepção? Naquela em que a violência se mostra como ausência de sentido ao dispensar a argumentação, o discurso, ou seja, ao dispensar a própria razão. Portanto, considerar a violência como um problema supõe a busca de uma satisfação razoável, supõe um ideal de satisfação que seria justamente o ideal filosófico, segundo o qual a satisfação só é possível em consonância com a razão. É nesta acepção que a violência se coloca como problema. Mas como podemos ainda identificar este mal-estar decorrente da violência com o sentimento de culpa?

O mal-estar expressaria a ausência de sentido, ou seja, de orientação para a existência humana. A violência como expressão máxima desta falta de sentido seria o grande entrave à satisfação razoável, devendo ser renunciada pelo homem, em função de um bem maior que seria a satisfação não da animalidade, mas da racionalidade. O problema é que a violência seria ainda uma forma de satisfação, embora não legitimada pelo critério da universalidade. Esta satisfação não-legitimada é que daria origem ao sentimento de culpa, o qual não expressaria uma falta de satisfação, mas a presença de uma satisfação que não é, no entanto, legitimada pela razão. A proposta ética veiculada pela filosofia se apresentaria como uma tentativa de solução para o problema do mal-estar ao dar uma direção para a existência humana – a significação, ou melhor, a ordenação do mundo, fazendo-o coincidir com a razão. Contudo, tal tentativa cai em um impasse – ao identificar a satisfação com a razão e opor a si a violência, a proposta filosófica torna-se problemática, pois a satisfação se mostra irredutível à razão. Essa irredutibilidade da satisfação à razão é que apresentaria como efeito o sentimento de culpa.

 

O sentimento de culpa para Freud: uma satisfação além do princípio do prazer

A análise freudiana sobre o sentimento de culpa explicita o problema da irredutibilidade da satisfação humana aos padrões pré-estabelecidos. Freud revela que o mal-estar sentido como culpa é engendrado pela própria tentativa de erradicação da violência, ou seja, de superação do mal-estar. Essa análise vem questionar o modo como tradicionalmente se constitui o projeto ético – como tentativa de superação do mal-estar por meio da erradicação da violência.

Freud, desde suas primeiras obras (1895), dedica-se a analisar o problema da satisfação no humano. A tentativa de encontrar uma orientação para a satisfação configura-se sempre como um problema ético, ou seja, como um problema relativo ao campo dos valores, que é o campo de problemas propriamente humanos (Calazans, 2004). No Projeto, Freud discorre sobre um aparelho psíquico que parece ter sido feito para barrar a satisfação almejada pelo sujeito. Na tentativa de conceber um aparelho que explicasse o funcionamento “normal” do psiquismo, Freud acaba por se enveredar por caminhos tortuosos, muitas vezes sem saída, onde tudo leva a crer que um tal aparelho não foi feito para funcionar. Freud

parte de um aparelho cujos dados são os mais opostos a um resultado de adequação e de equilíbrio. Ele parte de um aparelho que, por sua própria tendência, se dirige ao engodo e ao erro. Esse organismo por inteiro parece feito não para satisfazer a necessidade, mas para aluciná-la (Lacan, 1959-60, p. 40).

Entenderemos a satisfação como sendo a realização de uma tendência, de uma meta. No caso específico do aparelho descrito no Projeto, a tendência consiste na eliminação completa, pelos neurônios, das quantidades de energia que recebem. No entanto, esta meta é incompatível com a vida: “com efeito, como poderia sobreviver um organismo que funcionasse segundo esse princípio? Como poderia ele existir, se a própria noção de organismo supõe a manutenção de uma diferença estável de nível energético em relação ao que o rodeia?”(Laplanche e Pontalis, 1998, p. 363). Esta dificuldade leva Freud a postular uma meta menos drástica para o aparelho: reduzir a quantidade de energia ao nível mais baixo possível, mantendo apenas um mínimo necessário para a manutenção da vida. A satisfação inicialmente almejada seria perigosa, pois coincidiria com a morte – a redução das tensões a zero. É, portanto, o impedimento da satisfação plena que permite a sobrevivência do organismo. Esboça-se uma primeira orientação do sujeito para a satisfação por meio do princípio do prazer; no entanto, a satisfação visada já não pode mais ser aquela que coincidiria com a morte, pois trata-se de uma satisfação moderada pelo prazer. O próprio princípio do prazer se estabeleceria em decorrência da inexistência de um fundamento a priori para o campo das questões éticas.

O termo princípio pode ser definido como uma lei, uma regra ou preceito que serve para regular, ou segundo o qual atribuímos certa regulação para o curso de uma ação. Os princípios servem para explicar, eles tornam inteligível um evento, pois se estabelecem como condição de possibilidade para esse evento. Nesse sentido, poderíamos dizer que os próprios eventos são criados pelos princípios.

Freud não deixou de postular princípios para explicar os fenômenos psíquicos. Desde suas primeiras teorizações sobre as neuroses ele é levado a buscar o sentido dessas afecções, bem como em suas teorizações sobre o aparelho psíquico que também implicam no estabelecimento de um princípio, de uma direção para os eventos mentais. Esse sentido, essa direção, Freud atribui inicialmente ao princípio do prazer, estabelecendo-o, desse modo, como princípio regulador do psiquismo. Ao se apresentar como princípio primordial no psiquismo, o princípio do prazer estabelece um tipo de regulação baseado nas sensações de prazer e desprazer. Assim, é justamente o estabelecimento do princípio que determina o que é sentido como prazer ou desprazer. O princípio do prazer se mostra como condição de possibilidade das sensações de prazer e de desprazer, apresentando-se ainda como uma tentativa de regulação das quantidades de energia que circulam na mente. A sensação de desprazer é, desta forma, relacionada com o aumento da quantidade de energia livre na mente e a sensação de prazer com a redução desta mesma quantidade.“ O princípio do prazer estabelece como tendência reguladora o evitar o desprazer, por isto visa reduzir as tensões geradas pelo aumento das quantidades de energia. Como ressaltam Laplanche e Pontalis (1998), não se trata de um princípio hedonista, no sentido tradicional do termo, pois não postula que a finalidade das ações humanas seja obter o prazer, mas a tentativa de evitar um desprazer. Trata-se, portanto, de um princípio negativo que não orienta sobre o que se deve fazer, mas sobre o que se deve evitar.

Freud, apesar de estabelecer o princípio do prazer como soberano no psiquismo, não deixa de estar atento às falhas a que este princípio estaria exposto. É desta forma, buscando dar consistência à tendência ao prazer – elevada ao estatuto de lei que regula o funcionamento psíquico – que Freud identifica alguns desvios nesse princípio, os quais não chegam a descaracterizá-lo, já que estão a serviço de sua defesa.

O princípio do prazer dizia respeito a um sujeito inicialmente alienado do mundo que o circunda, cuja satisfação é obtida em si mesmo. Esse sujeito, no entanto, não pode permanecer isolado em si mesmo; sua sobrevivência implica que ele reconheça a presença deste mundo e tente se orientar nele. Orientar-se no mundo é fundamental, em última instância, para a sobrevivência do sujeito; e em primeira instância, para fugir ao desprazer a que o psiquismo se vê exposto. Esse desprazer, que sempre corresponde a um aumento de tensão, pode ser causado pelas excitações provenientes do mundo externo e pelas excitações provenientes do próprio organismo. Embora possa parecer paradoxal, são estas – as excitações internas – que forçam o sujeito a reconhecer a presença do mundo externo. As necessidades internas não podem ser satisfeitas em si mesmas, implicam na presença de objetos do mundo externo. Inicialmente esses objetos são alucinados, tudo que o organismo quer é se livrar do desprazer; por isso, sua primeira atitude é reavivar a imagem dos objetos que um dia serviram à sua satisfação, mas estas imagens, sendo apenas alucinações, fracassam na eliminação da tensão, e todo um mecanismo precisa ser desenvolvido para dar conta da eliminação do desprazer. Surge assim o princípio da realidade, que implica em adiar a satisfação até que se encontre o objeto adequado a ela. Esse princípio objetiva promover a satisfação, mas para tal tenta fazer com que o sujeito encontre na realidade; o objeto capaz de apaziguar as necessidades geradoras de desprazer. Essa busca – pelo objeto desejado – já era realizada pelo princípio do prazer; contudo, o princípio da realidade tenta ser mais eficaz que esse primeiro, justamente por levar em conta a realidade. Essa tentativa de eficácia implicará muitas vezes em adiamentos e desvios dos caminhos “mais curtos” para a satisfação em função das condições impostas pelo mundo exterior. Mas como Freud ressalta:

a substituição do princípio do prazer pelo princípio de realidade não implica a deposição daquele, mas apenas sua proteção. Um prazer momentâneo, incerto quanto a seus resultados, é abandonado, mas apenas a fim de ganhar mais tarde, ao longo do novo caminho, um prazer seguro (1911, p. 241-242).

As formulações de Freud acerca dos dois princípios que regem o funcionamento mental não devem ser, contudo, colocadas no lugar do fundamento para o campo das questões éticas. Um princípio não pode ser confundido com um fundamento, pois ele é fruto de uma articulação lógica, e surge justamente devido à falta de um fundamento a priori e indeterminado que sirva para orientar a ação humana. É porque falta o fundamento que os princípios se põem a regular as ações do sujeito. Os dois princípios descritos por Freud seriam uma tentativa de regulação para o psiquismo. Se tal tentativa surge é porque originalmente essa regulação inexiste. Nesse sentido, as postulações freudianas não se colocam do lado do discurso filosófico – que busca um enunciado integralmente legitimado para orientar as ações do sujeito. Ao postular o princípio do prazer, Freud (1930) descobre que não há uma harmonia entre a tendência que este princípio veicula (tendência que também é veiculada pela filosofia) com o universo inteiro, seja com o macrocosmo ou com o microcosmo. Desta forma, o princípio do prazer, que inicialmente poderia ser considerado como uma resposta às questões éticas (a falta de orientação) que afligem a humanidade, não aponta na direção de alguma solução para o problema que o coloca em funcionamento – o da falta de prazer, ou em termos filosóficos, da falta de sentido, já que nesse discurso o prazer alia-se à razão.

No texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905) introduz o termo pulsão em sua discussão sobre a problemática da satisfação humana. Este termo é definido como o representante psíquico de uma fonte endossomática e contínua de excitação. Trata-se de uma exigência de trabalho feita ao psiquismo, que tem sua origem no corpo. A pulsão é descrita como um impulso que busca satisfação, contudo sem possuir um direcionamento para atingi-la. Ele define os supostos caminhos para a satisfação pulsional – partindo de uma organização oral da libido até se atingir a genital. Mas paralelamente à postulação de uma unificação das pulsões parciais sob o primado de uma zona genital, Freud depara-se com a característica essencialmente perverso-polimorfa da sexualidade que não consegue reunir em um todo o conjunto das pulsões parciais. Desta forma, fica exposta a parcialidade da satisfação que não encontra sequer um objeto predeterminado para tal. O que se delineia é a perda da orientação natural do homem, inclusive para a satisfação sexual.

Ao explicitar o problema da sexualidade, Freud continua evidenciando um problema que diz respeito ao campo das questões éticas – o problema da falta de um fundamento capaz de orientar o homem no mundo, de conduzi-lo à satisfação. É ainda nessa perspectiva que ele tenta traçar os destinos possíveis para a pulsão (Freud, 1915a). Nessa análise ele constata que é sempre na ausência de um destino predeterminado que a satisfação pulsional esbarra, já que falta para o humano uma orientação natural para a satisfação. Contudo, essa satisfação sempre ocorre. Nesse ponto observa-se uma disjunção entre a satisfação e o prazer – essa disjunção é claramente expressa no mecanismo de recalque, o qual implica em uma tentativa de manter longe da consciência o representante psíquico de uma pulsão, cuja satisfação seria sentida como desprazer pelo ego do sujeito. Ao buscar afastar da consciência o representante pulsional que gera desprazer, o mecanismo de recalque promove uma cisão no aparelho psíquico, dando origem ao inconsciente. A satisfação pulsional, Freud (1915b) esclarece, é sempre agradável em si mesma, embora irreconciliável com certas reivindicações e intenções do ego. O que se observa por meio do recalque é o “impossível” de uma satisfação pulsional que não se submete ao princípio do prazer.

Freud é levado a se deparar com um além do princípio do prazer, e nele descobre uma outra forma de regulação para o psiquismo. Uma forma de regulação que – por não submeter a pulsão ao princípio do prazer – promove uma satisfação que pode ser desprazerosa. Aparece assim o problema da legitimação da satisfação, que seria aquela que se dá em consonância com o princípio do prazer. Constata-se, por intermédio da luta entre pulsões de vida e de morte, que não há tentativa de regulação da violência que tenha êxito em atingir seu objetivo – ligar, regular, regulamentar toda energia livre. Há uma impossibilidade que é inerente à satisfação tal como pretendida pelo princípio do prazer, pois, como já mencionamos, todo princípio deixa de fora um resto que não pode ser submetido a ele. No caso do princípio do prazer, ele exclui a pulsão de morte. Transpondo essa exclusão para nossa análise sobre a ética, constatamos que em um princípio que tem a universalidade da razão como meta, ficam excluídas as manifestações violentas. Essa exclusão se manifesta por meio de condenações morais que se fazem sentir como culpa – sentimento de estar sempre inadequado ao mundo, harmônico e regulado pelo princípio.

A análise freudiana da satisfação pulsional coloca em evidência o caráter ético do problema tratado – a conclusão a que se chega ao analisar o movimento pulsional é a de que não há uma tendência, um caminho integralmente legitimado que nos conduza à satisfação. O princípio do prazer tenta fazer as vezes desse caminho, mas falha ao tentar regular toda satisfação do sujeito, já que há sempre um resto pulsional irredutível em toda tentativa de regulação; um resto que só consegue se manifestar além do princípio do prazer.

O mito freudiano sobre o assassinato do pai, que descreve o processo de internalização de uma lei externa, expressa o modo como a interdição passa a simbolizar uma perda de satisfação para o sujeito. A interdição na satisfação pulsional pode ser entendida como conseqüência de nossa própria constituição como humanos, de nossa perda da orientação natural ao sermos submetidos ao sistema lingüístico (Miller, 1997a). É somente de forma mítica que o sujeito pode significar sua sensação de falta ou perda de satisfação, e é como sentimento de culpa que essa falta se expressa. A análise freudiana desse sentimento revela que ele expressa na verdade não uma falta, mas a presença e até mesmo o excesso de uma satisfação pulsional, que não é, no entanto, reconhecida pelo ego do sujeito como satisfação. Acompanhando as formulações de Freud sobre o sentimento de culpa, desde a primeira definição em 1907, em que esse sentimento é relacionado à satisfação pulsional, até a elaboração do conceito de superego, somos levados a constatar que o sentimento de culpa expressa a presença irrevogável de uma satisfação, ainda que desprazerosa, para o sujeito.

O sentimento de culpa é sempre entendido por Freud como decorrente da renúncia à satisfação pulsional. Essa renúncia teria origem no medo da perda do amor do Outro de quem o sujeito é dependente. Freud denomina de superego a instância que exige renúncia. É como expressão de uma desarmonia fundamental no interior do sujeito e em sua relação com o mundo que o termo superego pode ser entendido. Na pulsão de morte veiculada por essa instância, Freud descobre uma radical impossibilidade de harmonia do sujeito com os ideais da civilização. É nesse sentido que ele descreverá o mal-estar expresso sob a forma de sentimento de culpa como intrínseco à civilização.

Freud traça o seguinte percurso para a constituição do superego: ele é formado pelo resíduo das primeiras escolhas objetais feitas pelo sujeito e também pode ser caracterizado como uma formação reativa contra essas escolhas, pois estas são incestuosas, e mantê-las poderia acarretar dano ao ego, que se vê obrigado a renunciá-las. Para recalcar essas escolhas, o ego introjeta a força do pai, e essa força introjetada ergue-se como uma instância (o superego), que passa a exercer domínio sobre o próprio ego. O ego respeita e teme essa instância, pois sendo a representante da lei paterna, ela o ameaçou um dia de castração. O sentimento de culpa seria uma forma de manifestação deste medo e expressaria a angústia sentida pelo ego quando não consegue se colocar à altura das exigências superegóicas, e por isto teme ser punido (castrado) por ele, assim como temia ser punido pelo pai. O superego vem desempenhar, portanto, o papel que era próprio à autoridade externa, exigindo renúncia pulsional e punição. A diferença entre o superego e as autoridades externas é que o superego é onisciente em relação aos desejos inconscientes. O resultado é que “uma ameaça de infelicidade externa – perda do amor e castigo por parte da autoridade externa – foi permutada por uma permanente infelicidade interna, pela tensão do sentimento de culpa” (Freud 1930, p. 131).

A origem do superego, e conseqüentemente do sentimento de culpa, está diretamente vinculada com o tema da ética. O superego surge, na verdade, em decorrência do fracasso do princípio do prazer em eliminar o fator pulsional, cujo aumento gera desprazer ao aparato psíquico (Miller, 1991). Essa instância seria a última tentativa (após o fracasso do princípio do prazer) de promover um ordenamento dos investimentos pulsionais, exigindo a renúncia pulsional em função de um bem maior, que seria o ideal do ego. Contudo, o sentimento de culpa revela que esta tentativa também fracassa. O fracasso manifesta-se da seguinte maneira: o fator pulsional não é de todo eliminado, há sempre um resíduo nessa operação que torna infinita a exigência de renúncia pulsional, e o sujeito se sente culpado por não estar à altura de responder ao ideal do ego.

Freud remete à pulsão de morte o fator pulsional que resiste a ser ordenado pelo princípio do prazer e que se manifesta através do superego. A partir da análise da neurose obsessiva, da histeria, da melancolia e também do masoquismo, Freud conclui que a pulsão de morte pode ser tratada de três modos: 1) ela pode ser tornada inócua por meio da fusão com componentes eróticos; 2) ela pode ser, em parte, desviada para o mundo externo sob a forma de agressividade; ou 3) ela pode continuar seu “trabalho interno de estorvo”, ao se voltar contra o próprio sujeito.

É o retorno da agressividade renunciada ao ego o que constitui o superego; a força que põe em funcionamento o superego é derivada da pulsão de morte, que impedida de se manifestar no mundo externo volta sua violência contra o próprio ego (Freud, 1924). É, portanto, a própria renúncia à satisfação, em função primeiramente de uma autoridade externa e posteriormente em função do próprio superego, que gera a sensação de culpa. A conclusão a que Freud chega é de que há uma satisfação com a própria renúncia à satisfação, pois as pulsões renunciadas pelo ego ganham no superego uma forma de alcançar a satisfação por meio de sua severidade e agressividade contra o próprio ego. O que vai sustentar a renúncia pulsional será, portanto, uma satisfação com esta renúncia. Quanto mais se renuncia, mais o superego exige renúncia. A instância que deveria impedir a satisfação acaba se satisfazendo com essa atividade de exigir a renúncia. Quanto mais o sujeito atender a essa exigência, mais culpado ele se sentirá.

Nessa satisfação, evidentemente sentida como desprazerosa pelo ego, encontra-se a fonte dos motivos éticos – essa é a conclusão a que Freud chega ao analisar o sentimento de culpa.

 

O mal-estar como um problema ético ou a ética como mal-estar

A partir das considerações freudianas, somos levados a pensar a relação entre o mal-estar e a ética. A análise do sentimento de culpa, além de apontar para o mal-estar como um problema ético, situa a própria ética como mal-estar.

Ao analisar o sentimento de culpa na obra freudiana, percebemos que a instância crítica que veicula o senso ético ao sujeito – o superego mostra-se incompatível com o que Freud (1930) alegou ser o objetivo de toda vida humana: a felicidade – que é caracterizada como o sentimento de prazer derivado da satisfação das necessidades &–, pois a própria satisfação das necessidades (pulsionais) torna-se problemática com a instauração do superego. Este exige renúncia a essas satisfações por serem causa de desprazer; mas, paradoxalmente, se satisfaz com a própria exigência de renúncia. Podemos notar que há em jogo duas espécies de satisfação: uma que é regulada pelo princípio do prazer; e outra que foge a este princípio. A primeira poderíamos associar à satisfação razoável; a segunda, por fugir ao controle da razão, pode ser remetida à violência. O princípio do prazer serve para impedir que a satisfação ultrapasse o limite do bem-estar, mas é justamente neste ponto de equilíbrio, que seria proporcionado pelo princípio do prazer, que a figura do superego faz sua aparição. O Superego se instaura desprezando esse equilíbrio: sua exigência de renúncia, e por conseguinte, sua exigência de satisfação, não respeitam o bem-estar. Trata-se de uma satisfação que não pode mais ser associada à felicidade, pois causa sofrimento ao ego do sujeito.

Na pulsão de morte veiculada pelo superego, Freud (1930) descobre a radical impossibilidade de harmonia do sujeito com os ideais da civilização. A pulsão de morte pode estar a serviço da pulsão de vida quando visa a destruição de alguma outra coisa em vez do próprio ego do sujeito; mas quando a agressividade dirigida ao mundo é restringida, como acontece em nossa civilização, o único resultado possível é um aumento da autodestruição. Ele constata que mesmo com todos os esforços da civilização para dominar a agressividade, seu empenho não conseguiu ir muito longe s:– não é fácil para os homens abandonar a satisfação de sua inclinação para agressão, ou seja, sua satisfação não razoável – esta satisfação que extrapola os limites do prazer como bem-estar. Por outro lado, os enormes sacrifícios da agressividade impostos ao homem pela civilização tornaram difícil uma vida feliz nela. O que o homem realizou ao se fazer civilizado foi uma troca: “uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança” (Freud, 1930, p.119). O autor não se mostra otimista – apesar de dizer que podemos esperar efetuar alterações em nossa civilização que satisfaçam melhor nossas necessidades, alerta-nos para o fato de que existem dificuldades na própria natureza da civilização que não podem se submeter às tentativas de reformas. Ao tentar controlar a satisfação pulsional, a civilização é forçada a lidar com um resíduo pulsional que foge a qualquer tentativa de controle. Este resto não pode ser eliminado e persiste em causar efeitos, que por sua vez forjam ainda mais estratégias para tentar controlá-lo. Estabelece-se, deste modo, o mal-estar na civilização, fruto de uma exigência impossível de controle das pulsões: de um lado a impossibilidade de inibir adequadamente as satisfações pulsionais; do outro, a própria civilização, que não pode abrir mão da tentativa de controlar as pulsões, já que ela surge justamente nessa tentativa de controle.

Freud conclui seu texto O mal-estar na civilização alertando para o fato de que a grande questão que assola a humanidade é a de saber até que ponto o desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação gerada pela pulsão de morte – até que ponto e a que custos o empreendimento ético terá êxito em controlar a agressividade inerente ao sujeito. A maneira como a sociedade está estruturada implica em um aumento cada vez maior na insatisfação e “o resultado só pode ser um estado de coisas que o indivíduo será incapaz de tolerar” (Freud, 1930, p. 147).

Chegamos, portanto, ao limite do problema caracterizado por Freud como mal-estar na civilização. Sabemos que a instância ética que deveria impedir a manifestação da agressividade surge a partir da própria agressividade que tenta coibir. Por meio da análise do sentimento de culpa podemos caracterizar o empreendimento ético tradicional não como uma via de solução para o problema do mal-estar, mas como sua causa, ao tentar coibir a violência. A ética – como expressão de toda falta de orientação e tentativa de restituição da orientação do homem no mundo – é colocada na base do mal-estar.

O mal-estar seria a causa do projeto ético porque é buscando alívio para esse sentimento que o sujeito se põe a articular uma ética que o induza a renunciar um determinado tipo de satisfação. Contudo, o mal-estar também pode ser entendido como conseqüência desse mesmo projeto ético que induz, pois ele surge de uma tentativa de regulação, que estabelecendo um ideal, ou seja, um critério para a satisfação, condena as manifestações que não se submetem a este critério a se expressarem como sentimento de culpa.

Ora, Freud descobre que é próprio do sujeito não se enquadrar em nenhum critério pré-estabelecido. Isto porque a força que o coloca em movimento – a pulsão – resiste a qualquer tentativa de controle. Deparamo-nos então com o grande paradoxo constatado por Freud: o empreendimento civilizatório e o próprio homem surgem da tentativa de controle das pulsões, contudo a pulsão sempre escapa a esse controle, e quanto mais se tenta controlá-la, quanto mais artifícios são elaborados para contê-la, mais ela escapa.

Como pode então vingar o empreendimento civilizatório? Freud nos diz que qualquer tentativa de controle das pulsões só pode ser empreendida às custas de um mal-estar: “o preço a ser pago pelos avanços na civilização é uma perda de felicidade em decorrência da intensificação do sentimento de culpa” (1930, p. 137).

Ao analisar a ética, Freud se depara com o absurdo da tentativa de controle das pulsões e percebe os efeitos que podem ser gerados por essa tentativa. Deste modo, podemos concluir nossa análise sobre o sentimento de culpa dizendo que a psicanálise o considera como conseqüência de uma determinada proposta ética. É porque se esforça por alcançar os ideais, que supostamente iriam completá-lo, que o homem se sente culpado por não alcançá-los; e quanto mais tenta alcançá-los, mais culpado se sente ainda. Freud, ao analisar os efeitos da ética tal como tem sido veiculada pela filosofia, descobre que o estabelecimento de um ideal termina por produzir os efeitos que ele mesmo visa eliminar. O mal-estar observado na civilização e expresso por meio do sentimento de culpa seria fruto da própria maneira como a civilização está articulada, ou seja, de sua inerente tentativa de erradicar a violência, de significar tudo, sem nada excluir. Mas será que a ética psicanalítica estaria subsumida a essa “ética superegóica”, ou poderíamos falar em uma outra ética, uma ética que seria própria à práxis psicanalítica e que não se confundiria com uma moral que obriga o sujeito a aderir ao círculo vicioso dos ideais? Conforme diz Jacques-Alain Miller, “no horizonte da psicanálise, há uma ética que não é a do supereu; uma ética que não consiste em transformar o gozo primário para que tome a cara feroz e cruel do supereu” (1991, p. 61).

 

A psicanálise: uma nova ética para o sujeito?

Nossa intenção ao analisar os efeitos de uma ética que se funda no imperativo superegóico foi a de abrir caminhos para se pensar uma proposta ética que não engendre necessariamente o sentimento de culpa, pois acreditamos, conforme propõe Badiou (1999), que a aposta psicanalítica se caracteriza justamente por pretender clinicar essa proposta ética que não consegue abrir mão de buscar um fundamento que sirva para orientar as ações humanas. Essa problemática fica visível quando analisamos a sociedade atual onde, de diversos modos e em diferentes contextos, a falta de um referencial, de um fundamento orientador para as ações, se faz sentir de forma contundente. A resposta a essa falta tem sido, em alguns casos, o sentimento de culpa, e em outros, a tentativa de anulá-lo, anulando também o próprio sujeito. De acordo com Roudinesco: “a sociedade contemporânea não quer mais ouvir falar de culpa nem de sentido íntimo, nem de consciência nem de desejo nem inconsciente. Quanto mais ela se encerra na lógica narcísica, mais foge à idéia de subjetividade” (2000, p. 42).

Recentemente, através de um trabalho realizado com professores do ensino fundamental3, foi possível conhecer um pouco mais sobre as queixas e preocupações que os atormentavam e perceber que a principal demanda apresentada por eles era a de uma orientação para o agir: eles almejavam saber o que fazer diante dos impasses enfrentados em seu cotidiano, diante dos casos de violência, de não-aprendizagem, de todas as situações em geral, que fogem aos manuais pedagógicos e psicológicos que tentam seguir. A culpa pela impossibilidade de se atingir um ideal ficou nítida no sentimento de impotência que muitas vezes se manifestava por meio de uma constante insatisfação com a própria profissão. Essa insatisfação certas vezes os levava a uma atitude de desresponsabilização – na falta de uma alternativa para superar os impasses enfrentados, demandam a outros (psicólogos, pedagogos, psiquiatras) a solução para tais impasses, continuavam buscando ideais e permaneciam no campo de uma ética superegóica. O que o trabalho realizado com esses professores caracterizou foi justamente o impasse ético que explicitamos por meio da análise da obra freudiana: a tentativa de se ajustar a um ideal ou, mais do que isso, a tentativa de construir um ideal para que pudessem ao menos tentar seguir, fugindo assim de um enfrentamento da falta, da inexistência da completude que poderia ser proporcionada por um ideal totalizador.

Como pontuamos no início, Lacan (1959-60) distingue a moral da ética. Ao fazer esta distinção, na verdade ele separa os efeitos e as implicações de uma ética superegóica, destinada a se manifestar via sentimento de culpa, de uma ética que ele chama de ética do desejo. Esta se difere daquela superegóica na medida em que aceita a dimensão da falta, em vez de negá-la, como propõe a outra. Trata-se de uma ética que não exorta o sujeito à universalização, pois surge no ponto onde falha a tentativa do sujeito de tudo significar. É nesse ponto de falha, de impossibilidade do sujeito em alcançar das Ding, objeto de seu desejo, que Lacan postula a vertente ética do desejo. É o desejo que permite que o gozo fique circunscrito à castração, na medida em que o acesso ao objeto encontra-se barrado pela própria falta (do objeto). Essa lei, balizada pela castração, não se estabelece do mesmo modo que uma lei imposta pelo superego, lei que exige o impossível – que o sujeito goze, mesmo que seja ao preço de sua aniquilação. Haveria, para Lacan, duas espécies de gozo, conforme esclarecem Junqueira e Coelho Jr. (2005). Um deles seria o gozo do objeto a, caracterizado como mais-gozar, ou seja, como aquilo que resta de todo processo de significação, e portanto, como aquilo que impede a completude, a significação plena. A outra forma de gozo seria aquela decorrente de uma exigência sem limites (exigência superegóica), denominado gozo do Outro &– gozo que desconsiderando a barra imposta pela castração, exorta o sujeito ao encontro do objeto. Tal gozo é caracterizado como mortífero, pois o encontro com o objeto levaria o sujeito à própria destruição, ao anular a falha que o constitui e abolir o universo da demanda. A ética da psicanálise, pensada por Lacan, se estabeleceria como “uma saída do sujeito do campo do gozo mortífero do Outro em direção ao campo mais-gozar, onde o gozo é referenciado à castração, e o desejo, interditado pela lei, é gozado pelas bordas” (Junqueira e Coelho Jr., 2005, p. 115).

Uma ética psicanalítica não se colocaria, portanto, ao lado de uma ética superegóica, a qual pretenderia, na verdade, clinicar. Trata-se de uma proposta ética desconfortável a que a psicanálise propõe, pois não objetiva camuflar a falta, oferecendo um ideal pacificador ao ego. Ética que não aposta na harmonia entre o indivíduo e a sociedade ou na adaptação como garantia de felicidade, uma vez que o ideal de adaptação almejado pelo ego revela-se como um engodo. Mas ética que aceitando a falta como constitutiva do sujeito, abre espaço para que o desejo possa se manifestar, criando sempre novas formas significantes ao redor do vazio deixado pela falta do objeto.

Enquanto a lei que o superego impõe ao ego faz emergir o sentimento de culpa, Lacan situa esse sentimento em outra via, em um outro tipo de ética, em que a única culpa que o sujeito pode carregar é a de ter cedido de seu desejo, ou seja, a culpa por não ter agido em conformidade com seu desejo. Nesse sentido, na experiência analítica caberia ao sujeito a indagação sobre o desejo que o habita, e não a prática covarde da desculpa. Como explicita Miller (1997b), o covarde é aquele que não se responsabiliza por seu desejo. Revelado como verdade única e particular, o desejo abre o horizonte de possibilidades para que o sujeito construa respostas únicas, mas nunca universais, para a pergunta: “o que devo fazer”?

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Taís Ribeiro Gaspar
Rua Rio Acima, 45 – 37460-000 – Passa Quatro/MG
Tel.: (31) 9777-6097
E-mail: taisp4@yahoo.com.br

Recebido em 03/12/06
Versão revisada recebida em 18/01/07
Aprovado em 12/02/07

 

 

Notas

IPsicóloga (Universidade Federal de São João Del Rei); Mestre (Programa de Pós-graduação em Psicologia/UFMG, área de concentração: Estudos Psicanalíticos).
1Nossa análise sobre a perspectiva filosófica tem por base Châtelet (1972).
2O termo ética aqui utilizado é definido, segundo a perspectiva freudiana no texto O mal-estar na civilização (1930), como uma tentativa terapêutica para erradicar a violência. As considerações que Freud faz sobre a ética nesse texto, unidas à concepção de filosofia expressa por Châtelet (1972) e Perine (1987), levaram-nos a associar o empreendimento ético com o filosófico, considerando-os, especificamente para nossa análise, como um único empreendimento que tem por finalidade a busca da orientação por meio da razão e que, para tal, visa a eliminação de seu oposto: a violência.
3Trata-se do Projeto “Eticar – A Ética no Educar: uma abordagem psicanalítica da formação de educadores”, desenvolvido como Extensão Universitária da UFOP. O objetivo desse trabalho foi possibilitar reflexões sobre o tema da ética, por meio da realização de grupos de estudos com os professores da rede municipal de ensino em Ouro Preto. Um relato mais detalhado encontra-se nos anais do VIII Congresso Ibero Americano de Extensão, Rio de Janeiro, novembro/2005.